Resumo: Os estudos linguísticos do Círculo de Bakhtin marcam as pesquisas e as discussões contemporâneas no âmbito dos estudos da linguagem, dentre as quais apresenta-nos a teoria dos gêneros do discurso, pautada na Análise Dialógica do Discurso (ADD). O presente artigo busca um diálogo entre as formulações teóricas do Círculo sobre os gêneros discursivos e a Proposta Curricular e Pedagógica de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental da Rede Estadual do Amazonas (PCP do EF), implementada pela SEDUC/AM. A fundamentação teórico-metodológica ancorase nas ideias de Bakhtin e do Círculo sobre a compreensão de gêneros discursivos, assim como no documento “Proposta Curricular e Pedagógica do Ensino Fundamental” de Língua Portuguesa (LP) (2021), da SEDUC/AM. Analisam-se, assim, os textos introdutórios da área de linguagens e uma das habilidades do 9º ano, a que versa sobre alguns gêneros discursivos da esfera jornalísticamidiática.
Palavras-chave: Amazonas, Currículo, Língua Portuguesa, Gênero discursivo, Círculo de Bakhtin.
Abstract: The linguistic studies of the Bakhtin Circle mark contemporary research and discussions in the field of language studies, among which present us with the theory of speech genres, based on Dialogical Discourse Analysis (DDA). This presented article seeks a dialogue between the Circle’s theoretical formulations on discursive genres and the Portuguese Language Curricular and Pedagogical Proposal for Elementary Education of the Amazonas State Network (PCP of EF), implemented by SEDUC/AM. As a theoretical-methodological foundation, it is anchored in the ideas of Bakhtin and the Circle on understanding discursive genres, as well as in the document “Curricular and Pedagogical Proposal for Elementary Education” of Portuguese Language (LP) (2021), from SEDUC/AM. We therefore analyze the introductory texts in the language area and one of the 9th grade skills, which deals with some discursive genres in the journalistic-media sphere.
Keywords: Amazonas, Curriculum, Portuguese Language, Discursive genres, Bakhtin Circle.
Dossiê
A PERSPECTIVA BAKHTINIANA DOS GÊNEROS DISCURSIVOS: UM DIÁLOGO ENTRE PESQUISA E ENSINO A PARTIR DO CURRÍCULO DE LÍNGUA PORTUGUESA DA REDE ESTADUAL DO AMAZONAS

Recepción: 23 Agosto 2023
Aprobación: 03 Diciembre 2023
A relação entre linguagem e sociedade é impossível de ser dissociada, pois todos os campos da atividade humana estão diretamente ligados ao uso da linguagem, e dialogam entre si, produzindo “tipos relativamente estáveis de enunciados” (Bakhtin, 2016, p. 12, grifos do autor). Esses enunciados, determinados sócio-historicamente e construídos a partir de três elementos – o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional –, Bakhtin denomina gêneros do discurso.
O enunciado nasce da relação social e dialógica entre o eu e o outro, de forma até mesmo inconsciente, seja ao produzir gêneros discursivos primários (mais simples) seja ao produzir gêneros discursivos secundários (mais complexos). E, seguindo um entendimento, inspirado na teoria bakhtiniana, de que a língua se materializa nas práticas sociais do dia a dia, é que há um direcionamento conjunto dos documentos norteadores da Educação Básica para que o ensino de Língua Portuguesa (LP) nas escolas seja mais reflexivo e menos normativo, significando a adoção de novas perspectivas teórico-metodológicas para o ensino desse componente em sala de aula.
Dessa maneira, ao assumir uma perspectiva enunciativo-discursiva, para o ensino de LP, amparando-se nas concepções filosóficas de linguagem do Círculo de Bakhtin, torna-se imprescindível buscar caminhos que aproximem os estudantes do uso dos gêneros do discurso nas mais diversas esferas sociais de comunicação, reconhecendo o enunciado, ancorado na interação entre sujeitos, no projeto discursivo, em um contexto histórico, social e ideológico, e não apenas materializando a língua em um texto apartado da realidade.
Assim, entendemos ser de extrema relevância identificar os pontos que ainda distanciam a práxis pedagógica dessas reflexões teórico-metodológicas, que orientam a ação do professor, especialmente no que se refere ao ensino de LP, que deverá concretizar um trabalho capaz de auxiliar o estudante na aquisição e consolidação das competências linguísticas[1] e na ampliação de letramentos[2] para além da sala de aula, para que ele faça uso da linguagem nas mais diversas práticas sociais, nos mais diversos campos de atuação, em diferentes contextos de interação, de forma a aproximar a teoria da realidade.
Dessa forma, buscamos neste artigo apresentar um diálogo entre a concepção teórica de gêneros do discurso e a proposta curricular e pedagógica de ensino para o componente Língua Portuguesa, a fim de contribuir com a práxis do professor, auxiliando-o com as percepções teóricas que subjazem no texto do documento orientador, que será associado ao trabalho realizado nas salas de aula para operacionalização do currículo escolar, cooperando no processo de ensino-aprendizagem dos estudantes. Para tanto, o percurso metodológico será apoiado em uma pesquisa qualitativa, realizada a partir de revisão bibliográfica aportada nos estudos do Círculo de Bakhtin sobre os gêneros discursivos, em uma perspectiva da Análise Dialógica do Discurso; e pesquisa que tem como corpus o documento Proposta Curricular e Pedagógica do Ensino Fundamental (2021), com um recorte do 9º ano, especificamente a partir do estudo da caracterização da esfera jornalística-midiática, utilizando como exemplos alguns gêneros discursivos, dentre os quais o meme, o gif, o comentário e a charge digital.
