Ensaios

Received: 23 March 2023
Accepted: 15 July 2023
Resumo: Neste ensaio, propõe-se uma leitura do poema “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, em diálogo com a obra Maquinação do mundo: Drummond e a mineração (2018), de José Miguel Wisnik, discutindo as relações do eu lírico com a memória da infância, a paisagem, a história, atravessadas pelos efeitos da mineração, que podem ser lidos hoje pelo olhar da ecocrítica. A leitura defende a contribuição de Drummond para uma possiblidade, nos dias de hoje, de apreciação de textos sobre a degradação da natureza em função da ideia de progresso, por um viés crítico de observação de imagens relacionadas às demandas ecológicas já sinalizadas no século XX pelo poeta em diversos textos de sua autoria, colocando em cena imagens poéticas em torno de uma denúncia, acima de tudo, destacando o que se pode observar como, ainda que sem a intenção intervencionista, contribuinte para a leitura de uma posição ecocrítica.
Palavras-chave: Carlos Drummond de Andrade, Mineração, Poesia, Ecocrítica.
Abstract: In this paper we propose a reading of the poem “A máquina do mundo” by Carlos Drummond de Andrade, in dialogue with the work Maquinação do mundo: Drummond e a mineração (2018), by José Miguel Wisnik. We discussed the relationship between the lyric self and the childhood memory, the scenery and the history by the effects of mining, which can be read today by the ecocriticism overview. The analysis defends the Drummond’s contribution to a nowadays possibility of nature degradation text’s appreciation as a function of the idea of progress. It was analyzed by an image observation criticism point of view related to the ecological demands already presented in the twentieth century by the poet in several texts of his own. It put on scene poetic images that complaint, above all, that highlight what can be observed as a nonintentional intervention, which contributes to an ecocritical position reading.
Keywords: Carlos Drummond de Andrade, Mining, Poetry, Ecocriticism.
INTRODUÇÃO
Vai-me a vista baixando ou a terra perde o lume?
(Carlos Drummond de Andrade)
Propomos, com este ensaio, apresentar uma análise do poema “A Máquina do Mundo”, que integra a obra Claro enigma (1942), de Carlos Drummond de Andrade, lançando um olhar para a relação do eu lírico com a paisagem perdida, ou melhor, com a degradação da paisagem causada pela mineração. Sabe-se da vasta fortuna crítica que tanto o poema como a obra, no geral, dispõem na cena acadêmica brasileira e estrangeira, o que nos motiva a centralizar imagens que corroboram sentidos ao viés adotado para a nossa leitura. Não faremos, no entanto, um arrolado de hipóteses acerca de todas as imagens das quais o poema se compõe. Faremos uma análise que focaliza algumas dessas em torno do assunto que temos em foco. As relações estabelecidas entre o mundo do poeta – sua infância, sua ancestralidade, sua cidade natal – e um outro mundo, geográfico e econômico, e o efeito delas no poema se apresentam na proposta de investigação executada por Wisnik, em sua Maquinação do mundo: Drummond e a mineração (2018).
Nossa leitura, nesse recorte, estabeleceu um diálogo direto com essa obra, por considerarmos ser um marco importante para a leitura da observação crítica de Carlos Drummond de Andrade acerca das questões ecológicas, em seu contexto de produção, já que, segundo Wisnik (2018), Drummond apresenta uma obra pioneira ao apontar as consequências da degradação do ambiente pela atividade da mineração. É necessário, contudo, que se considere o fato de que não atribuímos à postura do poeta e às representações poéticas construídas na voz do eu lírico uma postura ecocrítica propriamente ditas, como, por exemplo, a ambientalista (GARRARD, 2006), mas uma aproximação em termos de metaforização de um material da realidade mimetizado no plano literário que pode, de alguma forma, cumprir um papel de observação crítica do mundo ao nosso redor.
A noção de ecocrítica assumida neste trabalho considera o que trata Garrard (2006, p. 14) quando afirma ser essa uma “modalidade de análise confessadamente política”. Nesse sentido, observamos um olhar crítico e político em relação às manifestações e os efeitos da mineração na obra de Drummond, especificamente no poema em foco, que permite essa aproximação. Sabe-se também que grande parte dos trabalhos no campo da ecocrítica, sobretudo os pioneiros, lançam um olhar sobre a poesia romântica, uma vez que a natureza era um topos, representada de diferentes maneiras. Atualmente, conforme Garrard (2006, p. 16), há uma atenção maior a uma “ecocrítica mais geral da cultura”, o que é possível que se observe na obra de Drummond no foco e na crítica que aparecem às ameaças ambientais.
