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OLHAR A FACE ESCONDIDA DA LUA: UMA REFLEXÃO EM TORNO DO PAPEL DA MULHER NA LUTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. O CASO DO MPLA (1960-1965)
Fidel Raul Carmo Reis
Fidel Raul Carmo Reis
OLHAR A FACE ESCONDIDA DA LUA: UMA REFLEXÃO EM TORNO DO PAPEL DA MULHER NA LUTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. O CASO DO MPLA (1960-1965)
Muiraquitã, vol. 11, no. 1, pp. 175-190, 2023
Universidade Federal do Acre
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Resumo: A década de sessenta do século vinte evidencia um tempo decisivo da luta de libertação nacional, designadamente a opção, no quadro da luta anticolonial, pela luta armada. O MPLA- Movimento Popular de Libertação de Angola seria um dos principais actores deste processo que envolveu tanto homens como mulheres. O presente texto propõe, assim, alguns elementos reflexivos, a partir de produções discursivas, em torno do lugar da mulher na luta de libertação, à luz da noção de divisão sexual do trabalho; de modo a contribuir para a problematização das relações de género no seio do MPLA, no decurso da luta de libertação.

Palavras-chave: MPLA, Luta armada, Divisão sexual do trabalho, Angola, Mulheres.

Abstract: The 1960s marked a pivotal era in the fight for national liberation, particularly the option of armed struggle within the context of anti-colonial movements. Among the key participants in this transformative period was the MPLA (Popular Movement for the Liberation of Angola), encompassing both men and women. This text proposes, thus, some reflexive elements from discoursive productions, shed light on the role of women in the liberation struggle, in the light of the notion of sexual division of labor; in order to contribute to the questioning of gender relations within the MPLA, in the course of the liberation struggle.

Keywords: MPLA, Armed struggle, Sexual division of labor, Angola, Women.

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OLHAR A FACE ESCONDIDA DA LUA: UMA REFLEXÃO EM TORNO DO PAPEL DA MULHER NA LUTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL. O CASO DO MPLA (1960-1965)

Fidel Raul Carmo Reis
Universidade Agostinho Neto - Faculdade de Ciências Sociais, Brazil
Muiraquitã, vol. 11, no. 1, pp. 175-190, 2023
Universidade Federal do Acre

Received: 17 February 2023

Accepted: 22 June 2024

INTRODUÇÃO

A década de sessenta do século vinte evidencia um tempo decisivo da luta de libertação nacional, pois assinala a opção pela luta armada. Pode-se assim considerar que esta década foi pontuada por um processo de reconfiguração do espaço nacionalista angolano que se iria traduzir na emergência da organização político-militar[1]. O MPLA- Movimento Popular de Libertação de Angola, seria um dos principais actores deste processo[2].

Tal dinâmica resultou na mobilização de homens e mulheres para o combate político-militar contra a dominação colonial[3]. O que implicou, por sua vez, uma produção discursiva que propunha às militantes e aos militantes uma redistribuição de funções tendo em conta o contexto extra(ordinário); funções que, em nosso entender, remeteram para novas formas de divisão social do trabalho mas, igualmente, para novas formas de divisão sexual do trabalho.

Vamos, assim, propor um esboço reflexivo em torno do lugar da mulher na luta de libertação, à luz da noção de divisão sexual do trabalho, de modo a contribuir para uma problematização das relações entre homens e mulheres no seio do MPLA, no decurso da luta de libertação.

Começaremos por apresentar algumas notas relativamente à nossa abordagem, tendo como referencial teórico o de pensar o lugar da mulher na luta de libertação a partir da relação masculino/feminino e da noção de divisão sexual do trabalho.

Apresentaremos, num segundo ponto, uma breve síntese historiográfica acerca do processo de configuração do espaço nacionalista angolano a partir da década de cinquenta até ao ano de 1960; sendo que, depois desta década, o nosso subsídio historiográfico irá deter-se no processo de configuração e estruturação do MPLA, como organização político-militar, de modo a reforçar a contextualização da nossa temática.

No terceiro ponto, iremos debruçar-nos sobre a evolução dos discursos produzidos no seio do MPLA relativamente ao papel da mulher na luta de libertação, mormente, as funções e tarefas atribuídas, no seio da organização. A nossa abordagem está limitada ao período compreendido entre 1960 e 1965, sendo o universo territorial, deste nosso olhar, o MPLA cuja actividade militar abrangia duas regiões político-militares situadas no norte de Angola[4]. São os limites da nossa reflexão.

EIS O NOSSO OLHAR

Num artigo pioneiro acerca da representação social da mulher no discurso nacionalista e tomando como estudo de caso a geração dos anos cinquenta, em Angola, a socióloga Maria do Céu Carmo Reis, propôs, num diálogo interdisciplinar entre a História e a Sociologia, uma abordagem pertinente acerca da representação feminina no quadro da luta anticolonial (REIS,1987). Mas a importância do artigo passava também por uma perspectiva que relacionava a representação da mulher com o universo masculino. Dezassete anos depois, num artigo na revista moçambicana Tempo, assinado com as iniciais M. C. R. Maria do Céu Carmo Reis explicitava de forma sintética a sua perspectiva. No seu entender, pensar o feminino, implicaria a relação com o masculino na medida em que: o género feminino, a sua construção social, é indissociável da construção de uma outra categoria – a do género masculino (M.C.R, 2004).