Tendo em vista essas considerações, este artigo é organizado da seguinte forma: i) Dialogismo; ii) O componente curricular Língua Portuguesa na Proposta Curricular e Pedagógica do Ensino Fundamental à luz da análise dialógica do discurso; iii) Os gêneros discursivos no componente Língua Portuguesa na Proposta Curricular e Pedagógica do Ensino Fundamental; e iv) Caracterização da esfera jornalística-midiática, a partir do meme, do gif, do comentário e da charge digital (habilidade do currículo do 9º ano).
Na Linguística, a Análise Dialógica do Discurso é umas das vertentes possíveis de investigação de textos concretos, sejam orais ou escritos, que são produzidos nas diferentes esferas e campos da atividade humana e, portanto, são materializados a partir de relações dialógicas e interacionais entre sujeitos, em diversas instâncias. De acordo com Brait,
sem querer (e sem poder) estabelecer uma definição fechada do que seria essa análise dialógica do discurso, uma vez que esse fechamento significaria uma contradição em relação aos termos que a postulam, é possível explicitar seu embasamento constitutivo, ou seja, a indissolúvel relação existente língua, linguagens, história e sujeitos que instaura os estudos da linguagem como lugares de produção de conhecimento de forma comprometida, responsável, e não apenas como procedimento submetido a teorias e metodologias dominantes em determinadas épocas. Mais ainda, esse embasamento constitutivo diz respeito a uma concepção de linguagem, de construção e produção de sentidos necessariamente apoiadas nas relações discursivas empreendidas por sujeitos historicamente situados (Brait, 2021, p. 10).
O que significa dizer que as contribuições do Círculo de Bakhtin motivaram o surgimento de uma análise/teoria dialógica do discurso, que formula uma relação indissociável entre língua, linguagens, história e sujeitos.
Sendo assim, os aportes do Círculo de Bakhtin, a respeito dos estudos do texto e do discurso, são inegáveis e influenciaram/influenciam reflexões e transformações sobre as concepções teórico-metodológicas para o ensino de LP, desde que as traduções de suas obras se tornaram conhecidas no Brasil até os dias de hoje. Esses estudos tornaram-se precursores dos estudos do discurso [4]/da enunciação[5].
Nesse sentido, podemos entender que esses novos conhecimentos impactaram a forma como a língua/linguagem[6] vinha sendo tratada e compreendida até então, porque a partir dessas reflexões foi possível entender que a vida se faz dialógica, a partir da relação do eu e do outro. Para Bakhtin ([1895-1975] 2003, p. 348), “A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar etc.”.
Por isso podemos conceber um ensino da língua viva, concreta, ao compreendermos o ser humano como um ser sócio-histórico e ideológico[7], à luz da concepção dialógica de linguagem do Círculo de Bakhtin, propiciando novas perspectivas para o ensino de LP. Tendo em vista essa forma de compreender a língua/linguagem, o ensino de LP sofreu mudanças, que afetaram também as políticas educacionais em nosso país, o que é possível verificar nos documentos oficiais, desde meados da década de 1990, ao levarmos em conta os documentos oficiais norteadores da Educação Básica Nacional, tais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que trazem em seu arcabouço a concepção de ensino da língua a partir da centralidade no texto nas aulas de LP.
Os Parâmetros abrem caminhos para documentos mais recentes, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o Referencial Curricular Amazonense (RCA) e a Proposta Curricular e Pedagógica do Ensino Fundamental do Estado do Amazonas (PCP do EF), que deram continuidade a essas percepções anteriores, ao entenderem a língua/linguagem em uma perspectiva interacionista e dialógica, na qual os enunciados são produzidos em um contexto histórico, social e ideológico, como forma do ser humano interagir com o outro e com o mundo, apontando para o aspecto enunciativo-discursivo da linguagem.
Compreendemos, de acordo com os postulados de Volóchinov ([1895-1936] 2021, p. 200, grifos do autor), que “o enunciado é de natureza social”. Sendo assim, o enunciado produzido através do discurso, num dado contexto social, histórico e ideológico, em uma esfera ou campo da atividade humana, entre sujeitos, gera a interação discursiva. Desse modo, como postula Volóchinov ([1895-1936] 2021, p. 219, grifos do autor), “a interação discursiva é a realidade fundamental da língua”.
O diálogo entre os pressupostos teóricos do Círculo de Bakhtin e a Proposta Curricular e Pedagógica do Ensino Fundamental do Estado do Amazonas (PCP do EF), com um recorte do componente Língua Portuguesa – Anos Finais (6º ao 9º ano), deve-se ao fato de que o documento curricular orientador foi elaborado com base no Referencial Curricular Amazonense (RCA), alinhado à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a partir de sua homologação, e esses documentos anteriores trazem em seus discursos sobre os gêneros fundamentações que se conectam à teoria bakhtiniana dos gêneros discursivos.
A PCP do EF traz uma proposta, como o nome bem explicita, para construção de um novo currículo, capaz de considerar as transformações e os desafios da escola, refletindo as demandas atuais da sociedade e da educação, bem como os documentos anteriores mencionados.
As discussões aqui alvitradas tornam-se importantes, pois, por mais que os estados e municípios tenham tido a oportunidade de reelaborar seus currículos, estes não tiveram como se distanciar do documento basilar, posto que a BNCC é um documento parametrizador e normativo, tendo a PCP do EF sido, portanto, posta em diálogo em alguns pontos à realidade local (estado do Amazonas), a partir do que foi concebido também pelo RCA. Dessa forma, as possíveis concepções teóricas foram mantidas, já que nos mais variados estudos sobre a BNCC não se fala explicitamente em adoção de uma única corrente teórica, mas sim de pressupostos teóricos que se percebem ao olharmos para além do que está exposto verbalmente no documento.
