Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
A ‘GALINHA-D’ANGOLA’ NO CONTEXTO ETNODIALETAL DO TOCANTINS: ‘COCAR’ OU ‘ANGOLISTA’?
Greize Alves da Silva; Tassita Kamassagre Ferreira Alves
Greize Alves da Silva; Tassita Kamassagre Ferreira Alves
A ‘GALINHA-D’ANGOLA’ NO CONTEXTO ETNODIALETAL DO TOCANTINS: ‘COCAR’ OU ‘ANGOLISTA’?
Muiraquitã, vol. 11, no. 1, pp. 302-314, 2023
Universidade Federal do Acre
resúmenes
secciones
referencias
imágenes
Carátula del artículo

Artigos

A ‘GALINHA-D’ANGOLA’ NO CONTEXTO ETNODIALETAL DO TOCANTINS: ‘COCAR’ OU ‘ANGOLISTA’?

Greize Alves da Silva
Universidade Federal do Tocantins, Graduação e Pósgraduação em Letras, Brazil
Tassita Kamassagre Ferreira Alves
Universidade Federal do Tocantins, Brazil
Muiraquitã, vol. 11, no. 1, pp. 302-314, 2023
Universidade Federal do Acre

Received: 14 April 2023

Accepted: 21 July 2023

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

É o mesmo que tô-fraco, conquém, sacué ou guiné. Para os yorubas, é etu, animal sagrado. Contam que, por recomendação de Orumilá, a grande adivinho, a conquém precisou fazer um ebô para que nada faltasse na Terra a seus pares, as outras aves do mato. [...] Entre outras coisas, etu deveria ser generosa com todos os seres. Foi quando encontrou Oxalá, a quem tratou com reverência e ofereceu tudo o que tinha. Admirado com a fineza de etu, Oxalá pintou o seu corpo com efun, o pó branco mágico. Eis porque etu, que dentre os animais tem a maior semelhança com Oxalá, faz parte das cerimônias e oferendas para os deuses orixás (CUNHA, 2009, p. 16, adaptado).

O conto africano apresentado na epígrafe deste texto narra um dos mais importantes orixás do Candomblé, Oxalá, responsável pela energia de criação da Natureza, presenteando etu – conhecida no Brasil como ‘galinha-d’angola’ – com o pó branco mágico, fornecendo as pintas brancas à ave preta, para que elas se parecesse com a divindade e, por este motivo, a galinha tornou-se muito importante nas cerimônias religiosas.

São várias as lendas africanas atribuídas à simpática galinha de penas pretas e pintinhas brancas, presentes no imaginário popular, algumas remetendo suas caraterísticas físicas a bençãos divinas, a exemplo do descrito em Cunha (2009). Em outras, as marcas brancas indicam mau agouro, pois foram dadas ao animal como forma de punição pelo seu comportamento. Ainda no sentido punitivo, há o caso da lenda que alegoriza o som onomatopeico ‘tô-fraco’ (estou fraco) relacionada ao som emitido pela galinha: “Desde esse dia a Galinha-d’angola, embora seja muito esperta e voe para fugir dos caçadores, vive reclamando que está fraca, fraca. Com suas perninhas magras, foge com seu bando assim que surge algum perigo e é muito difícil alcançá-la” (PRADO, 2007, p. 9). Assim, a galinha reclamaria de fraqueza constante por conta de um castigo recebido.

Independente das caraterísticas atribuídas pelas diferentes lendas, a galinha-d’angola é ave muito conhecida em solo brasileiro e recebe diferentes nomeações, fruto da criatividade do falante e dos veios sócio-históricos do país e da procedência estrangeira da galinha. A Numida (gênero) meleagris (espécie), nome científico para a galinácea em questão, é originária do continente africano e foi trazida para a américa do sul pelos portugueses. Sua nomenclatura científica não é aleatória, conforme o relato:

A palavra meleagris remete-nos ao mundo grego onde “uma ficção mitológica fez chamar assim a pintada, cuja plumagem representava as lágrimas derramadas pelas ternas irmãs de um caçador desafortunado”, como lemos no Dictionnaire des Sciences Naturelles. O termo Numida significou, para a cultura latina, não só a região da Numídia, mas, para além dela, a África em geral. Torna-se, pois, fácil compreender a insistência com que as denominações da pintada apontam para esse continente. Diz-se, além de galinha-d’angola e galinha da Guiné, galinha africana, galinha da Berbéria, de Túnis, da Mauritânia, da Líbia, do Egito e do Faraó (VOGEL; MELLO; BARROS, 2007, p. 19-20, itálicos e aspas dos autores).