Sendo que, na relação entre género masculino e género feminino, esta última categoria adquire:

a forma de uma categoria natural inscrita numa natureza biológica, cuja construção social naturalizada é geralmente ocultada. Como categoria natural, o género feminino deixa de ser encarado como produto de um processo histórico de imposição de uma visão do mundo que legitima a dominação masculina (M.C.R, 2004).

Dominação masculina, enfatizada pelo antropólogo Miguel Vale de Almeida, do seguinte modo:

A relação entre feminino e masculino não é como as duas faces de uma moeda na avaliação moral, mas sim assimétrica, desigual. Trata-se de uma forma de ascendência social que se reproduz, pois, na base de um processo de naturalização. O corpo é o lugar investido simbolicamente para confirmar esta ontologia (ALMEIDA, 1996, p,165).

O mesmo Miguel Vale de Almeida, a partir do conceito de Masculinidade hegemónica e numa perspectiva antropológica, reforça a sua ídeia acerca da assimétrica relação entre o feminino e o masculino[5]:

a masculinidade hegemônica é um modelo cultural ideal que, não sendo atingível por praticamente nenhum homem, exerce sobre todos os homens um efeito controlador, através da incorporação, da ritualização das práticas da sociabilidade quotidiana e de uma discursividade que exclui todo um campo emotivo considerado feminino; e que a masculinidade não é simétrica da feminilidade, na medida em que as duas se relacionam de forma assimétrica, por vezes hierárquica e desigual. (ALMEIDA, 1995, p. 6).

O Sociólogo Pierre Bourdieu oferece igualmente um forte contributo teórico acerca das relações entre o género masculino e o género feminino. Este sociólogo, influenciado por Karl Marx, Max Weber e Emile Durkheim, apresenta um enfoque pertinente dos fenômenos sociais, na medida em que propõe um estudo relacional que ultrapassa as divisões micro/macro e indivíduo/sociedade. A sua análise, das práticas e estruturas sociais em termos de campo, habitus e capital, permite pensá-las como construções históricas e sociais de relações de poder de tal modo naturalizadas, que não são percebidas como relações de poder. Na sua obra, intitulada a «dominação masculina», Pierre Bourdieu demonstra que a relação entre o género masculino e o género feminino pode ser apreendida como uma “ordem social” historicamente construída de relações de poder pois:

funciona como uma imensa máquina simbólica tendendo a ratificar a dominação masculina em que assenta: há a divisão sexual do trabalho, distribuição muito estrita das actividades atribuídas a cada um dos dois sexos, como do lugar, do momento, dos instrumentos dessas actividades; há a estrutura do espaço, com a oposição entre o local da assembleia ou o mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres, ou, no interior da casa, entre a parte masculina, com o lar, e a parte feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; há a estrutura do tempo, dia, ano agrícola, ou ciclo de vida, com os momentos de ruptura, masculinos, e os longos períodos de gestação, feminino” (BOURDIEU, 1999, p. 9).[6]

Desta citação, e tendo em conta a nossa abordagem, vamos reter a noção questão de divisão sexual do trabalho. Para o efeito iremos apelar para os contributos Danièle Kergoat e Helena Hirata. Este apelo deve-se ao facto de estas duas sociólogas, embora revestidas de um profundo ecletismo disciplinar, terem feito uso de um conceito, divisão sexual do trabalho, como modelo de análise das relações sociais de sexo, em distintos contextos históricos e sociais. O conceito de divisão sexual do trabalho veiculado por Danièle Kergoat e Helena Hirata, é, portanto, um conceito maleável. Daí a sua relevância para a nossa reflexão. Um ponto de partida para uma definição da divisão sexual do trabalho é considerar esta última como uma dimensão da divisão social do trabalho a partir das relações sociais entre o sexo feminino e o sexo masculino; relações construídas histórica e socialmente (HIRATA e KERGOAT, 2007, p. 599). As mesmas autoras, acrescentam ainda que a divisão sexual do trabalho “tem dois princípios organizadores: o princípio de separação (existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem “vale” mais que um trabalho de mulher)” (HIRATA e KERGOAT, 2007, p. 599). Mas:

Isto não significa, que a divisão sexual do trabalho seja um dado imutável. […]. Suas modalidades concretas variam grandemente no tempo e no espaço, como demonstraram fartamente antropólogos e historiadores(as). O que é estável não são as situações (que evoluem sempre), é sim a distância entre os grupos de sexo (HIRATA e KERGOAT, 2007, p. 599).

Vamos, então, reter a ideia de “variabilidade das modalidades da divisão sexual do trabalho”, pois existe um acontecimento que concorre para a possibilidade de apreensão de «novas modalidades» de «divisão sexual do trabalho»: a luta armada de libertação nacional. O que nos leva a considerar que, no caso do MPLA, para se compreender a variabilidade, das modalidades da divisão sexual do trabalho, no seio desta organização, há que ter em conta o seu processo de configuração e estruturação. Processo, com antecedentes a partir da década de cinquenta do século vinte.