Da Itabira do poeta para Mariana e Brumadinho, a discussão sobre o que se pode contra o discurso dominante e o poder econômico instituído seguiu pelo séc. XX e chegou aos dias atuais mais viva do que nunca. O que foi destino para Itabira seguiu sendo para muitos outros lugares da região e do mundo. Nos dias de hoje, a pressão exercida pelos movimentos sociais e grupos ambientalistas é, no entanto, mais difundida e potencializada pelas mídias, mas isso não é suficiente para, por si só, gerar a mudança do paradigma frente ao avanço das indústrias e da lógica capitalista. A clareza quanto a esses pontos tem se mostrado também em diferentes contextos, seja no campo das artes, seja na academia e em instituições educacionais outras, que reconhecem a necessidade de se reforçar esse discurso a fim de contribuir para o debate e a luta contra “o fim da natureza”.
De acordo com Bogalheiro, vivemos na “época das grandes perdas” (2018, p. 53-54, grifos do autor), confrontados o tempo todo com a condição de sermos predadores do ambiente, mas também presas de um sistema. Sentindo as consequências disso é que pensamos tentativas de criar um novo tipo de sensibilização e conduta. No contexto em que a discussão deste ensaio se concentra, podemos observar no papel e na função da poesia uma forma de construção e possibilidades de abertura sensível ao mundo e aos problemas que a ele têm surgido.
Moisés (2019), ao discutir qual seria a função da poesia, arrisca dizer que a poesia nos ensina a ver. Nas palavras do autor: “a poesia ensina a ver como se víssemos pela primeira vez” (p. 17, grifos do autor). É certo pensarmos que, em algum ponto, as construções literárias produzem efeitos de sentidos vários, entre os quais sempre uma ponta de agulha fura algum balão que há em nós, adormecido: não se passa ileso por uma leitura. Há sempre algum efeito gerado pelo estranhamento, mesmo que o da recusa.
Esse aprender a ver como se fosse a primeira vez, como tratou Moisés, está relacionado ao aspecto do literário que desconcerta o olhar, que convida à participação, a retomar o primeiro contato com as coisas no/do mundo, o que dialoga com as palavras de Le Guin (2017), quando assevera que é preciso reaprender a estar no mundo. Olhar e perceber o mundo como forma de aprender a parar de desperdiçar nosso tempo nele. E esse estar no mundo implica majoritariamente a compreensão da nossa relação com a Natureza, mas não como mantenedora de recursos naturais dos quais possamos usufruir a maneira de uma dominação, mas como compreendidas as nossas relações em uníssono com essa: a relação do homem e da natureza que o cerca como matéria constituinte do ser, como o próprio ser e estar no mundo.
Olhemos, agora, para o poema[1] de Drummond, sem, contudo, assumir em e por Drummond uma postura de ativista do movimento frente à preservação, mas, acima de tudo, destacando o que se pode observar como, ainda que sem a intenção intervencionista, contribuinte para a leitura ecocrítica.
E como eu palmilhasse vagamente uma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas lentamente se fossem diluindo na escuridão maior, vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado, a máquinha do mundo se entreabriu para quem de a romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia (ANDRADE, 2015a, p. 266-267).
Escrever é se vingar da perda. O poeta Waly Salomão afirma, pela poesia, que a escrita é uma forma de elaboração do que escapa. Freud ([1908]2011a) também afirma que a escrita, assim como as brincadeiras da infância, tem a função de elaborar a vivência da perda do objeto que segundo a teoria psicanalítica, seguirá sempre inalcançável. As construções da linguagem são as responsáveis por tentar uma aproximação do que é irrepresentável e, com isso, constituem mais do que só o sujeito que escreve, mas a cultura. A escrita representa algo ausente e Freud usa o bloco mágico para ilustrar esse funcionamento psíquico em camadas, que pode lembrar, coincidentemente, o de uma geologia:
Pretende ser nada mais que uma tabuinha de escrever em que as anotações podem ser apagadas com um simples movimento da mão. [...] O Bloco Mágico pode realmente fornecer as duas coisas, uma superfície receptora sempre disponível e traços duradouros das anotações feitas. [...] É um retorno ao modo como os antigos escreviam, em tabuinhas de argila e de cera. Um estilete pontiagudo arranha a superfície, e os sulcos assim deixados vêm a constituir a “escrita” (FREUD, [1925]2011b, p. 244).
