Dossiê

Recepción: 31 Agosto 2023
Aprobación: 22 Octubre 2023
DOI: https://doi.org/10.29327/266889.11.2-7
Resumo: Este artigo analisa o dialogismo e a avaliação social em 5 notícias sobre a posição contrária dos professores quanto ao retorno das aulas presenciais na pandemia de COVID-19. Publicadas entre julho de 2020 e março de 2021 nas versões digitais dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, as notícias versam sobre a possibilidade de retorno às atividades presenciais durante a crise de saúde causada pela pandemia. Como fundamento teórico-metodológico, este estudo mobiliza os trabalhos do Círculo de Bakhtin, especialmente os conceitos de dialogismo, avaliação social, gêneros do discurso e esfera de criação ideológica. Os resultados da análise evidenciam que a constituição de determinados efeitos de sentido entre os enunciados das notícias e os posicionamentos valorativos dos jornais são aliados ao discurso das escolas particulares em defesa do retorno presencial.
Palavras-chave: Dialogismo, Avaliação social, Notícias, Professores, Pandemia de COVID-19.
Abstract: This article analyzes dialogism and social evaluation in 5 news reports about the teachers’ opposition to the return of in-person classes during the COVID-19 pandemic. Published between July 2020 and March 2021 in the digital versions of the newspapers Folha de S. Paulo and O Estado de S. Paulo, the news reports refers to the possibility of returning to in-person activities during the health crisis caused by the pandemic. As a theoretical-methodological basis, this study mobilizes the work of Bakhtin’s Circle, especially the concepts of dialogism, social evaluation, discourse genres, and ideological production. The results of the analysis show that the constitution of certain effects of meaning between the statements of the news reports and the evaluative positions of the newspapers is allied to the discourse of the private schools in defense of the return of in-person teaching.
Keywords: Dialogism, Social evaluation, News reports, Teachers, COVID-19 pandemic.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Existem diversas linhas de estudo da linguagem que a investigam a partir de diferentes categorias, procedimentos metodológicos e recortes de análise. Neste artigo, mobilizamos a vertente da Análise Dialógica do Discurso (ADD), que surge no Brasil com base nos trabalhos dos teóricos russos Mikhail Bakhtin (1895-1975), Pável Medviédev (1892-1938) e Valentin Volóchinov (1895-1936), integrantes do grupo conhecido como Círculo de Bakhtin (CB).
Nessa vertente, a análise é pautada na língua em uso, cuja realização se dá no enunciado concreto. Este tem seu sentido produzido por meio das relações dialógicas estabelecidas com outros dizeres, os quais o enunciado pode sustentar, contestar, polemizar etc. Para o CB e seus interlocutores, todo enunciado é elaborado por um sujeito social (situado em uma dada coletividade social), que usa a língua em diferentes esferas da atividade humana, como a artística, a religiosa e a jornalística. Essas esferas (ou campos), por sua vez, produzem, segundo Bakhtin (2016a, p. 12, grifos do autor), “tipos relativamente estáveis de enunciados”, os gêneros do discurso, apreendidos pelos sujeitos em situações de interação social e depois utilizados por eles em seus próprios enunciados. Por esse motivo, na ADD, a unidade de análise é o enunciado concreto, em cuja constituição se entretecem aspectos linguísticos e extralinguísticos, sociais, históricos e ideológicos.
Dada a complexidade dessa concepção de língua, a análise deve abranger também a dimensão social dos enunciados concretos. Sendo assim, os teóricos do CB apontam um percurso metodológico para esse estudo, que deve partir (1) das formas e tipos de interação mediante as quais o enunciado é produzido; (2) seguido pelo estudo do gênero do discurso em que ele se materializa; (3) e, por fim, o tratamento das formas linguísticas (palavras, expressões etc.) que o constituem em sua compreensão linguística habitual (Volóchinov, 2021).
Considerando esses direcionamentos, neste trabalho temos por objetivo analisar o dialogismo e a avaliação social em 5 notícias sobre a posição contrária dos professores quanto ao retorno das aulas presenciais na pandemia de COVID-19, sendo 3 delas veiculadas pelo jornal O Estado de S. Paulo (Estadao.com.br) e 2 pela Folha de S. Paulo. Esses textos compõem o corpus coletado em nossa pesquisa de mestrado, na qual analisamos notícias publicadas no período de um ano – de março de 2020 a março de 2021 – sobre a educação básica durante a crise de saúde. O presente artigo deriva, portanto, dessa pesquisa, com um recorte de 5 notícias veiculadas entre julho de 2020 e março de 2021, quando se discutia a possibilidade de reabertura das escolas.
Para análise aqui pretendida, mobilizamos os conceitos de dialogismo, avaliação social, esfera de criação ideológica e gêneros do discurso. Com isso, objetivamos responder aos seguintes questionamentos: Quais efeitos de sentido são produzidos entre os enunciados das notícias sobre a posição dos professores diante do retorno presencial?
Qual posicionamento valorativo dos jornais pode ser interpretado a partir das notícias?
Com base nos apontamentos do CB sobre a análise de enunciados concretos, organizamos este artigo em cinco partes: na primeira, discutimos a concepção de linguagem adotada pelos teóricos; na segunda, recorremos aos conceitos de esfera de criação ideológica e gêneros do discurso para abordar as particularidades da esfera jornalística e do gênero notícia; na terceira, tratamos dos fatores que definem a situação extraverbal de produção dos enunciados em estudo; na quarta, desenvolvemos a análise do corpus; e, por último, procedemos com as considerações finais do trabalho.
UMA CONCEPÇÃO DIALÓGICA DE LINGUAGEM
A metáfora do diálogo perpassa toda a concepção de linguagem do CB, mas a palavra “diálogo”, e os termos “dialogismo” e “relações dialógicas”, não servem apenas para designar uma conversa cotidiana entre dois sujeitos, ou as representações desse ato, como acontece em romances ou peças teatrais. Na perspectiva do Círculo, esses termos sintetizam e comunicam a sua tese de que “a essência real da língua é o acontecimento social da interação discursiva, realizada em um ou muitos enunciados” (Volóchinov, 2019b, p. 268).
Em outras palavras, para o CB, a natureza do fenômeno linguístico se fundamenta na interação social, no dialogismo que constitui todo discurso, do mais simples ao mais complexo, do oral ao escrito, pois, segundo Bakhtin (2016b, p. 92), “As relações dialógicas são relações (de sentidos) entre toda espécie de enunciados na comunicação discursiva. Dois enunciados, quaisquer que sejam, se confrontados no plano do sentido (não como objetos e não como exemplos linguísticos), acabam em relação dialógica”.
Isso significa que essas relações correspondem aos efeitos de sentido estabelecidos entre os enunciados, mesmo entre aqueles produzidos por sujeitos diferentes, em épocas e situações sociais distantes e que desconhecem um ao outro (Bakhtin, 2016b). Uma notícia dialoga, por exemplo, com outras anteriores e com os demais discursos realizados na esfera jornalística, seja pelo mesmo jornal, seja por outros. Além disso, o leitor da notícia trava diálogo com seu autor e tanto lê as informações, quanto analisa, concorda, critica ou refuta o discurso. Assim, as relações dialógicas também são marcadas pela compreensão ativamente responsiva do interlocutor e o discurso é produzido sempre considerando a sua percepção ativa.
Para Bakhtin (2016a, p. 24-25), ao compreender o enunciado, todo interlocutor “ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.”. Contudo, nem sempre essa atitude responsiva se dá de forma imediata, mas “toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente” (Bakhtin, 2016a, p. 25). Por isso, a resposta a um enunciado pode ocorrer de maneira silenciosa, como mediante um comportamento do interlocutor; pode suscitar um debate entre os participantes da interação; ou, ainda, o enunciado pode ser retomado em outra situação de comunicação discursiva.