BREVES NOTAS SOBRE A CONFIGURAÇÃO DO ESPAÇO NACIONALISTA NA DÉCADA DE CINQUENTA

O fim da Segunda Guerra Mundial assinala o início de um novo contexto político e ideológico que, no plano internacional, iria criar as condições para processos de descolonização, quer no continente asiático, quer no continente africano. No caso do continente africano, este período do pós-guerra confirma a consolidação do nacionalismo como ideologia identitária na sua componente de luta anticolonial e de reivindicação territorial, contra a dominação exercida pelas potências coloniais europeias. Angola não iria fugir a esta regra. Será, portanto, neste quadro conjuntural, pós Segunda Guerra Mundial, que se pode também compreender, em Angola, na década de cinquenta, a emergência de organizações políticas, que contestavam não só o arbitrário colonial como formulavam propósitos em torno da questão identitária, designadamente, da identidade nacional (REIS, 2018, p. 41). Esta etapa da luta anticolonial iria materializar-se, na constituição de uma série de organizações políticas, com diversas origens de contestação ao regime colonial, como, por exemplo: PCA - Partido Comunista Angolano; PLUAA – Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola; MIA - Movimento para a Independência de Angola; ELA - Exército de Libertação de Angola; UPA- União das Populações de Angola, (esta com a particularidade de ter sido criada fora do território angolano) ou o MINA - Movimento de Independência Nacional de Angola (REIS, 2018, p. 69-71).

Contudo, na sua grande maioria, as organizações políticas que actuavam em Angola, estavam ainda numa fase embrionária, pouco estruturadas e com escasso número de militantes. A ação política anticolonial destas organizações situava-se no plano discursivo e era sustentado por panfletos (ROCHA, 2002) e (MEDINA, 2003). Daí que, apesar da proliferação destas organizações políticas, as autoridades coloniais tenham conseguido, praticamente, interromper esta primeira etapa do processo de configuração e estruturação do espaço nacionalista, no território angolano, mediante uma vaga de repressão de grande envergadura. A PIDE - Polícia Internacional e de Defesa do Estado, que se instalara em Angola em meados da década de cinquenta, iria desencadear, a partir de Março de 1959, uma vaga de prisões de militantes nacionalistas que se prolongaria no decurso do ano de 1960 (ROCHA, 2002) e (MEDINA, 2003).

Será a partir do exterior (fora de Angola), que o espaço nacionalista angolano se irá reconfigurar e reestruturar, num processo que conduzirá à criação do grupo político-militar com o seu programa, o seu porta-voz, as suas palavras de ordem, as suas ideias-força, o seu armamento, etc. Esta dinâmica irá consubstanciar-se em duas principais organizações políticas nacionalistas angolanas: a UPA/FNLA (União das Populações de Angola/Frente Nacional de Libertação de Angola) e o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) que, durante quase toda a década de sessenta, iriam ser os principais protagonistas da luta anticolonial pela via das armas[7]. Por conseguinte, e tendo em conta a temática da nossa reflexão, iremos apresentar breves considerações acerca do percurso do MPLA, entre 1960 e 1965, de modo a situar uma certa produção discursiva relativamente ao lugar que o género feminino poderia ocupar na luta anticolonial.

O PERCURSO DO MPLA (1960-1965)

Entre 1960 e 1961 podemos reter algumas práticas políticas e organizacionais no MPLA tendo em conta o seu processo de institucionalização como organização político-militar, a saber, a constituição do seu primeiro Comité Director, a publicação dos seus estatutos, que, por sua vez, seriam complementados com o Programa mínimo, o Programa Maior e o seu Regulamento Interno. De certo modo, estas práticas organizacionais, serão o sustentáculo das suas grandes linhas estratégicas e tácticas como organização político-militar.

Entre 1962 e 1964, o MPLA seria atravessado por uma crise interna de grande envergadura para a qual convergiram factores de vária ordem: militar (teatro de luta reduzido), económica (não era assegurada a reprodução da vida material dos militantes), política (sem consenso relativamente à ocupação de posições - distribuição de lugares). Esta situação de conflitualidade interna, estaria também ligada a outros factores como a relação de conflito/competição com a organização UPA/FNLA e a necessidade de ser reconhecida como organização nacionalista pelas instâncias jurídicas internacionais[8]. A Conferência de Quadros realizada em Brazzaville, entre os dias 3 e 10 de Janeiro de 1964, iria assinalar, de ponto de vista político-institucional, o princípio do fim da crise e a consolidação interna do MPLA; a que se seguiria o reconhecimento internacional como organização político-militar. A partir de então, o MPLA estava em condições de iniciar uma efetiva luta armada contra a dominação colonial e anular a sua desvantagem político-militar relativamente à organização rival: a FNLA (REIS, 2018, p.161) e (TALI, 2018, p. 187). Seria sensivelmente a partir deste período que o MPLA iria adquirir, de forma mais sistemática, apoios externos, nomeadamente, da URSS e da maioria dos restantes países do denominado Bloco Socialista. O que implica uma breve nota relativamente aos alinhamentos políticos ideológicos do MPLA.

No decurso do seu processo de constituição, o MPLA pautou-se por uma prática discursiva, que comportava, de certo modo, uma forma de representação do mundo, que se reflectia nas suas práticas organizacionais. Tratava-se de uma produção discursiva que era sustentada por instrumentos teóricos e conceptuais provenientes do marxismo e de certa forma do leninismo[9]. Tal deve-se, em certa medida, ao facto de que os principais produtores ideológicos desta organização tinham seguido uma trajectória profundamente marcada pelo marxismo do ponto de vista filosófico e organizacional. Porém, tal não significa que estas categorias se sobrepusessem ao princípio político englobante: a luta armada de libertação nacional que, por sua vez implicava:

Lutar juntamente com outras organizações patrióticas angolanas, na mais larga união popular, pela liquidação, em Angola, do domínio colonial português e de todas as relações colonialistas e imperialistas, e pela conquista da independência imediata e completa de Angola (LARA I, 2017, p. 583).