No tratado de Ornitologia Brasileira, a galinha é descrita por Sick (1997) como originária do continente africano, especificamente do arquipélago de Cabo Verde, sendo trazida pelos portugueses no início da colonização, uma transição de sucesso, já sua fisiologia permite ser adaptável em países de clima tropical e ameno. O autor ainda descreve que o som característico da ave (a onomatopeia ‘tô-fraco’), é emitido pela fêmea, enquanto o macho emana outro som pouco conhecido. A partir da África e de suas ilhas circunvizinhas, a ave se espalhou pela Europa, América e Índias Ocidentais (STEPHENS, 1819 apud VOGEL; MELLO; BARROS, 2007).

A existência da Numida meleagris em outros países, também revela, no ato de nomeação da ave, sua origem estrangeira (sobretudo africana), bem como evidenciam suas características físicas. Por exemplo, em inglês nomeia-se: guineafowl (galinha-da Guiné); em turco: beç tavuğu[1] (galinha-da-Guiné ou galinha vienense); em italiano: faraona (feminino de faraó[2]), que remete a uma das designações para a galinha descrita em Vogel, Mello e Barros (2007) e em francês: pintade (pintada).

No Brasil, como faz parte do campo da fauna, comumente suas nomeações são um misto de referências covariantes entre formas locais, por vezes procedentes do tupi, e formas alóctones, oriundas dos colonizadores, viajantes, imigrantes etc., quando chegados ao Brasil (SILVA, 2018). Esse processo de variação entre etmos latinos e etmos procedentes do tupi, que ocorre principalmente (mas não só) nas nomeações dos elementos da flora e da fauna, é motivado pelo contato do colonizador com animais e plantas desconhecidos e que já eram nomeados pelos povos originários:

Tornava-se, pois, necessário atribuir nomes aos elementos desse novo mundo e isso se faria de duas formas: ou assumindo a nomenclatura atribuída pelos habitantes naturais da terra, ou, por criação popular baseada na analogia, estender os nomes conhecidos pelo homem estrangeiro aos seres ‘exóticos’ que apresentassem alguma semelhança com os de sua terra de origem (AGUILERA, 2013, p.17).

Neste sentido, o princípio para investigar uma língua é observar os aspectos culturais que são atribuídos no tempo e no espaço, uma vez que o falar de cada região está atrelado à história de sua população e ao seu sistema de vida, as idas e vindas nos mais variados territórios, o que nos leva a caracterizar a língua como um fato cultural. A tarefa de investigar esses veios cabe à Dialetologia Pluridimensional e Relacional, entendida por Thun (1998), como ciência que abarca “[...] a superfície bidimensional horizontal da Dialetologia e o eixo vertical da Sociolinguística [e] formam o espaço variacional tridimensional da Dialetologia Pluridimensional e Relacional” (THUN, 1998, p. 704, tradução nossa).

Neste texto pretendeu-se analisar e discutir as designações atribuídas à galinha-d’angola no estado do Tocantins, a fim de compreender como as formas de nomear essa ave seguem trajetos dialetais resultantes dos processos migratórios no Brasil. Para alcançar esse propósito, foram utilizadas as designações obtidas pelo Atlas Linguístico Topodinâmico e Topoestático do Tocantins (ALITTETO) (SILVA, 2018), elencando, a partir de seu banco de dados, as designações expressas no questionamento de número 049 – Como se chama a ave de criação parecida com a galinha, de penas pretas com pintinhas brancas? (SILVA, 2018) –, aplicado a 96 informantes, distribuídos por 12 localidades tocantinenses. Inicialmente apresentou-se as bases teóricas que subsidiam o ALiTTETO (SILVA, 2018) e, portanto, o presente estudo, para, em seguida, discutir o aspecto simbólico da galinha em questão em diferentes esferas. Posteriormente, os dados foram analisados pela vertente diatópica e, por fim, pelo recorte diageracional (variação por idade), diassexual (variação por sexo) e diatópico-cinético (variação por tipo de mobilidade do informante).

A DIATELOGIA PLURIDIMENSIONAL E RELACIONAL

A Dialetologia, como ciência da variação, nasce sob uma perspectiva diatópica, de modo que seu foco era voltado para pesquisas com informantes sem muita mobilidade e atuantes em atividades ligadas ao campo, comumente mais velhos para representarem a “fala típica” da localidade, sem interferências externas. Segundo Silva (2018, p. 49).