Considerando essas possibilidades, Bakhtin (2016a, p. 57) afirma que “Todo enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva”. As relações dialógicas são, portanto, constitutivas do discurso, já que ele é elaborado a partir de outros dizeres, ainda que as palavras do outro não estejam marcadas explicitamente no fio do discurso. Isso se dá porque “Qualquer que seja o objeto do discurso do falante, ele não se torna objeto do discurso em um enunciado pela primeira vez, e um determinado falante não é o primeiro a falar sobre ele” (Bakhtin, 2016a, p. 61).
No que diz respeito a essas relações, o teórico ainda ressalta que elas não se estabelecem no sistema linguístico (entre palavras isoladas, morfemas e fonemas), mas apenas no campo do discurso, sendo possível também entre enunciados não finalizados. Na verdade, “o enfoque dialógico é possível a qualquer parte significante do enunciado, inclusive a uma palavra isolada, caso esta não seja interpretada como palavra impessoal da língua, mas como signo de posição semântica de um outro, [...] ou seja, se nela ouvimos a voz do outro” (Bakhtin, 2018, p. 210).
Nessa perspectiva, a palavra alheia manifesta-se de diferentes formas no discurso do falante. Em alguns casos, ela não aparece marcada, já em outros, recursos como as aspas são empregados para delimitar e evidenciar o distanciamento entre o discurso do falante (autoral) e o discurso do outro (citado). Essa é uma estratégia encontrada, por exemplo, nas notícias, que mobilizam enunciados de sujeitos cujas vozes representam, por vezes, discursos autoritativos, ou seja, enunciados que configuram argumentos de autoridade, servindo para legitimar a notícia, conforme a temática noticiada e os objetivos do periódico (Acosta Pereira, 2008).
Inclusive, essa forma de dialogismo demarcado também é discutida pelo Círculo. Ao abordar esse fenômeno, Volóchinov (2021, p. 249, grifos do autor) explica que o discurso do outro “é o discurso dentro do discurso, o enunciado dentro do enunciado, mas ao mesmo tempo é também o discurso sobre o discurso, o enunciado sobre o enunciado”. Em outros termos, a palavra alheia é um elemento que constitui os nossos dizeres e também é o tema/conteúdo sobre o qual falamos. Logo, não se trata apenas de um processo de assimilação, mas de interação entre vozes de sujeitos sociais diferentes.
Por isso, o discurso citado é compreendido pelo falante como o discurso de outro sujeito, um enunciado inicialmente autônomo, já construído e finalizado. Dessa autonomia, ele é transposto no discurso do falante, “mantendo ao mesmo tempo o seu conteúdo objetivo e ao menos rudimentos da sua integridade linguística e da independência construtiva inicial” (Volóchinov, 2021, p. 250). Nesse processo, o falante elabora normas sintáticas, estilísticas e composicionais para incluir as palavras do outro nas suas, conservando também, “nem que seja de um modo rudimentar, a independência inicial (sintática, composicional e estilística) do enunciado alheio, sem a qual a sua integridade seria imperceptível” (Volóchinov, 2021, p. 250). Trata-se, portanto, de um fenômeno de “reação da palavra à palavra” (Volóchinov, 2021, p. 251, grifos do autor), em que o discurso citado não é apreendido e mobilizado de forma imparcial, mas mediante um posicionamento valorativo daquele que elabora as normas para incorporá-lo em seu discurso.
Consequentemente, ao estudar o diálogo, devemos investigar também as formas de transmissão do enunciado do outro, pois elas “refletem as tendências principais e constantes da percepção ativa do discurso alheio”. (Volóchinov, 2021, p. 252, grifos do autor). Segundo Volóchinov (2021), essas formas não resultam de uma escolha subjetiva, individual e instável do falante, pelo contrário, dependem dos instrumentos que a língua seleciona e disponibiliza para transpor a palavra alheia.
Além desses aspectos, a transmissão também se dá a partir de objetivos específicos e de uma orientação social, de “um terceiro, àquele a quem são transmitidas as palavras alheias” (Volóchinov, 2021, p. 252). Ao incorporar essas palavras nas suas, o falante estabelece uma relação com o outro que as produziu e com o interlocutor de seu próprio discurso, sendo essa orientação relevante por destacar a influência das forças sociais na percepção e na transmissão do discurso. Portanto, vários elementos integram esse processo que é ativo, porque o enunciado alheio é percebido e transmitido por um sujeito social, revestido de avaliações sociais e de outros discursos que permeiam a sua constituição.
De acordo com Volóchinov (2021, p. 254, grifos do autor), essa percepção do falante “se dá em duas direções: em um primeiro momento, o enunciado alheio é emoldurado pelo contexto real e comentador [...], pela situação (interna e externa), pela expressão visível e assim por diante; e em um segundo momento, prepara-se uma réplica [...]”. Por isso, a depender da forma como o enunciado alheio é transmitido, diferentes reações dialógicas são produzidas e o seu sentido inicial pode ser modificado completamente. Sobre essa questão, Bakhtin também sinaliza a influência do contexto transmissor na produção de sentido do discurso citado:
É necessário observar o seguinte: incluído no contexto, o discurso do outro sempre sofre certas mudanças semânticas por mais precisa que seja a sua transmissão. O contexto que emoldura o discurso do outro cria um fundo dialogante cuja influência pode ser muito grande. Através dos meios correspondentes de emolduragem podem-se conseguir transformações muito substanciais de um enunciado alheio citado com precisão (Bakhtin, 2015, p. 133).
Por esse motivo, o estudo do enunciado alheio deve abranger o contexto de sua transmissão. Para Volóchinov (2021, p. 255), “o verdadeiro objeto de estudo deve ser justamente a inter-relação dinâmica entre essas duas grandezas: discurso transmitido (‘alheio’) e o discurso transmissor (‘autoral’)”. Considerando que eles vivem e são constituídos apenas nesse diálogo e não isoladamente, o autor apresenta as formas/modelos de transmissão, que podem preservar ou enfraquecer os limites entre os discursos citado e citante.
Em sua discussão, Volóchinov trata dos modelos existentes na língua russa. Neste artigo, optamos por abordar somente os identificados nas notícias analisadas, sendo, respectivamente, duas variantes do discurso indireto (DI) e uma do discurso direto (DD):
1. Na modificação analítico-objetual, o enunciado do outro é assimilado apenas no plano temático. Seus elementos formais e verbais só são incorporados no discurso autoral quando necessários à compreensão, ainda assim, de modo temático. Ou seja, apenas o conteúdo, o tema do discurso citado, é reformulado e transmitido no discurso citante.
2. Na modificação analítico-verbal, há a possibilidade de conservação de aspectos estruturais do enunciado alheio. “Ela [a forma/modelo] introduz, na construção indireta, palavras e modos de dizer do discurso alheio que caracterizam a fisionomia subjetiva e estilística do enunciado alheio enquanto expressão” (Volóchinov, 2021, p. 273). Nesse caso, aspectos da entonação e do estilo, bem como palavras do enunciado de outrem podem ser conservados no DI, inclusive identificados entre aspas.
3. No discurso direto preparado, o DD surge a partir do indireto. “Os principais temas do futuro discurso direto são antecipados pelo contexto e coloridos pelas entonações do autor; assim, os limites do discurso alheio ficam extremamente enfraquecidos” (Volóchinov, 2021, p. 279). Como resultado, o DI pode direcionar o leitor à compreensão do DD.
Ainda que existam diferentes modelos, a sua identificação não é estanque. A depender do gênero discursivo, esfera de produção e da orientação social, o discurso do outro pode ser incorporado de forma mais ou menos demarcada. Também o peso hierárquico desse discurso intervém em sua transmissão, pois “Quanto mais intensa for a sensação de superioridade hierárquica da palavra alheia, tanto mais nítidas serão suas fronteiras e menos penetrável ela será pelas tendências comentadoras e responsivas” (Volóchinov, 2021, p. 262).
Desse modo, compreendemos que além do dialogismo constitutivo, aquele que não é demarcado no discurso, há também um outro, demarcado. Em ambos os casos, há diversos aspectos envolvidos no estabelecimento dessas relações dialógicas. Por isso, adiante, buscamos elucidar no que consiste o posicionamento valorativo, a ideologia e a avaliação social, elementos que intervêm na constituição do dialogismo entre os discursos.