Do mesmo modo, a PCP do EF, será aqui analisada, de forma a olharmos para as possíveis concepções subjacentes, “filtradas” por nosso interesse de estudo, dando ênfase às inserções e à reorganização da estrutura trazida pela BNCC (mantida, também, no RCA), com foco no componente Língua Portuguesa, para o 9º ano do Ensino Fundamental.
A noção de gênero já vem sendo discutida desde documentos norteadores anteriores, tais como as DCN e os PCN, e isso tem ajudado principalmente na reflexão dos profissionais da educação acerca das transformações curriculares. Há, assim, perspectivas que buscam pensar o ensino do componente Língua Portuguesa levando em conta as inúmeras situações comunicativas que requerem a linguagem em uso, aproximando-se mais ou menos de uma ou outra teoria.
Nesse processo contínuo de transformações pelo qual passa a educação brasileira e, consequentemente, o ensino de LP, a Proposta Curricular e Pedagógica do EF apresenta na Área de Linguagens uma concepção explícita de linguagem que dialoga com a perspectiva enunciativo-discursiva ao enunciar que
em seu processo de interação com o meio social, o indivíduo se utiliza de diversas formas de comunicação, fazendo uso de diferentes linguagens. [...] As formas comunicativas se estruturam em linguagem verbal (oral ou visual-motora e escrita), linguagem não verbal (corporal, visual, sonora) e, contemporaneamente, a linguagem digital (Amazonas, 2021, p. 53).
Em vista disso, essa área é composta pelos componentes Língua Portuguesa, Arte, Educação Física, Língua Inglesa e Língua Espanhola (este último foi inserido para atender a especificidade do estado do Amazonas, na parte diversificada do currículo), e traz um currículo que trata da interação do indivíduo com o meio social através das diferentes linguagens, em contextos sociais e culturais diversos. E, ao salientar isso, o documento compreende a noção de que as diversas linguagens se inter-relacionam, ao fazer com que o estudante perceba as especificidades de cada linguagem (de forma individual) e sua relação com o todo, de forma diversa e dinâmica, quando afirma que “os alunos devem compreender, ainda, que as linguagens são vivas, dinâmicas, produzidas, criadas e recriadas em contextos sociais e culturais por todos que dela se utilizam e participam desse processo de constante transformação” (Amazonas, 2021, p. 53 e 54).
Ainda na apresentação da Área de Linguagens, há nos anos finais do ensino fundamental uma preocupação com o aprofundamento das práticas dos anos iniciais, dando continuidade ao processo de aprendizagem, possibilitando ao estudante a ampliação dos letramentos, quando profere que
no Ensino Fundamental - Anos Finais, as aprendizagens devem garantir a ampliação das práticas de linguagem conquistadas nos Anos Iniciais, incluindo a aprendizagem de uma segunda língua. Nessa etapa de ensino, o foco deverá ser a compreensão dos sentidos e significados sociais e culturais das práticas de linguagem artísticas, corporais e linguísticas, além do aprofundamento maior dessas práticas que são imprescindíveis para a formação estética, ética e afetiva do aluno (Amazonas, 2021, p. 54).
Dessa forma, ao fazer parte da Área de Linguagens, o componente Língua Portuguesa compromete-se com as noções linguísticas, ao trazer no texto introdutório uma percepção de que o ensino da língua
pauta-se no desafio de possibilitar aos alunos a percepção da língua em suas múltiplas possibilidades de materialização, utilizando para isso situações de Práticas de Linguagem – Leitura/Escuta; Produção de Textos; Oralidade; e Análise linguística/semiótica – no meio social (Amazonas, 2021, p. 55, grifos dos autores).
Destarte, indicando, através de seu discurso, a perspectiva de que a língua é um fenômeno sensível ao contexto de uso, com poder de se materializar de diversas formas, em situações diferentes, assumindo uma relação dialógica com os estudos do Círculo de Bakhtin.
Outrossim, a PCP do EF (2021, p. 08), em sua apresentação, elucida que chega às escolas um documento que “é resultado de um processo de construção coletiva empreendido por professores especialistas, equipe técnico-pedagógica e colaboradores da Seduc/ AM”, ou seja, um documento que jamais pode ser encerrado em si mesmo, e que, assim, como traz compreensões coletivas, amplia para o professor, num processo de interlocução, possibilidades de ele utilizá-lo de forma transformadora em sua prática.
De forma semelhante, reafirma esse entendimento quando, no texto introdutório do componente LP, expressa que
a proposta aqui apresentada é orientadora, portanto, não devendo ser tomada como um instrumento único, encerrado, delimitado, que impossibilite a busca do professor por outras visões e noções sobre o ensino da Língua Portuguesa. Embora se preservem os elementos fundamentais elencados pelos documentos oficiais, o que se propõe neste documento é mais um subsídio ao trabalho dos profissionais da educação que, no dia a dia, construirão planejamentos e planos para melhor execução do seu ofício em proveito da formação integral dos estudantes (Amazonas, 2021, p. 58).
Portanto, podendo-se interpretar, a partir dessa colocação, que, embora os professores devam preservar as concepções suscitadas nos documentos oficiais, esses podem fazer a diferença em sua práxis diária, em sala de aula.
As concepções enunciadas anteriormente para o ensino da língua implicam o conhecimento de que as transformações ocorridas no Brasil, principalmente para o ensino de LP, advêm, em grande parte, desses conceitos oriundos dos estudos bakhtinianos e do Círculo.