Portanto, o MPLA não era um movimento que se representasse como marxista-leninista. Mas esta conjectura merece, contudo, a seguinte ressalva. Está ainda incompleto o estudo dos actores políticos em Angola nas suas relações com as filiações ideológicas. Por vezes tem-se recorrido à filiação política de tipo organizacional para se caracterizar certos agentes. É o caso de Viriato da Cruz considerado marxista por estar na origem da criação do Partido Comunista Angolano ou então Agostinho Neto, pelo facto de ter estado ligado ao Partido Comunista Português. Quanto a nós, uma tal questão pede investigações ligadas, por exemplo, à construção social do marxismo e, de um modo mais abrangente, do campo ideológico nacionalista em Angola, assim como o estudo da circulação internacional das ideias revolucionárias (REIS e REIS, 1996); (LABAN e MESSIANT, 2003). Esta forma de representar o mundo mediante categorias predominantemente marxistas e até leninistas foi-se tornando mais notória a partir do momento em que o MPLA optou em alinhar com o Bloco Socialista, liderado pela URSS-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Em nosso entender, mormente o princípio do neutralismo positivo, a matriz revolucionária do MPLA facilitou em certa medida o seu alinhamento ao Bloco Socialista. Acresce, ainda, que num contexto de guerra-fria, dificilmente um país africano ou uma organização político-militar poderia manter uma postura de neutralidade efectiva relativamente às duas superpotências. O alinhamento do MPLA ao bloco leste era de certa forma a prática de real polítik mais adequada no sentido de garantir os apoios necessários, tendo em conta os desígnios estratégicos e tácticos de uma organização destinada para o combate político-militar [10]. Este alinhamento ao denominado Bloco Socialista, iria traduzir-se em pronunciamentos de efectiva condenação ao «imperialismo americano» (OMA, 1965). De certa forma, estas categorias iriam influenciar a produção discursiva relativamente ao papel das mulheres na luta de libertação, como veremos já de seguida. Estamos agora em condições de caracterizar alguns discursos produzidos relativamente ao papel da mulher na luta de libertação nacional e que indicam propostas de novas modalidades de divisão sexual do trabalho.

A MULHER NA LUTA DE LIVERTAÇÃO SEGUNDO O MPLA

Um ponto prévio. Este olhar, relativamente à produção discursiva, será sustentado principalmente pelos seguintes subsídios empíricos: os três volumes do livro de Lúcio Lara intitulados: Um amplo movimento e um conjunto de documentos relativos ao primeiro Seminário da OMA- Organização da Mulher Angolana de 10 Out 1965 a 7 Nov 1965 em Dolisie, cidade situada no Congo Brazzaville (actual República do Congo).“ Tal não significa que o universo do MPLA, no período compreendido entre 1960 e 1965 se esgote nestes documentos. No entanto, julgamos que estas fontes contêm indícios do modo como os princípios e as práticas políticas do MPLA se refletiram nos discursos, nomeadamente, sobre o lugar da mulher na luta.

A EVOLUÇÃO DOS DISCURSOS PRODUZIDOS SOBRE A MULHER

Um notório momento de inserção da categoria mulher associada à luta anticolonial encontra-se no Manifesto do MPLA onde consta: “Homens, Mulheres e Jovens de Angola! Lutai pela vossa liberdade! Por um futuro livre, feliz e progressivo para todos!” (LARA I, 2017, p,32). Porém, em 1960, o Comité Director que fora constituído pelo MPLA, era totalmente composto por homens. Muito embora, tivessem sido nomeados conselheiros políticos, de entre os quais uma mulher: Deolinda Rodrigues de Almeida. Mas é nos estatutos do MPLA que se torna possível vislumbrar um momento de explicitação do lugar do género feminino na organização; explicitação sustentada pelo princípio universalizante da não discriminação do género feminino, como consta no artigo 3º: “O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) é uma organização política formada por africanos naturais de Angola, sem discriminação de sexo, de idade, de origem étnica, de crença religiosa e de lugar de domicílio.” (LARA I, 2017, p. 583). Mas trata-se igualmente de um princípio universalizante, que associa a categoria mulher à categoria de cidadão:

Todo o cidadão angolano - sem distinção de nacionalidade ou etnia, de sexo, categoria social, de nível cultural, de profissão, de condições de fortuna, de crença religiosa ou de convicção filosófica- gozará do direito de eleger a partir dos dezoito anos de idade e do direito de ser eleito a partir dos vinte e um ano de idade (LARA I, 2017, p. 586).

Porém, o gênero feminino não deixa de ser uma categoria específica porque: “Em todos os planos - político, social, económico e cultural - a mulher terá os mesmos direitos que o homem. As mulheres e os homens serão efectivamente iguais perante a lei” (LARA I, 2017, p. 589). A partir de 1961 é cada vez mais notório, no MPLA, uma dinâmica de construção de uma divisão sexual do trabalho político com o gênero feminino a ser incluído nas práticas de delegação política. Assim, em Junho de 1961, juntamente com uma proposta de remodelação dos seus órgãos directivos, Deolinda Rodrigues de Almeida é proposta como membro do Comité Director. Fora decidido igualmente a criação de uma secção feminina dirigida por esta última, juntamente com Ruth Neto e Maria Luísa Gaspar (LARA II, 2006, p. 107).Em Novembro do mesmo ano, o Comité Director do MPLA decidira criar o Conselho Político Nacional, com a particularidade deste órgão incluir uma mulher: Deolinda Rodrigues de Almeida (Lara II, 2006, p. 198). Mas, a entrada oficial de uma mulher na direcção do MPLA iria dar-se em Maio de 1962, quando Deolinda Rodrigues de Almeida passou a integrar o novo Comité Director.

