Resumo: O diálogo entre os enunciados verbais e visuais no livro ilustrado instaura, por meio de seus elementos constitutivos, intensas relações dialógicas que atuam na produção de sentidos e apreensão da narrativa. Alicerçado nessa configuração, o objetivo deste artigo consiste em analisar as relações de redundância, colaboração e disjunção resultantes da interação entre enunciados verbais e visuais a obra A boca da noite, escrita por Cristino Wapichana e ilustrada por Graça Lima. Sob essa perspectiva, a questão problematizadora volta-se para identificar como o diálogo entre palavras, cores e ilustrações geram diferentes relações e funções entre texto e imagem na obra. Os conceitos que norteiam a concepção de dialogismo de Bakhtin (2006), também abordados por Barros (2003), Brait (2003) e Fiorin (2006), associados aos estudos de Linden (2018), sobre as relações e funções do texto e da imagem, constituem a base de fundamentação empregada na análise. As relações dialógicas que se instauram entre os enunciados verbais e visuais na obra são relações de sentido geradoras de outras relações e funções responsivas de um enunciado em face do outro.
Palavras-chave: Dialogismo, Funções, Imagem, Relações, Texto.
Abstract: The dialogue between the verbal and visual statements in the illustrated book establishes, through its constitutive elements, intense dialogical relationships that act in the production of meanings and apprehension of the narrative. Based on this configuration, the objective of this article is to analyze the relations of redundancy, collaboration and disjunction resulting from the interaction between text and image in the work A boca da noite, written by Cristino Wapichana and illustrated by Graça Lima. From this perspective, the problematizing question turns to identifying how the dialogue between words, colors and illustrations generate different relationships and functions between text and image in the work. The concepts that guide Bakhtin’s (2006) conception of dialogism, also addressed by Barros (2003), Brait (2003) and Fiorin (2006), associated with studies by Linden (2018) on the relationships and functions of text and image constitute the foundation used in the analysis. The dialogical relationships that are established between verbal and visual statements in the work are relationships of meaning that generate other relationships and responsive functions of one statement in the face of another.
Keywords: Dialogism, Functions, Image, Relations, Text.
Dossiê
O DIALOGISMO ENTRE ENUNCIADOS VERBAIS E VISUAIS EM A BOCA DA NOITE, DE CRISTINO WAPICHANA: RELAÇÕES E FUNÇÕES

Recepción: 29 Agosto 2023
Aprobación: 18 Octubre 2023
A análise do diálogo que se instaura entre o verbal e visual na obra A boca da noite (2016) proposta por este artigo encontra ancoragem no viés teórico da natureza dialógica da linguagem, segundo a concepção de Mikhail Bakhtin. A possibilidade para o alinhado dessa perspectiva teórica à análise das relações e funções geradas do diálogo entre texto e imagem se viabiliza, sobretudo, pelo princípio básico de se manter a condição de dialogicidade, qualquer que seja o objeto de reflexão. Considerando esse pressuposto, para além da ideia de ornamentação ou simples apoio, o complexo enlace texto e imagem é gerador de um produtivo diálogo de onde emergem relações e funções inerentes à combinação dessas duas linguagens na composição do todo da obra.
O objeto selecionado como fonte de reflexão para este estudo é a obra A boca da noite (2016), escrita por Cristino Wapichana e ilustrada por Graça Lima. Marcada pela densidade estética dos enunciados verbais e visuais que compõem a espacialidade do texto, a história contada evoca a construção de um imaginário coletivo em torno da representação de um cenário étnico-cultural desvelado pelas vivências de Dum e Kupai. Tais aspectos revestem-se da leveza poética das palavras e da intensidade simbólica das imagens que perpassam todo o espaço de atuação das personagens. Dessa forma, a rede de significados tecida com os fios do verbal e do visual estimula uma dinâmica atuação do leitor na identificação de possíveis aberturas a serem preenchidas pela via da imaginação. Partindo dessa configuração, a abordagem proposta tem como foco de análise as relações e funções geradas no diálogo entre texto e imagem na composição das materialidades da obra.
