Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar, a partir de conceitos explorados pelo Círculo de Bakhtin, o conto machadiano “Um Homem Célebre”, de 1883, que retrata as dificuldades pessoais vividas pelo protagonista - o músico Pestana - em meio à dualidade da vocação versus ambição. Para tanto, foram escolhidos os conceitos de cronotopo, polifonia, alteridade e carnavalização, perpassando por Bakhtin (1987; 1997; 1998; 2006), Bezerra (2016), Faraco (2009) e Fiorin (2017). Para averiguar as questões de vocação e ambição em torno da música na era capitalista, partiu-se do conceito de Indústria Cultural, desenvolvida por Adorno e Horkheimer (2002). Como metodologia, tem-se a pesquisa bibliográfica, que se desenvolve pela averiguação e estudo de materiais já elaborados e discutidos anteriormente. Desse modo, inferiu-se que o conto machadiano continua extremamente atual, visto que trata sobre temas universais como o fazer artístico, o sucesso, a fama, a vocação e a ambição.
Palavras-chave: Conto, Machado de Assis, Análise do discurso, Conceitos bakhtinianos.
Abstract: The present article aims to analyze, from concepts explored by Bakhtin’s Circle, Machado’s short story “Um Homem Célebre”, from 1883, which portrays the personal difficulties experienced by the protagonist - the musician Pestana - amid the duality of vocation versus ambition. To do so, the concepts of chronotope, polyphony, alterity, and carnivalization, were chosen, going mainly through Bakhtin (1987; 1997; 1998; 2006), Bezerra (2016), Faraco (2009), and Fiorin (2017). In addition, to investigate the issues of vocation and ambition around music in the capitalist era and its consequences, we started from the ideas about Cultural Industry, developed by Adorno and Horkheimer (2002). The methodology used was bibliographic research, which is developed by the investigation and study of previously developed and discussed materials. Thus, it was inferred that Machado’s short story is still extremely current, since it deals with universal themes such as the artistic making, success, fame, vocation and ambition.
Keywords: Short story, Machado de Assis, Discourse analysis, Bakhtinian concepts.
Dossiê
“UM HOMEM CÉLEBRE”: UMA ANÁLISE DO CONTO DE MACHADO DE ASSIS SOB A PERSPECTIVA BAKHTINIANA

Recepción: 11 Julio 2023
Aprobación: 27 Septiembre 2023
Joaquim Maria Machado de Assis, ou simplesmente Machado de Assis, foi um escritor brasileiro nascido no Rio de Janeiro, em 1839. Sempre procurando estímulos para escrever e alcançando bom status em meio à burocracia administrativa, atuou em diversas funções: de chefe da Diretoria do Comércio, do Ministério da Agricultura (1892) a diretor geral da Contabilidade do Ministério. Mas foi na literatura que deixou sua marca profunda, com obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas, que lhe rendeu o título de iniciante do Realismo no Brasil, Quincas Borba e Dom Casmurro, fundando, em 1896, juntamente a outros escritores, a Academia Brasileira de Letras, sendo o primeiro presidente oficial.
Dessa forma, como autor atemporal, suas obras são estudadas e analisadas até hoje, como é o caso deste artigo, que possui como objetivo analisar o conto machadiano “Um Homem Célebre”, a partir dos conceitos de cronotopo, polifonia e carnavalização, que foram criados e explorados pelo filósofo e pensador russo Mikhail Bakhtin, um dos mais influentes estudiosos da Análise do Discurso.
Para desenvolvimento do presente trabalho, utilizou-se como metodologia a pesquisa bibliográfica, que corresponde à coleta de materiais já elaborados e discutidos anteriormente em diversas formas, como livros, artigos e periódicos de caráter científico. De acordo com Gil (2008, p. 50), a principal vantagem desse tipo de pesquisa “reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente” e sua finalidade, segundo Lakatos & Marconi (2003, p. 182) “é colocar o pesquisador em contato direto com tudo o que já foi escrito, dito ou filmado sobre determinado assunto”.