Buscava-se esse tipo de informante, uma vez que os linguistas, em essência, eram ligados a preceitos filológicos e tentavam coletar aspectos mais arcaizantes dos falares (Dialetologia Diacrônica), por meio de indivíduos que não tivessem influência da zona urbana ou de qualquer outro meio de comunicação. Com essa metodologia, nasceram os primeiros atlas linguísticos (SILVA, 2018, p. 49).

No entanto, ao longo das décadas, tal homem rural deixou de ser considerado o ponto focal dos estudos dialetais, pois, em termos de Brasil, por exemplo, a população (antes camponesa) migrou para os grandes centros, em busca de melhores oportunidades (SILVA; BORGES, 2019). É diante dessa mobilidade demográfica que a Dialetologia de cunho mais tradicional, areal, diatópico, abre caminhos para a intitulada Dialetologia Pluridimensional e Relacional (DPR) que, segundo Thun (2022 apud KRUG; HORST, 2022):

[...] consiste em dominar uma grande quantidade de dados, que são produto de nossa metodologia. Vejam só, contrariamente à metodologia monodimensional que tem um informante só por lugar, nós temos normalmente oito, isto quer dizer, informantes de quatro grupos que se dividem por idade e por categoria sociocultural, e em cada grupo estão duas pessoas, normalmente homem e mulher. Então, em consequência, temos de quatro até oito vezes mais informações. Por exemplo, é possível que em cada um dos grupos os informantes digam coisas diferentes, nesse sentido teremos oito vezes o mesmo fenômeno em variação (THUN, 2022 apud KRUG; HORST, 2022, p. 09).

A DPR busca subsidiar todos os campos necessários para uma ampla coleta de dados, abarcando as mais variadas dimensões possíveis, por isso ela alia “[...] a superfície bidimensional horizontal da Dialetologia e o eixo vertical da Sociolinguística que formam o espaço variacional tridimensional da DPR” (THUN,1998, p. 704). O autor enfatiza que, nessa tridimensionalidade proposta, “Um dos aspectos mais importantes para nós é o contraste entre as gerações. Como diz Labov na sua apparent time, é uma possibilidade de tornar visível o tempo num momento concreto da pesquisa, entrevistando pelo menos duas gerações” (THUN, 2022 apud KRUG; HORST, p. 10).

O autor deixa evidente que a combinação entre as duas ciências, Dialetologia e Sociolinguística, serve de base para compreendermos as dificuldades enfrentadas quando há necessidade de realizar análises mais detalhadas, como por exemplo, em realidades plurivarietais, diferentes modalidades do português em contato, como situações de fronteiras bilingues, dentre tantas outras características de nosso país contemporâneo. Para Altenhofen (2013):

Ambos os grupos, no meu entender, são bilíngues, apenas que as variedades de língua que falam possuem status social e histórico-político distinto. Ou seja, é preciso ampliar a definição de bilinguismo ao de plurilinguismo como a “habilidade de uso ativo ou compreensão passiva de mais de uma variedade de língua”, em que não está em jogo a proficiência em ambas as línguas, mas a postura de ser e agir plural (ALTENHOFEN, 2013, p. 37).

A DPR ainda pormenoriza outras dimensões, como por exemplo: diatópica, diatópica-cinética diastrática, diassexual, dialingual, diafásica, diarreferencial, diarreligioso. Para a base dialetal que se situa o estado do Tocantins, optou-se pelo trabalho com a dimensão diatópico-cinético, ou seja, o contraste entre grupos tocantinenses de falantes com pouca mobilidade, nascidos e estabelecidos nas localidades, em contraste com os falantes oriundos de processos migratórios, com mobilidade espacial, uma vez que o referido território nasceu sob a égide migratória, processo que se estende até os dias atuais.

Assim, a base metodológica do ALiTTETO (SILVA, 2018) segue os princípios teóricos da DPR, sobretudo em relação à diatópica-cinética, responsável por contrastar as variantes oriundas dos falantes topoestáticos, ou seja, os informantes sem mobilidade, com os topodinâmicos, os informantes procedentes de processos migratórios. No ALiTTETO (SILVA, 2018) Foram selecionadas 12 localidades distribuídas pelo Tocantins – Araguatins, Araguacema, Araguaína, Tocantinópolis, Pedro Afonso, Palmas, Porto Nacional, Gurupi, Mateiros, Natividade, Formoso do Araguaia e Paranã – e inquiridos oito informantes em cada uma delas distribuídos pelas variáveis idade, sexo e tipo de mobilidade, totalizando 96 entrevistados, conforme quadro a seguir:


Quadro 01
Perfil dos informantes.
Fonte: Base de dados do ALiTETTO (SILVA, 2018, p. 88).

