Dossiê

Recepción: 29 Agosto 2023
Aprobación: 03 Diciembre 2023
DOI: https://doi.org/10.29327/266889.11.2-12
Resumo: Investigamos neste artigo a relação das linguagens verbal e visual numa perspectiva da análise dialógica do discurso bakhtiniana em duas narrativas infantojuvenis contemporâneas. Essa relação é permeada por lacunas, preenchimentos, dialogismo e coautoria do leitor no desvelamento das várias camadas de sentidos que a leitura proporciona. O dialogismo de Bakhtin evoca uma relação entre discursos. E aqui, trabalharemos com as linguagens verbal e visual numa perspectiva de discursos realizados por sujeitos personagens no livro ilustrado O passeio de Rosinha, escrito e ilustrado por Patrícia Hutchins, publicado pela Editora Global e Loba, escrito por Roberta Malta e ilustrada por Paula Schiavon, da Editora Pequena Zahar. São narrativas em que as duas linguagens se conectam dialogicamente e colaborativamente, proporcionando ao leitor uma coautoria em relação às camadas de sentidos que as histórias oferecem. As nossas conclusões apontam que as narrativas infantojuvenis contemporâneas analisadas indicam uma presença do dialogismo discursivo bakhtiniano por vários vieses, seja pela linguagem verbal e visual, seja pelo dialogismo, pela intertextualidade ou pela participação cocriadora do leitor ao ler e preencher as lacunas que o texto verbal e a ilustração proporcionam em suas camadas de sentidos.
Palavras-chave: Análise dialógica do discurso, Literatura infantojuvenil contemporânea, Linguagem verbal e visual, Dialogismo, Leitor.
Abstract: In this article, we investigate the relationship between verbal and visual languages from the perspective of the dialogic analysis of Bakhtin’s discourse in two contemporary children’s narratives. This relationship is permeated by gaps, fillings, dialogism and co-authorship of the reader in the unveiling of the various layers of meanings that reading provides. Bakhtin’s dialogism evokes a relationship between discourses. And here, we will work with verbal and visual languages from the perspective of discourses made by character subjects in the illustrated book O passeio de Rosinha, written and illustrated by Patrícia Hutchins, published by Editora Global e Loba, written by Roberta Malta and illustrated by Paula Schiavon, from Editora Pequena Zahar. They are narratives in which the two languages connect dialogically and collaboratively, providing the reader with co-authorship in relation to the layers of meanings that the stories offer. Our conclusions point out that the contemporary children’s and youth narratives analyzed indicate a presence of Bakhtinian discursive dialogism through various biases, whether by verbal and visual language, or by dialogism, intertextuality or by the co-creative participation of the reader when reading and filling in the gaps that verbal text and illustration provide in their layers of meanings.
Keywords: Dialogical discourse analysis, Contemporary children’s literature, Verbal and visual language, Dialogism, Reader.
INTRODUÇÃO
No presente artigo, propomos uma reflexão analítica sobre duas obras da literatura infantojuvenil contemporânea na perspectiva de alguns conceitos da Análise Dialógica Discursiva bakhtiniana. As obras a serem analisadas são O passeio de Rosinha, escrita e ilustrada por Patrícia Hutchins, publicada pela Editora Global; e Loba, escrita por Roberta Malta e ilustrada por Paula Schiavon, publicada pela Editora Pequena Zahar. As duas obras nos trazem possibilidades de leitura e análise pelo olhar dialógico discursivo bakhtiniano.
A proposta inicial é apresentar reflexões teóricas sobre a Análise responsiva dialógica no discurso bakhtiniano em diálogo com alguns elementos que fazem parte da literatura infantojuvenil contemporânea. Dessa forma, pontuamos sobre linguagem, enunciado, relações dialógicas, contexto extraverbal, materialidades, elementos plásticos, potencialização estética, ilustração, texto verbal, livro ilustrado e o leitor como cocriador. São pontuações que perpassam as duas narrativas e são problematizadas no decorrer da análise.
Na segunda e terceira partes do artigo, problematizamos o texto O passeio de Rosinha como uma construção discursiva dialógica entre as linguagens verbo visual e o leitor. E em Loba, o dialogismo e as camadas de sentidos presentes nas linguagens verbal e visual.
A ANÁLISE RESPONSIVA E DIALÓGICA NO DISCURSO BAKHTINIANO
Analisar uma narrativa infantojuvenil contemporânea na perspectiva e reflexões de Mikhail Bakhtin e o círculo requer entender alguns conceitos que serão utilizados na próxima seção do artigo. Nessa primeira parte, traremos esses conceitos e pontuaremos sua importância na escolha de leitura bakhtiniana.
A linguagem para Mikhail Bakhtin vai muito além de um signo linguístico, sempre é carregada de sentidos numa perspectiva histórica, ideológica, cultural, social, política. Todo enunciado traz consigo uma gama de sentidos que seu contexto permite compreender. Não é apenas identificar, decodificar, mas compreender, construir relações dialógicas e responsivas num contexto de conexão com o leitor. Beth Brait escreve sobre esse embasamento da análise dialógica do discurso de Bakhtin:
[...] é possível explicitar seu embasamento constitutivo, ou seja, a indissolúvel relação existente entre língua, linguagens, história e sujeitos que instaura os estudos da linguagem como lugares de produção de conhecimento de forma comprometida, responsável, e não apenas como procedimento submetido a teorias e metodologias dominantes em determinadas épocas. Mais ainda, esse embasamento constitutivo diz respeito a uma concepção de linguagem, de construção e produção de sentidos necessariamente apoiadas nas relações discursivas empreendidas por sujeitos historicamente situados (Brait, 2006, p. 10).
Dessa forma, nosso caminho analítico será percorrido por essa concepção de linguagem que constrói e produz sentidos em relações discursivas e que os sujeitos estão constituídos historicamente.