Desse modo, partiu-se dos seguintes conceitos bakhtinianos: o cronotopo, em que as relações de tempo e espaço são colocadas em evidência. A polifonia, que diz respeito às várias vozes e consciências que circulam em um mesmo espaço de modo equipolente, juntamente à alteridade, que é a relação entre o eu e os outros. E a carnavalização, que, através do riso e da ironia, desconstrói ideias estabelecidas de autoridade e hierarquia. Ademais, para averiguar as questões de vocação e ambição em torno da música na era capitalista e suas consequências, que sondam a vida do protagonista do conto machadiano, partiu-se das ideias sobre Indústria Cultural, desenvolvida por Adorno e Horkheimer (2002), que englobam as formas de produzir cultura vinculada às técnicas de produção capitalistas.
O conto “Um Homem Célebre”, de Machado de Assis, que inicialmente foi publicado no periódico A Estação, em 1883, e, posteriormente, incluído na coletânea Várias Histórias, em 1896, narra a história de Pestana, um compositor de polcas que reside no Rio de Janeiro, no ano de 1875. O protagonista está imerso na constante insatisfação em relação às suas composições, já que, apesar de criativo e famoso, Pestana não se sentia completo e feliz como desejara. Ele almejava o sonho de compor como Mozart e Beethoven, ou seja, de forma clássica e original: Pestana queria produzir uma sonata. No entanto, somente produzia polcas, estas, por sua vez, facilmente caíam no gosto popular, o que o entristecia profundamente a ponto de odiar suas músicas.
A insatisfação leva-o à falência, não apenas se tratando de finanças, mas, sobretudo, um fracasso na essência, que é causado por uma constante cobrança de perfeição a qual ele não conseguia alcançar. Pestana, inclusive, casa-se com Maria, uma cantora e admiradora dos clássicos, acreditando que essa seria a solução para seu problema - entretanto, tudo se transforma em tragédia, pois mesmo com a morte da esposa, ele não consegue compor um clássico. Desse modo, o destino do protagonista parece inevitável: morre sendo apenas reconhecido como compositor de polcas, sua maior angústia. Há no conto, portanto, reflexões sobre a dualidade do que o artista deseja realizar e do que precisa ser produzido para obter sucesso.
“Um Homem Célebre” é um conto e, portanto, possui as características típicas desse gênero narrativo: de forma geral, representa apenas um fragmento, um momento significativo da vida da personagem, a duração temporal é curta, as personagens e o espaço são brevemente caracterizados e a narrativa desenvolve-se em torno de um único motivo central. Levando em consideração a teoria do conto, no que diz respeito às temáticas, representando situações que cercam a vivência humana, [...] a invenção do contista se faz pelo achamento (invenire = achar, inventar) de uma situação que atraia, mediante um ou mais pontos de vista, espaço e tempo, personagens e trama” (Bosi, 1974, p. 8). A temática do conto deve provocar no leitor “[...] uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até idéias que lhe flutuavam virtualmente na memória ou na sensibilidade [...]” (Cortázar, 2006, p. 154). Com isso, tem-se a grande diferença entre o conto e o romance: o conto, por conta da limitação de tamanho, deve atingir de forma direta o leitor.
Relacionando as noções de tempo e espaço, surge o cronotopo (do grego cronos > tempo e topos > espaço), isto é, para Bakhtin é indissociável esses dois elementos dentro das manifestações literárias, havendo, assim, uma ligação direta entre literatura e história. Segundo Fiorin (2017, p. 144) “as pessoas organizam o universo de sua experiência imediata com imagens do mundo, criadas a partir das categorias de tempo e espaço, que são inseparáveis”. Assim, de acordo com o conceito desenvolvido pelo autor supracitado, com base nos estudos do círculo bakhtiniano, o cronotopo configura: “[...] uma ligação entre o mundo real e o mundo representado, que estão em interação mútua. É uma categoria conteudístico-formal, que mostra a interligação fundamental das relações espaciais e temporais, representadas nos textos, principalmente literários.” (Fiorin, 2017, p. 145).
Desse modo, através do cronotopo presente nas obras literárias, é possível ter noção dos aspectos temporais e espaciais da época em que determinado texto foi escrito e perceber como esses aspectos se relacionaram com a sociedade no decorrer dos anos, ou seja, “os textos literários revelam-nos os cronotopos de épocas passadas e, por conseguinte, a representação do mundo que tinha a sociedade em que eles surgiram”. (Fiorin, 2017, p. 145). Por meio da análise do cronotopo, faz-se capaz apreender em uma obra literária a sua classificação, descrever a estrutura, distinguir os gêneros discursivos, entre outros, visto que, de acordo com Bakhtin (1998):
Em literatura, o processo de assimilação do tempo, do espaço, e do indivíduo histórico real que se revela neles, tem fluído complexa e intermitentemente. Assimilaram-se os aspectos isolados de tempo e de espaço acessíveis em dado estágio histórico do desenvolvimento da humanidade, foram elaborados também os métodos de gênero correspondentes ao reflexo e à elaboração artística dos aspectos assimilados da realidade (Bakhtin, 1998, p. 211).