É sob esses informantes que analisaremos as respostas referentes ao questionamento 049 – Como se chama a ave de criação parecida com a galinha, de penas pretas com pintinhas brancas? (SILVA, 2018). A seguir, são apresentados os dados coletados pelo ALiTTETO (SILVA, 2018) dentro da metodologia da DPR. Além da visão diatópica, com a apresentação de cartograma dialetal, também foram trazidos os recortes por variável social: a idade, o sexo e o tipo de mobilidade, por meio de gráfico, na intenção de demonstrar como os diferentes grupos nomeiam a ave em questão.

A GALINHA DE PENAS PRETAS COM PRINTAS BRANCAS NO CONTEXTO ETNOLINGUÍSTICO TOCANTINENSE

O aspecto elegante e, ao mesmo tempo, simpático da Numida meleagris tem fornecido à ave pintada importância dentro de diferentes espaços, do lúdico-infantil ao mitológico-religiosos. Em pesquisa rápida no site de compartilhamento de vídeos Youtube com a entrada ‘galinha-d’angola’, há uma infinidade de desenhos, animações e canções do universo infantil, com os mais variados títulos: A arca de Noé – A galinha-d’angola” (ARCA DE NOÉ VEVO, 2013); A galinha-d’angola – lenda africana (GABRIELA, 2021); Galinha-d’angola e a Turma do Davi” (A TURMA DO DAVI, 2020); Galinha- d’angola - O Galinho d’angola foi embora (ZOLA; MONTEIRO, 2020); Bruna e a galinha-d’angola (CONTO COM ACONCHEGO, 2020); os vídeos apresentam as imagens envoltas em canções animadas sobre a galinha, remetendo comumente às suas características físicas e ao som emitido pela ave, o seu fraquejar: ‘tô-fraco’.

Em relação ao universo mitológico religioso que envolve a procedência da ave, para os gregos a origem da galinha repousa no mito das Meleágrides (nome que deu base a sua taxonomia meleagris). As Meleágrides eras as irmãs de Meleandro, Eurímede, Dejanira, Melanipe que, após chorarem copiosamente a morte do irmão, foram transformadas por Artemis em [galinhas] pintadas. Ainda segundo a descrição do mitólogo, as “pintadas eram criadas como aves sagradas, em volta do templo de Ártemis em Leros” (GRIMAL, 2005, p. 299). Sobre a simbologia e a relação entre o mito e a aparência da galinha, as lágrimas das devotadas irmãs foram impressas na cor branca por cima de um manto de luto negro da ave (VOGEL; MELLO; BARROS, 2007, p. 22).

Ainda no aspecto mitológico e simbólico, contemporaneamente, Vogel, Mello e Barros (2007, p.18) descrevem a importância simbólica da galinha-d’angola para as religiões de matriz afro-brasileira, cuja ave é ponto focal do Candomblé e representa o sistema cromático religioso: o preto, o branco e o vermelho e, segundo os autores, não há cerimônia sem a presença do animal nos rituais sacrificiais.


Quadro 02
Designações para a galinha de penas pretas com pintas brancas, e respectivos números de ocorrências e percentuais.
Fonte: Base de dados do ALiTETTO (SILVA, 2018, p. 146).

A variante mais produtiva encontrada no Tocantins foi ‘cocar’ (39,3%) que, segundo Silva (2018), é encontrada em todas as localidades pesquisadas, com maior incidência no centro-sul estadual, como evidenciado na carta diatópica geral a seguir, contendo a distribuição das formas pelo território tocantinense.


Figura 1
Carta diatópica Geral com as designações para o questionamento 049: ‘cocar’/ ‘angolista’/ ‘galinhad’angola’
Fonte: Base de dados do ALiTETTO (SILVA, 2018, p. 360).

Para Houaiss (2009), trata-se de um francesismo procedente de cocarde (séc. XVI), de coq (galo) – e a forma é encontrada em duas capitais da região Centro-Oeste, Cuiabá e Goiânia auferidas pelo Atlas Linguístico do Brasil (ALiB) (CARDOSO et al. 2014), diferindo da norma existente na região Norte, cuja variante predominante é ‘picote’ (AGUILERA, 2009, p. 4227) e em Rio Branco é ‘capote’. Quanto aos dados interioranos do ALiB (CARDOSO et al., 2014), em Serra e Aguilera (2020) com os dados de nove localidades maranhenses, verifica-se que ‘cocar’ é a segunda forma preterida, coexistindo com ‘guiné’, no centro-sul estadual, divisa com o Tocantins e Piauí.