Bakhtin (1976) pontuou sobre o contexto extraverbal, ou seja, as construções realizadas pelo leitor, de acordo com alguns pontos. A compreensão do contexto extraverbal é realizada por três fatores: o horizonte espacial comum dos interlocutores, o conhecimento e a compreensão comum da situação, e a avaliação comum. Esses três pontos constituem o contexto extraverbal que é imprescindível na leitura, num diálogo de enunciados. O horizonte espacial comum dos interlocutores está ligado à:
unidade do visível, [...], diz respeito ao que é conjuntamente visto, o que pode ser captado na sua real e viva contemplação, o que está diretamente relacionado ao que se pode compreender comumente entre os interlocutores, o que se pode, por assim dizer, conjuntamente saber (Pereira; Rodrigues, 2014, s/p).
Esse saber é realizado pelo leitor a partir do início da leitura de um texto, da prática experiencial em que é exigido esse contexto extraverbal. O contexto extraverbal dialoga com as palavras de Montes, ao afirmar:
É importante entender que o ‘leitor’ tem muitos universos de significação expostos ao seu redor. Mais ou menos ricos em significação, mais ou menos férteis, mais ou menos prestigiosos, mas todos à sua maneira são leituras, narrativas que se antecipam à sua, à do leitor, que já estão ‘contando’ o mundo, desenhando-o de antemão, possibilitando que ele faça conjecturas, dando-lhe modelos. [...] o leitor, então, não opera no vazio. Ele está imerso em uma situação, um estado de leitura, uma ‘ordem de leitura’ que podemos dizer (desde que não se pense em ordem como algo muito ordenado, porque se trata de uma trama complexa, e às vezes contraditória). Mas diante da situação, do estado, da ordem, o leitor faz valer sua experiência, a experiência ‘daquele que está lendo’. Uma experiência histórica, um acontecimento, um evento, algo que começa, faz um percurso, culmina. No decorrer dessa experiência, sua experiência – porque a experiência é sempre única, pessoal e inalienável -, o leitor a coteja com a ordem e revalida seus poderes (Montes, 2020, p. 87).
Esse contexto extraverbal é repleto de universos de significação, de ricas experiências, individuais e/ou coletivas, leituras e narrativas que fazem o leitor interagir com outros textos, com outros enunciados que também estão repletos de contextos esperando serem acionados pelo sujeito ativo responsivo. Nessas duas perspectivas, de Bakhtin e Montes, visualizamos a análise dialógica discursiva, a proposta de colocar o leitor em diálogo responsivo com um texto pertencente ao gênero discursivo infantojuvenil. Bakhtin pontua sobre essa dimensão extralinguística e aciona a Metalinguística para visualizarmos a linguagem viva:
Assim, as relações dialógicas são extralinguísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica daqueles que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística etc.), está impregnada de relações dialógicas. Mas a Linguística estuda a ‘linguagem’ propriamente dita com sua lógica específica na sua generalidade, como algo que torna possível a comunicação dialógica, pois ela abstrai consequentemente as relações propriamente dialógicas. Essas relações se situam no campo do discurso, pois este é por natureza dialógico e, por isto, tais relações devem ser estudadas pela Metalinguística, que ultrapassa os limites da Linguística e possui objeto autônomo e metas próprias (Bakhtin, 2002, p. 183).
Quando Bakhtin fala do campo de emprego da linguagem, seja cotidiana, prática, científica, artística, inserimos as narrativas infantojuvenis nesse rol das relações dialógicas. Um espaço artístico em que a linguagem vive e é perpassada pelo leitor, um sujeito que interage com o texto e o preenche, cocria junto com o escritor e o ilustrador. A literatura infantojuvenil contemporânea é caracterizada pela presença de vários elementos plásticos que potencializam a narrativa verbal em colaboração com as materialidades. Segundo Juliana Pádua (2022), as materialidades congregam as linguagens verbal e visual, a ilustração, a cor, o projeto gráfico, a dobra, a textura, a diagramação, a tipografia e os elementos paratextuais. Trabalhar esses elementos numa perspectiva estética de criação, de produção e de diálogo com o leitor promove a narrativa em sua potencialização estética. Segundo Rui de Oliveira (2008, p. 30), “Toda ilustração, além de suas interrelações com o texto, possui qualidades configuracionais e estruturais perfeitamente explicáveis e analisáveis”. A partir dessas materialidades, especificamente o texto verbal e a ilustração, convocaremos a análise dialógica discursiva de Bakhtin para analisar as relações dos enunciados narrativos.
Essa análise dialógica discursiva de Bakhtin envolve enunciados que se trocam, se enfrentam, se interagem. Segundo Faraco:
[...] é interessante lembrar que aquilo que Bakhtin chama de relações dialógicas não remete ao diálogo face a face (como muitos acreditam), mas à dinâmica de múltiplas inter-relações responsivas entre posições socioavaliativas. Na interação vista pelo olhar bakhtiniano, não se trocam mensagens, mas se dialogizam axiologias (2005, p. 219).
Ou seja, as relações dialógicas presentes em uma análise dialógica discursiva exigem do sujeito leitor discussões e reflexões contextualizadas, interativas, uma relação com o outro em que texto e leitor se encaram, se exploram e produzem ações responsivas. E esse leitor é considerado por Bakhtin como um destinatário, todo enunciado possui um direcionamento, alguém que irá interagir. Bakhtin afirma que:
um traço essencial (constitutivo) do enunciado é a possibilidade de seu direcionamento a alguém, de seu endereçamento. À diferença das unidades significativas da língua – palavras e orações –, que são impessoais, de ninguém e a ninguém estão endereçadas, o enunciado tem autor (e respectivamente, expressão, do que já falamos) e destinatário. Esse destinatário pode ser um participante interlocutor direto do diálogo cotidiano, pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo especial da comunicação cultural, pode ser um público mais ou menos diferenciado, um povo, os contemporâneos, os correligionários, os adversários e inimigos, o subordinado, o chefe, um inferior, um superior, uma pessoa íntima, um estranho, etc. ele também pode ser um outro totalmente indefinido, não concretizado (Bakhtin, 2016, p. 62-63).