IDEOLOGIA E AVALIAÇÃO SOCIAL
Ao discutir a concepção de língua adotada pela ADD, constatamos que o estudo desse fenômeno implica compreendê-lo e analisá-lo a partir de seu uso real e concreto, da língua concebida não como um sistema de formas gramaticais abstratas, mas como, nas palavras de Bakhtin (2015, p. 271, grifos do autor), “a língua ideologicamente preenchida”. Como explica Faraco (2013, p. 170), a concepção de ideologia presente nessa afirmação do teórico russo “faz referência às representações que os diferentes grupos sociais constroem do mundo” e que se materializam no e constituem o enunciado. Assim, quando declara que não há enunciados neutros, Bakhtin (2016a) sinaliza para o fato de que todo enunciado é produzido por um sujeito e, portanto, detém um posicionamento, uma avaliação social, uma entonação valorativa.
Nesse sentido, a ideologia é um termo descritivo, um elemento presente em todo ato de uso da língua, no signo linguístico e no enunciado, já que todos são marcados por entonações valorativas. “Ou, como também lemos nos textos do Círculo, qualquer linguagem social/voz social, qualquer signo não apenas representam o mundo, mas também (e sempre) o refratam, são sempre representações refratadas do mundo” (Faraco, 2013, p. 173).
Para o CB, o acesso dos sujeitos ao real é sempre mediado pela linguagem. Isso significa que não entramos em contato direto com os objetos do mundo, mas com os discursos produzidos em torno desses objetos já atravessados pelas avaliações sociais dos outros, que já o apreciaram, contestaram, polemizaram etc. Dessa maneira, como explica Volóchinov (2021, p. 93), o signo não apenas reflete (representa) a realidade, mas também a refrata (interpreta), “sendo por isso mesmo capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista específico”.
Aliás, essa é uma condição necessária do signo, pois “apenas graças a essas refrações de opiniões, avaliações e pontos de vista é que o signo tem a capacidade de viver, de movimentar-se e desenvolver-se” (Volóchinov, 2019c, p. 309). Por isso, enquanto signo ideológico, uma palavra não encerra um único sentido constante e nem expressa apenas uma entonação valorativa. Quando tomada no discurso de pessoas ou grupos sociais diferentes, ela “refletirá também diferentes olhares, expressará diferentes pontos de vista, mostrará diferentes relações com a realidade” (Volóchinov, 2019c, p. 309).
Além de expressar posições valorativas, todo signo é ideológico porque é produzido sempre em uma esfera de criação ideológica (ou em um campo da atividade humana, como aparece em alguns textos de Bakhtin). Na perspectiva do Círculo e, em especial, na de Volóchinov (2021), essa ideologia – ou superestrutura, como lembra Faraco (2013) – divide-se em sistemas ideológicos constituídos e em ideologia do cotidiano.
Ao investigar o conceito de ideologia nos trabalhos de Volóchinov, Narzetti (2013) explica que os sistemas ideológicos constituídos são mais sistematizados e correspondem às esferas de criação ideológica, como a arte, a ciência e o jornalismo. Nessas, os gêneros do discurso mais complexos são produzidos, os quais surgem em situações de interação social mais organizadas e desenvolvidas, como as obras literárias, os artigos científicos e as notícias.
Já a ideologia do cotidiano detém pouca ou nenhuma sistematização, nela se realiza o pensamento, o discurso interior e exterior presente em todos os atos conscientes dos sujeitos. Por ser mais flexível e móvel que os sistemas ideológicos, nela também se materializam diferentes tipos de interação verbal e de gêneros do discurso elaborados em situações de comunicação discursiva imediata, corriqueira, como as conversas informais. Apesar da flexibilidade e da pouca sistematização, a ideologia do cotidiano divide-se em camadas, gradativamente mais substanciais, responsáveis e criativas.
Na inferior encontramos, por exemplo, os pensamentos vagos, pouco organizados e desenvolvidos que surgem ocasionalmente no sujeito. Já as camadas superiores estabelecem uma relação direta com os sistemas ideológicos, sendo mais ativas e sensíveis às mudanças sociais e capazes de transmiti-las mais rápida e claramente. “É justamente aqui que se acumulam as energias criativas responsáveis pelas transformações parciais ou radicais dos sistemas ideológicos” (Volóchinov, 2021, p. 215). A respeito da relação entre a ideologia do cotidiano e os sistemas ideológicos constituídos, Narzetti (2013, p. 375-376) explica que:
Sendo assim, para Voloshinov, os sistemas ideológicos constituídos e a ideologia do cotidiano mantêm relações dialéticas. Os objetos surgidos na ideologia do cotidiano constituem o material sobre o qual trabalham os sistemas ideológicos visando a sua sistematização, estabilização e acabamento. Por seu turno, a ideologia do cotidiano, recebendo de volta esses objetos sistematizados e acabados, é por eles determinada em algum grau. No entanto, esta última também atua como o lugar onde esses objetos são continuamente testados e avaliados, onde eles estabelecem vínculos com a consciência dos indivíduos.
Nesse sentido, a ideologia do cotidiano funciona como um elo entre a infraestrutura econômica – a base onde se encontram as relações de produção, o trabalho e a produção concreta da vida humana – e os sistemas ideológicos constituídos – a superestrutura. Essa ligação ocorre através da linguagem verbal, dos signos verbais presentes em todos os campos da atividade humana, que expressam as mudanças sociais (Narzetti, 2013). Assim, podemos considerar que o signo linguístico e o enunciado são ideológicos porque refletem e refratam a realidade em cada esfera em que são elaborados e porque remetem a um posicionamento valorativo, a uma avaliação social (Faraco, 2013).
Mas cabe ainda discutirmos o modo como esse posicionamento intervém na construção do enunciado. Na obra O método formal nos estudos literários (1928), Medviédev explica que a avaliação social é o elemento que une a palavra ao seu sentido e que se apresenta apenas no enunciado concreto (singular, social e histórico), cujo sentido se relaciona com as circunstâncias de sua produção. Para Medviédev (2019, p. 184), a avaliação social é “justamente essa atualidade histórica que reúne a presença singular de um enunciado com a abrangência e a plenitude de sentido, que individualiza e concretiza o sentido e compreende a presença sonora da palavra aqui e agora”.
Nesse processo de atualização, “cada elemento da língua tomado como material obedece às exigências da avaliação social” (Medviédev, 2019, p. 185). Esta determina a escolha do objeto do discurso, dos recursos linguísticos, a forma e a combinação deles nos limites do enunciado e, inclusive, as suas possibilidades de sentido. Além disso, a palavra que entra no enunciado não pertence ao dicionário, mas aos dizeres dos outros, carregados de acentos valorativos, de modo que “As possibilidades de uma língua se tornam realidade somente por meio da avaliação” (Medviédev, 2019, p. 187). Portanto, “A avaliação social determina todos os aspectos do enunciado, penetrando-o por inteiro, porém, ela encontra a expressão mais pura e típica na entonação expressiva” (Medviédev, 2019, p. 185).
No ensaio “A palavra na vida e a palavra na poesia” (1926), Volóchinov (2019a) também trata desse conceito ao discorrer sobre o enunciado e os aspectos extraverbais de sua produção. Nesse ponto, o teórico afirma:
Costumamos atribuir as seguintes características e avaliações aos enunciados cotidianos: “é mentira”, “é verdade”, “é corajoso”, “não poderia ter dito isso”, e assim por diante.
Essas avaliações, e outras semelhantes a elas, independentemente do critério pelo qual elas seguem - ético, cognitivo, político ou de outros tipos - incluem muito mais do que se encontra nos aspectos verbal e linguístico do enunciado: as avaliações englobam, junto com a palavra, a situação extraverbal do enunciado (Volóchinov, 2019a, p. 117-118, grifos do autor).