Em consonância com essa perspectiva, o percurso de investigação segue pela compreensão conceitual do dialogismo em seus desdobramentos teóricos em torno dos conceitos de diálogo, enunciado e enunciação em Mikhail Bakhtin (2000, 2006), , Diana Luz de Barros (2003), Beth Brait (2003) e José Luiz Fiorin (2006). Complementam o aporte teórico, os estudos realizados por Sophie Van der Linden (2018) acerca das relações entre texto e imagem e as funções que podem cumprir como enunciados que sempre consideram a presença do outro. As concepções de Graça Lima (2008), Graça Ramos (2011), entre outros que se debruçam sobre a leitura de imagens, design do livro ilustrado infantil e qualidades estilísticas do texto e das ilustrações, aprofundam a base conceitual da análise.
Nesse intento, o percurso inicial segue pela identificação dos conceitos-chave que envolvem o dialogismo como tema predominante no pensamento de Bakhtin. Ainda nesse primeiro momento teórico é destinado um espaço para a abordagem das definições de Linden sobre os tipos de relação entre texto e imagem, com as respectivas funções que podem exercer um perante o outro. Sequencialmente, nos desdobramentos da análise, o primeiro momento é voltado para a apreensão dos elementos paratextuais e do primeiro núcleo temático da narrativa. Em seguida, a projeção do foco é sobre os efeitos do diálogo entre os enunciados verbais e visuais, suas relações e funções na construção dos sentidos que perpassam a trajetória do personagem Kupai em desvendar os mistérios sobre a boca da noite.
A análise das relações de redundância, colaboração e disjunção geradas no diálogo entre os enunciados verbais e visuais na obra A boca da noite tem como fio condutor a dimensão da linguagem em sua natureza dialógica, conforme a concebe Bakhtin. Sob essa dimensão, a linguagem constitui-se nas relações dialógicas e por essas relações é impregnada em qualquer campo de atuação. No entanto, cabe destacar a presença do sentido como uma condição básica para que essas relações se estabeleçam entre os discursos. Esse é um aspecto que ganha destaque na conceituação elaborada por Bakhtin: “A relação dialógica é uma relação (de sentido) que se estabelece entre enunciados na comunicação verbal. Dois enunciados quaisquer, se justapostos no plano do sentido [...] entabularão uma relação dialógica” (Bakhtin, 2000, p. 345). Decorre dessa concepção, o entendimento de que a linguagem é substancialmente dialógica. Logo, “Ignorar sua natureza dialógica é o mesmo, para Bakhtin, que apagar a ligação que existe entre a linguagem e a vida” (Barros, 2007, p. 33). O enfraquecimento desse vínculo torna-se impraticável pelo fato de toda atividade humana ser mediada pelo uso da linguagem, realidade que contribui para que o dialogismo seja o tema norteador do pensamento bakhtiniano.
É na amplitude desse pensamento que está centrada a proposição teórica desse filósofo da linguagem, conforme ressalta Barros: “O princípio dialógico permeia a concepção de Bakhtin de linguagem e, quem sabe, de mundo, de vida. [...] Bakhtin concebe o dialogismo como princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do discurso” (Barros, 2003, p. 2). Ao considerar tanto o social quanto o individual, a proposta bakhtiniana permite examinar, do ponto de vista das relações dialógicas, todos os fenômenos presentes na enunciação, concebida como “o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados” (Bakhtin, 2006, p. 116). Assim, à luz dessas perspectivas, os enunciados são dialógicos e a produção de enunciados é inerente às relações dialógicas, pois, cada vez que se produz um enunciado, o que se está fazendo é participar de um diálogo com outros discursos. Em outros termos, o que é constitutivo do enunciado é que ele não existe fora dessas relações, “todo dialogismo são relações entre enunciados” (Fiorin, 2006, p. 32).