Em se tratando de “Um Homem Célebre”, por pertencer ao gênero conto, o tempo e espaço são mais reduzidos, além destes demonstrarem características do movimento realista em que Machado de Assis estava inserido. O elemento central de seu enredo, como já foi posto anteriormente, é a questão da ambição versus a vocação pela qual passa Pestana, que não consegue atingir os feitos de seus ídolos da música clássica, como Mozart, Beethoven e Bach, sendo somente reconhecido por suas polcas, algo que se torna um martírio, morrendo, assim, sem alcançar a imortalidade no meio da cultura erudita que tanto desejava. Ele entendia que esta tinha “[...] muito mais chance de se perpetuar no tempo do que a popular, e a sua frustração provém de que, não produzindo uma música ‘superior’, seu nome será esquecido” (Kalife Júnior, 2013, p. 8). Pestana queria ser consagrado pela cultura erudita, visto que, como discorre Aranha (1996):
Com a cultura erudita, são produzidas as obras-primas que revolucionam os diversos campos do saber e da ação, como as descobertas científicas, os novos modos de pensar, as técnicas revolucionárias, as grandes obras literárias ou artísticas em geral, enfim, produtos humanos que provocam “cortes” na maneira de pensar e agir e que, por isso, se tornam clássicos (Aranha, 1996, p. 40).
É curioso notar que tal situação ainda é muito atual, em que a música se torna algo para ser apenas comercializado, onde artistas que não conseguem chegar ao nível que querem e por muitas vezes ficam presos a modas estabelecidas pela indústria cultural e adotadas por empresários e produtores (no conto representado pela figura do editor), para atingir a cultura de massa. Assim, o que é retratado no século XIX perpetua até o tempo atual. Bem como diz Bezerra (2016), “para Bakhtin, a reificação do homem surge com a sociedade de classes e chega ao seu limite com o capitalismo, [reduzindo] os indivíduos à condição de objetos” (Bezerra, 2016, p. 192-193). Essa reificação do homem, isto é, a valorização excessiva das coisas, em detrimento às pessoas, condiz perfeitamente com o ambiente disseminado pela indústria cultural. De acordo com Adorno e Horkheimer (2002):
[...] As pessoas são reduzidas a meras coisas que aqueles que delas dispõem podem colocá-las por um instante no céu para logo em seguida jogá-las no lixo; e que vão para o diabo com os seus direitos e o seu trabalho. A indústria se interessa pelos homens apenas como pelos próprios clientes e empregados, e reduziu, efetivamente, a humanidade no seu conjunto, como cada um dos seus elementos, a esta forma exaustiva (Adorno; Horkheimer, 2002, p. 27).
Os obstáculos que impedem o protagonista do conto de realizar o seu sonho são vários: a indústria cultural que cultuava a polca, o fato de Pestana venerar tanto seus ídolos, ao ponto de não conseguir fazer algo realmente original, a diferença do quer ser e o ser. A questão de Pestana ser só lembrado pelas polcas, um estilo corriqueiro na época, que tantos outros poderiam fazer, também pode ser vista pela perspectiva de Adorno e Horkheimer (2002) sobre a indústria cultura, que:
[...] perfidamente realizou o homem como ser genérico. Cada um é apenas aquilo que qualquer outro pode substituir: coisa fungível, um exemplar. Ele mesmo como indivíduo é absolutamente substituível, o puro nada, e é isto que começa a experimentar quando, com o tempo, termina por perder a semelhança (Adorno; Horkheimer, 2002, p. 26).
Além do mais, outro ponto destacado por Adorno e Horkheimer é que a indústria cultural utiliza a técnica da padronização e produção em série, como pode ser constatado em determinada parte do conto, em que o editor de Pestana lhe oferece um novo contrato:
[...] Venho propor-lhe um contrato: vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar. Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato (Assis, 1946, p. 6).