As lembranças do eu lírico que Drummond elabora, suas percepções sobre a atmosfera toda da infância, se presentificam no poema, como sulcos, traços deixados pelo desaparecimento do cenário de sua constituição. É o desaparecimento da paisagem que motiva a criação das imagens no poema e, partindo dessa, se elaboram imagens em torno de uma tentativa de reconstituição da cena perdida, uma espécie de recuperação da memória perceptiva via memória escrita na imagem poética, visto que, como encontramos em diversos escritos sobre memória, a escrita é sempre exercício de presentificação. Ele escreve e, assim, reinscreve o que desapareceu. Nesse viés, Assmann corrobora nossa leitura, pois afirma que “o que será confiado à memória precisa não apenas manter-se indelevelmente inesquecível, mas também permanentemente presente” (ASSMANN, 2011, p. 265).
O campo semântico de que esse conjunto de estrofes se constitui já indica uma melancolia profunda em relação a um “apagamento” dessa imagem que se perdeu. Como buscando reconstituir via memória escrita aquilo que se perdeu, aquilo que está ausente, o eu lírico busca tatear com as mãos, como se palmilhasse, vagarosamente, para recompor, como num rito elegíaco, essa estrada pedregosa de Minas. A estrada, metaforicamente, recupera a imagem do retorno memorialístico, pega-se o caminho de volta, e que só existe na memória por ser ausente. Observemos, com atenção, os tempos verbais que comparecem todos no passado, reforçando, portanto, a ausência, acenando: isso não é matéria do presente e se encontra no “céu de chumbo”.
A constituição de tais imagens, mesmo que materializadas em um discurso hermeticamente construído, tanto no campo semântico quanto de organização sintática, está ancorada na “aposta consciente no efeito da palavra em estado de chamamento” (WISNIK, 2018, p. 177), pois convoca aquele que lê à reflexão, de modo que é impossível a contemplação passiva dos versos dos quais está diante, é como se, desde os primeiros versos, uma mão se estendesse como um “trouxeste a chave?” (ANDRADE, 2015b, p. 105), na busca por sentidos.
Os sentidos buscados se abrem, ao final da última estrofe, como a máquina do mundo (“mundo, mundo, vasto mundo” (ANDRADE, 2015c, p. 10)). Não obstante, a máquina de que o eu lírico trata não se revela, portanto, a mesma máquina do mundo como a figura cósmica camoniana, que se faz representar. Em Drummond, essa máquina do mundo “se apresenta” (WISNIK, 2018, p. 199), por isso se sente, ainda que contrastante com a matéria do que não é visível, como a escuridão maior.
Na busca por sentidos e pela compreensão da relação que se estabelece entre aquilo que se lê e o material que desse encontro se produz, Drummond convida (ou convoca) o leitor a observar-se enquanto ser, em sua pura condição de mediação, mas também a observar a ressonância que acontece entre o sujeito e seu estar no mundo. Há uma topografia, uma geografia, e o poema segue, trazendo a visão:
Abriu-se majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção contínua e dolorosa do deserto, e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuições restavam a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los, se em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte, a se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma ou sopro ou eco ou simples percussão atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável, em colóquio se estava dirigindo: (ANDRADE, 2015a, p. 267).
Partindo do campo semântico de que se constitui o primeiro conjunto analisado, novamente aqui se observa a insistência pelos escuros, pelos silêncios, como se desejasse denunciar o modo pelo qual a destruição caminha sem que se observe aos poucos, mas sempre e somente quando a questão toma grandes proporções. E para que isso seja observado, para que o mundo se coloque em mediação, é necessário também que se penetre “surdamente”, como recomenda o eu lírico de “A procura da poesia”, poema importante da fortuna crítica do poeta. Necessita-se de um trabalho em cooperação, já que o eu lírico, para colocar em um plano visível – ou, ao menos, tentá-lo – se encontra com as “pupilas gastas” pela tarefa da inspeção.