Em consonância com essa configuração conceitual, os enunciados, concebidos como “unidade real da comunicação verbal” (Bakhtin, 2000, p. 293), têm autor, revelam uma posição e, sendo uma réplica, tem um acabamento específico que permite resposta. Assim, têm um destinatário e carregam consigo emoções e juízos de valor, enfim, têm sentido que, por sua vez, é sempre de ordem dialógica. Se o dialogismo marca a relação entre enunciados, importa considerar que “todos os fenômenos presentes na comunicação real devem ser analisados à luz das relações dialógicas que os constituem” (Fiorin, 2006, p. 27). Uma possível materialização dessas relações dialógicas pode ser identificada e analisada entre o texto e a imagem no livro ilustrado.
Seguir por esse viés teórico é considerar que a análise das relações entre texto e imagem opõe-se a uma visão dissociada ou individual sobre cada enunciado, antes pressupõe a apreensão dos sentidos gerados em um processo de interação. Em seus elementos constitutivos, verbal e visual atuam conjuntamente na construção dos sentidos da narrativa, de forma que palavras, formato, traços e cores convocam um olhar mais atento para as articulações dos sentidos que emergem dessas materialidades na composição enunciativa da obra. Portanto, é na interação texto e imagem que se potencializam os estímulos responsivos de construção de significados pelo leitor no ato de apreensão do todo da obra. A importância desse conectivo ganha visibilidade no pensamento expresso por Linden a partir da ideia de vínculo essencial:
A fórmula texto e imagem só tem alguma significação se for reconhecido nesse “e”, não a marca indiferente de uma colaboração acidental, mas o índice de um vínculo essencial entre os elementos heterogêneos do visível reunidos num mesmo suporte que está na origem da escrita (Linden, 2018, p. 89).
Esse índice de junção aponta para relação dialógica entre os elementos heterogêneos dos enunciados verbais e visuais nos espaços das páginas na obra. Ainda por meio dessa relação, abrem-se os caminhos por onde se efetivam o dinâmico contato do leitor com a obra, resultante das associações entre os elementos constitutivos de cada enunciado. Do contínuo diálogo entre texto e imagem, é desencadeada uma nova experiência de leitura, pois, para além de substituir as palavras, a imagem é detentora do potencial de agregar aspectos ligados à representação do imaginário cultural encenado pela obra. Na pulsante forma dos traços e das cores, as linguagens se entrecruzam produzindo um efeito de complementaridade ou de contraponto em relação ao texto escrito.
Assim, por definirem o acontecimento da linguagem, conforme preconiza o pensamento bakhtiniano, as relações dialógicas ampliam a dimensão do sentido que envolve a palavra diálogo:
O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja” (Bakhtin, 2006, p. 127).
Tendo por base esse princípio de comunicação, na dimensão da palavra poética está a atuação da imagem na produção de sentidos que concordam, ampliam, reiteram, contradizem, enfim, de uma forma ou de outra, colaboram com o que fora dito com as palavras. Mesmo na convergência, essa colaboração se dá pelas ações de reflexão e de questionamento que se voltam para o verbal. Na dinâmica atuação da imagem, portanto, “no que se refere à comunicação, ela pode significar tanto quanto um gesto ou uma fala e, consequentemente, uma mensagem” (Ribeiro, 2008, p. 125). O consenso é de que a imagem se relaciona com a palavra não por uma perspectiva de anulação ou de substituição, mas, substancialmente, o que prevalece é a relação dialógica decorrente da interação entre seus elementos constitutivos. Sobre a especificidade dessas relações, Brait afirma:
As relações dialógicas constituem uma classe específica de relações entre sentidos, cujos participantes podem ser unicamente enunciados completos ou vistos como completos, e por trás dos quais estão os sujeitos discursivos. Consequentemente, a compreensão de um enunciado é sempre dialógica [...]. Esse jogo dramático das vozes, denominado dialogismo ou polifonia, ou mesmo intertextualidade, é uma forma especial de interação, que torna multidimensional a representação e que, sem buscar uma síntese do conjunto, mas ao contrário uma tensão dialética, configura a arquitetura própria de todo discurso (Brait, 2003, p. 25).