Diante disso, ainda à luz da teoria dialógica do discurso, para a melhor compreensão da percepção de gênero nos documentos norteadores da educação, faz-se necessário, inicialmente, explicitar que
todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. [...] O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no conjunto do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso (Bakhtin, 2016, p. 11 e 12, grifos do autor).
Nesse contexto, à medida que nos aprofundamos nessa compreensão, passamos a entender que o estudo dos gêneros como aspecto norteador e sua concepção, por meio da análise dialógica do discurso, nos documentos oficiais, implicam em reflexões filosóficas entre linguagem, sujeito e sociedade. O que significa apreender, diante ao exposto, que o discurso se materializa no enunciado (um ou vários), que, por sua vez, reflete e refrata sentidos, a partir de relações dialógicas diversas, de acordo com a esfera ou campo de atividade humana no qual se realiza, sendo marcado por seu conteúdo temático, seu estilo e sua composição, elementos esses que dialogam com o campo (dentro de suas dimensões verbais e extraverbais).
O repertório dos gêneros discursivos cresce e se diversifica, conforme crescem e se diferenciam as formas de uso da linguagem dentro dos múltiplos espaços. De acordo com Bakhtin ([1895-1975] 2016),
a riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multifacetada atividade humana e porque em cada campo dessa atividade vem sendo elaborado todo um repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que tal campo se desenvolve e ganha complexidade (Bakhtin, 2016, p. 12).
Dessa forma, um dos grandes desafios dos professores de língua portuguesa dos anos finais do ensino fundamental da rede pública de ensino do estado do Amazonas, no contexto atual, é o ensino da língua portuguesa tomando como objeto de reflexão, em suas práticas pedagógicas, os diferentes gêneros discursivos que fazem parte da vida dos estudantes e devem, portanto, ser explorados também em sala de aula, buscando uma relação dialógica entre o “mundo da teoria” (isto é, o mundo da elaboração teórica, científica, filosófica etc.) e o “mundo da vida” (isto é, o mundo real, onde a vida é vivida em sua concretude, de forma única e irrepetível).
E, nesse sentido, vivemos em um contexto educacional em que é possível verificar situações preocupantes, principalmente no que diz respeito à aquisição e à consolidação de habilidades e competências linguísticas (práticas de linguagem), tais como vemos sendo preconizadas nos documentos oficiais.
No que se refere à análise do trabalho com os gêneros discursivos indicados para os anos finais do ensino fundamental na PCP do EF do Estado do Amazonas, à luz da teoria dos gêneros do discurso de Mikhail Bakhtin ([1895-1975] 2016), constatamos para o ensino da língua portuguesa um entendimento de que a apropriação da linguagem se dá a partir das interações, práticas e usos que se faz do discurso em diferentes contextos, assumindo uma “perspectiva enunciativo-discursiva da linguagem”, assim como os documentos parametrizadores e normatizadores anteriores, sendo uma continuação destes.
A partir de documentos, como os PCN, a BNCC e o RCA, que serviram de base para a construção dos currículos e propostas pedagógicas, incluindo a PCP do EF, que estão sendo implementados para orientar as ações didáticas, pedagógicas e metodológicas nas salas de aula, temos como conhecer/interpretar as diretrizes implicadas nos documentos, tendo por base os pressupostos teóricos nos quais estão fundamentados. Assim, na BNCC, seguindo o que havia trazido os PCN, temos:
o componente Língua Portuguesa da BNCC dialoga com documentos e orientações curriculares produzidos nas últimas décadas, buscando atualizá-los em relação às pesquisas recentes da área e às transformações das práticas de linguagem ocorridas neste século, devidas em grande parte ao desenvolvimento das tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC). Assume-se aqui a perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem, já assumida em outros documentos, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), para os quais a linguagem é “uma forma de ação interindividual orientada para uma finalidade específica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes numa sociedade, nos distintos momentos de sua história” (Brasil, 1998, p. 20).
No que se refere aos gêneros discursivos, a BNCC diz que
tal proposta assume a centralidade do texto como unidade de trabalho e as perspectivas enunciativo discursivas na abordagem, de forma a sempre relacionar os textos a seus contextos de produção e o desenvolvimento de habilidades ao uso significativo da linguagem em atividades de leitura, escuta e produção de textos em várias mídias e semioses.
Ao mesmo tempo que se fundamenta em concepções e conceitos já disseminados em outros documentos e orientações curriculares e em contextos variados de formação de professores, já relativamente conhecidos no ambiente escolar – tais como práticas de linguagem, discurso e gêneros discursivos/gêneros textuais, esferas/campos de circulação dos discursos –, considera as práticas contemporâneas de linguagem, sem o que a participação nas esferas da vida pública, do trabalho e pessoal pode se dar de forma desigual. Na esteira do que foi proposto nos Parâmetros Curriculares Nacionais, o texto ganha centralidade na definição dos conteúdos, habilidades e objetivos, considerado a partir de seu pertencimento a um gênero discursivo que circula em diferentes esferas/campos sociais de atividade/comunicação/uso da linguagem. Os conhecimentos sobre os gêneros, sobre os textos, sobre a língua, sobre a norma-padrão, sobre as diferentes linguagens (semioses) devem ser mobilizados em favor do desenvolvimento das capacidades de leitura, produção e tratamento das linguagens, que, por sua vez, devem estar a serviço da ampliação das possibilidades de participação em práticas de diferentes esferas/campos de atividades humanas (Brasil, 2017, p. 67).