Para Volóchinov (2019a), portanto, assim como para Medviédev, a avaliação compreende não apenas o que encontramos materializado no enunciado, mas também a dimensão do seu acontecimento. Ou seja, envolve o momento histórico, o evento de interação social e os seus participantes. Também para Volóchinov (2019a), a avaliação é o elemento que determina o todo do enunciado, embora se revele mais claramente na entonação expressiva:
A entonação e seu tom principal claro e seguro apoiaram-se no caráter compartilhado e subentendido das avaliações. [...] Quando uma pessoa pressupõe que o outro discorda dela ou ao menos não tem certeza ou duvida da sua concordância, ela não só entoa as palavras de outro modo, como constrói o enunciado de outra maneira (Volóchinov, 2019a, p. 124).
Há uma convergência entre as percepções de Volóchinov e Medviédev quanto à avaliação social e seu papel na construção dos enunciados. Para ambos, ela tem sua realização mais “pura e típica” na entonação e determina o todo do enunciado. Mais do que isso, nas afirmações de Volóchinov (2019a), destaca-se o envolvimento entre a avaliação social e a compreensão responsiva ativa do interlocutor, porque a resposta dele ao enunciado é sempre avaliativa e é considerando essa avaliação que elaboramos nossos dizeres.
Em outras palavras, todo enunciado é preenchido de avaliações, porque constitui sempre uma resposta aos enunciados de outrem. São essas avaliações que possibilitam os sentidos, como Volóchinov também pontua no ensaio “A construção do enunciado” (1930):
[...] a diferença nas situações determina também a diferença nos sentidos de uma mesma expressão verbal. Nesse caso, a expressão verbal – o enunciado – reflete a situação não apenas de modo passivo. Não, ela é uma solução, torna-se sua conclusão avaliativa e ao mesmo tempo é uma condição necessária de seu desenvolvimento ideológico posterior (Volóchinov, 2019b, p. 285, grifos do autor).
Enquanto isso, em “Os gêneros do discurso”, Bakhtin trata da avaliação a partir da expressividade do enunciado. Para ele, esse elemento determina a composição, o estilo e consiste na “relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do objeto e do sentido do enunciado”. (Bakhtin, 2016a, p. 47). Dessa maneira, a expressividade também atravessa o conteúdo temático, o objeto discursivo do enunciado. Tal como Volóchinov e Medviédev, Bakhtin destaca que:
1. “A relação valorativa do falante com o objeto do seu discurso (seja qual for esse objeto) também determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado” (p. 47);
2. “O estilo individual do enunciado é determinado por seu aspecto expressivo” (p. 47);
3. “[...] A entonação expressiva é um traço constitutivo do enunciado” (p. 48).
Sendo assim, há uma concordância entre os teóricos quanto à avaliação social, concebida como um elemento que (1) constitui todo enunciado concreto; (2) envolve a situação extraverbal; (4) determina/atualiza os sentidos do enunciado; e (3) determina a escolha do objeto discursivo, os recursos linguísticos e a composição. Tendo elucidado a concepção de ideologia e de avaliação social do CB, a seguir, tratamos de outros dois aspectos que determinam o enunciado: o gênero e a esfera de criação ideológica.
ESFERA JORNALÍSTICA
Para o CB, a constituição e o funcionamento de cada gênero estão sempre vinculados às condições e finalidades específicas de sua esfera de criação, o torna relevante discutir, neste trabalho, as particularidades da esfera jornalística. Para tanto, procuramos compreender, inicialmente, a especificidade dessa esfera no conjunto que compreende outros campos da atividade humana. Na área da teoria da comunicação, Melo (1994, p. 7-8 apud Rodrigues, 2001, p. 75) ressalta as dificuldades em se definir o jornalismo, para as quais “A justificativa não está apenas nas circunstâncias de que são fenômenos sociais, e portanto dinâmicos, mas na essência mesma do jornalismo que se nutre do efêmero, do provisório, do circunstancial [...]”.
Além da dinamicidade dessa esfera, Rodrigues (2001) destaca, em consonância com Melo, a imprecisão terminológica relacionada ao descompasso entre as pesquisas e as mudanças desse campo. Para a autora, “A própria terminologia marca muitas vezes a redução da esfera jornalística aos meios de reprodução e de difusão, ou a um deles mais especificamente, ou seja, aos meios tecnológicos de comunicação” (Rodrigues, 2001, p. 75). Dessa maneira, o jornalismo acaba restrito, por vezes, ao que é veiculado em jornais e revistas, ou aos fenômenos da imprensa, ainda que a esfera jornalística compreenda também outros suportes, sobretudo a partir do desenvolvimento tecnológico.
Todavia, há um processo histórico que marca essa vinculação do jornalismo a um de seus suportes ou à imprensa. Sousa (2008), ao investigar a constituição e a consolidação do jornalismo, aponta que o sistema tipográfico, inventado por Johann Gutenberg e utilizado durante os séculos XVII, XVIII e XIX, foi o que propiciou o desenvolvimento desse campo. O jornal, por sua vez, foi inicialmente o meio de divulgação de informações consolidado, ainda que depois o rádio e a televisão tenham surgido (Sousa, 2008).
Adicionalmente, outras condições históricas, sociais e ideológicas viabilizaram o estabelecimento dessa esfera e o processo de formação de seus gêneros: a crise e o declínio da monarquia absolutista e da aristocracia; a ascensão da burguesia ao poder; a queda da censura e do licenciamento prévios estabelecidos pelo Estado e pela Igreja. Soma-se a isso o aumento da alfabetização, uma vez que as habilidades de leitura e escrita tornam-se obrigatórias para a ocupação de determinados ofícios (Sousa, 2008). Há, portanto, o surgimento de uma sociedade em que a informação se transforma em um bem necessário e o acesso a ela passa a ser um indicador econômico e uma ferramenta política, pois os jornais tornam-se o meio de divulgação de novas ideias. Com isso, a circulação de informações e opiniões ganha periodicidade, fazendo surgir novas formas de comunicação social (Rodrigues, 2008).
Aliás, a própria categorização dos gêneros criados nessa esfera, comumente agrupados em informativos e opinativos, reflete também determinado acontecimento histórico. Segundo Chaparro (1997), essa divisão se relaciona com a proposta de Samuel Buckley, diretor do jornal inglês The Daily Courant (1702), de separar as notícias dos artigos veiculados no periódico. Embora tenha propiciado uma “clareza pedagógica” na organização dos textos e dos espaços no jornal, a proposta acabou contribuindo para o surgimento de diversas interpretações do conceito de objetividade no jornalismo (Chaparro, 1997).
Os gêneros associados a essa noção acabaram recebendo, por sua vez, uma avaliação social de credibilidade, como a notícia. Logo, se estabeleceu uma espécie de paradigma entre informação e opinião, o que contribuiu para o surgimento de conceitos que iludem os leitores, levando-os a crer que a mudança na paginação dos textos confere informação direta e sem comentários (Chaparro, 1997), ou seja, sem acentos valorativos e refrações da realidade.
Para Chaparro (1998, p. 100), essa separação consiste em um falso paradigma, “porque o jornalismo não se divide, mas constrói-se com informações e opiniões”. Já de acordo com Rodrigues (2001), o fundamento desse processo não é uma divisão efetiva entre informação e opinião, mas o “efeito de produção de sentido” que ele acabou conferindo à esfera jornalística:
Essas duas vertentes teórico-práticas [informação e opinião] da comunicação social jornalística poderiam, de certo modo, pelo olhar bakhtiniano, ser configuradas como produzindo dois grandes efeitos ideológico-discursivos particulares em relação ao destinatário – fazer saber e fazer crer –, estabelecendo uma espécie de contrato de comunicação entre o autor e o leitor (Rodrigues, 2001, p. 110).
Apesar da problematização em torno de tais categorias, podemos observar a sua consolidação no âmbito da atividade jornalística, já que os periódicos comumente buscam restringir a opinião somente a determinados gêneros, como editoriais e colunas. Ou seja, há uma tentativa de limitar os acentos valorativos e a subjetividade, de modo que a opinião do jornal ou daqueles que assinam os textos seja marcada explicitamente apenas nesses gêneros.