Dessa forma, temos uma possibilidade de destinatário aos nossos livros em análise, a princípio, um público leitor infantil. Um destinatário que recebe o livro ilustrado como leitor principal, mas sem descartar outros destinatários que se identificam com a estética literária dessa obra. O livro ilustrado, segundo Linden (2018), convoca duas linguagens, o texto e a imagem. A confluência das imagens propondo uma significação articulada com o texto verbal apresenta um convite para uma leitura conjunta sobre o que está escrito e o que é mostrado. O livro ilustrado requer do seu leitor uma leitura sensorial, pois é uma configuração que abarca vários elementos para a construção da narrativa. É um conjunto de elementos que são acionados por meio da leitura dialógica propiciando a construção de sentidos no processo de formação literária e estética. As características do livro de literatura infantojuvenil contemporâneo perpassam pelas suas possibilidades do dito e do não dito, do que está evidente ao leitor e os espaços e lacunas a serem preenchidos nessa relação dialógica com o leitor. Essa trajetória de leitura pressupõe realizar determinados afinamentos pautados no princípio de que:
Ler um livro ilustrado não se resume a ler texto e imagem. É isso, e muito mais. Ler um livro ilustrado é também apreciar o uso de um formato, de enquadramentos, da relação entre capa e guardas com seu conteúdo; é também associar representações, optar por uma ordem de leitura no espaço da página, afinar a poesia do texto com a poesia da imagem, apreciar os silêncios de uma relação à outra (Linden, 2018, p. 8-9).
Essa confluência entre os discursos verbal e visual dialogam com a ideia de Bakhtin, quando afirma que: “[...] ao perceber, compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele, uma ativa posição responsiva, concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc” (Bakhtin, 2003, p. 271). Daí a importância do leitor nessa leitura e análise das obras O passeio de Rosinha e Loba. Ele irá ter essa posição ativa responsiva, irá completar as lacunas e descamar as camadas de sentidos que há na narrativa, tudo numa perspectiva dialógica dos discursos verbal e visual. O espaço da narrativa será uma arena de discursos com os discursos do leitor.
Mikhail Bakhtin quando estudava a obra de Dostoiévski não possuía o conceito de Polifonia, mas os discursos da obra proporcionaram construir esse conceito. Assim, como disse Brait (2006), precisamos deixar os discursos revelarem sua forma de produzir sentido, a partir do ponto de vista dialógico, num embate. A pesquisadora Marilia dos Santos Amorim escreveu sobre essa característica da análise do discurso dialógica:
[...] A produção de conhecimento e o texto em que se dá esse conhecimento são uma arena onde se confrontam múltiplos discursos. Por exemplo, entre o discurso do sujeito analisado e conhecido e o discurso do próprio pesquisador que pretende analisar e conhecer, uma vasta gama de significados conflituais e mesmo paradoxais vai emergir. Assumir esse caráter conflitual e problemático das Ciências Humanas implica renunciar a toda ilusão de transparência: tanto do discurso do outro quanto de seu próprio discurso. E é portanto trabalhando a opacidade dos discursos e dos textos, que a pesquisa contemporânea pode fazer da diversidade um elemento constituinte do pensamento e não um aspecto secundário (Amorin, 2003, p. 12).
Essa multiplicidade de discursos que se enfrentam na arena de um texto, de um diálogo, de uma narrativa infantojuvenil é prenhe de diversidade, de opacidade, de sentidos a serem investigados. No caso da leitura de uma obra literária infantojuvenil, o leitor é esse outro que confronta e se completa com os discursos encontrados na narrativa. Bakhtin escreveu sobre essa relação de contemplação do outro que dialoga com a ação do leitor dos textos infantojuvenis em análise. Em O passeio de Rosinha, por exemplo, o leitor sabe de situações e ações que a personagem principal não sabe. Essa completude citada por Bakhtin é refletida na narrativa.
Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – a cabeça, o rosto, a expressão do rosto -, o mundo ao qual ele dá as costas, toda uma série de objetos e de relações que, em função da respectiva relação em que podemos situar-nos, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando estamos nos olhando, dois mundos diferentes se refletem na pupila dos nossos olhos (Bakhtin, 2003, p. 44).
A partir do momento em que a narrativa literária utiliza estratégias de ler a história de acordo com a posição do leitor, temos essa relação com o Outro, citado por Bakhtin. O leitor da obra de O passeio de Rosinha terá acesso a partes da narrativa que não são acessíveis ao personagem principal, são dois mundos que se complementam para que a narrativa funcione, que seja evocada para a dialogicidade dos discursos e se construam sentidos para a leitura. Na fala de Bakhtin (2000, p. 44), “o excedente de minha visão, com relação ao outro, instaura uma esfera particular da minha atividade, isto é, um conjunto de atos internos ou externos que só eu posso pré-formar a respeito desse outro e que o completam justamente onde ele não pode completar-se”. Ou seja, nosso leitor terá uma ação responsiva na narrativa no preenchimento das lacunas estratégicas de leitura quando na linguagem verbal não há menção ao que está acontecendo visualmente, apenas lendo a linguagem visual obteremos as partes não contadas verbalmente. Continuando com a fala de Bakhtin:
O excedente da minha visão contém em germe a forma acabada do outro, cujo desabrochar requer que eu lhe complete o horizonte sem lhe tirar a originalidade. Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldura-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento (Bakhtin, 2000, p. 45).
A perspectiva do diálogo e das relações dialógicas pontuada por Bakhtin evoca esse leitor em suas nuances de leitura, de preenchimento, de se posicionar diante dos enunciados e construir a compreensão de acordo com seus contextos extraverbais. Montes pontua sobre essa ação do leitor:
Enquanto faz seu jogo, enquanto se move pelo texto – aquilo que se apresenta à sua leitura – o leitor dá a sensação de estar procurando, ainda que de forma imprecisa, o ponto em que só se descobre o que se estava procurando quando se encontra. Mais do que procura, deveríamos falar de quest, de gesta, de aventura, de conquista ou viagem, mas uma viagem bastante acidentada, com surpresas e muita esgrima. ‘Aquele que lê’ se move dentro das condições dadas com certa liberdade, impulsionado por sua curiosidade, seus anseios, seus pontos de desequilíbrio e também suas possibilidades, suas operações, seus recursos. Ele se apoia nas condições e também as contradiz. Há um diálogo, uma dialética (Montes, 2020, p. 88).