O espaço do conto é pouco variado, passando-se a ação toda no Rio de Janeiro, sendo denominada a passagem de várias ruas, como a Rua do Areal, Formosa e Aterrado, levando o leitor a se familiarizar com o ambiente, além da casa de Pestana, local das diversas tentativas de se tornar um músico clássico, descrita como velha, mas em que mantinha seu santuário com os retratos de seus grandes ídolos e o piano como altar.
O foco presente na cidade supracitada também é uma forma de apresentar ao leitor a vida de dada parte social daquela época: publicado em 1883, o tempo no conto se passa, aproximadamente, entre os anos de 1875 e 1885, em que a sociedade burguesa carioca era fascinada pelos saraus, música popular, festas. Sobre as relações de espaço, tempo, enredo e história, destaca-se que:
No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico (Bakhtin, 1998, p. 211).
Faz-se interessante notar ainda como a noite configura, em diversos momentos, um tempo constante para Pestana. Segundo Bakhtin (1998), a questão da noite, ao lado de categorias que percorrem as idades, dias, velhice e morte, é um dos elementos representativos do cronotopo:
A vida humana e a natureza são percebidas nas mesmas categorias. As estações do ano, as idades, as noites e os dias (e as suas subdivisões), o acasalamento (o casamento), a gravidez, a maturidade, a velhice e a morte, todas essas categorias-imagens servem da mesma maneira tanto para a representação temática da vida humana como para a representação da vida da natureza (no aspecto agrícola). Todas essas representações são profundamente cronotópicas (Bakhtin, 1998, p. 318).
A noite sempre esteve ligada à figura do músico, por ser o principal período para apresentações, mas, além disso, no conto de Machado de Assis é um momento de vida e morte. Vida, porque durante a noite Pestana refletia: “[...] noites e noites, gastou-se assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil” (Assis, 1946, p. 4). Buscava inspiração para compor, como na seguinte passagem do texto:
Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras (Assis, 1946, p. 2).
Aliás, mesmo quando não era à noite, o tempo escuro acompanhava Pestana que, no trecho abaixo, mostra um momento de pura inspiração:
[...] − Mas parece que hoje chove. − Chove, repetiu Pestana maquinalmente. − Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro. Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente: − Espera aí. Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou tocar alguma cousa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios (Assis, 1946, p. 3).
E a morte, dito anteriormente, diz respeito a uma das partes mais pesadas do conto, em que a esposa de Pestana, Maria, morre. Pela perspectiva bakhtiniana, “a morte compreendida na série individual da vida, também se decompõe em diversos aspectos e vive uma vida particular nos gêneros elevados (literários ou ideológicos), e uma outra nos gêneros médios (relativa aos costumes, inteiramente ou em parte)” (Bakhtin, 1998, p. 323).
O período em que Pestana mais refletia, buscava inspiração e escrevia, foi também marcado pela morte daquela que ele considerava que seria sua inspiração para adentrar ao erudito: “Maria [...] ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado. Era noite de Natal.” (Assis, 1946, p. 5). Ademais, o próprio Pestana morre à noite, às quatro horas e cinco minutos da madrugada.
Entende-se por polifonia as várias vozes e consciências que circulam em um mesmo espaço e “interagem num diálogo infinito” (Faraco, 2009, p. 77). Entretanto, levando em consideração que tal termo foi introduzido por Bakhtin para designar um modo de narração de Dostoievski, para não se confundir os conceitos bakhtinianos envolta do diálogo, discurso e vozes, Faraco (2009) faz a seguinte afirmação:
Polifonia não pode, desse modo, ser confundido com heteroglossia ou plurivocidade, que são termos utilizados por Bakhtin para designar a realidade heterogênea da linguagem quando vista pelo ângulo da multiplicidade de línguas sociais (“o plurilinguismo real”). [...] Polifonia não é, para Bakhtin, um universo de muitas vozes, mas um universo em que todas vozes são eqüipolentes” (Faraco, 2009, p. 77-78).
Em seus estudos, Bakhtin definiu duas vertentes do romance, do qual interessa, nesse momento, o polifônico, que está associado aos “[...] conceitos de realidade em formação, inconclusibilidade, não acabamento, dialogismo, polifonia” (Bezerra, 2016, p. 191). E essa multiplicidade de vozes presente na modalidade polifônica do romance teve um cronotopo ideal, de acordo com a visão de Bakhtin, segundo Bezerra (2016) explica:
[...] Bakhtin afirma que o romance polifônico só pôde realizar-se na era capitalista, e justamente na Rússia, onde uma diversidade de universos e grupos sociais nitidamente individualizados e conflituosos havia rompido o equilíbrio ideológico, criado as premissas objetivas dos múltiplos planos e as múltiplas vozes da existência, indicando que a essência conflituosa da vida social em formação não cabia nos limites da consciência monológica segura e calmamente contemplativa e requeria outro método de representação (Bezerra, 2016, p. 193).