Do mesmo modo, seguindo as mesmas percepções, o RCA, no componente Língua Portuguesa apresenta em seu texto que
o ensino de Língua Portuguesa apresentado neste documento, contempla os princípios das recomendações legais, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (9394/96), dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (MEC/1997) e da Base Nacional Comum Curricular – BNCC (2017).
[...] Nos anos finais do Ensino Fundamental, a Língua Portuguesa garante aos estudantes o acesso aos saberes linguísticos necessários para a vida em sociedade, transformando-os em cidadãos leitores, críticos e conscientes do mundo. É através da língua que crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos pensam, comunicam-se, têm acesso à informação, expressam pontos de vista, partilham e/ou constroem visões de mundo, produzindo, assim, conhecimento (Amazonas, 2019, p. 101).
Para o desenvolvimento do trabalho com os gêneros discursivos na práxis pedagógica, o RCA ressalta que
o centro do estudo das práticas de linguagem (linguagens) contemporâneas é o TEXTO, nas variações orais e escritas, articulando o verbal, o visual, o gestual e o sonoro; envolvendo gêneros diversificados, cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos; sendo construídos com sentidos coerentes e conhecimentos linguísticos apropriados a cada tipologia. Os gêneros textuais[8] apresentam novas formas de construção, de apresentação, de utilização e de circulação e são adequados a situações de interação social, sempre observando o contexto social de recepção, onde há de se promover o respeito a si mesmo, ao outro, aos direitos humanos, à diversidade cultural e de indivíduos (grupos sociais), sem preconceito de qualquer natureza (Amazonas, 2019, p. 101).
Dando continuidade às orientações dos documentos já mencionados, a PCP do EF profere que
o componente de Língua Portuguesa nesta Proposta Curricular e Pedagógica fundamenta-se no Referencial Curricular Amazonense (RCA), que dialoga com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Assim, traz uma concepção de que o ensino da Língua Portuguesa pauta-se no desafio de possibilitar aos alunos a percepção da língua em suas múltiplas possibilidades de materialização, utilizando para isso situações de Práticas de Linguagem – Leitura/Escuta; Produção de Textos/Escrita; Oralidade e Análise linguística/semiótica (Alfabetização/Ortografização) – no meio social. Nesse sentido, correlacionadas às Práticas de Linguagem (Eixos de Ensino), são apresentadas as Competências deste componente, que indicam a compreensão desejada do conhecimento, a partir da perspectiva de que a língua é um fenômeno sensível ao contexto de uso, e, portanto, variável, sendo necessário que os alunos reconheçam seu poder histórico, social e formativo, como instrumento de manifestação da cultura e da identidade de um povo, respeitando-se as diferenças, sejam elas locais, regionais, nacionais e de outros povos (Amazonas, 2021, p. 55).
No que concerne aos gêneros, a PCP do EF aponta que
ainda nessa perspectiva, as diferentes Práticas de Linguagem são aprimoradas a partir da apresentação de Habilidades consideradas fundamentais para concretização das mesmas. Habilidades estas que se anseia alcançar, levando em consideração as particularidades de cada nível e ano, substanciando o ensino por meio de gêneros textuais que circulam nas diversas esferas sociais, além de trazer novos letramentos que se apresentam na contemporaneidade e que estão relacionados a um Campo de Atuação [...] (Amazonas, 2021, p. 55 e 56).
Assim, todos esses documentos foram analisados com o intuito de evidenciar um diálogo entre o que está sendo dito com as ideias do Círculo de Bakhtin, no que concerne aos gêneros do discurso, sob a ótica da análise dialógica do discurso quanto aos entendimentos relacionados ao currículo de Língua Portuguesa na PCP, objetivando uma melhor compreensão das ideias e dos conceitos abordados para o trabalho a ser realizado com os gêneros.
Nos documentos já referidos, os gêneros são dispostos em campos de atuação, que sustentam a noção de contextos e situações da vida social (esferas ou campos da atividade humana) nos quais os gêneros circulam. E esses campos contemplam uma progressão, de acordo com o segmento do qual fazem parte.
Para o Ensino Fundamental – Anos Finais (6º ao 9º ano) os campos de atuação são: Campo artístico-literário; Campo das práticas de estudo e pesquisa; Campo jornalístico-midiático; e Campo de atuação na vida pública. Esses campos foram indicados por serem considerados contextos importantes e por fazerem parte da vida e do dia a dia dos estudantes.
Nesta pesquisa, limitaremos o estudo à caracterização da esfera jornalística-midiática (ou campo jornalístico-midiático, a partir de alguns gêneros que circulam neste contexto da vida social, o que pode ser visto a seguir.
O enunciado, como vimos, é produto da interação social, pois “é na comunicação discursiva (um dos aspectos da comunicação mais ampla: a social) que são elaborados os mais variados tipos de enunciados, correspondentes aos diferentes tipos de comunicação social” (Volóchinov, [1895-1936] 2019, p. 267).
Estabelecemos para análise o recorte de uma habilidade do 9º ano do ensino fundamental, a partir do estudo da caracterização da esfera jornalística-midiática ou do campo jornalístico-midiático (objeto de conhecimento). Quanto aos gêneros discursivos, optamos pelo meme, gif, comentário e charge digital, que estão cada vez mais presentes no cotidiano do estudante, pois que “o centro organizador de qualquer enunciado, de qualquer expressão não está no interior, mas no exterior: no meio social que circunda o indivíduo” (Volóchinov, 2021, p. 216, grifos do autor).