Nesse mesmo sentido, o que se observa, como comenta Wisnik (2018, p. 203), é a “fala muda da máquina, que será ‘ouvida’ interiormente pelo sujeito” e que “ocorre numa atmosfera de completo silêncio geológico”. O que isso nos diz é que a máquina do mundo drummondiana não pode elidir-se do mundo (o outro), pois a máquina do mundo é ela mesma o mundo coincidindo consigo. Nas palavras do crítico:
Em suma, a abertura da máquina do mundo se dá sem que ela exorbite da paisagem, sem que se dê a manifestação de coisa alguma que não coincida com o mundo enquanto tal e sem que nada salte à vista para se distinguir dele (WISNIK, 2018, p. 203).
O silêncio geológico, nesse sentido, anuncia a própria impossibilidade de o mundo dizer-se, sendo a impossibilidade, em sua condição de invisibilidade, a alimentadora da máquina do mundo que se abre para que a paisagem, ainda que com dificuldade, por fugidia, se veja.
A relação do eu lírico com aquilo que suas pupilas tentam palmilhar para que tome um corpo, para que se elabore em linguagem essa falta, é como se materializasse o pedido de que vejam os efeitos da mineração. Isso caracteriza, em alguma medida, o que Wisnik (2018) chama de geografia histórico-afetiva, pois, ao seu modo, Drummond não deixa que essa degradação passe em branco, enfatizando o lugar do poeta como um dos precursores no tratamento desse tema com efeito de denúncia. É claro que o lugar assumido por Drummond enquanto poeta tem como centro um trabalho de linguagem que, em alguma medida, dificulta a leitura de um texto intervencionista, pela elaboração densa de linguagem que se produz. Ainda assim, nesse exercício de “mentar” de que trata o eu lírico - esse exaustivo exercício - não se pode deixar de reconhecer que há uma dificuldade de dizer com simples palavras algo que é resultado de um estranhamento, de um mal estar que se pode chamar existencial, diante do horror que tamanha degradação produz.
O hermetismo, de alguma forma, pode colocar o poema em um lugar de silêncio no qual o acesso limitado cause um efeito comum ao que temos: exatos 80 anos depois vemos Minas Gerais sofrer os efeitos da mineração, ainda com mais brutalidade.
Da mesma forma, há uma grande quantidade de poetas, prosadores e prosadoras que tratam, ainda na contemporaneidade, desse efeito da mineração em cidades do estado de Minas. Um exemplo bastante recente é o livro de poemas O gosto amargo dos metais (2022), da poeta e crítica de literatura Prisca Agustoni, no qual transparece a “espantografia”, para usar uma expressão de Pucheu (2021), resultante das tragédias de Mariana, em 2015, e de Brumadinho, em 2019. As construções literárias seguem dando contorno ao que os homens vivem, e por vezes se antecipam em nomear movimentos que ficarão claros a posteriori para quem viveu os acontecimentos.
De novo ao poema, o direito à fala é extremamente importante. Por isso, nos fala a máquina, nos fala o poema:
“O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou se rendendo, e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza sobrante a toda pérola, essa ciência sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular, que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste… vê, contempla, abre teu peito para agasalhá-lo.” (ANDRADE, 2015a, p. 267-268).
Mas há sempre mais do que palavras. Isso é fato. Os estudos da ecocrítica nos apontam exatamente isso. Para além dos discursos, coisas acontecem, consequências são colhidas no campo material da vida (LE GUIN, 2017). No poema, se há ainda uma impossibilidade tornar visível, de dizer algo de maneira “limpa” ou de forma “clara”, sem as formas escuras e opacas que o contexto da cena do poema impõe, o eu lírico assume aqui uma outra dicção, uma outra voz: a máquina agora nos fala, não uma fala qualquer, mas a fala daquilo que se observou, com aquilo que se gastou as pupilas. A procura da imagem esbarra no silêncio que vem se constituindo até aqui, assim como a própria busca do sujeito pela ideia de sucesso, de ascensão, ou tudo isso sob a grande égide do progresso. Em outras palavras, aquilo que se buscava fora, na imagem ideal do mundo e de si mesmo, aparece dentro, no campo de seu desejo, de sua condição de sujeito no mundo, e não havia sido encontrado antes porque nunca havia se mostrado. É preciso contemplar antes, para então acolher o que há de si em si.