Com isso, faz-se importante compreender que, para Bakhtin, “a vida humana é por sua própria natureza dialógica” (Faraco, 2009, p. 76), isto é, a quase todo momento os sujeitos estão se relacionando, através de perguntas, respostas, atenção, discussões - sempre há uma interação, os discursos perpassando uns aos outros. De acordo com Bakhtin (2006):
[...] Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor (Bakhtin, 2006, p. 115).
Bakhtin acreditava que uma pessoa investia todo o seu ser no discurso e esse discurso penetraria o simpósio universal (“tecido dialógico da vida humana”). Desse modo, a comunicação constitui o ser, significa a relação do ser para o outro e do outro para si mesmo, assim [...] a morte absoluta (o não ser) é o estado de não ser ouvido, de não ser reconhecido, de não ser lembrado. [...] A subjetividade se constitui e se move no denso caldo do simpósio universal, sendo a alteridade e a intersubjetividade, portanto, absolutamente indispensáveis (Faraco, 2009, p. 76).
Dessa forma, a alteridade é justamente as relações do eu-para-mim, eu-para-o-outro e o-outro-para-mim, em que os indivíduos se constituem através das multiplicidades de vozes circulando em um mesmo espaço - a polifonia. O indivíduo se altera através das relações de alteridade, através do outro. Segundo discorre Bakhtin (1997):
Nossa fala, isto é, nossos enunciados (que incluem as obras literárias), estão repletos de palavras dos outros, caracterizadas, em graus variáveis, pela alteridade ou assimilação. [...] As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos. [...] Em todo enunciado, contato que o examinemos com apuro, levando em conta as condições concretas da comunicação verbal, descobriremos as palavras do outro ocultas ou semi-ocultas, e com graus diferentes de alteridade (Bakhtin, 1997, p. 314-318).
Com isso, “a alteridade intervém sempre. A identidade é um movimento em direção ao outro, um reconhecimento de si pelo outro que tanto pode ser a sociedade como a cultura. E o elo de ligação é a linguagem” (Pires, 2002, p. 40), assim, averiguando as relações de alteridade em “Um Homem Célebre”, infere-se que na categoria do eu-para-mim, que corresponde à relação que o “eu” vai construindo consigo mesmo, é a forma de como eu vejo a mim mesmo, Pestana tinha uma postura rígida, exigente e angustiada com ele mesmo, pois não conseguia ser o artista que almejava:
[...] Enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais? Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia: ele corria ao piano para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão: a idéia esvaía-se (Assis, 1946, p. 2).
E quanto mais se martirizava, parecia em vão, pois não conseguia fazer nada original, só reproduzir as músicas de seus ídolos clássicos: “[...] irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça: mas daí dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano” (Assis, 1946, p. 3). Outra passagem do conto que evidencia essa relação de Pestana com ele mesmo é quando, de forma efêmera, aprecia sua nova composição: “[...] E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma cousa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann” (Assis, 1946, p. 4).
Como já foi dito, Pestana não gostava de ser reconhecido como um mero compositor de polcas, desse modo, sua relação do eu-para-o-outro, que diz respeito à aproximação para com o “outro”, as respostas ao outro, por mais que às vezes de forma velada, era depreciativa, podendo ser percebida em trechos como “[...] Vexado aborrecido, Pestana respondeu que sim, era ele” (Assis, 1946, p. 1), “Pestana fez uma carreta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo” (Assis, 1946, p. 1).
Outro aspecto da categoria do eu-para-o-outro que pode ser verificada, concerne na relação de admiração que Pestana possuía com seus ídolos, quando contemplava os quadros na parede ou ouvia as músicas: “[...] cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. [...] eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann [...] postos ali como santos de uma igreja” (Assis, 1946, p. 2).
Ademais, a relação com Maria é um importante ponto da relação eu-para-o-outro no conto, visto que, sendo a única relação amorosa de Pestana, o amor sentido por ele só surgiu por ela ser uma cantora e admiradora dos clássicos. Desse modo, Pestana acreditava que conseguiria alcançar um registro clássico, posto a inspiração que viria do casamento com Maria: “[...] essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias” (Assis, 1946, p. 5).