Esta inserção da mulher como categoria específica na actividade político organizacional seria reforçada com uma proposta de incluir o género feminino no combate militar, mais propriamente, a sua integração no EPLA- Exército Popular de Libertação de Angola. Tal proposta de divisão sexual do trabalho militar passava pela criação de uma secção feminina do EPLA e tinha os seguintes objectivos:

1º Colaborar estreitamente com a secção masculina em todas as tarefas revolucionárias

2º Organizar a defesa civil das populações

3º Instigar a promoção social da mulher angolana, instruindo-a e educando-a, através de uma intensa campanha de alfabetização, higiene e descomplexificação

4º Socorrer doentes, velhos e crianças

5º Praticar a enfermagem de campanha

6º Cumprir missões especiais, nomeadamente as de espionagem, sabotagem e ligações (LARA II, 2006, p. 452).

Havia, portanto, no MPLA quem entendesse que a criação de uma secção feminina do EPLA seria uma forma de valorizar o papel da mulher na luta armada: “Deste modo, o MPLA que conscientemente tem desprezado a colaboração feminina, concorreria largamente para a emancipação da mulher angolana, fazendo-a participar activamente na revolução ” (LARA II, 2006, p. 452).

Provavelmente esta proposta não passou do papel. No entanto, uma decisão tomada, na Conferência de Dezembro de 1962, seria fundamental no domínio das estruturas do MPLA; decisão que iria em certa medida definir o lugar do género feminino num plano organizacional, pois tornara-se um imperativo “Generalizar uma disciplina de tipo militar a todos os organismos do MPLA, de acordo com a síntese do político com o militar” (LARA II, 2006, p. 452). De entre estes organismos estava provavelmente a recém-formada OMA - Organização da Mulher Angolana cuja constituição reflectia de certo modo uma visão político-organizacional do lugar da mulher, como categoria específica, na luta. Uma visão que não descurava a ascendência do MPLA sobre esta organização feminina.

Assim, na Conferência de Dezembro de 1962, caberia ao MPLA oficializar e determinar o lugar desta organização feminina na luta de libertação:

“Em relação a esta organização, é urgente a tomada de medidas adequadas a uma recuperação acelerada da mulher angolana para a luta. A mulher angolana deve ser mobilizada para:

Assistência social e sanitária

Escolarização

Ser enquadrada política e militarmente

Receber uma formação técnica e política

Participar nos órgãos dirigentes” (Lara II, 2006: 519).

De certa forma, há uma dupla proposta de modalidade de divisão sexual do trabalho. Uma que remete a mulher para actividades consideradas, específicas do género feminino como por exemplo, «assistência social e sanitária e escolarização».[11] E, outra que remete o género feminino para novas actividades como por exemplo “a participação nos órgãos dirigentes e o enquadramento político-militar”[12].

Num comunicado da OMA de 21/12/1962 pode-se denotar uma rápida assunção de tarefas historicamente incorporadas pelo género feminino: “para o cumprimento do seu programa de assistência social e sanitário, de escolarização e de formação técnica, a OMA dispõe de meios financeiros muito precários” (LARA II, 2006, p.536).

Relativamente à participação nos órgãos dirigentes, este processo já estava em curso. Aliás, o Conselho Político Nacional, Órgão supremo do MPLA, criado na Conferência Nacional de Dezembro de 1962, era constituído por 70 delegados dos vários organismos do MPLA sendo que a OMA tinha três representantes (LARA III, 2008, p. 177).

Quanto à questão do enquadramento político-militar, julgamos que poderia ser uma maneira de sujeitar a OMA às práticas organizativas do Movimento, limitando de certa forma a sua autonomia; o que poderia, por sua vez também significar que, dadas as dificuldades internas do Movimento, tornara-se necessário um maior controlo dos seus organismos. Daí que, relativamente à estrutura e organização do MPLA, fora decidido que: “A Organização de Massas (constituída pela OMA e pela JMPLA[13]) seria um dos três subdepartamentos do DOQ - Departamento de Organização e Quadros” (LARA III, 2008, 58 e 361).[14] O que traduz de certa forma o reduzido peso político da OMA no MPLA. Reduzido peso político, vislumbrável pelas críticas proferidas pelo DOQ, relativamente à fraca mobilização, por parte da OMA, das populações junto das fronteiras, como constava no Relatório do Comité Director à Conferência de Quadros que se realizara em Brazzaville entre 3 e 10 de Janeiro de 1964:

Ao contrário do que aconteceu com a juventude, a OMA não se desenvolveu como seria de esperar do élan trazido pela conferência Nacional. [...], a acção da OMA pouco se fez sentir e a sua acção fora de Leopoldville, foi praticamente nula, se se exceptuar o sector do Kwilo, em que houve maior actividade feminina. A pouca actividade da OMA, tem causas profundas que provêm sobretudo da sua constituição. Há por um lado a dificuldade de harmonizar os pontos de vistas e os métodos de acção das senhoras mais idosas e das mais novas. Mas é sobretudo ao facto da OMA, não ter actuado permanentemente nas fronteiras junto das massas mais disponíveis para a luta, que se deve a sua ineficiência (LARA III, 2008, p. 387).