E, para maior entrosamento das informações anteriormente dispostas, a habilidade da PCP do EF escolhida por nós foi a EF89LP02-CJM. Analisar diferentes práticas (curtir, compartilhar, comentar, curar etc.) e textos pertencentes a diferentes gêneros da cultura digital (meme, gif, comentário, charge digital etc.) envolvidos no trato com a informação e opinião, de forma a possibilitar uma presença mais crítica e ética nas redes. Sendo essa pertencente à prática de linguagem Leitura, podendo ser encontrada no quadro organizador do 9º ano, no 1º Bimestre.
Ao partirmos desse recorte, entendemos que as concepções teóricas de Bakhtin e do Círculo sobre os gêneros do discurso podem contribuir para a análise dos gêneros (enunciados) contemporâneos. Dessa forma, nossa apreciação se dá a partir da adaptação/ interpretação através dos conceitos desenvolvidos pela teoria dos gêneros do discurso.
Uma vez que percebemos as mudanças pelas quais o mundo vem passando com a ampliação do acesso à internet e a disseminação das redes e mídias sociais, torna-se evidente destacar o surgimento de novos gêneros e a importância da inserção desses nas salas de aula, principalmente para os estudantes do 9º ano. É fundamental dar subsídios para que o aluno consiga se apropriar de forma crítica, ética e democrática[9], tornando-se, assim, proficiente diante das demandas socioculturais e das inovações tecnológicas e midiáticas.
Dessa maneira, lembramos que as novas formas de comunicação e interação entre as pessoas possibilitaram, além do aparecimento dos novos gêneros, também a popularização de novas formas de interação provenientes de uma sociedade mais dinâmica (a sociedade do curtir, compartilhar, comentar, curar etc.). E essas transformações provocaram novas formas de produção, composição e circulação de enunciados, disseminando novos modos de enunciar.
No Brasil, através da internet, alguns dos gêneros discursivos que repercutem atualmente são o meme, o gif, o comentário e a charge digital, devido à velocidade e ao alcance de sua disseminação. Esses gêneros podem ser analisados por meio de 3 (três) elementos – o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional–, e se definem a partir de sua esfera/campo de atuação, variando conforme tempo e lugar históricos, sujeitos participantes da enunciação, apreciação valorativa e conteúdo.
Por esse motivo, podemos dizer que esses gêneros apresentam de forma explícita as relações entre linguagem e sociedade, entre linguagem e história, entre linguagem e ideologia, e entre os sujeitos envolvidos e situados sócio-historicamente no processo comunicativo. Normalmente, esses discursos/enunciados são produtos da interação discursiva com outros discursos/enunciados anteriores, em uma atitude responsiva a estes.
Ademais, na esfera jornalística-midiática, ou podemos dizer no campo jornalístico-midiático, esses gêneros têm sido usados, principalmente, com a função social de difundir fatos e acontecimentos relevantes para a população, sobretudo quando envolvem assuntos e temas do dia a dia das pessoas (política, sociedade, futebol, celebridades etc.), com intuito de criticar, divulgar, comentar, viralizar, ou mesmo ser cômico, mostrar indignação, ironia e expressar opinião (juízos de valor). Podem aparecer em versões estáticas (texto e/ou imagens) ou animadas (com movimentos, falas, sons), utilizando elementos verbais (texto escrito) e não-verbais (imagens, sons, movimentos, símbolos etc.), permitindo a compactação da informação através de uma linguagem própria.
Ao defendermos a ideia de que a língua se materializa através dos gêneros e que esses gêneros se modificam pelo uso, nos mais diversos contextos e nas mais diversas possibilidades de interação, sendo atravessados pelo seu valor ou caráter ideológico, estamos tratando dos pressupostos que emergem dos estudos do Círculo de Bakhtin.
Nesse sentido, apreendemos a importância de a BNCC ter inserido esses novos conhecimentos (TDIC) em seu discurso, já que esses gêneros concebem de forma mais específica para a sociedade mais atual a premissa de que
as demandas sociais devem ser refletidas e refratadas criticamente nos/pelos currículos escolares. [...] para que a escola possa qualificar a participação dos alunos nas práticas da web, na perspectiva da responsabilização, deve propiciar experiências significativas com produções de diferentes culturas e com práticas, procedimentos e gêneros que circulam em ambientes digitais: refletir sobre participações, avaliar a sustentação das opiniões, a pertinência e adequação de comentários, a imagem que se passa, a confiabilidade das fontes, apurar os critérios de curadoria e de seleção de textos/produções, refinar os processos de produção e recepção de textos multissemióticos. (Rojo; Barbosa, 2015, p. 135)
Dessa maneira, na leitura do documento basilar, é possível perceber que o discurso da BNCC explicita a importância que será dada aos multiletramentos e os novos letramentos[10], principalmente no componente Língua Portuguesa, no qual será(ão) trabalhada(s) mais detalhadamente a(s) linguagem(ens). Assim, no documento da BNCC, vemos que
ao componente Língua Portuguesa cabe, então, proporcionar aos estudantes experiências que contribuam para a ampliação dos letramentos, de forma a possibilitar a participação significativa e crítica nas diversas práticas sociais permeadas/constituídas pela oralidade, pela escrita e por outras linguagens (Brasil, 2017, p. 67-68)
Podemos inferir que ao mencionar letramentos no plural, soma-se a isso a ideia da pluralidade de letramentos, escolarizados ou não, que permeiam as práticas socioculturais. No entanto, a reflexão que se faz é de que essa ampliação deverá possibilitar uma formação significativa e crítica do estudante, o que quer dizer que
não se trata também de simplesmente visar à apropriação desencarnada de objetos (gêneros, por exemplo), mas de “proporcionar experiências” e de possibilitar a “participação significativa e crítica”, ou seja, de criar/construir contextos em que as práticas de linguagem possam ser significativas, em que a leitura não ocorra como tarefa escolar destituída de objetivo e de sentido e que a produção não aconteça apenas para aferir aprendizagens, mas que essas práticas sejam pautadas por finalidades compartilhadas e possam contemplar o querer saber o que o outro (e também os estudantes) tem (têm) a dizer e estabelecer relações dialógicas que permitam a construção de conhecimentos, a apropriação de objetos e o desenvolvimento de habilidades (Barbosa, 2018, p. 13).