Finalmente, sobre a categoria bakhtiniana do o-outro-para-mim, que se refere quando o outro se posiciona e/ou se aproxima de mim, pode-se constatar que o público (lê-se aqui como o “outro”) tem uma verdadeira estima por Pestana, sabiam suas polcas de cor, algo que pode ser visto em diversos trechos, como: “[...] a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular. − Diga, minha senhora. − É que nos toque agora aquela sua polca Não Bula Comigo, Nhonhô” (Assis, 1946, p. 1). O reconhecimento cultuado em meio às apresentações, tal qual a felicidade de encontrar um ídolo: “− AH! o SENHOR é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: − Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor?” (Assis, 1946, p. 1). E a notoriedade: “assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas.” (Assis, 1946, p. 6).
As últimas palavras do conto deixam explícitas todas as categorias de relação de alteridade que existia na vida de Pestana: “[...] expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo” (Assis, 1946, p. 7).
A questão em torno da carnavalização é discorrida por Bakhtin, principalmente, em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, onde apresenta a ideia de que um mundo concentrado em autoridade e discursos de hierarquia teria de ser superado através do carnaval - uma nova forma de ver o mundo:
[...] o carnaval constituía um conjunto de manifestações da cultura popular medieval e do Renascimento e um princípio, organizado e coerente, de compreensão de mundo. O carnaval, propriamente dito, não é, evidentemente, um fenômeno literário, mas um espetáculo ritualístico que funde ações e gestos elaborando uma linguagem concreto-sensorial simbólica (Soerensen, 2011, p. 319).
Durante o carnaval, suspendem-se as leis, restrições, as proibições, “[...] valores, normas, tabus religiosos, políticos e morais correntes” (Soerensen, 2011, p. 322), passando-se do monológico para o polifônico, desse modo, “a festa em si é importante apenas na medida em que, ao viver o carnaval, podemos visualizar a possibilidade de outro mundo, de negar o atual e afirmar o possível.” (Faraco, 2009, p. 80). Daí o caráter dialógico e polifônico do carnaval, pois, segundo Fiorin (2017):
[...] mostra duas vidas separadas temporalmente: uma é a oficial, monoliticamente séria e triste, submetida a uma ordem hierarquicamente rígida, penetrada de dogmatismo, temor, veneração e piedade; outra, a da praça pública, livre, repleta de riso ambivalente, de sacrilégios, de profanações, de aviltamentos, de inconveniências, de contatos familiares com tudo e com todos (Fiorin, 2017, p. 102).
Com isso, “a carnavalização é a transposição para a arte do espírito carnavalesco” (Fiorin, 2017, p. 97), afirmando Bakhtin (1987) que “a sensação carnavalesca do mundo transpõe-se de alguma forma à linguagem do pensamento filosófico idealista e subjetivo” (Bakhtin, 1987, p. 33). Durante o carnaval, o mais importante é a percepção do senso carnavalesco do mundo, posto que:
É este senso um poderoso instrumento contra qualquer monologização da existência humana; é ele que materializa a força cultural do riso: dessacraliza os discursos oficiais, os discursos da ordem e da hierarquia, os discursos do sério e do imutável. Bakhtin não é, nessa perspectiva, o teórico do carnaval, mas o filósofo da carnavalização (Faraco, 2009, p. 80).
Desse modo, Bakhtin pensa em “um mundo em que qualquer gesto centrípeto será logo corroído pelas forças vivas do riso, da carnavalização, da polêmica, da ironia” (FARACO, 2009, p. 79), consequentemente, a literatura carnavalesca também fará uso dessas características, sendo as categorias da percepção carnavalesca do mundo o contato familiar, a excentricidade e a profanação, assim, “a linguagem carnavalesca é familiar, repleta de sarcasmos e insultos” (Fiorin, 2017, p. 102).