Ou seja, os argumentos sobre a ineficiência da OMA apresentado pelo DOQ situavam-se no plano das divergências internas e no plano da falta de mobilização das populações. Não havia, portanto, um questionamento do seu papel no plano militar. O que pode significar que o unanimismo discursivo da OMA, não dissimulava as suas divergências relativamente ao papel das mulheres na luta. Aliás, a OMA, continuava a apresentar-se e representar-se como um organismo que respondia à necessidade de preparar as mulheres angolanas para as “tarefas da luta armada de libertação nacional”. Tarefas definidas do seguinte modo: “As condições em que a mulher trabalha nas matas, quer preparando alimentos para os guerrilheiros, quer servindo de estafetas, tem forçado o MPLA a preocupar-se com a formação dos quadros femininos” (MPLA/VITÓRIA OU MORTE, 1964, p,7).[15] Definidas as tarefas, trata-se agora de especificá-las, a saber: “assistência aos refugiados; enfermagem; docência e alfabetização” (MPLA/VITÓRIA OU MORTE, 1964, p. 7). Tudo indicia, portanto, que até então, na divisão sexual do trabalho, no âmbito da luta armada, e da relação MPLA/OMA, o papel que se pretendia para esta última estava praticamente definido. As mulheres da OMA tinham por função: o de auxiliar a guerrilha na concretização dos objetivos político-militares (REIS, 1987, p. 158-159).

Contudo, num discurso mais militarizado, uma das comissões da Conferência de Quadros, a denominada Comissão de Desenvolvimento e Luta, apontava para a necessidade de uma reconversão no plano militar do MPLA; sendo um dos princípios desta reconversão “a mobilização da mulher angolana para a luta armada” (LARA III, 2008, p. 421). O que nos leva a uma outra suposição. Se por um lado, o papel da OMA no MPLA parecia estar praticamente definido, por outro, a questão do papel do género feminino na luta armada, no mais amplo quadro do Movimento permanecia uma questão em aberto. Questão em aberto, cujo indício é a heterogénea produção discursiva contida na documentação referente ao Primeiro Seminário da OMA realizado em Dolisie. O Seminário, com duração de quase um mês, de 10 de Outubro a 7 de Novembro de 1965, tinha a particularidade de conter no seu programa um conjunto de temas apresentados tanto por homens como mulheres. Dos temas apresentados pelo género masculino constavam: Ginástica (Benigno Lopes); Horticultura (Joaquim Horácio e Tiago); História, organização e estruturas do MPLA (Dilolowa); História e geografia e economia de Angola (Gilberto); Movimentos nacionalistas angolanos (Dilolowa); Introdução à guerra de guerrilha (Benigno Lopes); Evolução das comunidades sociais (Gilberto); e Coordenação das actividades do MPLA e da OMA (representante do DOQ, provavelmente do género masculino)[16]. Os temas apresentados pelo género feminino eram os seguintes: Organização e estruturas da OMA (Maria Santos); Evolução histórica da mulher nas sociedades (Deolinda Rodrigues); Higiene e saúde (primeiros socorros e alimentação) (Lucila Neto); o papel da mulher na luta armada (Deolinda Rodrigues). Sendo que esta divisão sexual do trabalho didáctico-político pode, em nosso entender, reflectir a distribuição das posições que, tanto mulheres como homens ocupavam na organização.

No respeitante aos discursos produzidos, iremos começar por nos deter num tema sobre a «higiene corporal» apresentado por uma militante de profissão enfermeira e parteira[17]. A sua produção discursiva é sustentada por categorias que remetem para uma forma de divisão sexual do trabalho num espaço e tempo determinados; em que a domus adquire centralidade: “Uma boa dona de casa nunca deve servir a refeição à família ou a visitantes com a roupa suja” (OMA, 1965). Mas a domus é igualmente lugar fundamental de domesticação corporal:

Uma boa dona de casa deve ter um programa diário para os seus trabalhos. O maridtem horas certas para entrar no serviço. Ora ela também deve ter um horário para ter tempo de cuidar da sua casa, de si própria e dos membros da família individualmente sempre com um rosto alegre (OMA, 1965).

Nesta narrativa torna-se perceptível uma modalidade de divisão sexual que remete para um processo de incorporação de distintas construções de género:

As crianças devem ter sempre cabelos curtos, lavados todos os dias, bem penteados e com pouco óleo para melhor se segurar. As meninas que sejam mais pacientes podem usar tranças que devem ser feitas em dias alternados (OMA, 1965).

Distintas construções de gênero que indicam:

princípios antagónicos da identidade masculina e da identidade feminina inscrevem-se assim sob a forma de maneiras permanentes de apresentar o corpo, e de apresentar a própria pessoa, que são como que a realização ou, mehor a naturalização de uma ética (BOURDIEU, 1999, p 23-24).

De certo modo, esta produção discursiva está desfasada do contexto vigente da luta, e mormente, o seu lugar de produção seja o espaço da luta, não deixa, no entanto, de exemplificar a naturalização de uma longa história de socialização de diferença de género em que a relação com o corpo adquire centralidade neste processo. O segundo discurso, referente ao tema: Coordenação das actividades do MPLA e da OMA, é apresentado por um representante do DOQ. Neste caso, o discurso está mais adequado à realidade político-militar da Organização. O mesmo tem a particularidade de apresentar uma modalidade de divisão sexual do trabalho adaptada, em nosso entender, ao contexto de guerra. Porém, trata-se de uma narrativa que, se por um lado demonstra uma rejeição da tradicional divisão sexual do trabalho, por outro, reifica no plano militar, uma longa história de assimetria e de distância entre os grupos de sexo:

Numa Revolução a Mulher pode desempenhar as mesmas tarefas que o Homem desde que a isso esteja decidida. Todos os povos que fizeram Revolução patrióticas são unânimes em realçar a poderosa contribuição da Mulher nos serviços auxiliares do exército (OMA, 1965)[18].