Nessa perspectiva, para que todos possamos acompanhar as transformações pelas quais vêm passando a sociedade, aqui incluindo questões históricas, sociais e ideológicas, é indispensável que repensemos, também, a práxis pedagógica.
Diante das pesquisas relacionadas ao ensino dos gêneros discursivos nas aulas do componente curricular LP, identificamos que a linguagem sendo um fenômeno social deve ser trabalhada como tal nas escolas/salas de aula, e isso pressupõe um conhecimento teórico que será fundamental no trato das informações postuladas nos documentos norteadores.
No caso da PCP do EF, que explicita sua relação com outros textos/enunciados, que são a BNCC e o RCA, isso já revela posicionamentos, interpretações, avaliações no que se refere aos parâmetros para o ensino de LP no Brasil e, mais especificamente, no Amazonas.
Entretanto, escolhemos tratar do viés dialógico e interacional do discurso, por meio dos gêneros, o que demonstra na prática que uma leitura possível orientada por esses documentos para o ensino de LP nas salas de aula, no que tange aos gêneros discursivos, é a teoria dos gêneros discursivos, por meio da Análise Dialógica do Discurso, tendo em vista que a teoria orienta a prática.
O papel do professor, na inserção do estudante nesse universo de uso da linguagem, demanda amplo conhecimento teórico/técnico para operacionalizar as normas disponibilizadas no currículo, sendo este o momento possível de fazer a diferença na formação desse estudante, vinculando a pesquisa ao ensino, visto que
o sucesso da missão de introduzir o aluno na língua viva e criativa do povo exige, é claro, uma grande quantidade e diversidade de formas e métodos de trabalho. [...] Resta ao professor ajudar nesse processo de nascimento da individualidade linguística do aluno por meio de uma orientação flexível e cuidadosa. (BAKHTIN, 2019, p. 7, grifos do autor)
Além disso, quando falamos em gêneros contemporâneos, a utilização desses novos modos de dizer não desconsideram outros modos de dizer anteriores, pois as esferas/ os campos se valem do movimento de transformação já explicitado para o seu funcionamento. Os gêneros emergentes decorrem das novas formas de interação social, geralmente tematizam “questões polêmicas envolvendo as dinâmicas das redes sociais e os interesses que movem a esfera jornalística-midiática.” (Brasil, 2017, p. 136). Ainda sobre isso,
na BNCC, a organização das práticas de linguagem (leitura de textos, produção de textos, oralidade e análise linguística/semiótica) por campos de atuação aponta para a importância da contextualização do conhecimento escolar, para a ideia de que essas práticas derivam de situações da vida social e, ao mesmo tempo, precisam ser situadas em contextos significativos para os estudantes (Brasil, 2017, p. 86).
Dessa forma, os gêneros integram as práticas sociais e estas, por sua vez, são organizadas a partir de campos de atuação, pois, como já mencionado, o uso da língua efetua-se em forma de enunciados, pronunciados pelos indivíduos que integram esses campos de atuação/esferas da atividade humana. E esses enunciados são elaborados/construídos (o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional) refletindo particularidades pertencentes a esses campos.
Compreendemos, então, que na BNCC
os campos de atuação orientam a seleção de gêneros, práticas, atividades e procedimentos em cada um deles. Diferentes recortes são possíveis quando se pensa em campos. As fronteiras entre eles são tênues, ou seja, reconhece-se que alguns gêneros incluídos em um determinado campo estão também referenciados a outros, existindo trânsito entre esses campos. [...] É preciso considerar, então, que os campos se interseccionam de diferentes maneiras (Brasil, 2017, p. 87).
Sendo assim, quando tratamos do campo jornalístico-midiático, podemos identificar que as escolhas dos gêneros discursivos são situadas em uma perspectiva significativa de uso e de análise para o uso, possibilitando ao estudante um entendimento didático sobre o uso da língua, tanto na prática escolar como na vida social.
Nessa perspectiva, a caracterização do campo jornalístico-midiático é apresentada a partir de temas abordados, estilos de língua/linguagem e formato de composição dos enunciados nos mais diversos gêneros que esse campo pode possibilitar, principalmente aqueles aos quais os estudantes estão mais próximos no dia a dia. Consoante Bakhtin ([1895-1975], 2016),
a vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva, pela composição pessoal de seus participantes, etc. Em seguida, a intenção discursiva do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade, é aplicada ao gênero escolhido, constitui-se e desenvolve-se em determinada forma de gênero.