De acordo com Bakhtin (1987), “[...] o riso se atenua, e toma a forma de humor, ironia ou sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador e positivo do riso reduz-se ao mínimo.” (Bakhtin, 1987, p. 33). Com isso, explicando a evolução literária da polifonia em Dostoievski, Bakhtin discorre que, no período helenístico, os gêneros dividiam-se em sérios e cômicos e cômicos-sérios. Destes, tem-se uma profunda marca na visão carnavalesca, principalmente advindo da sátira menipeia, que continua influenciando a escrita carnavalesca. Dentre as características essenciais para a temática do riso e da ironia, segundo Fiorin (2017), há:
a) avultamento do elemento cômico; e) discussão das “últimas questões” (a morte, o sentido da vida e assim por diante); i) gosto pronunciado pelos escândalos, pelas condutas excêntricas, pelas infrações às normas estabelecidas de conduta e de etiqueta, inclusive a etiqueta da fala (por isso, aparecem os discursos inconvenientes, de uma sinceridade cínica, as profanações desmistificadoras do sagrado, a falta exagera de etiqueta); n) opção pelos problemas contemporâneos, pela polêmica com os discursos de sua época, pelas alusões aos acontecimentos de seu tempo (Fiorin, 2017, p. 99-100).
Algo que merece destaque é que do século XVII quase não existe a experiência de viver o carnaval, somente de assisti-lo, desse modo, sobre a produção de literatura carnavalizada apresenta um novo aspecto, de acordo com o que explana Fiorin (2017):
[...] a partir do século XVIII, a literatura carnavalizada, que vive até os nossos dias, não tem como fonte o carnaval, mas a literatura carnavalizada precedente. A carnavalização torna-se uma tradição literária. [...] Machado de Assis produz uma literatura carnavalizada. No entanto, ele a produz, não a partir da vivência do carnaval, mas da tradição literária: Cervantes, Diderot, Sterne, etc (Fiorin, 2017, p. 115-116).
À vista do que foi discutido até agora, analisando a carnavalização em “Um Homem Célebre”, pode-se constatar a ironia e o riso em diversas passagens do conto, começando pelo fato de Pestana não gostar de ser reconhecido pelas polcas que compõe; quem não gostaria de ser bem-sucedido e ser famoso naquilo que faz? Mas Pestana tem a irônica maldição de ser admirado por aquilo que não gostaria de fazer, fazendo careta e ficando aborrecido quando alguém lhe lembrava das polcas.
Outro momento de carnavalização é quando há a dessacralização da figura do padre, insinuando que um seria o pai de Pestana: “[...] cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai de Pestana” (Assis, 1946, p. 2). Essa postura condiz com os dizeres de Fiorin (2017), quando afirma que “para ser carnavalesca, é preciso que uma obra seja marcada pelo riso, que dessacraliza e relativiza as coisas sérias, as verdades estabelecidas, e que é dirigido aos poderosos, ao que é considerado superior” (Fiorin, 2017, p. 104-105).
Um dos momentos mais engraçados do conto dá-se quando Pestana leva sua polca mais recente ao editor, este diz que “[...] os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, ou por alusão a algum sucesso do dia, − ou pela graça das palavras, indicou-lhe dois: A Lei de 28 de Setembro, ou Candongas Não Fazem Festa” (Assis, 1946, p. 3). Pestana, sem compreender, pergunta ao editor qual o significado de “Candongas Não Fazem Festa” e recebe como resposta do editor, simplesmente: “− Não quer dizer nada, mas populariza-se logo” (Assis, 1946, p. 3).
É perceptível a crítica irônica que se faz a falta de apreço significativo com a obra por parte do editor, mas também se nota que a Lei de 28 de Setembro, conhecida por Lei do Ventre Livre, é real e muito séria para ser tratada de forma banal pelo editor, já que diz respeito a declaração de que filhos de mulheres escravizadas, de nascimento a partir de tal data, ficariam livres. Desse modo, pode-se apreender que a:
A literatura carnavalizada [...] permite a inclusão da ironia e da paródia em seu âmago. [...] Os discursos não-sérios que a ironia pode causar são carnavalescos já que são detentores do poder de significar não significando... São discursos onde é estabelecido um jogo com as palavras, capazes de subverter ou até de transgredir normas estabelecidas na vida em sociedade (Machado, 2014, p. 112114).
Ademais, há a presença do riso quando Pestana coloca a culpa no celibato por não ter inspiração suficiente para compor um clássico:
O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo, artisticamente, considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas (Assis, 1946, p. 5).
O que não se mostra verdadeiro, pois logo na primeira tentativa de compor um noturno para Maria e apresentar-lhe de surpresa, o seu plano não termina como imaginava:
[...] Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos. − Acaba, disse Maria, não é Chopin? Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se (Assis, 1946, p. 5).