Todas essas condições que marcam a consolidação da esfera jornalística se refletem, também, na forma como os jornais se representam no contexto social como meios de credibilidade em que circulam as informações atuais e relevantes, em que os fatos são rigorosamente apurados. Essa questão se verifica nos projetos editoriais da Folha[1] e do Estadão[2], como em alguns dos seus princípios editoriais:
1. Confirmar a veracidade de toda notícia antes de publicá-la
2. Praticar um jornalismo que ofereça resumo criterioso e atualizado do que acontece de mais relevante em São Paulo, no Brasil e no mundo, com ênfase na obtenção de informações exclusivas
3. Priorizar temas que, por afetarem a vida da coletividade ou de parcelas expressivas da população, sejam considerados de interesse público (Grupo Folha, 2019, n.p).
4) O Grupo Estado, intimamente vinculado aos interesses dos leitores, ouvintes, internautas e o público de outras mídias, defende editorialmente os direitos e as liberdades individuais, o pluralismo democrático e a identidade sócio-cultural do Brasil e de São Paulo.
7) O Grupo Estado é uma organização que busca, processa e difunde informação com rigorosa obediência às exigências profissionais e éticas (Grupo Estado, 199-, p. 4).
Como pertencentes à esfera jornalística, os periódicos recortam, representam e interpretam a realidade a partir das condições e finalidades específicas desse campo. Os princípios editoriais da Folha e do Estadão evidenciam esse pertencimento, o modo como se representam na coletividade da vida social e como apreendem suas funções sócio-discursivas, que consistiria em informar os leitores sobre acontecimentos de interesse coletivo. Os preceitos revelam, enfim, a relação dos jornais com sua esfera e com outras instâncias da sociedade.
Com base em Ramonet (1999), podemos abordar essas questões ao observar a relação entre jornalismo e poder. Para esse autor, o desenvolvimento tecnológico e as mudanças na ordem econômica transformaram o domínio de poder e o seu vínculo com a imprensa, de modo que hoje há três poderes instituídos: o primeiro exercido pela economia; o segundo (indissoluvelmente ligado ao primeiro) é o poder midiático, cujo domínio pertence aos conglomerados empresariais; e o terceiro corresponde ao poder político (Ramonet, 1999).
Quanto ao segundo poder, a proposição de Ramonet pode ser ilustrada pela relação entre mídia e internet na atualidade, ambiente onde os conglomerados de mídia atuam e aos quais os jornais passam a pertencer. Exemplos disso são os grupos Folha e Estado, que detêm versões digitais de todos os periódicos sob seus domínios, aos quais, inclusive, o acesso ao conteúdo é controlado por assinatura. Portanto, mais do que administrar veículos tradicionais do mercado brasileiro, esses grupos também possuem ou participam de outras empresas ligadas aos meios de comunicação, como emissoras de rádio, editoras, institutos de pesquisa e agências de notícias.
O jornalismo, via de regra, atua junto com grandes forças econômicas e sociais: um conglomerado jornalístico raramente fala sozinho. Ele é ao mesmo tempo a voz de outros conglomerados econômicos ou grupos políticos que querem dar às suas opiniões subjetivas e particularistas o foro de objetividade.
Se a imprensa é livre, se é objetiva, se representa todos os setores da sociedade, essas são questões colocadas, antes de mais nada, não pelos grupos dominados, mas pelos próprios detentores do poder, na medida em que se veem ameaçados por outras informações que põem em risco seu monopólio, venham elas da base da sociedade ou de grupos adversários (Marcondes Filho, 1986, p. 11).
Ainda no que diz respeito à esfera jornalística, outra questão deve ser observada: as instâncias envolvidas no processo de elaboração dos enunciados em gêneros específicos desse campo. Segundo Acosta Pereira (2008), no caso das notícias, há três instâncias que participam do processo de sua produção: (a) concepção; (b) editoração e (c) responsividade.
Em cada uma delas estão envolvidos determinados sujeitos. Na instância da concepção, Acosta Pereira (2008) destaca o papel do pauteiro que, em conjunto com a chefia e os editores, envolve-se na etapa de definição dos conteúdos selecionados para a pauta. Com isso, “quem acolhe a notícia e quem a elabora não tem participação nas discussões sobre o que o jornal ou a revista vai publicar, sob que enfoque, tamanho, etc.” (Rossi, 2006, p. 20).
Já na instância de editoração, Acosta Pereira (2008) sublinha o papel do copidesque, agente responsável pela redação do jornal e por ajustar as matérias produzidas aos padrões da sede jornalística. Sobre essa questão, Rossi argumenta que o copidesque também representa um primeiro filtro, “o que já ocasiona uma primeira distorção entre a narração do que aconteceu, na visão do repórter, e o que será publicado. [...]. Assim, a forma final em que a notícia vai aparecer no jornal é, muitas vezes, mais a de quem não viu o acontecimento do que a de quem o presenciou” (Rossi, 2006, p. 28-29).
Quanto à instância da responsividade, Acosta Pereira (2008) destaca a relação dos jornais com seu público leitor, que também participa do processo de produção das notícias. Isso acontece porque, conforme Bakhtin (2016a), o autor elabora o enunciado considerando a compreensão responsiva ativa do interlocutor. Na busca pela percepção de seus leitores, as empresas jornalísticas aplicam pesquisas com o intuito de compreendê-los, embora essa estratégia não assegure a concordância dos leitores em relação ao que é produzido pelo jornal.
Em relação ao perfil do público leitor[3] da Folha, uma pesquisa realizada em 2000 pelo instituto Datafolha apontou uma divisão igualitária quanto aos sexos, na faixa etária que vai de 30 a 49 anos. Desse total, cerca de 80% possuem formação superior, 15% nível médio e 4% nível fundamental. Além da escolaridade em nível superior, o leitor típico da Folha pertence às classes A e B. Já em relação ao perfil dos leitores do Estadão, segundo Acosta Pereira (2008), em média, 66% do público pertencem às classes A e B, e 28% à classe C.
Diante da complexidade do gênero notícia e da esfera jornalística de modo geral, podemos compreender que, sobre um determinado objeto da realidade, são produzidas diversas interpretações conforme o horizonte valorativo dos envolvidos no processo de recorte e representação desse objeto nos jornais. Considerando a notícia como um gênero vinculado à esfera jornalística, à noção de objetividade e à função sócio-discursiva de informar os leitores sobre acontecimentos de interesse coletivo, abordamos, adiante, a situação extraverbal de produção do corpus em análise.
SITUAÇÃO EXTRAVERBAL DE PRODUÇÃO DAS NOTÍCIAS
Segundo Volóchinov (2019a), o enunciado surge de uma situação extraverbal e com ela mantém uma relação muito estreita. Isso porque a dimensão social não intervém a partir do exterior, mas integra a composição semântica do enunciado, de modo que é impossível apreender o seu sentido e mesmo os seus acentos valorativos sem considerar a sua situação extraverbal de produção. “A própria palavra, quando abordada de modo isolado, como um fenômeno puramente linguístico, não pode, é claro, ser nem verdadeira, nem falsa, nem ousada, nem tímida” (Volóchinov, 2019a, p. 119).
Definida pelo contexto imediato e amplo de elaboração do enunciado, essa situação é composta por três elementos: (1) o horizonte espacial comum dos interlocutores; (2) o conhecimento e a compreensão da situação comum aos participantes da enunciação; e (3) a avaliação, ou seja, os posicionamentos valorativos dos sujeitos diante da situação que vivenciam (Volóchinov, 2019a). Neste trabalho, destacamos três fatores que definem a situação extraverbal de produção das notícias.
O primeiro corresponde ao horizonte espaço-temporal da pandemia de COVID-19 – doença causada pelo vírus SARS-CoV-2 –, que irrompeu no Brasil em meados de fevereiro de 2020, desencadeando uma série de discursos sobre o cenário pandêmico enfrentado no país. Entre esses, destacam-se os discursos conspiratórios e/ou negacionistas sustentados pelo então Presidente da República, Jair Bolsonaro, e seus apoiadores (Narzetti; Tomás, 2021).