Ainda, em outro atlas, o Atlas Semântico-Lexical do Estado de Goiás (AUGUSTO, 2013), ‘cocar’ é a segunda forma mais referida no corpus da autora, ocorrendo nas cidades goianas de Aruanã, Cidade de Goiás e Pirenópolis, levando o Tocantins, no que subjaz especificamente ao questionamento aqui trabalhado, a pertencer a uma norma linguística mais centro-oestina ou nordestina do que nortista[4] propriamente dita.

A segunda variante mais produtiva, com 23,8% de predominância entre os falantes, é ‘angolista’, que ocorre na porção mais oeste do Tocantins. A forma derivada da junção dos topônimos ‘Angola’ + ‘ista’, para designar ‘aquela que veio de Angola’, também é encontrada em Houaiss (2009) como um brasileirismo sinonímico de ‘galinha-d’angola’ (Numida meleagris). Aguilera (2009) e Silva (2018) destacam que ‘angolista’ também foi documentada pelo ALiB (CARDOSO et al., 2014) nas capitais sulistas Florianópolis e Porto Alegre, indicando que

[...] as frentes migratórias vindas do Sul para o Tocantins têm influenciado no modo de designar o item em questão. Localidades como Formoso do Araguaia e Pedro Afonso possuem grandes projetos agroindustriais, coordenados por catarinenses e gaúchos e, nessas duas localidades, especificamente, o percentual de citação perfaz mais de 30% (SILVA, 2018, p. 146).

Ainda, em Aguilera (2009), há o indicativo de que a nomeação ‘angolista’ possa ser procedente da influência açoriana presente no Brasil (AGUILERA, 2009), sobretudo nas regiões sulistas, e possivelmente irradiado com os migrantes para outras regiões brasileiras, o Tocantins, por exemplo.

Sobre a forma ‘galinha-d’angola’/ ‘angola’, terceira em números percentuais, está difundida, à exceção de Tocantinópolis e Porto Nacional, por todo o estado. É interpretada como um tipo de ave procedente dos países africanos (HOUAISS, 2009) e trazida pelo colonizador europeu para o clima quente brasileiro, como já discutido no presente texto. A forma está difundida por quase todo o Brasil, pois na cartografia do ALiB (CARDOSO et al., 2014), aparece distribuída em quase todas as capitais, com exceção de Maceió.

É predominante nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, o que ratifica o fato de essa designação encontrar-se por todas as regiões brasileiras, evidenciando forma padrão no português brasileiro (PB), conforme salienta Aguilera (2009):

Quanto à ‘angola’ ou ‘galinha-d’angola’ pode ser considerada a variante padrão do PB, por estar presente na maioria das capitais das regiões Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste e Sul, ora como variante majoritária, ora como concorrente de outras formas dialetais (AGUILERA, 2009, p. 4226).

Já a quarta variante encontrada em solo tocantinense é ‘guiné’, com 16 respostas (9,5%), ocorrendo em diferentes pontos estaduais, não sendo possível apresentar nenhum tipo de arealidade ou conexão histórico-social entre as localidades no Tocantins. Em Houaiss (2009), a forma é interpretada como regionalismo pernambucano, o que faz sentido quando também se observa a cartografa das capitais no ALiB (CARDOSO et al., 2014), em que ‘guiné’ é encontrado em quase todas as do Nordeste, à exceção de Fortaleza e São Luiz, podendo se tratar de variação com tendência mais nordestina presente no Tocantins. Também é encontrada de forma produtiva no centro-sul interiorano do Maranhão, com os dados analisados por Serra e Aguilera (2020).

Com apenas cinco respostas temos ‘capote’, interpretada por Aguilera (2013) como um tipo de nomeação metafórica em relação à pelagem da ave, remetendo a um tipo de capa. A forma foi auferida nas cidades de Araguatins, Araguaína, Gurupi e Mateiros; as três primeiras são próximas ou margeadas pela Rodovia Transbrasiliana, a BR-153, cuja construção iniciada na década de 1950 constitui um dos principais marcos de deslocamentos populacionais e de migrações interestaduais (SILVA, BORGES, 2019)[5]. Nos dados do ALiB (CARDOSO et al., 2014), está presente em Rio Branco, Boa Vista, Macapá, Belém, Fortaleza e Teresina, ou seja, tanto em capitais nortistas quanto nordestinas. Também auferida em duas localidades maranhenses (Brejo e Bacabal).