Nesse momento, o poema convoca, de maneira direta, o leitor ao que pretende dizer. É como se fosse atribuído ao silêncio que é dito no poema um semblante, que pede: olha, mas não só: repara; e mais do que isso: ausculta. O movimento cuidadoso de olhar devagar é necessário ao exercício exaustivo de análise crítica, pois não se trata apenas da “riqueza sobrante” (ANDRADE, 2015a, p. 267), pois a situação é hermética, está para além disso, está além do que apenas vemos, de imediato.
O eu lírico, nesse momento, empresta a voz à máquina, fazendo, portanto, que se alterne do discurso silencioso anterior à “dicção oratória e persuasiva”, de que fala Wisnik (2018, p. 208). Essa mudança acontece para que o sujeito leitor se compreenda como participante, ou que compreenda “essa total explicação da vida” (ANDRADE, 2015a, p. 267), sendo essa, ao nosso ver, a própria condição de encontro possibilitada pelo texto literária e vida social; ou um momento em que, ao leitor, é possibilitada a tomada de consciência de que o sujeito é sujeito enquanto um ser relacionado à natureza, lembrando a fala de Le Guin sobre a necessidade de reaprender a ver e a compreender essa relação.
Se em momentos anteriores houve dúvidas quanto a isso, os últimos anos trouxeram confirmações da não tão grande autonomia dos humanos em relação à natureza. Assistimos hoje às variadas alterações naturais causadas pela degradação e pela relação de distanciamento e soberania que o homem estabeleceu com o mundo em que habita. O poema de Drummond acusa isso. Parecem estar os homens de hoje mais cientes de que muito do sofrimento humano (a falta de alimentação de qualidade, as condições climáticas, locais inadequados para moradia, o ar quase não respirável, entre outras coisas) é causa do seu comportamento destrutivo, do desejo de poder diante do mundo.
Ainda assim, o que se vê nos dias atuais é uma tentativa de reconstituição da relação com a natureza a partir de um natural manipulado. O que não é o proposto pelo eu poético: o que se propõe, que se busca convencer, é que se observe, contemple e veja, para que possa se abrir o peito e acolher a necessidade de ver o que a ideia de progresso causa. Em alguma medida, se espera, à maneira de Walden (THOREAU, 2018), o desenvolvimento de um novo modo de olhar e se relacionar com a natureza. A partir da discussão proposta por Bogalheiro (2018), sobre não ser possível um retorno a um momento puro da experiência com a natureza pelos homens, que a vivenciam hoje atravessados pela civilização, pode haver ao menos a tentativa de uma outra postura frente à chamada realidade, que ele nomeia de ecologia negra:
[...] devemos procurar uma certa negatividade que questiona os pressupostos culturais, estéticos e científicos adquiridos e incontestados, submetendo-os ao confronto com a realidade interconectada de todas as coisas vivas e não vivas, naturais e não naturais, para descobrir o seu lado mais obscuro, negro e inacessível. Haverá um universo de elementos e de relações que sempre terá escapado aos muros do nosso cálculo (BOGALHEIRO, 2018, p. 54).
No âmbito das relações de diálogo, Wisnik (2018, p. 209) chama ainda a atenção para esse convite de enlace como um jogo sedutor com ecos de um pacto mefistofélico. Para o autor, “a fala da máquina deixa a descoberto, nesse movimento, o desejo latente que faz dele um pactário faustiano potencial, disposto a tudo pela ambição do todo”.
Observa-se, nesse conjunto de estrofes, a possibilidade de uma construção que justapõe os sentidos, o que constitui a oscilação, seja pela alternância de tom, seja pelo diálogo, ou ainda pelo convite da máquina ao sujeito pelo pacto que, de acordo com Wisnik (2018, p. 201), fica entre a recusa e a tentação, “entre a fuga à desmedida e o impulso à totalidade”. É a partir dessa composição que os versos que seguem compõem o que se entende por uma descrição totalizante, momento de maior concretude, se assim for possível dizer, em que o poema assume uma possível face mais acabada para o que figuraria o “mundo em estado de máquina”. Leiamos:
As mais soberbas pontes e edifícios, o que nas oficinas se elabora, o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento, os recursos da terra dominados e as paixões e os impulsos e os tormentos e tudo o que define o ser terrestre ou se prolonga até nos animais e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios, dá volta ao mundo e torna a se engolfar na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas, suas verdades altas mais que tantos monumentos erguidos à verdade;
é a memória dos deuses, e o solene sentimento da morte, que floresce no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance e me chamou para seu reino augusto, afinal submetido à vista humana. (ANDRADE, 2015a, p. 268).