Progressivamente, a reprodução desses dizeres deflagrou um embate político. De um lado, os apoiadores do ex-presidente passaram a questionar as estratégias de combate à COVID-19; de outro, os opositores defendiam a importância das medidas de distanciamento e da vacinação. Esse cenário resultou no enfraquecimento do Ministério da Saúde, que no decorrer da pandemia sofreu períodos de instabilidade com a troca de ministros. Assim, com a ausência de políticas públicas coordenadas em nível nacional, os governos estaduais e municipais passaram a liderar as ações de combate ao vírus.
Já o segundo fator corresponde às mudanças ocorridas na esfera da educação em decorrência da crise de saúde. No Brasil, a necessidade de isolamento social resultou no fechamento das instituições educacionais e na transposição das atividades letivas para o modelo de ensino remoto. Nesse contexto, professores e alunos precisaram se adaptar rapidamente ao uso de estratégias e tecnologias diversas, vivenciando mudanças significativas no tempo-espaço escolar, que passou a invadir a esfera privada, doméstica, com câmeras, microfones, aulas síncronas e reuniões pelo Google Meet.
Para Ribeiro (2021), o cenário da pandemia e seus reflexos no setor educacional colocou em pauta a relação entre educação e escola e, ainda, a importância do espaço escolar não somente para a educação, mas também como “um eixo importante da engrenagem da vida social, em especial a urbana, porque é naquele território que as crianças e os adolescentes recebem cuidados e mesmo são confinados enquanto muitas outras coisas acontecem e precisam acontecer (Ribeiro, 2021, p. 27-28). Em síntese, a pandemia evidenciou a importância de um espaço seguro para alocar crianças e adolescentes enquanto seus responsáveis executam outras atividades, dentre elas, o trabalho.
Por último, o terceiro fator corresponde ao modelo econômico e social do capitalismo, fundamentado na acumulação de riquezas e na obtenção de lucro mediante o aumento do consumo e a continuidade do processo de produção. Na pandemia, além das vozes dissonantes quanto ao desempenho do Governo Federal no controle da doença, circulou também um discurso pautado em uma oposição entre saúde e economia. Nele, essas duas instâncias eram concebidas como mutuamente contraditórias e excludentes, de modo que as ações do Governo só poderiam ser destinadas a um desses setores.
Em outras palavras, a opção pela saúde implicaria a adesão aos protocolos de isolamento social, incluindo o fechamento de espaços de grande circulação, como os estabelecimentos comerciais e de serviços. Nesse caso, haveria impactos expressivos na economia, como o desemprego, a falência, o aumento do número de pessoas vivendo em situação de miséria e, ainda, a morte. “Sendo assim, a melhor opção seria pela economia. Esta estaria atrelada ao isolamento ou distanciamento social vertical (apenas para aqueles considerados mais vulneráveis à doença) [...]. A economia não seria prejudicada, permitindo que a nação avançasse rumo ao progresso” (Narzetti; Tomás, 2021, p. 50).
Além de sustentar tal oposição, esse discurso também escamoteou a prioridade dada à economia por meio da defesa de medidas como o uso de máscaras, a desinfecção dos ambientes e o tratamento precoce realizado com hidroxicloroquina, remédio sem eficácia comprovada contra a COVID-19. Com esses cuidados, o trabalho presencial em diversas áreas do comércio e de serviços seria preservado. “A manutenção das atividades econômicas, com as demais medidas de prevenção ao contágio permitiria que a economia continuasse se desenvolvendo” (Narzetti; Tomás, 2021, p. 51).
Na esfera educacional, a reprodução desse discurso se deu no âmbito das instituições particulares de ensino, que tiveram mensalidades atrasadas ou perderam matrículas, pois muitos estudantes migraram para a rede pública. Também, na educação infantil, os familiares retiraram as crianças das escolas privadas após a suspensão das aulas presenciais. Assim, à revelia das consequências para a saúde coletiva, observamos a reprodução, inclusive nessa esfera, do discurso que defendia o retorno presencial.
Portanto, são esses fatores que integram a construção das notícias em análise. O espaço-tempo da pandemia se entretece na (re)produção de discursos (entre eles, os da esfera jornalística), tanto acerca da crise de saúde, quanto sobre seus reflexos nos campos da sociedade brasileira. Já as mudanças na esfera educacional são determinantes uma vez que os jornais passaram a abordá-las nas notícias. Por fim, o modelo econômico e social do capitalismo definiu não apenas a sustentação do discurso favorável ao retorno das aulas presenciais, mas também a sua veiculação nas notícias.
Com a apresentação dos aspectos extraverbais que integram a materialidade discursiva, na próxima seção, passamos para a análise.
ANÁLISE DE NOTÍCIAS DA FOLHA E DO ESTADÃO
Como mencionamos anteriormente, o corpus deste artigo é composto por 5 notícias: 3 publicadas pelo jornal O Estado de S. Paulo, 3 pela Folha de S. Paulo. Essas notícias compõem o material analisado em nossa pesquisa de mestrado e foram produzidas entre julho de 2020 e março de 2021, momento em que se discutia a possibilidade de reabertura das escolas durante a pandemia de COVID-19.
Quanto aos fenômenos analisados, vale lembrar a tese do CB de que a avaliação social tem sua forma “mais pura e típica” na entonação expressiva, isto é, na realização sonora do enunciado. Contudo, esse aspecto não pode ser investigado em nosso objeto de estudo, que é escrito. Assim, cabe a identificação, descrição e análise dos acentos valorativos colocados nas palavras, expressões e enunciados que constituem as notícias, porque tais elementos também são determinados pela dimensão valorativa dos jornais.
Para identificação e referência nesta seção, as notícias receberam códigos elaborados com uma sigla e um número: “FSP” indica que a notícia foi extraída da Folha; “OESP” sinaliza que ela foi retirada do Estadão, já o número corresponde à notícia que está sendo analisada, ou seja, conforme a ordem cronológica presente no quadro abaixo.

De acordo com o CB, a palavra alheia constitui o discurso do falante e é também o objeto desse discurso (Bakhtin, 2015; Volóchinov, 2021). As notícias contidas no quadro acima manifestam essa particularidade do dialogismo, sendo constituídas pelas vozes de outros, no caso, de sujeitos que representam não apenas as redes de ensino pública e particular, mas também grupos sociais com avaliações e interesses distintos, como demonstram os trechos destacados a seguir:

A OESP-01 mobiliza vozes dissonantes sobre as greves e as manifestações dos professores contrários à abertura das escolas. Essas vozes constituem os enunciados da notícia na forma do dialogismo demarcado, que acentua os limites desses dizeres outros. Nas passagens destacadas, há o discurso direto preparado antecipando, na forma do DI da notícia, os principais temas do DD da professora Bebel, representante do sindicato. Além disso, há também o emprego da modificação analítica-verbal como forma de preservar palavras que caracterizam acentos valorativos do discurso citado. Exemplo disso é o trecho em que há uma paráfrase do discurso da Seduc-SP conservando o termo “eleitoreira” entre aspas, o qual evidencia a crítica e a posição contrária da secretaria frente as manifestações dos educadores. Por conseguinte, há uma necessidade de sinalizar o acento valorativo como pertencente ao enunciado alheio, não à notícia ou, mais especificamente, ao jornal. Com isso, cria-se um efeito de objetividade da notícia, tal como discutido por Rodrigues (2001), que também podemos observar em outra matéria do Estadão:

A OESP-02 utiliza os mesmos modelos de transmissão contidos na OESP-01, porém, dessa vez, o embate discursivo se dá entre representantes das redes de ensino pública e privada. Enquanto os dizeres da presidente da Apeoesp são mobilizados através da modificação analítica-verbal, a fala do presidente do Sieeesp é introduzida na forma do discurso direto preparado. Entretanto, a despeito dos modelos de transmissão empregados na notícia, cabe observar, sobretudo, a construção de sentido no discurso da presidente do sindicato dos professores.