Nessa perspectiva, nosso leitor de O passeio de Rosinha e Loba será um aventureiro, um descobridor de surpresas e desenvolverá sua leitura a partir de todo esse arcabouço extraverbal, impulsionando uma relação responsiva e dialógica por meio da curiosidade, de seus anseios, de seus desequilíbrios, de suas indagações. Um leitor em plena experiência dialógica e responsiva. Essa proposta de análise é demonstrar ao leitor deste artigo como essas narrativas infantojuvenis de livro ilustrado proporcionam uma relação dialógica com seu destinatário, com seu possível leitor por meio dos discursos verbal e visual da narrativa.
O PASSEIO DE ROSINHA - CONSTRUÇÃO E DIALÓGICA ENTRE A LINGUAGEM VERBO VISUAL E O LEITOR
A narrativa infantojuvenil O passeio de Rosinha, de Pat Hutchins, tradução de Gian Calvi, publicada pela Editora Global em 2004, conta uma história de uma galinha que decide fazer um passeio, mas não percebe em momento algum, a companhia silenciosa de uma raposa que tenta, de todas as formas, agarrá-la. Seria uma narrativa simples, se as duas linguagens, verbal e visual, dissessem a mesma coisa. O ponto de atenção ao leitor nessa narrativa é o discurso presente na linguagem visual ser diferente da linguagem verbal. Temos dois discursos diferentes que só são vistos pelo leitor, pela ação da leitura. A narrativa ganha vida quando o leitor observa as duas linguagens e percebe que os discursos são diferentes.
Segundo Bakhtin, um discurso é permeado pela linguagem em ação. E aqui, vamos trabalhar com a linguagem verbal e visual, com a palavra escrita e com a ilustração interagindo a partir do olhar do leitor. Podemos afirmar que na narrativa em análise, há uma polifonia entre as linguagens verbal e visual. As vozes dos discursos verbal e visual se equiparam, se igualam e se complementam na ação de contar a história.

Na ilustração da capa, temos a indicação do título dialogando com a personagem em evidência, do lado esquerdo do livro. Porém, temos uma outra personagem que não aparece no título e nem no discurso verbal, apenas o leitor a visualiza e é o detentor dessa informação, que é a imagem da raposa que se mostra no discurso visual. O texto verbal (título) não traz essa inserção. Dessa forma, por meio da capa, já temos dois discursos, o da narrativa verbal e da narrativa visual. Dois discursos que são realizados no dialogismo com o leitor. O discurso visual nos traz informações que não temos no texto verbal. São dois discursos que se complementam e evocam a presença do leitor, necessitam do leitor para concretizar as relações dialógicas.

Na narrativa de Rosinha, o texto verbal traz a seguinte informação: “A galinha Rosinha foi passear à tardinha”. No entanto, o texto visual nos traz outras informações que influenciam o desenrolar da história. Há uma raposa perseguindo Rosinha na tentativa de, possivelmente, devorá-la. Caso façamos a leitura apenas do texto verbal, a narrativa fica incompleta. A voz do texto verbal não supre o leitor em relação ao todo da narrativa. O peso do discurso visual é imprescindível para entendermos o enredo. Há uma relação dialógica de complementariedade entre os dois discursos. Poderíamos convocar a polifonia para esses discursos? A polifonia pode ser entendida como “a multiplicidade de vozes equipolentes, as quais expressam diferentes pontos de vista acerca de um mesmo assunto” (Bakhtin, 2002, p. 04). Assim, teríamos a polifonia de Bakhtin na narrativa de Rosinha. Temos o discurso verbal dizendo algo e o discurso visual nos apresentando outra perspectiva, outro ponto de vista do passeio de Rosinha.
Para uma leitura da narrativa são evocados alguns procedimentos de interpretação, de intervenção do leitor. Dialogamos com o pensamento de Rojo (2004) ao dizer que, dependendo do objetivo da prática de leitura, as estratégias se subdividem em três grupos: decodificação, compreensão e apreciação e réplica do leitor em relação ao texto. No caso de nossa análise, pontuamos aqui a última estratégia, em que a interação verbal e visual se juntam para dar conta da narrativa, para descobrir as camadas de sentido que há nas entrelinhas da narrativa.
Dessa forma, temos a narrativa em análise inserida em alguns pontos estratégicos de leitura descritos por Rojo e que dialogam com a análise dialógica do discurso de Bakhtin.

Na figura 3, temos uma armadilha estratégica para a raposa ao seguir Rosinha. Visualizamos que o discurso visual está imbricado no discurso verbal ao completar a história. Seguindo as estratégias de leitura de Rojo e a interação verbal de Bakhtin, inferimos que a construção dialógica da narrativa depende totalmente do leitor, de sua participação ativa e responsiva na leitura da obra. São teias que se ligam e nos fornecem uma construção discursiva. Segundo Bakhtin:
Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra ‘resposta’ no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta (Bakhtin, 2003, p. 297).
A comunicação discursiva da narrativa de Rosinha está prenhe desses ecos e outros enunciados por meio do discurso visual. É uma cadeia de discursos que dá uma identidade polifônica à narrativa. Nas próximas ilustrações, identificaremos outras personagens que também possuem voz e acompanham a saga da raposa.

Nessa ilustração, temos dois sapos que se assustam com o pulo da raposa para cima de Rosinha, que continua não vendo nada do que acontece ao seu redor.