Isto é, quando estava certo de que conseguiria compor um clássico para a esposa, já que tinha a ideia fixada que era a inspiração que faltava, compôs um plágio de Chopin sem se dar conta. Assim, percebe-se que toda a trajetória de Pestana é repleta de ironia, até com um teor de pessimismo - como pode ser visto quando Maria morre e Pestana ouve, de um baile que estava ocorrendo na vizinhança, suas polcas sendo tocadas. Nada escapa da carnavalização, bem como diz Fiorin (2017):
Ao esforço centrípeto dos discursos de autoridade opõe-se o riso, que leva a uma aguda percepção da existência discursiva centrífuga. [...] A força corrosiva do riso leva a uma explosão de liberdade, que não admite nenhum dogma, nenhum autoritarismo, nenhuma seriedade tacanha (Fiorin, 2017, p. 97-101).
Por fim, há o riso envolvendo as questões políticas vigentes. Nessa época, o governo do Império estava passando pelo Período Regencial, em que havia a alternância de grupos (posteriormente transformados em partidos) de teor ora liberal, ora conservador. Dessa maneira, após fechar um contrato, o editor diz a Pestana que a produção da primeira polca deveria começar imediatamente, era urgente, pois “os liberais foram chamados ao poder, vão fazer reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à Eleição Direta! Não é política; é um bom título de ocasião” (Assis, 1946, p. 6).
Adiante, quando Pestana está quase morrendo, diz que “[...] como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; outra servirá quando subirem os liberais” (Assis, 1946, p. 7). Essas referências às autoridades condizem com o que discorre Soerensen (2011) sobre a suspensão das hierarquias durante o carnaval:
A eliminação provisória das relações hierárquicas produziu o aparecimento de uma linguagem carnavalesca típica. As formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão embebidos da noção e lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e das autoridades do poder (Soerensen, 2011, p. 322).
Desse modo, pode-se perceber nos trechos finais do conto justamente essa quebra de seriedade em relação às frentes políticas que existiam na época do Período Regencial, dando lugar ao riso pela fala de Pestana, que demonstra lucidez sobre a relatividade que engloba os vínculos políticos e de poder.
À vista da análise exposta, é perceptível como o conto “Um Homem Célebre”, partindo da ideia do músico famoso frustrado com ele mesmo, apresenta em seu universo todas as categorias bakhtinianas selecionadas, consequentemente, o conto machadiano apresenta um cronotopo, tempo e lugar, ligado à metade-final do século XIX da burguesia do Rio de Janeiro, com as frequentes festas ao som de polcas, sendo que, através do cronotopo apresentado é possível identificar também os personagens, o gênero, as memórias, argumentos e atos que demonstram a construção do artista e do seu próprio eu, em meio à sociedade capitalista, fazendo o leitor refletir sobre o fazer artístico e a sociedade.
Perpassando a polifonia e alteridade, a postura de Pestana com ele mesmo é exigente, martirizante e angustiada, por não conseguir ser o artista clássico que gostaria. Pestana não gostava de ser reconhecido apenas pelas polcas, encontrando admiração somente em relação aos seus ídolos, sendo que até o amor dele pela esposa estava inteiramente ligado ao fato dela ser uma cantora clássica e, também, ser encantada com a música erudita.
Interessante notar que, apesar da reflexão pesada que o conto de Machado de Assis carrega, a carnavalização está presente em meio ao pessimismo do autor, desde ironias com a figura do padre, a questão do celibato e a morte, até o riso envolvendo os significados dos títulos dados pelo editor de Pestana às músicas e questões políticas do Período Regencial.
Portanto, infere-se que o conto machadiano, apesar de ser de 1883, trata sobre temas universais, que foram muito explorados posteriormente e em diversas formas, como no conto “Um Artista da Fome”, de Kafka, ou até mesmo no filme hollywoodiano Nasce Uma Estrela, de 2018, que, em sua quarta adaptação, teve como acréscimo a figura do empresário, aquele que domina as ideologias da indústria cultural e assim molda os artistas sonhadores, bem como o editor de “Um Homem Célebre” faz com Pestana.
De olhar atemporal e perspicaz, Machado de Assis constrói uma narrativa que continua extremamente atual, com questionamentos sobre sucesso, indústria cultural, arte, vocação, talento e ambição, refletindo-se na sociedade contemporânea englobada à grande popularidade da tecnologia com a internet e as redes sociais.