Formulado nesses termos, esse traço distintivo gera o entendimento de que as relações dialógicas engendradas entre os enunciados verbais e visuais desvelam os sentidos da narrativa e apontam para o jogo dramático dessas duas vozes que contam a história na densidade da palavra e da ilustração, revelando, portanto, marcas da hibridez de um texto verbo-visual. Em suas dimensões, texto e imagem intensificam o processo de apreensão em um contínuo ressignificar, fruto das diferentes relações entre esses enunciados nos espaços das páginas.
Ao acompanhar o texto, a intervenção da imagem na construção dos significados da narrativa opera no sentido de descrever, representar e simbolizar elementos convocados pelo verbal e têm seus sentidos intensificados pelos recursos do visual. Dessa forma, “a imagem tem algo de ícone, de índice e de símbolo” (Camargo, 2014, n.p.). Nesse sentido, o autor corrobora o potencial enunciativo da ilustração como imagem, sendo ícone, quando imita a aparência do visual; índice, quando assume uma relação de causa e feito com o objeto; ou atuando como símbolo, quando tem “significados convencionais, isto é, estabelecidos culturalmente, por convenção” (Camargo, 2014, n.p.). Nessas diferentes manifestações, a ilustração revela um caráter polissêmico que se reverbera no jogo com o verbal para o qual o leitor é atraído para se envolver e participar de um intenso diálogo em todas as nuances estéticas. É considerando essa dinamicidade de leitura que Linden (2018) aponta para a formação do leitor como um pressuposto para se efetivar a leitura do livro ilustrado:
Assim, ler um livro ilustrado não se resume a ler texto e imagem. É isso e muito mais. Ler um livro ilustrado é também [...] associar representações, optar por uma ordem de leitura no espaço da página, afinar a poesia do texto com a poesia da imagem, apreciar os silêncios de uma em relação à outra... Ler um livro ilustrado depende certamente da formação do leitor (Linden, 2018, p. 9).
Realizar o afinamento poético entre texto e imagem, bem como apreciar seus silêncios no jogo da narrativa é participar ativamente de um diálogo entre os enunciados constitutivos da materialidade da obra. Em A boca da noite, esse diálogo já é acionado pelos recursos estéticos do projeto gráfico que se anunciam no formato da capa, nas guardas e nas cores presentes nos elementos paratextuais. Assim, esteticamente integrados, tais recursos possibilitam um contato de apreciação inicial da narrativa e atuam na construção de um espaço interacional entre a obra e o leitor.
Em face desse produtivo diálogo entre enunciados, texto e imagem, segundo Linden (2018), ainda podem estabelecer relações de redundância, de colaboração e de disjunção. Trata-se de relações que desvelam diferentes caminhos por onde se instauram diálogos perpassados pela repetição, pela complementação ou, ainda, pela contradição.
A relação de redundância pode ser total ou parcial. Quando a redundância é total, prevalece um estado de isotopia narrativa, de forma que “nada no texto ou na imagem vai além do outro” (Linden, 2018, p. 120). Nesse diálogo, há uma sobreposição total dos conteúdos, impedindo assim, a produção de um sentido suplementar. Na sobreposição parcial, “Uma das duas vozes narrativas pode ser amplamente dominante sem que a outra contrarie seu desenvolvimento” (Linden, 2018, p. 120). Embora haja a congruência do discurso, um se sobressai em relação ao outro.
Na relação de colaboração, a ideia dominante é a de que “textos e imagens trabalham em conjunto em vista de um sentido comum. Articulados, textos e imagens constroem um discurso único” (Linden, 2018, p. 121). Em consonância com o um estado de colaboração, o sentido não se vincula ao texto ou à imagem de forma dissociada, mas se constitui na relação entre os dois. Identificar essa relação pressupõe reconhecer o que se sobressai como força estética e o que se omite na manifestação de cada enunciado.