Nessa montagem de folhas duplas, temos três discursos sendo visualizados pelo leitor: o discurso de Rosinha realizando seu passeio, o da Raposa tentando capturar a Rosinha e das personagens bode, dois ratinhos e um esquilo que estão acompanhando as peripécias da raposa em tentar agarrar sua possível presa. A primeira personagem que acompanha a narrativa nessas duas folhas duplas é um bode que, de longe, percebe todas as tentativas da raposa em conseguir pegar Rosinha. O olhar do bode na primeira folha dupla é a de frente com a ação. Ele visualiza Rosinha no monte de capim e, logo depois, a raposa na tentativa de um pulo e pegar a presa de surpresa. E ainda há dois ratinhos que estão no capim acompanhando a frustrada tentativa da raposa. Em seguida, temos o olhar desconfiado do bode em direção à raposa, decepcionada pela tentativa que deu errado. E Rosinha continua seu passeio sem se ater aos fatos que acontecem na narrativa. Na próxima folha dupla, temos outra tentativa da raposa em pegar Rosinha, mas novamente tudo dá errado e um esquilo acompanha o plano sendo frustrado novamente. A imagem do esquilo pode possibilitar uma interpretação de sua face como se dissesse: “vai dar errado novamente”. E de longe, numa perspectiva mais distante, temos novamente o bode acompanhando os planos da raposa darem errado.
Analisando essas personagens que acompanham o passeio de Rosinha, temos a visão de outros olhares para a narrativa, são outras vozes que acompanham a história. Nós, leitores da narrativa, temos algo em comum com essas personagens, visualizamos os planos da raposa e suas tentativas de agarrar a Rosinha. Porém, temos uma visualização total, tanto dos planos da raposa quanto dos olhares que esses outros personagens possuem. Essa atitude responsiva do leitor é pontuada por Bakhtin quando afirma que não são somente palavras que pronunciamos ou lemos, mas há sempre um conteúdo por trás, dessa forma:
[...] o que implica sempre um contexto ideológico preciso. Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida (Bakhtin/ Volochinov, 1999, p. 95).
Sendo assim, os discursos visual e verbal da narrativa analisada são carregados de um contexto ideológico em que o leitor é atiçado a se envolver, a reagir de acordo com o nível de leitura realizada. Segundo Graciela Montes:
Aquele que lê ‘estabelece’ o texto à sua maneira, debate-se com ele, o rodeia, o calibra, insinua-se nele por meio de alguma fresta ou toma-o de assalto, e algo ali dentro o apanha, algo que só ele podia captar. Algo que ele encontra de repente – muitas vezes por acaso -, e arranca por própria conta e risco, sabe-se lá de onde. [...]. A leitura inclui a estranheza e o acaso. Na história do leitor, há sempre contatos inesperados, atalhos, desvios, situações desconcertantes, estranhas coincidências (Montes, 2020, p. 84).
O leitor da narrativa de Rosinha estabelece um caminho de leitura a partir das identificações realizadas, das reações que o texto provoca e, a partir daí, das escolhas que faz para seguir a narrativa. Assim como a raposa, o leitor pode optar pelo discurso do atalho, de ficar observando e esperando o final do enredo. Ou escolher ser participante e tentar alertar a personagem que há uma raposa perseguindo-a. Nessa contextualização, temos o leitor infantil que, ao mediarmos essa narrativa, querem sempre alertar Rosinha sobre a presença da raposa.
O leitor precisa articular as estratégias de leitura para seguir em frente. Esse leitor infantojuvenil é perpassado por vários momentos de recepção da obra, passando pela raiva de a Rosinha não ver a raposa, como o medo de a raposa conseguir pegar a vítima. O importante é o leitor aceitar o desafio da narrativa, ser um sujeito responsivo, ativo e enfrentar os obstáculos presentes na história. Montes também comenta sobre essas possibilidades que o leitor possui na hora da leitura:
Assim como na história, ler também é não ser devorado. Para não ser devorado, o leitor faz sua leitura. Aceita o desafio do texto – sua escuridão, seus obstáculos, seus enganos – e responde a ele desenvolvendo suas próprias técnicas, seus ardis. Ele não é, pois, um ingênuo, um inócuo, um receptáculo vazio. O leitor tem poderes. Só que seu poder se manifesta no decorrer da experiência, precisamente, ali: quando está lendo. Não é um poder a priori, um privilégio, mas um poder em exercício, histórico, o poder que tem aquele que brinca enquanto está brincando ou que trabalha enquanto está trabalhando, um poder que deve ser revalidado em cada instância (Montes, 2020, p. 85-86).
O nosso leitor que brinca, a princípio, é a criança, o leitor que não se preocupa em analisar, mas se divertir com a narrativa. Esse leitor brincalhão consegue escapar da raposa juntamente com a Rosinha, sendo um parceiro dessa personagem. Os obstáculos são descobertos com antecedência. O leitor infantil exerce a função de protetor da Rosinha, protegendo e avisando sobre os perigos, mesmo sem ser ouvido. Esse poder é exercido na hora da leitura, na experiência leitora, no contato com a narrativa, na ação responsiva de um sujeito que é ativo e consegue compreender o contexto que envolve a história. Não há apenas uma identificação da palavra ou do signo linguístico, seja verbal ou visual, mas a compreensão é ativada pela interação verbal, pela conexão dos signos verbais e visuais pelo leitor. De acordo com Bakhtin:
A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra. Só na compreensão de uma língua estrangeira é que se procura para cada palavra uma palavra equivalente na própria língua (Bakhtin/ Volochinov, 1999, p. 132).
Essa contrapalavra é a resposta responsiva do leitor ao querer alertar a personagem Rosinha sobre a raposa, elemento que se encontra no signo visual e não no verbal. A personagem Rosinha encontra-se no nível do signo verbal. E a raposa, no nível do signo visual. O leitor aciona suas estratégias de leitura, mobiliza sua contrapalavra e realiza a compreensão dialógica com o texto narrativo. Ao realizar essa ação, o leitor opera uma leitura na perspectiva bakhtiniana, ou seja, compreende que essa narrativa está constituída por uma contextualização histórica, ideológica, cultural e social, destrinchando, assim, as várias camadas de sentidos que um livro ilustrado pode causar em seu leitor.
E a personagem principal finaliza seu passeio sem saber sobre os grandes perigos pelos quais passou. Se perguntássemos à Rosinha sobre seu passeio, certamente diria que foi calmo, tranquilo e sem nenhuma surpresa. Somente nós sabemos o que realmente aconteceu por meio do discurso visual, das camadas de sentidos que a narrativa proporciona ao construir uma profusão de discursos que dialogam e desafiam o leitor a acompanhar realmente o que está acontecendo.