É possível observar nesses versos que lemos a construção enigmática de que viemos falando anteriormente, porém a dicção, em alguma medida, assume um caráter mais representável, como adiantamos pelas palavras de Wisnik, como se pretendesse a representação ou a descrição mais totalizante a partir da qual algo pudesse ser visto. Se esse tema esteve no centro das discussões anteriores acerca do poema e, sobretudo, sobre essas imagens, concordamos com Wisnik quando chama atenção para o fato de que, nesses versos, talvez não se tenha mais o foco nessa tentativa de registrar o convite e/ou a recusa, mas sim a representação de um movimento interno que relaciona um mesmo e um outro, por isso o eu lírico empresta a sua voz ou é emprestado à máquina.
Wisnik (2018, p. 212-213) faz a leitura dessa composição de um movimento discursivo interno do poema, a partir do qual, para o crítico, fosse possível pensar uma similaridade com a figura da fita de Möebius[2]. Do nosso ponto de vista, a imagem não precisaria ser assim tão hermeticamente fechada, mas pensemos, talvez, numa hipótese de um eterno retorno ou, ainda, na figura da uróboro[3].
Se a máquina do mundo se funde ao próprio mundo, ainda mais, ao próprio sujeito (sem entrar na discussão da recusa ou não, propriamente dita, mais pensando no sujeito lírico, nesse contexto), somos convidados a refletir, e acreditamos ser possível, novamente na relação homem e natura e nos paradigmas da modernidade. A dominação dos recursos da natureza, em outras palavras, a leitura de que a natureza é produtora de “recursos naturais” os quais o homem pode instrumentalizar, transformar em mercado, em produto de consumo, ao modo de um “domínio faustiano” (WISNIK, 2018), dá a volta e, quando completada, no retorno, revela os seus efeitos. Há, portanto, uma visão de totalidade, no sentido de que o domínio da natureza se encontra com o pathos humano, por isso se observa essa “estranha ordem geométrica”, da qual se fala alegoricamente pela e com a máquina, dos recursos da terra dominados, ou das paixões, dos impulsos, dos tormentos. Todos a desembocar no “sono rancoroso dos minérios”, ao passo que se constrói “à vista humana”. A máquina do mundo, a máquina do poema (a máquina-poema), a maquinação da imagem poética. Só assim, concordando com Wisnik (2018), é que se observa dois vieses de um mesmo mundo – em termos de possibilidades de sentidos.
Essa leitura, de algum modo, possibilita ainda outro viés quando lemos o conjunto de estrofes que seguem. Importante observar que a própria construção da “frase, nervo interno do discurso” do poema, lembrando as palavras de Bosi (2000, p. 77), revela que as imagens, ao longo dos versos, vão sendo elaboradas no decurso da escrita (e da leitura), mecanismo esse que pode aludir à “máquina do poema”, ou seja, o poema se construindo enquanto acontece, a elaboração no centro do processo, coincidindo com a recepção.
Mas, como eu relutasse em responder a tal apelo assim maravilhoso, pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo de ver desvanecida a treva espessa que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas presto e fremente não se produzissem a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando, e como se outro ser, não mais aquele habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade que, já de si volúvel, se cerrava semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas; como se um dom tardio já não fora apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso, desdenhando colher a coisa oferta que se abria gratuita a meu engenho (ANDRADE, 2015a, p. 268-269).
Se até aqui, antes desse conjunto de versos, discutimos o fato de não ser possível observar nos versos a marca da recusa ou de um aceite pelo pacto, ou pelo menos sinais de que era esse o tema central, as estrofes que acabamos de ler marcam concretamente a recusa: o eu lírico diz de sua relutância, até aqui, como se o poema tivesse construído, de fato, uma estrada. A estrada da memória, em que a paisagem se foi reconstituindo, e a estrada do tempo da persuasão.