No referente a OMA, a produção discursiva do representante do DOQ reflete, até certo ponto, o lugar que esta organização feminina ocupa no MPLA, a começar pelo uso de expressões que remetem para o imperativo como: «a OMA deve ou deverá». Discurso de autoridade de quem tem o poder de determinar e especificar as atividades reservadas às militantes dessa organização na luta de libertação; quando se trata de atribuir tarefas. Tarefas que, por sua vez, tendem a remeter as mulheres para o tradicional lugar de auxiliares dos homens, como se pode ver nos enunciados: “enquadramento das populações libertadas de modo a atenuar o esforço dos guerrilheiros”; «produção agrícola»; «educação das mulheres (alfabetização e doutrinação)»; «recolha de fundos»; «difusão de panfletos»; «obtenção de informações» (OMA, 1965). Esta adaptação, ao contexto da luta armada, duma assimétrica e desigual relação entre o género feminino e o género masculino será, em certa medida, legitimada com a clássica expressão naturalizada com profunda carga simbólica que cria a ilusão de autonomia desta organização feminina no seio do Movimento: "é evidente que para os problemas especificamente femininos, a OMA continuará a ser a única voz autorizada" (OMA, 1965).

Os dois discursos supracitados exprimem uma prática de naturalização, embora com modalidades distintas, de uma estruturante relação assimétrica e desigual entre os dois géneros. Há como que, de certa forma, uma homologia discursiva pois reproduzem os dois princípios organizadores da divisão sexual do trabalho, a saber, o princípio da separação e o princípio da hierarquização. “Não se trata aqui de enunciar verdades eternas, mas de descrever o fundo comum sobre o qual se desenvolve toda a existência feminina singular” (BEAUVOIR, 1967, p.7). Estes dois discursos terão, em certa medida, o seu contraponto com a narrativa produzida por Deolinda Rodrigues Almeida, relativamente ao papel da mulher na luta armada. Importa sublinhar que, aqui no caso, Deolinda Rodrigues está a desempenhar o papel de formadora, não para atividades tipicamente femininas, mas para a formação político-ideológica das militantes da OMA. Daí que, a sua narrativa, seja sustentada por categorias e conceitos políticos.

Na sua produção discursiva, Deolinda Rodrigues fará uso de categorias políticas em que se denota a influência do marxismo-leninismo; e que, de certo modo, remetem para o subjacente princípio da exploração do homem pelo homem, no intuito de fundamentar a participação da mulher em qualquer «processo revolucionário». Para o efeito, parte do pressuposto de que a mulher é revolucionária. A partir daí, Deolinda irá justificar o porquê» da mulher ser revolucionária: “porque sendo uma parte essencial do povo ela está em primeiro lugar como trabalhadora explorada e como mulher discriminada” (OMA, 1965).

Deolinda insere a categoria mulher na categoria povo. Todavia, segundo a mesma, esta não perde a sua subalternidade na medida em que é vítima de uma dupla exploração: “como trabalhadora explorada e como mulher discriminada” (OMA, 1965). Sendo que, frequentemente, esta dupla exploração remete para o arbitrário sexual e racial: “As mulheres pretas em todo o mundo compreendem bem esta verdade porque elas são discriminadas duas vezes: por serem mulheres e por causa da cor” (OMA, 1965).

Para ultrapassar este duplo constrangimento do género feminino, Deolinda irá apelar para o princípio revolucionário, pois “sem revolução não pode haver direitos para a mulher, a esposa, a mãe” (OMA, 1965). Ao introduzir o princípio revolucionário Deolinda abre, talvez, a possibilidade de um engajamento na luta armada, por parte do género feminino, numa relação menos assimétrica e de menor distância relativamente ao género masculino, pois na sua narrativa a mesma acrescenta às tradicionais funções atribuídas às mulheres, porventura uma nova função: o de guerrilheira. Ora isso abre, por sua vez, a possibilidade de uma nova modalidade de divisão sexual do trabalho: a divisão sexual do trabalho militar; divisão legitimada pela nobreza da causa:

“Hoje nós as angolanas sabemos que há muito trabalho que nós podemos fazer para avançar a nossa luta, desde o preparar o pão do guerrilheiro, tratar os feridos até o fazer parte das milícias e pegar na arma para lutar contra os portugueses nos maquis” (OMA, 1965).

De certa forma, Deolinda Rodrigues exprime uma visão distinta do papel da mulher relativamente aos discursos anteriores, pois, conjuga actividades típicas do género feminino, com uma nova categoria: a mulher guerrilheira - e isso possivelmente num plano puramente militar - categoria ausente das recomendações e resoluções produzidas pela OMA, onde se pode destacar, neste documento, a fidelidade e a subordinação ao MPLA até nos assuntos respeitantes ao género feminino, pois “[...] compete à OMA a resolução dos problemas especificamente femininos, estando essa resolução subordinada aos interesses superiores do MPLA e da sua orientação política geral” (OMA, 1965).