Isso porque os enunciados, além de revelar o posicionamento valorativo do grupo representado pela presidente, também configuram um discurso polêmico, que responde a dizeres de pelo menos três grupos: (1) apoia e reproduz o discurso dos sujeitos contrários ao retorno presencial, como os professores da rede pública, para quem a decisão do então governador de São Paulo, João Doria, de reabrir as escolas resultava da pressão dos donos de instituições de ensino particular; (2) contesta os argumentos do governo estadual para a volta às aulas presenciais; e (3) questiona também os argumentos dos proprietários das instituições privadas, cujo discurso, assim como aquele que escamoteava a prioridade dada à economia em outras esferas (Narzetti; Tomás, 2021), defendia a reabertura das escolas mediante a adoção de determinados protocolos de distanciamento e do uso de equipamentos de proteção, como máscaras, barreiras acrílicas e álcool em gel.
Tanto a OESP-01 e quanto a OESP-02 materializam um embate discursivo entre vozes dissonantes e/ou polêmicas sobre o cenário da educação na pandemia e a possibilidade de retorno presencial. As duas notícias detêm como objeto temático justamente essa discussão e, por isso, são constituídas predominantemente pelas palavras dos outros, as quais são inseridas entre aspas no discurso do jornal, ou seja, com os limites bem definidos e demarcados. Essa forma de transmissão do enunciado alheio se relaciona com as condições específicas da esfera jornalística, principalmente com o efeito de objetividade, de separação entre informação e opinião (Rodrigues, 2008; Chaparro, 1998).
Portanto, a notícia, como um gênero considerado objetivo e neutro, deve reproduzir os discursos dos diferentes grupos envolvidos no acontecimento noticiado, ainda que não necessariamente esses discursos representem posições valorativas contrárias. Dessa forma, na OESP-01 e na OESP-02, o efeito de objetividade se estabelece mediante a transposição e a delimitação dos discursos que evidenciam posicionamentos de pelo menos três grupos: sindicato dos professores, representando os docentes das instituições públicas, contrários à volta presencial; governo do estado, representando a parcela da população favorável, incluindo os envolvidos na rede privada; e sindicato de escolas particulares, representando os proprietários dessas instituições e os sujeitos de classe média inseridos nesses espaços, também favoráveis. Adiante, podemos observar que, além desses discursos, as notícias do Estadão dialogam também com as falas dos próprios educadores:

Na OESP-03, os relatos dos docentes sobre aspectos estruturais das escolas onde trabalham cria um efeito de comparação entre as condições das redes pública e privada para o retorno. Essa construção de sentido se dá pelas descrições transmitidas na notícia, de modo que enquanto as escolas particulares foram adaptadas para a volta às aulas presenciais, como apontado no discurso da professora do colégio privado, as públicas não dispunham dos mesmos recursos, como expresso no relato do educador da escola estadual. Dessa maneira, mediante os enunciados com os quais dialoga, a notícia ressalta as disparidades entre as duas redes educacionais. Além desse efeito de sentido, há outro que podemos interpretar nessa notícia, dessa vez observando também os recursos linguísticos que a compõem:

A OESP-03 dialoga, ainda, com outros enunciados presentes em seções dentro da matéria. Esse secionamento é um aspecto recorrente na construção composicional de notícias da Folha e do Estadão, sendo empregado como forma de introduzir outras temáticas relacionadas ao acontecimento noticiado. Na OESP-03, os enunciados alheios dispostos nas seções “Queixas” e “Especialistas”, bem como o título da notícia criam efeitos de sentido e sinalizam o acento valorativo do jornal.
Primeiramente, a manchete descreve o sentimento dos professores diante do retorno presencial como “apreensão”, palavra que pode expressar, além de preocupação, receio do desconhecido. Porém, os dizeres do docente da rede pública expõem a falta de estrutura e de recursos necessários às escolas para garantir um retorno seguro. Nesse discurso constitui-se, portanto, um efeito de denúncia, porque além dos questionamentos, o relato do professor é produzido a partir do verbo no presente do indicativo, que expressa certeza e presentifica o fato de que há poucos funcionários para a limpeza do espaço escolar. Apesar disso, o efeito de denúncia é modalizado no enunciado da notícia, que, na manchete, sintetiza esse discurso como “apreensão dos professores”.
Enquanto isso, a seção logo após a fala do docente é intitulada “queixas”, palavra em que há ambiguidade, porque pode significar tanto reclamação, quanto o modo como uma ação é iniciada na esfera jurídica. Na OESP-03, há a possiblidade de ocorrência dos dois significados. No primeiro caso, porque o vocábulo faz referência aos protestos e às manifestações dos professores e do sindicato. No segundo, porque alude ao pedido realizado pela federação dos professores ao Ministério do Trabalho e Previdência, podendo indicar, portando, uma ação judicial.
Já a seção seguinte é intitulada “especialistas”. Considerando esse título e os relatos dos docentes, poderíamos antecipar, enquanto interlocutores, o estabelecimento de um diálogo entre a notícia e os discursos da esfera da saúde sobre a possiblidade do retorno presencial. Nessa perspectiva, a matéria também mobilizaria enunciados de profissionais como infectologistas sobre a COVID-19 e a situação das escolas. Evidentemente, a presença desses discursos não garantiria apenas um posicionamento contrário ao retorno, mas poderia sustentar, inclusive, que a reabertura das escolas era segura. Ademais, outra possibilidade seria dialogar novamente com educadores, cujas experiências nas escolas e conhecimentos sobre os desafios desse ambiente poderiam lhes garantir também um espaço na seção “especialistas”.
Todavia, os dizeres que constituem essa seção pertencem principalmente à esfera jurídica, embora haja uma interlocução com os campos da saúde e da educação. Nesse discurso, representado pela fala de uma advogada, mais uma vez há um posicionamento favorável ao retorno e o sentido de receio dos professores com uma situação ainda não concretizada, embora os relatos evidenciem o oposto. Aqui, novamente observamos a modalização responsável por atenuar o efeito de denúncia contido nesses relatos, dessa vez marcada na passagem em que a advogada “considera normal que os professores possam estar um pouco assustados”. Por conseguinte, esses dizeres acabam configurando um discurso autoritativo na notícia (Acosta Pereira, 2008), isto é, funcionam como um argumento que legitima e sustenta a OESP-03.
Diante desses efeitos de sentido e dessa modalização que escamoteia as denúncias sobre as condições da escola pública para a volta às aulas presenciais, podemos interpretar o posicionamento valorativo do Estadão como favorável à reabertura das escolas. Durante a pandemia, essa posição era aliada ao discurso sustentado principalmente pelos grupos sociais envolvidos na rede privada, como os proprietários das escolas particulares e suas associações e sindicatos, mas também era reproduzido pela classe média, clientela atendida por essa rede de ensino. A seguir, identificamos efeitos semelhantes também em notícias da Folha, como no trecho destacado abaixo:

Na FSP-05, outra vez utiliza-se o termo “queixar”, agora, no título da notícia. Diferente da ambiguidade interpretada na seção da OESP-03, aqui, “queixar” estabelece propriamente um efeito de reclamação. Isso ocorre porque o diálogo com os docentes sobre os problemas de cumprimento dos protocolos de saúde criam um efeito de denúncia no decorrer da notícia, tal como na matéria anterior, mas na FSP-05 essas denúncias são apresentadas apenas como relatos, ou seja, como reclamações.
Embora no segundo parágrafo o vocábulo “denúncia” seja emprego em referência às falas dos professores, nos outros períodos há o predomínio do verbo “relatar” para descrever essa ação. Inclusive, os enunciados são reproduzidos no modelo do discurso direto preparado, mas com a presença de verbos enunciativos e de conjunções de conformidade indicando o pertencimento da palavra alheia, por exemplo, na passagem “segundo os funcionários, falta pessoal para controlar o distanciamento dos alunos e a entrada e saída”. Desse modo, ao se referir aos discursos dos educadores como “queixas” na manchete, a notícia estabelece um efeito de reclamação que modaliza essas falas e as sintetiza como relatos que “têm alimentado a insegurança de alunos e docentes”, ou seja, alimentado a “apreensão” – como na OESP-03 – da comunidade escolar e, mais especificamente, dos professores.