O eu poético que relutava outrora com o desejo comum do progresso que, por um lado, lhe era ofertado, agora se mostra um outro, se vê “como se outro ser, não mais aquele”, que se ausenta como as flores, metáfora da natureza, da geografia reticente. Nesse momento do poema, que assume também um teor de certa narratividade, se revela um eu lírico novamente melancólico, de “olhos baixos”, “incurioso”, como se já não tivesse pathos algum movimentando sua dúvida.
A recusa que se acentua, nesse momento, reforçada é também pela descrição desse sujeito lírico já curvado, como se se desse por vencido, mas ao contrário disso, já que não “se rende”. Wisnik (2018) chega a comentar que se trataria de um Fausto invertido, por recusar a oferta de acessar a verdade total. Talvez, valendo-se das próprias palavras do eu lírico: essa total explicação da vida.
De toda forma, ainda que o sujeito recuse a oferta da máquina, o poema é de todo paradoxal, pois ao mesmo tempo recusa e contempla a máquina. Mesmo que seja assim, a postura do eu lírico, quando decide sair de cena, é de um tom elegíaco, lamurioso, como se seus ombros suportassem o mundo, nesse instante. Ou, como quer Wisnik (2018, p. 222), é como se pairasse uma "nuvem de esgotamento moral".
No encerrar, o eu lírico avalia o que se perdeu, talvez por isso a postura melancólica: sabe que sua recusa não salvou a paisagem perdida, ou ao menos tem essa visão. A treva já se colocou, a pedra já tomou toda a estrada, e máquina do mundo representando o próprio mundo (o mesmo), foi recomposta, a cada gesto, de “mentar”, ou por conta de o eu lírico ter palmilhado vagarosamente. O que se observa nestes últimos versos não é um comportamento de “lavar as mãos”, mas o de tentar mostrar, via memória e imagem poética, palavra escrita, o que a mineração fez com a máquina-mundo. Resta ao eu lírico a memória da estrada de Minas, meio turva pela treva, assim como as flores de outrora, já hoje reticentes.
Antes de sair de cena, lemos:
A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, seguia vagaroso, de mãos pensas (ANDRADE, 2015, p. 269).
PENSAR, AINDA: UM DESTINO MINERAL?
Mesmo depois do fim, voltaremos a um ponto de começos, como se construíssemos a nossa própria estrutura circular:
Humanizar é um dos efeitos da literatura. Acordar o que o ser humano vive a partir do seu encontro com as palavras, com a fabulação. Animais marcados pela linguagem, os homens sempre precisaram transmitir suas histórias e, para além da oralidade, a escrita se mostrou uma ferramenta poderosa. Dos primeiros traços na pedra, ao universo todo dos registros escritos, o que se escreve e se lê pode ser considerado a possibilidade que temos em dividir excertos de nossas experiências subjetivas, contemplando num mesmo meio a passagem de temas que contêm desde a ancestralidade cultural até os elementos mais singulares de cada escritor e leitor. É nesse entrelaçamento, do que se transmite da herança e experiência humana em cada leitura, que a literatura toca e pode transformar o leitor em sua própria experiência estética, na qual reside e se afirma a potência da literatura e dos estudos literários, em geral.
Em seu livro O mundo desdobrável, ensaios para depois do fim (2021), Carola Saavedra busca investigar os horizontes que a literatura é capaz de alcançar, à luz do Antropoceno, num mundo em constante desconstrução e com tantos eventos simultâneos de colapso: o aquecimento global, a pandemia, a ascensão da extrema-direita, as ofertas cada vez mais ambiciosas da tecnologia em detrimento de questões humanitárias urgentes, como a miséria e a fome.
Como fica a literatura, este sonho acordado da civilização se a própria civilização está sendo questionada? Como escrever em tempos tão urgentes e estranhos? [...] Escrevemos e já não é, e de novo, já não é, a cada frase. Em outras palavras, num mundo cada vez mais incerto, mais irreal, como abordar a realidade? (SAAVEDRA, 2021, p.19).