O DIALOGISMO E AS CAMADAS DE SENTIDOS ENTRE AS LINGUAGENS VERBAL E VISUAL EM LOBA
A narrativa Loba, escrita por Roberta Malta, ilustrada por Paula Schiavon, publicada pela Editora Pequena Zahar em 2023, traz para o público uma história já conhecida de todos, um diálogo delicado e alegórico com o clássico Chapeuzinho vermelho.
A narrativa recupera a versão clássica, no entanto, temos ilustrações que nos contam a narrativa com outros olhares, com outras nuances, num diálogo intertextual com a versão primária. Segundo Barros e Fiorin,
Intertextualidade ou dialogismo é uma referência ou uma incorporação de um elemento discursivo a outro, podendo reconhecê-lo quando um autor constrói a sua obra como referências a textos, imagens ou sons de outras obras e autores e até por si mesmo, como uma forma de reverência, de complemento e de elaboração do nexo e sentido desse texto/imagem (Barros; Fiorin, 1999, p. 120).
Na narrativa Loba, temos esse dialogismo, esse entrecruzamento de discursos, essa intertextualidade em que o leitor, dependendo de seu repertório literário, visualizará outras narrativas que ajudam a elaborar a compreensão responsiva. Na capa do livro, temos um título diferente da versão primária, convocando o leitor para outros olhares.

Temos alguns índices de leitura que provocam o leitor a tentar construir respostas à leitura inicial. Na primeira capa, temos uma menina de cabelos ruivos, vestido e sapatos brancos, brincando em um balanço ao lado de uma árvore. Essa imagem está enquadrada, ou seja, com margens delineadas lembrando uma possível janela, assim, teríamos a visão dessa menina a partir de uma janela, de um espaço interior que se encontra completamente na cor vermelha. Na quarta capa, outros índices que dialogam com a narrativa clássica: um capuz vermelho pendurado em uma cadeira, lembrando a capa de chapeuzinho vermelho. Temos também um quadro à esquerda na parte superior com uma foto de possíveis três gerações: uma avó, uma mãe e uma neta. São alguns índices de leitura que podem levar o leitor a fazer um diálogo com a narrativa Chapeuzinho vermelho. Apenas para pontuar a origem e a intertextualidade com as duas versões clássicas, citamos Le Petit Chaperon Rouge (Chapeuzinho vermelho), de Charles Perrault, publicado em 1697, na coletânea Contes de ma mère L’Oye ou Contes au histoires du temps passé, avec les moralités; e Rotkäppchen (Chapeuzinho vermelho), dos Irmãos Grimm, publicada no século XVIII, no livro Contos para Crianças e adultos. Os índices citados anteriormente são linguagens que funcionam na ação de leitura do leitor. As ilustrações, as cores, as propostas de pistas da narrativa funcionam como discursos, ecos, lembranças de outros enunciados que se cruzam e proporcionam o dialogismo que Bakhtin problematiza dessa forma:
Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação verbal de uma dada esfera. As fronteiras desse enunciado determinam-se pela alternância dos sujeitos falantes. Os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem auto-suficientes; conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos recíprocos que lhes determinam o caráter. O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado numa esfera comum da comunicação verbal. O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera (a palavra ‘resposta’ está empregada aqui no sentido lato): refuta-os, confirma-os, completa-os, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles. Não se pode esquecer que o enunciado ocupa uma posição definida numa dada esfera da comunicação verbal relativa a um dado problema, a uma dada questão etc. Não podemos determinar nossa posição sem correlacioná-la a outras posições (Bakhtin, 2003, p. 316).
Visualizamos essa capa com vários enunciados prenhes de ecos e lembranças de outras histórias, de outros enunciados, citamos as versões clássicas que dialogam na narrativa verbal e visual. A cor é um enunciado que evoca o simbolismo do vermelho na narrativa clássica de Chapeuzinho vermelho. E esse vermelho traz várias simbologias, sentidos e respostas dos leitores a enunciados anteriores. Será que os enunciados da narrativa Loba refutam ou confirmam os enunciados anteriores? Ou, ainda, completam a história, ampliando seu horizonte de compreensão? Essas indagações são provocadas a partir do momento que visualizamos os enunciados, a linguagem viva na narrativa literária. Os enunciados, para Bakhtin (2003), precisam ter autoria, destinatário, emoções, juízos de valor, expressões, sentidos. Assim, para essa análise, a obra Loba é uma arena de enunciados que espera o leitor para jogar, para brincar, para confirmar, refutar, completar, construir atitudes responsivas de acordo com seu repertório de leitura.
Continuando com a análise de Loba, temos o título. Uma inversão de ideia em relação à narrativa clássica. O título Chapeuzinho vermelho apresenta, numa primeira análise, uma ideia de inocência, de delicadeza, infantilidade. Já o título Loba traz uma leitura de perigo, ameaça e sedução. Na literatura clássica, os leitores estão acostumados a ler, ver e ouvir sobre o lobo (gênero masculino), o lobo mau da história dos Três porquinhos, o lobo mau de Chapeuzinho vermelho; mas uma loba ainda não havia, uma loba no lugar de um lobo? Que sentido teria? Com qual enunciado dialoga essa ideia? Em toda narrativa de Loba, só identificamos personagens femininas, uma avó, uma mãe, uma neta e uma loba. Essa construção de gênero traz para a arena da narrativa os enunciados femininos, as lutas de gênero e uma atualização da narrativa. Seria uma nova voz para a narrativa na tentativa de discutir a posição da mulher, a posição de autoria?


As seis ilustrações na Figura 7 nos mostram algumas enunciações que remetem à versão clássica: na primeira, temos dois espaços: a casa em um espaço menor; e a floresta sobressaindo em tamanho comparada a casa. Dois mundos presentes na vida da menina de cabelos vermelhos. A imagem da menina parece nos transmitir uma angústia, comprovada com o texto verbal: “Às vezes, minha casa parece tão pequena”. O espaço da floresta na página dupla é bem maior que o espaço ocupado pela casa. Já há um enunciado para o leitor atento sobre essa diferença, essa discrepância entre os lugares, sugerindo um discurso de que a floresta é maior, que poderia preencher as expectativas da menina, pois ela considera a casa pequena.