Na relação de disjunção, texto e imagem tanto podem seguir por vias narrativas paralelas quanto podem entrar em contradição entre si. No primeiro caso, “Texto e imagem não entram em estrita contradição, mas não se detecta nenhum ponto de convergência” (Linden, 2018, p. 121). Assim, a atuação desses enunciados é contrária à sobreposição identificada na redundância. Na contradição, há a abertura de lacunas a serem preenchidas pela atuação do leitor no ato de apreensão da obra.
Nessas articulações entre enunciados, além das relações, texto e imagem também exercem funções de repetição, seleção, revelação, contraponto, amplificação e completiva. A função de repetição ocorre quando “a mensagem veiculada pela instância secundária pode apenas repetir, em outra linguagem, a mensagem veiculada pela instância prioritária. A leitura da segunda mensagem não traz então nenhuma informação suplementar” (Linden, 2018, p. 123). De acordo com essa classificação, trata-se de uma função que remete à redundância, pois a impressão é a de se estar lendo a mesma mensagem, porém de outra maneira.
Na seleção, o texto cumpre a função de “mencionar apenas alguns elementos específicos de uma imagem”. Em contrapartida, “imagem pode se concentrar em um aspecto, um ponto de vista preciso da narrativa” (Linden, 2018, p. 123). Portanto, no ato de selecionar, texto e imagem trabalham com a ideia de ancoragem do sentido sobre elementos para os quais se tensionam os rumos da narrativa.
Relacionada à visibilidade que o texto dá à imagem, na função de revelação, “o aporte do texto ou da imagem pode assim revelar-se indispensável para a compreensão um do outro que, sem sua contraparte, permanece obscuro” (Linden, 2018, p. 123). Numa contínua dialogicidade entre o verbal e o visual, um dos enunciados cumpre a função de dar sentido ao outro.
Na função completiva, a intervenção ocorre no sentido de determinar a ação do conjunto. A tarefa a ser cumprida é a de uma expressão completar a outra, ou seja, “fornece informações que lhe faltam, preenche suas lacunas ou ‘brancos’, constituindo um aporte indispensável para a compreensão do conjunto” (Linden, 2018, p. 124). Desse diálogo resulta um eficiente trabalho de colaboração entre o verbal e o visual na sequência narrativa.
Como o próprio nome informa, na função de contraponto “uma das expressões pode se caracterizar como contraponto da outra, particularmente por uma quebra das expectativas geradas pela instância da primeira” (Linden, 2018, p. 125). Embora prevaleça a ideia de contraponto, o diálogo entre o verbal e o visual não se elimina, pois a condição para que um se sobressaia é ter o outro como projeção.
Na função de amplificação, o diálogo entre texto e imagem ocorre no sentido de um enunciado poder “dizer mais que o outro sem contradizê-lo ou repeti-lo” (Linden, 2018, p. 125). A ideia de amplificação, remete à possibilidade de um enunciado estender sua compreensão convocando para si um discurso suplementar, enriquecendo, assim, sua interpretação.
Identificar a capacidade do texto e da imagem expressar os sentidos que estruturam o projeto narrativo deve ultrapassar uma análise que reduz toda a dimensão estética do livro ilustrado para a identificação dos elementos constitutivos de cada enunciado. Contrariando esses limites, a proposta é projetar o olhar para os níveis de significação gerados no diálogo entre verbal e visual. Nesse sentido, a autora adverte que a apresentação de cada função “não deve nos fazer supor que sejam unilaterais ou compartimentadas. Muitas vezes, texto e imagem cumprem simultaneamente, um em relação ao outro, uma função – distinta – que se realiza no percurso da leitura” (Linden, 2018, p. 126). Portanto, o que ganha especial relevância é a atuação dialógica, pois, mesmo diante de uma relação de disjunção, há de se considerar que um enunciado sempre se posiciona em relação ao outro.