Já ‘galinhola’, auferida em três localidades distintas, sem aparente conexão entre elas (Araguatins, Pedro Afonso e Formoso do Araguaia), é interpretada por Houaiss (2009) como errôneo diminutivo para a palavra galinha, cuja datação remonta 1576. Nos dados do ALiB (CARDOSO et al., 2014), ocorreu apenas na capital nordestina Vitória. Com apenas duas citações, temos a forma onomatopaica ‘tô-fraco’ nome imitativo do canto da ave (AGUILERA, 2013), em Araguaína e Natividade – cidades sem aparente conexão entre elas. As incidências únicas ‘galinha-da-índia’[6] e ‘galinha-d’água’ foram recolhidas em Palmas e Gurupi respectivamente; a primeira está lexicalizada em Houaiss (2009) como sinônima para ‘galinha-d’angola’/‘angola’. Ambas foram recolhidas no ALiB (CARDOSO et al., 2014), mas não constam na cartografia e devido a sua baixa incidência foram apenas inseridas como notas.

As cinco formas mais produtivas por variáveis sociais seguem, abaixo, na Figura 02; as demais variantes foram agrupadas sob o rótulo “demais variantes”.


Figura 02
Distribuição percentual por variáveis extralinguísticas (questionamento 049)
Fonte: Elaboração nossa com dados de ALiTTETO (SILVA, 2018).

Nos três segmentos sociais indicados (idade, sexo e tipo de mobilidade) predomina a ‘cocar’, com maior propensão na primeira faixa etária – entre 18 e 30 anos –, assim como a forma ‘angolista’ nos mais jovens. Ainda sobre o recorte diageracional, para ‘galinha-d’angola’/ ‘angola’ os maiores índices constam na segunda faixa etária, assim como para ‘guiné’.

No recorte diassexual, apesar do predomínio em ambos os núcleos, são das mulheres os maiores índices para a ‘cocar’. Quanto à ‘angolista’, os percentuais estão equiparados nos dois sexos. Já em relação à ‘galinha-d’angola’/ ‘angola’ e ‘guiné’, há mais citações entre os homens.

Sobre a mobilidade do informante, os maiores percentuais para ‘cocar’ estão entre os topoestáticos, ou seja, entre os falantes com tendência mais fixa, nascidos nas localidades de pesquisa. ‘Angolista’ tem ligeira propensão ainda no primeiro grupo, apesar de também constar nos informantes migrantes (topodinâmicos). É dos topodinâmicos maiores índices de citação das formas agrupadas em ‘demais variantes’, tais como: ‘galinhola’, ‘tô-fraco’ e ‘galinha-da-índia’.

Por fim, as diferentes designações fornecidas à ave, indicam dois processos nominativos: i) a origem estrangeira da galinha e ii) suas características físicas. Para o primeiro, temos em nossos dados: ‘angolista’, ‘galinha-d’angola’/ ‘angola’, ‘guiné’, ‘galinha-d’água’ e ‘galinha-da-índia’. Já para o segundo: ‘cocar’ – se considerarmos a etimologia de Houaiss (2009) –, ‘capote’, ‘galinhola’ e ‘tô-fraco’ (som emitido).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo objetivou, segundo os princípios dialetológicos, a análise das variantes para a questão de número 049, referente às variações denominativas para ‘galinha de angola’, auferida pelo ALiTTETO (SILVA, 2018) no estado do Tocantins. Além disso, os dados foram intercruzados com outros trabalhos dialetais já realizados sobre o tema, bem como apresentou-se questões etnográficas sobre a galinha pintada, o que evidencia a importância simbólica dentro de vários contextos, inclusive no universo lúdico-infantil e no mítico-religioso, demonstrando a popularidade da figura da galinha-d’angola em nosso país. Atribui-se a isso a expressiva variedade de designações atribuídas ao animal.

Sobre a diatopia, ou seja, a variável espacial, não foram identificadas consistentes isoléxicas quanto às nove formas obtidas. Os dados evidenciam que, no Tocantins, predomina a forma ‘cocar’ em todos os segmentos sociais – seja os referentes à idade, quanto ao sexo, entre informantes mais locais e os topodinâmicos também; a maior concentração da forma está no centro-sul estadual. A supremacia de ‘cocar’ atrela o Tocantins, neste quesito, a uma norma mais centroestina, uma vez que, a partir dos dados do ALiB (CARDOSO et al., 2014), essa forma é também encontrada Goiás.