[...] Falamos apenas através de gêneros do discurso, isto é, todos os nossos enunciados têm formas relativamente estáveis e típicas de construção do conjunto. Dispomos de um rico repertório de gêneros de discurso orais (e escritos). (Bakhtin, 2016, p. 37-38, grifos do autor)
Pensando nisso, a escolha pela caracterização desse campo de atuação/esfera de atividade humana, a partir do meme, do gif, do comentário e da charge digital, deu-se para exemplificar como os gêneros discursivos podem sofrer modificações e incorporar as novas formas de discurso e de interação social, produzindo novos gêneros do discurso, concomitante às transformações sociais. Sendo assim, como explicita Fiorin (2022),
o gênero une estabilidade e instabilidade, permanência e mudança. De um lado, reconhecem-se propriedades comuns em conjuntos de textos; de outro, essas propriedades alteram-se continuamente. Isso ocorre porque as atividades humanas, segundo filósofo russo, não são nem totalmente determinadas nem aleatórias. Nelas, estão presentes a recorrência e a contingência. A reiteração possibilita-nos entender as ações e, por conseguinte, agir; a instabilidade permite adaptar suas formas a novas circunstâncias.
O gênero somente ganha sentido quando se percebe a correlação entre formas e atividades. Assim, ele não é um conjunto de propriedades formais isolado de uma esfera de ação, que se realiza em determinadas coordenadas espaço-temporais, na qual os parceiros da comunicação mantêm certo tipo de relação.
Os gêneros são meios de apreender a realidade. Novos modos de ver e conceptualizar a realidade implicam o aparecimento de novos gêneros e a alteração dos já existentes. Ao mesmo tempo, novos gêneros ocasionam novas maneiras de ver a realidade. A aprendizagem dos modos sociais de fazer leva, concomitantemente, ao aprendizado dos modos sociais de dizer, os gêneros. (Fiorin, 2022, p. 76-77)
O gênero notícia, por exemplo, anterior ao meme, ao gif, ao comentário e à charge digital, também pertencente à esfera jornalística-midiática (ao campo jornalístico-midiático), relata um fato social relevante, que é veiculado ao público e abrange temáticas variadas com intuito de informar, relatar, descrever algo para o maior número de pessoas possível. Entretanto, no momento atual, sua capacidade de viralizar é menor que a dos gêneros digitais, devido determinadas circunstâncias, tais como espaço, tempo, lugar, sujeitos, finalidade etc.
Assim, cada gênero será constituído levando em consideração, além do campo de atuação, uma situação comunicativa específica, num determinado momento sócio-histórico (tempo e lugar históricos – cronotopo), os sujeitos participantes da enunciação e sua intenção/finalidade.
Gêneros do discurso, tais como o meme, o gif, o comentário e a charge digital, ainda que modificados ou adaptados a partir de gêneros anteriores, trazem uma relação com a seleção de novos elementos de comunicação, como recursos verbo-visuais, tecnológicos, digitais, que irão compor a materialização desses discursos.
Esses gêneros caracterizam o campo jornalístico-midiático ou esfera jornalística-midiática, ao satisfazerem as funções comunicativas jornalísticas, quando, por exemplo, são elaborados em resposta a um acontecimento ou fato social relevante, e midiáticas, quando são expostos em redes/mídias sociais e chegam rapidamente a um grande público, sendo enunciados de forma viva, tensa e dialógica, refletindo e refratando discursos e posições axiológicas, que materializam o funcionamento desse campo/dessa esfera e possibilitam ao estudante um envolvimento no trato com informações e opiniões que chegam até ele, que despertam atitudes responsivas e responsáveis, em uma presença mais crítica e ética nas redes/mídias sociais.
Neste estudo, na busca por demonstrar a relação dialógica entre as formulações teóricas do Círculo de Bakhtin sobre os gêneros discursivos e a Proposta Curricular e Pedagógica de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental da Rede Estadual do Amazonas (PCP do EF), implementada pela SEDUC/AM, apresentamos aspectos teóricos (recortes) que permitiram a análise por nós proposta para o objeto de estudo. Assim, utilizando-nos das formulações teóricas do Círculo de Bakhtin sobre os gêneros do discurso, fizemos observações gerais e uma apreciação crítica do componente Língua Portuguesa apresentado nos documentos oficiais norteadores da Educação Básica Nacional. Além desse primeiro momento de introdução teórica e análise documental, abordamos o desenho de uma habilidade do 9º ano, que trata de alguns gêneros discursivos da esfera jornalística-midiática: o meme, o gif, o comentário e a charge digital, e realizamos um estudo preliminar da caracterização dessa esfera a partir desses gêneros, que têm grande repercussão na contemporaneidade.
A escolha por esse percurso teórico-metodológico e por essa habilidade se deve à oportunidade de estudarmos, a partir da teoria, a existência de um diálogo entre as concepções do Círculo de Bakhtin e o ensino proposto para o componente Língua Portuguesa a partir dos gêneros do discurso, principalmente nos dias de hoje. As análises aqui realizadas apresentam um recorte de uma investigação maior, que busca aproximar a teoria da prática (pesquisa e ensino).
O estudo permitiu-nos perceber, a partir das abordagens sobre os gêneros trazidas na PCP do EF, elementos que têm correlação e retomam as ideias do Círculo, tanto pela reelaboração continuada do currículo quanto pela incorporação de práticas didáticas em consonância com a proposta de um ensino centrado na abordagem dos gêneros discursivos, em uma perspectiva interacionista/dialógica.
Dessa forma, entendemos que discussões sobre língua/linguagem, enunciados, gêneros do discurso, sob uma análise enunciativo-discursiva, contribuem para uma melhor compreensão do currículo de língua portuguesa.
[...] A indefinição terminológica e a confusão em um ponto metodológico central no pensamento linguístico são um resultado do desconhecimento da real unidade da comunicação discursiva – o enunciado. Porque o discurso só pode existir de fato na forma de enunciados concretos de determinados falantes, sujeitos do discurso. (Bakhtin, 2016, p. 27 e 28, grifos do autor).