Daí a importância de considerar a tecitura dialógica, ou seja, o diálogo entre os enunciados, cujo princípio constitutivo, de acordo com Bakhtin, “não é a enunciação monológica individual e isolada, mas a interação de pelo menos duas enunciações” (Bakhtin, 2006, p. 152). Assim sendo, o caráter de univocidade não constitui espaço de análise nas relações entre os enunciados, antes prevalece a natureza dialógica também apontada por Linden a partir da ideia da articulação: “O texto e as imagens, visto em separado, são sempre claros, evidentes. A articulação entre eles é que cria tantas armadilhas de significado” (Linden, 2018, p. 127). Na relação texto e imagem na obra, isso se revela pelo princípio da articulação, de forma que a atuação não é excludente e monológica, mas sempre dialógica e colaborativa. É pelas articulações que se abrem os espaços lacunares para a apreensão dos sentidos e construção dos significados pelo leitor.
É na esteira desse entrelaçamento teórico alicerçado no dialogismo e nas relações e funções do texto e da imagem que se estrutura a análise proposta por esta abordagem. Por essas vias de apreensão é possível identificar como se revelam as relações dialógicas entre os enunciados verbais e visuais na obra A boca da noite, problematizando, nessas relações, os sentidos que emergem dos diálogos de redundância, colaboração e disjunção entre o texto e as ilustrações, bem como as funções de repetição, seleção, revelação, contraponto, ampliação e completiva que texto e imagem assumem na condução da narrativa.
O livro A Boca da Noite, escrito por Cristino Wapichana e ilustrado por Graça Lima, é marcado pela representação de traços do imaginário e dos costumes de um povo, revestidos de camadas de significados que se traduzem nas palavras, cores e imagens que compõem a materialidade da obra. A narrativa se constitui a partir trajetória do protagonista Kupai, um menino curioso que vive intensamente as aventuras e descobertas da infância na vida cotidiana do seu povo, contornadas pelas histórias contadas pelo pai. Na confluência das histórias, embora a enunciação seja marcada pela voz do narrador protagonista, há o atravessamento de outras vozes que perpassam suas palavras e seu imaginário. Tal aspecto, pode revelar o que Bakhtin (2000) considera como um dado importante na obra literária: a palavra do outro sempre em tensão com a palavra do eu. Para o autor, a forma como o discurso do outro está integrado na narrativa revela as tendências sociais da interação verbal num grupo e numa época específica. Sob essa perspectiva, sobressai a ideia de que
a obra, assim como a réplica do diálogo, visa a resposta do outro, (dos outros), uma compreensão responsiva ativa, e para tanto adota todas as espécies de formas: busca exercer uma influência sobre o leitor, convencê-lo, suscitar sua apreciação crítica (Bakhtin, 2000, p. 298).
Em sua configuração, a apreciação crítica suscitada emerge da rede de significados tecida com os fios do verbal e do visual, cuja trama já se revela nos elementos constitutivos da paratextualidade da obra. A tensão vivida pela personagem na sua busca em compreender o universo que o rodeia e o constitui é projetada para as imagens que se desdobram na capa, na contracapa e nas guardas:

A predominância das cores vermelha e preta tensiona a relação de significados entre o pequeno Kupai e o espaço marcado pela presença mítica da boca da noite. Na narrativa, a explicação repassada pelo pai de que “existem dois mundos: o mundo do dia e o mundo da noite, e o que divide um mundo do outro é a boca da noite” (Wapichana, 2016, n.p), ganha projeção nas cores, nas imagens e no projeto gráfico, como anúncio imagético do universo do personagem. A proposta enunciativa do projeto gráfico na obra encontra eco nas seguintes formulações teóricas:
O projeto gráfico de um livro propõe seus espaços, compostos por textos e imagens, e constrói um ambiente a ser percorrido. No passar das páginas, o projeto gráfico nos indica uma ideia de ler, isto é, uma ideia de um tempo para se olhar cada página, de um ritmo de leitura por meio do conjunto de páginas, de um balanço entre o texto escrito e a imagem, para que, juntos, componham e conduzam a narrativa (Moraes, 2008, p. 50).