Na segunda folha dupla, a ilustradora utiliza da técnica do quadrinho para mostrar partes da situação: uma menina inconformada com o espaço em que se encontra; uma possível adulta vestindo jeans e um par de sapatos vermelhos; além do destaque ao livro que se encontra ao lado da menina e em evidência na parte superior da folha dupla. A porta aberta da casa não é convidativa, o espaço em branco, do lado de fora, parece fazer um convite a ser preenchido.
Na terceira folha dupla, há uma fala da possível mãe para a menina: “- Filha!”; e o texto continua na quarta folha dupla: “- Sua avó vem nos visitar. Você buscaria flores para ela?”. A menina, de início, demonstra um certo ar de contrariedade ao pedido da mãe. Além dos sapatos vermelhos, a mãe usa um lenço na cabeça com flores vermelhas e tem na mão uma cesta para a menina colher as flores. As orientações da mãe finalizam na quinta folha dupla: “- Só tome cuidado na floresta”, um dialogismo explícito com a versão clássica. Nessa ilustração, temos dois espaços bem definidos, o da casa com a proteção da cerca; e o da floresta, aberto para o mundo. Na última folha dupla, aparece a menina feliz, por sair de casa e ir até a floresta.
Nessas ilustrações, temos enunciados carregados de sentidos numa perspectiva histórica da narrativa clássica. São histórias e sujeitos que dialogam apoiados nas relações discursivas das narrativas. O universo dos leitores fará a ponte entre as narrativas, os personagens, os espaços e o contexto ficcional. O leitor não opera no vazio, mas na arena de múltiplos enunciados. Pontuamos alguns enunciados que dialogam com a narrativa clássica:
A cor vermelha - presente nos cabelos da menina, nos sapatos e no lenço da mãe - funcionam como elemento narrativo e traz à memória as lembranças da narrativa clássica, Chapeuzinho vermelho;
A floresta – outro elemento narrativo, pois traz toda uma carga social, histórica e literária de outros discursos, os enunciados verbal e visual se integram e formam um contexto de interação discursiva. O enunciado verbal “- Só tome cuidado na floresta” recupera os enunciados de “cuidado” e “medo” presentes na versão clássica;
E a cesta para colher flores se repete, dialogando com as versões primárias, mu-dando apenas o que está dentro da cesta: de doces e bolos para flores.
Esses enunciados estão inseridos em um contexto social, histórico e literário pertencentes a uma arena de textos em que a relação dialógica é presente.
Nessa perspectiva, o enunciado e as particularidades de sua enunciação configuram, necessariamente, o processo interativo, ou seja, o verbal e o não verbal que integram a situação e, ao mesmo tempo, fazem parte de um contexto maior histórico, tanto no que diz respeito a aspectos (enunciados, discursos, sujeitos, etc.) que antecedem esse enunciado específico quanto ao que ele projeta adiante [. . .] (Brait; Melo, 2017, p. 67).
Dessa forma, a narrativa Loba nos traz outros enunciados que estão em plena relação dialógica, de acordo com ação responsiva do leitor. Bakhtin afirma:
O enunciado é pleno de tonalidades dialógicas, e sem levá-las em conta é impossível entender até o fim o estilo de um enunciado. Porque a nossa própria ideia – seja filosófica, científica, artística – nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos dos outros, e isso não pode deixar de encontrar o seu reflexo também nas formas de expressão verbalizada do nosso pensamento (Bakhtin, 2003, p. 298).
Ou seja, é na interação dos enunciados do texto fictício com a leitura do leitor que ocorrerão essas relações dialógicas, o processo de interação precisa acontecer para que o dialogismo, a interação verbal se faça presente.

Esse enunciado sobre a floresta nos chama a atenção, porque na versão clássica e ainda na fala da mãe em Loba, ela é apresentada como um caminho que precisa tomar cuidado. Mas o que acontece após a menina conhecer a floresta difere das versões anteriores, esse espaço ganha um tom de descoberta, de alegria, de colorido, e isso não se perde em nenhum momento da narrativa, permanece até o fim, ao contrário da versão primária, em que Chapeuzinho vermelho é devorada pelo lobo ou salva pelo caçador. Nessa narrativa, a descoberta, a curiosidade pelo vermelho é visualizada nas ilustrações da figura 8. O encantamento da menina com a floresta é visível. Nessas imagens, não há nenhum texto verbal, apenas visual. As imagens contam a narrativa, descobrimos e lemos os enunciados por meio do visual, as ilustrações narram a história numa relação dialógica com o leitor. A menina se encanta com as flores vermelhas e abandona as flores azuis já colhidas. No decorrer da narrativa, ela se pergunta: “Até onde vai o caminho?” E se encanta com a possibilidade de conhecer outros espaços, outras trajetórias a trilhar.
Mas o tempo passa e já é noite. Espanta-se com o entardecer e desce da árvore.


O encontro do possível lobo, numa primeira leitura, com a menina, se concretiza, mas não ocorre como sucedeu-se na narrativa clássica. Há um reconhecimento entre eles. Há um encontro que demonstra um se ver no outro, se identificar. A cor vermelha, o elemento narrativo, o enunciado, que traz ecos de sentidos para a narrativa, vai ocupando o vestido da menina, de branco está passando para a cor vermelha. O enunciado da menina que ia buscar flores para sua avó se encontra com o enunciado sobre o lobo. Mas esse lobo tem algo diferente, não se apresenta como aquela figura clássica, um devorador de meninas desobedientes. Nesse lobo há um semblante acolhedor, uma imagem que nos leva a acreditar que não seja um lobo, mas uma loba, uma personagem que acolhe a menina, que mostra um outro lado da história, a do abrigo, de um porto seguro, de algo para ser compartilhado e experenciado. Visualizamos agora a menina e a loba se conhecendo e se reconhecendo como figuras femininas.