Mas, há um outro aspecto no discurso produzido por Deolinda Rodrigues de Almeida que importa realçar. Esta última, suporta o seu discurso mediante categorias e conceitos políticos. O que reflete, de certa forma, um processo de constituição de um espaço que se foi configurando e estruturando com lógicas e necessidades específicas. Daí que neste lugar, a questão das relações entre o género masculino e o género feminino, já não se coloca nos mesmos moldes do mais amplo universo social. O que nos leva a supor que os discursos, apesar de diferenciados, indiciam que as relações no espaço nacionalista angolano, entre o género masculino e o género feminino, podem, possivelmente, ser apreendidas a partir duma singular forma de divisão sexual do trabalho: a divisão sexual do trabalho político-militar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este texto apresentou-se como um exercício de reflexão em torno do papel da mulher na luta de libertação nacional, tomando como exemplo o caso do MPLA, a partir da noção de divisão sexual do trabalho. Depois de uma breve contextualização, detivemo-nos numa produção discursiva que remetia para a definição e atribuição das actividades que as mulheres deveriam desempenhar no MPLA, no quadro da luta anticolonial; definição e atribuição das actividades que, em nosso entender, são intrínsecas das relações entre o género masculino e o feminino na organização. Estas relações, por sua vez, são indissociáveis do processo de configuração e estruturação do MPLA, como organização político-militar.

Relativamente às funções atribuídas ao género feminino no combate político- militar, foi possível encontrar indícios que remetem para distintas visões acerca do lugar que as mulheres deveriam ocupar na luta de libertação e por conseguinte na organização. Em certa medida, estes discursos reflectem uma história de longa duração de relações assimétricas entre homens e mulheres. É, portanto, no tocante a uma história de longa duração de relações assimétricas que somos impelidos a finalizar com uma última nota.

Esta reflexão foi também um exercício de auto-questionamento tendo em conta que o (re) produtor deste texto é um homem, com toda a carga histórica e simbólica que esta categoria comporta. Daí que este olhar, sobre o papel da mulher na luta de libertação, apelasse aos instrumentos teóricos e conceptuais adequados à prática da investigação histórica. Prática que tornou possível um (certo) olhar a face escondida da lua… qual metáfora de um exercício de objetivação da face escondida da luta.

Supplementary material
Referências
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Notes
Notas
[1] Consideramos dois momentos no processo de configuração e estruturação do espaço nacionalista. O primeiro, assinala as primeiras práticas políticas organizacionais na década de cinquenta. Práticas dinamizadas por pequenas organizações políticas como o MIA- Movimento para a Independência de Angola ou o PLUAA- Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola. Todavia, este processo seria interrompido devido a intensificação da repressão exercida pelas autoridades coloniais. O segundo momento, ocorre quando emerge a organização político-militar a partir da década de sessenta. Ver o ponto: “Breves notas sobre a configuração do espaço nacionalista angolano na década de cinquenta”.
[2] Outro actor político-militar desta dinâmica seria a UPA – União das Populações de Angola que, posteriormente, a par de outra organização política, o PDA - Partido Democrático de Angola iria dar origem em Março de1962 à FNLA- Frente Nacional de Libertação de Angola em 1962. Sublinhe-se que esta organização não está abrangida pela nossa reflexão.
[3] Basta nos determos no corpus documental da época onde são perfeitamente notórias referências à mulher e ao seu lugar na luta de libertação.
[4] No período em questão, as actividades político-militares do MPLA no norte de Angola foram incidindo em duas principais zonas de actuação: uma região que abarcava os então distritos de Luanda, Kuanza Norte, Uige e Zaire e uma segunda região que abrangia o distrito de Cabinda. Ver (TALI, 2018, p. 249).
[5] Acerca do conceito de masculinidade hegemónica, consultar (CONNELL & MESSERSCHMIDT 2013).
[6] Por sua vez, (PAREDES, 2015, p, 71),) citando (CONNELL,1987, p.98) define ordem de género como um “padrão, historicamente construído, de relações de poder entre homens e mulheres e considera a divisão do trabalho, a estrutura do poder e a estrutura da cathexis (sentimentos e emoções) como os principais elementos da ordem do género”. Em nosso entender a relação entre estes elementos constitui um outro problema.
[7] Dizemos quase, porque em Março de 1966 iria surgir outra organização político-militar, a UNITA- União para Independência Total de Angola.
[8] Sobre esta crise, consultar (REIS, 2018) ou (REIS e REIS, 1996).
[9] Cujo um dos exemplos é o princípio do «centralismo democrático».
[10] A propósito do apoio da URSS, ver (TELEPNEVA, 2022).
[11] Relativamente à formação técnica não nos podemos pronunciar, é demasiado vaga.
[12] A noção de enquadramento político-militar carece, em nossa opinião, de uma melhor clareza.
[13] Juventude do Movimento Popular de Libertação de Angola. Órgão juvenil do MPLA.
[14] Os outros eram o subdepartamento de quadros e o subdepartamento da organização (LARA III, 2008, p. 361).
[15] (Boletim de Informação do MPLA de Fevereiro, 1964). Ver fontes e bibliografia.
[16] Provávelmente, na medida em que na comissão legislativa do DOQ consta um membro do sexo feminino. Contudo, tal não impede que consideremos que este órgão produz um discurso de hegemonia masculina. (LARA III, 2008, p. 361).
[17] Trata-se provavelmente de Lucila Neto. (LARA III, 2008, p. 635).
[18] Note-se que os pressupostos do discurso são os lugares que historicamente as mulheres ocuparam nas guerras.
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