Em segundo lugar, coletou-se a forma ‘angolista’, sobretudo nas localidades sudoestinas e nortistas, mais evidentes no traçado da BR-153. Esse fato, quando atrelado a outros trabalhados dialetais, indica que a forma pode ser procedente da Região Sul e introduzida pelos migrantes no Tocantins, uma vez que ‘angolista’ também ocorre nas capitais do Sul, Florianópolis e Santa Catarina

Já ‘galinha-d’angola’, considerada a forma escolarizada, ocupa o terceiro lugar de citações, ocorre em quase todas as localidades tocantinenses, sendo também identificada no ALiB (CARDOSO et al., 2014) como recorrente em todas as regiões brasileiras. ‘Guiné’, variante com tendência mais nordestina, ocupa o quarto lugar, mas também não indica formação de áreas dialetais em nossos dados.

Pelo exposto, contata-se que, no que subjaz à questão analisada, o Tocantins encontra-se em um processo de covariação dialetal, cuja influência dos grupos migratórios coadunam aos grupos regionais, indicando diferentes variantes para a Numida meleagris: ora maior propensão às variantes vinculadas ao Centro-Oeste, ora com a indicação de variantes mais sulistas e nordestinas.

Supplementary material
REFERÊNCIAS
AGUILERA, V. A. Léxico e áreas dialetais: o que podem demonstrar os dados do ALiB. In: HORA, D. (Org.). Anais do VI Congresso Internacional da ABRALIN, v. 2. João pessoa: UFPB, 2009. p. 4219-4233. Disponível em: http://www.leffa.pro.br/tela4/Textos/Textos/Anais/ABRALIN_2009_vol_2/PDF-VOL2/Microsoft%20 Word%20-%20Vanderci%20de%20Andrade%20Aguilera.pdf. Acesso em: 27 mar. 2023.
AGUILERA, V. A. Reflexões sobre a variação lexical no campo da fauna nos dados para o Atlas Linguístico do Brasil. In: CASANOVA, E.; CALVO, C. (eds.). Actas del XXVI Congreso Internacional de Lingüística y Filología Románica. Berlin, Boston: De Gruyter, 2013, p. 17-28.
ALTENHOFEN, C. V. Migrações e contatos linguísticos na perspectiva da Geolinguística Pluridimensional e Contatual. Revista de Letras Norteamentos. Estudos Linguísticos, Sinop, v. 6, n. 12, p. 31-52, jul./dez. 2013. Disponível em: https://periodicos2.unemat.br/index.php/norteamentos/article/view/6876. Acesso em: 16 ago. 2016.
A TURMA DO DAVI. Galinha da Angola - A turma do Davi. Música Infantil. Youtube, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vPXrIRUA0CY. Acesso em: 23 mar. 2023.
AUGUSTO, V. L. D. S. Atlas Semântico-Lexical do Estado de Goiás. Tese de Doutorado. Linguística, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2012.
AULETE, C. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, Volumes I, II, III e IV. 3. ed. Rio de Janeiro: Delta, 1980.
CARDOSO, S. A. M. et al. Atlas Linguístico do Brasil: cartas linguísticas 1. Londrina: Eduel, 2014.
CRYSTAL, D. Dicionário de linguística e fonética. Trad. e adapt. Maria Carmelita Pádua Dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
CONTO COM ACONCHEGO. Bruna e a Galinha D’angola. Youtube, 2020. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=IByJxJcU6ak. Acesso em: 23 mar. 2023.
CUNHA, C. ABC Afro-brasileiro. Edições SM: São Paulo, 2009.
GABRIELA, W. História para criança: a galinha d’angola-lenda africana | Hora do conto. Youtube, 2021 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=z3idMBolVbo. Acesso em: 23 mar. 2023.
GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana. Trad. Vitor Jabouille. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
HOUAISS. A. Dicionário Houaiss. Ed. Instituto Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Objetivo, 2009.
KRUG, M. J.; HORST, C. Dialetologia pluridimensional e relacional: entrevista com o professor Dr. Harald Thun. Working Papers em Linguística, v. 23, n. 1, p. 8-16, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index. php/workingpapers/article/view/78597. Acesso em: 01 abr. 2023.
NOGARASTEIN, J. “Faraona” a galinha d’angola recheada com farofa de linguiça e mostarda de frutas. Cozinhando em Roma, 2014. Disponível em: https://cozinhandoemroma.com/2014/12/11/faisao-recheadocom-farofa-de-linguica-e-mostarda-de-frutas/. Acesso em: 23 mar. 2023.
PRADO, Z. A. Muitos mitos, lindas lendas. São Paulo: Editora Callis, 2007.