A menina foi aconchegada pela loba. Houve um encontro de sentimentos. A menina se torna uma loba, metaforicamente. Ela percebe que a estrada também é uma possibilidade de caminho, de casa, de aconchego, de carinho. Agora temos uma menina de vestido vermelho, após se encontrar com uma loba diante de uma lua cheia.

A menina não é mais uma criança, é uma loba, passou por uma transformação comprovada pela mudança na cor do vestido, de branco passou para vermelho, a cor da menstruação, é uma narrativa do crescimento, da transformação, como a Lua, passando por fases da vida.

Na figura 12, há vários enunciados que nos mostram esse dialogismo com a história de Chapeuzinho vermelho e as narrativas que as meninas e mulheres enfrentam, mas numa perspectiva coletiva, de mãos dadas com outras. Nessa ilustração, temos o enunciado dialógico por meio das personagens femininas: a avó, de echarpe vermelha e pontos vermelhos no coque de cabelo, recebendo a neta toda de vestido vermelho com flores vermelhas nas mãos; e a mãe no reflexo do espelho com um tom vermelho na blusa e no lenço na cabeça. São elementos narrativos que se juntam aos enunciados dialógicos mobilizando uma coletividade feminina. A menina não é culpabilizada por ter ido à floresta e chegado com o vestido vermelho, pelo contrário, é recebida com alegria e compartilhamento de sentimentos. Outro elemento que contribui para esses enunciados de coletividade feminina é a boneca russa, também conhecida por matrioska, localizada na escrivaninha, - um brinquedo artesanal e tradicional da Rússia, é caracterizada por reunir uma série de bonecas de tamanhos variados que são colocadas uma dentro das outras. De acordo com a cultura russa, as matrioskas simbolizam a ideia de maternidade, fertilidade, amor e amizade. O fato de uma boneca sair de dentro de outra maior representa o ato do parto, quando a mãe dá à luz a sua filha e, consequentemente, a filha dá à luz a outra criança, e assim sucessivamente. Para os russos, presentear alguém com uma matrioska é um sinal de grande afeto e desejo de vida longa e feliz.[1] E essa matrioska traz o enunciado dessa maternidade, amor, amizade, uma relação construída pelos seres femininos da narrativa, o nascimento de uma possível mulher na família, a menina torna-se mulher, uma loba.
Assim, a narrativa de Loba realiza um dialogismo de enunciados com a Chapeuzinho vermelho clássica, como também com as narrativas de gênero contemporâneas, de meninas que precisam se libertar, conhecer o mundo, quebrar paradigmas e construir seus próprios caminhos.

E a menina se torna uma loba, uma mulher que passou por vários caminhos, conheceu outras formas de amizade, e não é culpada por essas escolhas. Está apenas em desenvolvimento, em fase de crescimento e amadurecimento com a companhia de outras mulheres fortes, a mãe e a avó, além da loba que mostrou a ela que o mundo não é tão mau assim.
Podemos dizer que há um jogo a ser jogado pela menina: escolher ficar em casa, espaço de segurança e limitador; ou jogar o jogo, ir à floresta e explorar esse espaço que encanta, amedronta, envolve, surpreende. Esses enunciados dialogam com a contemporaneidade feminina: aceitar o que é dito a fazer ou enfrentar a situação e jogar com as incertezas, elemento que faz parte da vida de todos. Graciela Montes afirma:
A literatura – a arte em geral – sempre esteve do lado da diversidade. Ela cumpriu seu papel nessa exploração dos limites do enigma, construindo pequenos universos de sentido. Sem explicações: universos ou, de forma mais simples, jogos. Diante do incompreensível, mas denso e desejável em sua presença – ‘o outrem’, a floresta, os enigmas -, a arte não se preocupou em apontar certezas, mas, antes, jogou com a incerteza. Essa tem sido sua tarefa: a continuação do jogo (2020, p. 112).
E em Loba, vemos os enunciados dialógicos continuarem o jogo, aceitam recontar a história de Chapeuzinho vermelho, mas com outro contexto, com outras atitudes, com outras possibilidades de enxergar a mesma história e contar outra versão, uma escolha de entrar na floresta e aceitar o desafio do inesperado, do diferente, da busca pelo outro, mas a busca também por si mesmo, enquanto ainda há floresta e tempo. Como disse Bakhtin: “Cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados”. (2003, p. 291), e esses enunciados que aparecem na narrativa de Loba constituem uma cadeia de outros enunciados que se juntam à escrita e à oralidade da narrativa Chapeuzinho Vermelho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apontamos algumas construções dialógicas entre narrativas literárias infantojuvenis contemporâneas com a Análise Dialógica do Discurso bakhtiniana. A análise pretendeu demonstrar como narrativas que se abrem ao discurso do outro podem contribuir para leituras compreensivas e construtivas. O leitor é essencial nessa relação, pois será o responsável por realizar esses constructos colocados em diálogo pelo autor e ilustrador.
As narrativas contemporâneas infantojuvenis instauram um dialogismo. Tanto O passeio de Rosinha quanto Loba trazem discussões complexas, de acordo com cada narrativa, levam-nos a questionar as posições dos sujeitos – qual a importância da posição do sujeito leitor na mediação da narrativa O passeio de Rosinha? – e que sentido nos traz adentrar em uma floresta no universo literário infantil a partir da leitura de Loba? – todas essas ideias podem ser discutidas a partir de uma Análise Dialógica do Discurso, das relações que esses enunciados podem provocar no leitor.
Nossas considerações trazem-nos repensar sobre a Literatura infantojuvenil contemporânea. Reavaliar a materialidade da ilustração, das cores, das posições dos personagens no espaço físico e literário das páginas duplas. A Análise Dialógica do Discurso pode ser um caminho em que trataremos dos discursos, dos enunciados, das posições dos sujeitos, dos sentidos que as camadas de leituras nos proporcionam. Dessa forma, afirmamos que as duas obras em análise apresentam essa relação dialógica, seja com o leitor ou com outros discursos, outras obras literárias, nos permitindo construir atitudes responsivas e atualizar os enunciados literários a partir de uma arena de múltiplos discursos.
REFERÊNCIAS
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Notas