Os questionamentos que a autora faz acima e os de Drummond são convergentes, sobretudo ao se pensar a relação da natureza com a literatura. Abordamos a realidade com as nossas ficções. A partir do momento em que falamos e criamos uma teia de palavras para nomear o real que nos cerca, estamos tecendo uma ficção. De certa forma, essa representação do mundo, elemento essencial de toda obra de arte desde a Antiguidade, permite-nos pensar e conceber o literário também como uma forma de pensamento.
A cidade de Itabira constitui um dos temas que se repetem na obra de Drummond. Sua aura permeia o imaginário infantil do poeta e traz notícias de algo que segue vivo em suas memórias, como vimos na leitura do poema. As transformações descritas nos versos que lemos carregam um lamento pelo que veio a ser a história da cidade que, por sua localização geográfica e potencial de exploração, parecia, segundo o próprio Drummond, estar destinada a tornar-se um dos maiores polos de mineração do país e do mundo. Mas o destino, do que se trata? Ao ler as obras dos autores românticos, que fazem uma crítica ao sistema capitalista e acusam as perdas que o “progresso” produz, quase nada é passível de ser nomeado inevitável. Quais são, então, as forças necessárias para que os “destinos” não se cumpram?
A história e o destino de Itabira se deram em uma época em que o discurso de progresso era mais forte que o da preservação. O cenário da Segunda Guerra Mundial e a necessidade de prover a indústria de aço foram fortes o suficiente para impulsionar a criação da Vale do Rio Doce, que, desde então, foi responsável pela extensa exploração do minério de ferro, que fez uma cratera da serra da memória, dos tempos de menino, a “serra que não passa” (ANDRADE, 2015d, p. 565), que não desaparece, mas que se transforma: “mísero pó de ferro, que não passa” (ANDRADE, 2015d, p. 566).
Drummond, mesmo sem assumir uma postura de ativismo atuante, fez de seus poemas que tratam do tema da mineração uma forma de resistência, de modo que é possível observar e analisar as imagens, as metáforas, os símbolos como força crítica contra as ameaças ambientais, dialogando com a proposta de uma obra ecocrítica. Wisnik (2018) insere no livro a fotografia de uma propaganda cujo título provocativo (“Há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro”) aponta para a presença efetiva do incômodo causado pelo poeta. Ele não impediu o acontecimento da exploração, mas sua obra permanece, abrindo espaço ao obscuro, o que, do campo do real, da existência, os discursos científico e capitalista não conseguem alcançar.
A pergunta sobre o destino segue ecoando em muitas construções literárias, filosóficas e sociológicas da contemporaneidade, mas pensemos: Há que ser destino?
REFERÊNCIAS
AGUSTONI, P. O gosto amargo dos metais. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2022.
ANDRADE, C. D. Claro enigma. In: Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015a, p. 218-270.
ANDRADE, C. D. A rosa do povo. In: Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015b, p. 102-204.
ANDRADE, C. D. Alguma poesia. In: Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015c, p. 9-61.
ANDRADE, C. D. Boitempo II (menino antigo). In: Nova reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015d, p. 550-625.
ASSMANN, A. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Trad. Paulo Soethe. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.
BOGALHEIRO, M. Fim da natureza; paradoxos e incertezas na era do antropoceno e do geo-construtivismo. RCL - Revista de Comunicação e Linguagens, n. 48, 2018.
BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. 6. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 33. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2019.
FREUD, S. (1908) O escritor e a fantasia. In: Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, v. 8, 2011a, p. 325-338.
FREUD, S. (1925) Uma nota sobre o bloco mágico. In: Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011b, p. 267-274. v. 16.
GARRARD, G. Ecocrítica. Trad. Vera Ribeiro. Brasília: Editora UNB, 2006.
LE GUIN, U. Deep in admiration. In: TSING, L.; BUDANT, N.; GAN, E.; SWANSON, A. (eds.) tArts of Living on a Damaged Planet: Ghosts and Monsters of the Anthropocene. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017.
MOISÉS, C. F. Poesia para quê? A função social da poesia e do poeta. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
PUCHEU, A. Espantografias: entre poesia, filosofia e política. Brasília: C14 casa de edição/FAPERJ, 2021.
SAAVEDRA, C. O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim. Belo Horizonte: Relicário, 2021.
THOREAU, H. D. Walden ou a vida nos bosques. Trad. Alexandre Barbosa de Souza. São Paulo: Edipro, 2018.
WISNIK, J. M. Maquinação do Mundo: Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Notas