SCHNEIDER, M. S. P. S. Nome da galinha-d’angola em língua turca. Mensagem pessoal por WhatsApp, em: 28 de mar, 2023.
SESLI SOZLUK. Online English Turkish and Multilingual Dictionary, 2023. Disponível em: https://www.seslisozluk. net/en/. Acesso em: 01 abr. 2023.
SERRA, F. P.; AGUILERA, V. A. E no Maranhão, como se chama a ave de penas pretas e pintinhas brancas? Análise lexical do item galinha d’angola no falar maranhense, por meio da observação de dados do ALiB. In: ROVERI, J. C. S. Anais dos II Congresso Nacional de Ensino-Aprendizagem de Línguas, Linguística e Literaturas (CONAEL) e III Jornada de Letras do IFSP. Avaré, SP: IFSP, 2020. p. 736-750. Disponível em: https://sites.google.com/ view/jornadadeletraseconael2020/edi%C3%A7%C3%A3o-atual-anais-v-3-2020?authuser=0. Acesso em: 01 abr. 2023.
SICK, H. Ornitologia brasileira [Brazilian ornithology]. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997.
SILVA, G. A. Atlas Linguístico Topodinâmico e Topoestático do Estado do Tocantins (ALiTTETO). Tese de Doutorado. Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Londrina, 2018.
SILVA, G. A.; BORGES, P. A. Presença vs ausência de traços de ruralidade no léxico tocantinense. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, p. 83-105, 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/ view/157030. Acesso em: 28 mar. 2023.
THUN, H. La geolingüística como lingüística variacional general (con ejemplos del Atlas lingüístico Diatópico y Diastrático del Uruguay). In: RUFFINO, G. Atti del XXI Congresso Internazionale di Linguistica e Filologia Romanza, v. 5: Dialetologia, geolinguistica, sociolinguistica.Tübingen: Niemeyer, 1998, p. 701-729.
THUN, H. Pluridimensional cartography. In: LAMELI, A.; KEHREIN, R.; RABANUS, S. (Ed.). Language and Space, v. 2: Language Mapping. Berlin: de Gruyter Mouton, 2011. p. 506-523.
VOGEL, A.; MELLO, M. A. S.; BARROS, J. F. P. A galinha-d’angola: iniciação e identidade na cultura AfroBrasileira. Rio de Janeiro: Ed. Pallas, 2007.
ZOLA, P.; MONTEIRO, F. Galinha D’angola - O Galinho d’angola foi embora - Vídeo Infantil. Youtube, 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=H0mxUwdkbTs. Acesso em: 23 mar. 2023.
Notes
Notas
[1] Beç em língua turca remete ao elemento estrangeiro, podendo indicar, dentre outras coisas: i) algo oriundo da Guiné; ii) moeda utilizada no comércio entre Inglaterra e África; iii) alguém de descendência italiana ou espanhola; iv) nome do período Otomano para a cidade de Viena, capital da Áustria (SCHNEIDER, 2023, mensagem pessoal) e; v) ave da África Ocidental com plumagem escura manchada de branco e criada para alimentação em muitas partes do mundo (SESLI SOZLUK, 2023).
[2] No site Cozinhando em Roma (NOGARASTEIN, 2014) há a receita da Faraona.
[3] Linha imaginária que marca uma fronteira linguística entre duas variantes regionais com base num traço de natureza lexical (CRYSTAL, 1980).
[4] Silva (2018), a partir de um conjunto de análises lexicais, salienta que o Tocantins possui maior identificação com as regiões Norte e Nordeste, muito embora tenha pertencido até 1988 ao Centro-Oeste.
[5] Silva e Borges (2019) discutem a manutenção ou a perda de traços lexicais conceituados como rurais.
[6] O informante topodinâmico, da segunda faixa etária, de Palmas (TO) explica: “É, lá pra nós, isso nós falava era ‘cocar’. Ah, eu já vi gente falá de... ‘galinha-da-índia’, né. Mas nóis conhecia como cocar. ‘Galinha-da-angola’, outros falava, né?

Quadro 01
Perfil dos informantes.
Fonte: Base de dados do ALiTETTO (SILVA, 2018, p. 88).

Quadro 02
Designações para a galinha de penas pretas com pintas brancas, e respectivos números de ocorrências e percentuais.
Fonte: Base de dados do ALiTETTO (SILVA, 2018, p. 146).

Figura 1
Carta diatópica Geral com as designações para o questionamento 049: ‘cocar’/ ‘angolista’/ ‘galinhad’angola’
Fonte: Base de dados do ALiTETTO (SILVA, 2018, p. 360).

Figura 02
Distribuição percentual por variáveis extralinguísticas (questionamento 049)
Fonte: Elaboração nossa com dados de ALiTTETO (SILVA, 2018).
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Scientific article viewer generated from XML JATS by Redalyc