Além disso, há outra proximidade entre as matérias da Folha e do Estadão: assim como na OESP-03, na FSP-05 fica ausente o diálogo com a esfera da saúde e esse não dito também produz sentido. Isso se justifica porque, no momento em que se discutia a possibilidade e as experiências de volta às aulas, o estado de São Paulo encontrava-se na fase laranja do plano de retomada das atividades econômicas.
Durante a pandemia, São Paulo e outros estados brasileiros estabeleceram cinco fases de retomada das atividades econômicas, identificadas com uma paleta de cores e baseadas em dois critérios: capacidade do sistema de saúde e evolução da epidemia. A fase 1, vermelha, representava a mais restritiva, permitindo a liberação apenas de atividades essenciais. A fase 2, laranja, autorizava o funcionamento de alguns setores da economia, como shoppings e comércios de rua. A fase 3, amarela, permitia uma flexibilização das atividades econômicas. A fase 4, verde, significava abertura parcial, com menos restrições. A fase 5, azul, consentia o funcionamento de todas as atividades, de acordo com protocolos de abertura.
No período de publicação da FSP-05, o estado de São Paulo encontrava-se na segunda fase mais restritiva, que correspondia a um cenário epidemiológico da COVID-19 ainda marcado pelo descontrole do vírus SARS-CoV-2. Apesar disso, ao abordar os casos de denúncia nas escolas, a notícia não dialoga com os discursos da saúde sobre esse cenário e os possíveis impactos do retorno presencial para o aumento de casos da doença, embora esse dialogo pudesse servir também como forma de sustentar o discurso favorável ao retorno, como observado em outra matéria da Folha, adiante:

Além
Além dos aspectos já analisados nas demais matérias, na FSP-04 vale observar ainda dois aspectos. Primeiro, a referência ao posicionamento de sujeitos da esfera da saúde. No caso da FSP-04, essa esfera é representada pelos pediatras, cuja posição favorável pautava-se em argumentos como o de que as crianças não transmitiam o vírus tanto quanto os adultos e, portanto, o retorno seria seguro desde que respeitados os protocolos de segurança.
Segundo, cabe observar o modo como essa notícia aborda a situação de reabertura das escolas em outros países. Diferente das notícias anteriores em que há uma necessidade de demarcação dos enunciados como forma de garantir o efeito de objetividade do gênero, aqui, o discurso da notícia configura uma avaliação sobre o período de fechamento das escolas brasileiras, o qual é “prolongado” e excede o intervalo de tempo definido em outras nações.
Apesar da referência ao cenário mundial quanto à educação na pandemia, na FSP04 apagam-se as estratégias de controle do vírus adotadas nesses países. Por exemplo, o cumprimento da quarentena e a prioridade na abertura das escolas, ao contrário de espaços como shoppings, salões de cabelereiro, bares etc. Portanto, medidas diferentes das adotadas no Brasil, onde a prioridade consistiu na reabertura de espaços dos setores de comércio e de serviços. Com isso, podemos interpretar também na FSP-04 um posicionamento favorável ao retorno presencial, evidenciado na reprodução desse comparativo entre os países, o qual serviu, no decorrer da pandemia, como argumento entre os grupos sociais que defendiam reabertura das escolas.
Desse modo, entre as notícias que tematizaram a posição contrária dos professores sobre o retorno presencial na pandemia, destacam-se: o embate discursivo entre diferentes grupos sociais mediante o agenciamento de vozes dissonantes e/ou polêmicas, as quais são delimitadas nas noticias para produzir a objetividade vinculada a esse gênero; a ausência, com exceção da FPS-04, de diálogo com a esfera da saúde para sustentar ou negar os argumentos favoráveis ao retorno; os efeitos de comparação, de denúncia, de reclamação e de objetividade estabelecidos entre os enunciados que compõem as matérias; e a interpretação dos posicionamentos valorativos dos jornais como favorável à volta às aulas presenciais, os quais se aliam ao discurso sustentado por representantes da escola particular e pela classe média.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta pesquisa, analisamos o dialogismo e a avaliação social em notícias da Folha e do Estadão sobre a posição contrária dos professores quanto ao retorno das aulas presenciais na pandemia de COVID-19. À luz dos pressupostos teórico-metodológicos da ADD, buscamos compreender as relações de sentido entre os enunciados das notícias selecionadas e interpretar as posições valorativas dos jornais.
Seguindo os direcionamentos do Círculo, investigamos primeiramente a dimensão social do gênero em que os enunciados se materializam. Nesse ponto, observamos o modo como a esfera jornalística se constitui sob dadas condições sociais, históricas e ideológicas que viabilizaram a sua consolidação e a avaliação social de credibilidade dos seus gêneros, em especial, daqueles considerados informativos, como a notícia.
Ademais, abordamos também a situação extraverbal de produção dos enunciados, destacando fatores que a caracterizam, como o horizonte espaço-temporal da pandemia; as transformações ocorridas na esfera da educação em decorrência da crise de saúde; e o modelo econômico e social do capitalismo presente na sociedade brasileira, a partir do qual determinados discursos se sustentaram no período de fechamento das instituições de ensino.
Entre esses discursos, destacam-se aqueles que expressavam posicionamentos valorativos discordantes sobre o retorno das atividades presenciais no âmbito da educação. Os contrários, representados em sua maioria por sindicatos e professores de escolas públicas, denunciavam a ausência de uma estrutura adequada nas instituições para um retorno seguro. Os favoráveis, representados principalmente pelos proprietários de escolas particulares, defendiam a reabertura das suas instituições mediante a adoção de determinados protocolos de distanciamento e do uso equipamentos de proteção como máscaras e barreiras acrílicas.
As notícias materializaram esse debate, dialogando com as vozes desses grupos sociais com valorações e interesses distintos. Nesse ponto, observamos o dialogismo demarcado nas notícias, as quais mobilizam esses dizeres outros a partir dos modelos de transmissão descritos por Volóchinov (2021). O emprego desses recursos como forma de explicitar os limites da palavra alheia é uma regularidade nas notícias, que se constituem conforme as condições e finalidades da esfera jornalística, pautada no paradigma da separação entre informação e opinião.
Todavia, ao tematizar a educação básica durante a crise de saúde, observamos que os jornais Folha e Estadão veicularam o recorte temático e discursos de sujeitos que demonstram avaliações sociais partilhadas por um grupo social especifico: dos sujeitos inseridos no setor privado da educação, que correspondem principalmente àqueles com condições financeiras de permanecer nesse espeço e aos proprietários das escolas. Portanto, é considerando a avaliação social (favorável ao retorno) partilhada por esse grupo que os jornais produziram as notícias.
Dessa forma, mesmo com o funcionamento da esfera jornalística regulando o discurso das notícias, as formas de transposição do enunciado alheio e as escolhas de recursos linguísticos, ainda interpretamos determinado posicionamento valorativo dos jornais, o que foi possível a partir da identificação dos seguintes efeitos de sentido: (1) efeito de comparação, estabelecido através dos relatos de professores das redes pública e privada sobre as condições das escolas para o retorno presencial; (2) efeito de denúncia, construído nas falas de educadores das escolas públicas sobre a falta de recursos nesses espaços; (3) efeito de reclamação, presente no discurso das notícias e nas vozes de sujeitos que configuram discursos autoritativos (Acosta Pereira, 2008), os quais serviram para atenuar as denúncias dos professores; (4) efeito de objetividade, criado por meio dos modelos utilizados na transmissão das palavras alheias, os quais funcionaram como um recurso para preservar e evidenciar os limites desses discursos e de seus acentos valorativos.
REFERÊNCIAS
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Notas