Na proposta de conduzir a narrativa, os espaços propostos pelo projeto gráfico em A boca da noite dão indícios dos caminhos a serem percorridos na leitura dos enunciados verbais e visuais que também compõem as materialidades da obra. A trajetória do pequeno Kupai nos desdobramentos da contracapa tem continuidade, como um movimento sem interrupções, na quarta capa e segunda orelha, uma possível referência ao processo de descobertas vivenciado pelo protagonista:

O caminhar do menino por entre as grandes árvores vem acompanhado da ideia de busca, pois esta é a grande aventura vivida pelo personagem na narrativa, a busca por uma resposta que o leve a compreender o que é e como é a boca da noite. Uma busca projetada na visualidade de uma caminhada contínua que atravessa as extremidades do projeto gráfico do livro.
Com essas características, o projeto gráfico atua como elemento da composição literária, visto que “pode colaborar com os significados da narrativa, pois possui uma materialidade que permite, entre outros aspectos, a interação com o público” (Megnegazzi; Debus, 2020, p. 26-27). Em suas especificidades constitutivas, formato, cores e imagens apontam para a dinâmica das linguagens verbal e visual e o papel que exercem na apreensão significativa da obra. É a partir dessas relações dialógicas que a compreensão de projeto gráfico ganha um contorno diferenciado, sobretudo no que diz respeito às vias de acesso à compreensão do leitor pela obra. Logo, por ser a via imediata de acesso, convoca para si o papel de suscitar o primeiro olhar de encantamento sobre a sua materialidade.
É na dimensão do diálogo entre as cores, as imagens e a narrativa que a obra A boca da noite envolve o leitor nas histórias narradas pelo pequeno Kupai, a partir das aventuras vividas com seu irmão Dum. Essa trajetória se inicia com a visita que ao dois fazem às escondidas ao lugar proibido do cume da Laje do Trovão:
Do alto da Laje do Trovão, podíamos ver nossa aldeia toda – e da aldeia também dava para ver quem estava lá em cima. Se fosse uma criança que estivesse lá, logo apareceria algum adulto para resgatar e trazer para a aldeia em segurança. Era muito perigoso ir lá em cima, mas Dum sempre conseguir chegar ao alto da laje sem ser notado (Wapichana, 2016, n.p).
A visão que se descortinava às crianças no cume da Laje do Trovão era da beleza do universo que os envolvia. De lá, podiam ver toda a aldeia e a imensidão da natureza que os olhos alcançavam ver: rio, floresta e todo o espaço da aldeia estavam sob seus olhos. Contudo, a imagem do sol mergulhando no rio foi a que marcou a visão dos meninos naquele lugar, suscitando reflexões e indagações no pequeno Kupai sobre o que, aos seus olhos, seria uma manifestação humanizada da natureza, um ritual realizado no final da tarde: “Foi assim que vi, pela primeira vez, o sol entrando no rio para se banhar” (Wapichana, 2016, n.p). A imersão do sol nas águas do rio veio acompanhada de um toque do encanto do sol colorindo as águas: “Só sei que, quando o sol tocou no rio, foi ficando da cor do fogo! Depois ele foi se esticando, bem comprido, e colorindo as águas do rio” (Wapichana, 2016, n.p). A visão de Kupai e Dum ganha materialidade por meio do diálogo que se instaura entre o verbal e o visual por meio das cores e dos traços das imagens:

Os contornos sombreados de Kupai e Dum no cume da Laje do Trovão contrastam com a amplitude do cenário que ganha a dimensão das cores e elementos que preenchem o olhar de descoberta dos meninos. No diálogo com o verbal, as imagens atuam no sentido de “expandir ou propor uma visualidade nova para o que está dito com as palavras” (Ramos, 2011, p. 146). Articulados, texto e imagem convergem para a projeção do ponto de vista do leitor sobre a visão do protagonista, um eficiente recurso para gerar o efeito de proximidade entre o leitor e a história contada.
Como via de experimentação estética, cores e imagens redimensionam para o enunciado verbal o olhar de êxtase do personagem diante da cena do sol entrando rio e o efeito colorido provocado nas águas. Nessa dimensão, em relação à imagem, o texto exerce a função de revelação ao expressar a visão extasiada das duas crianças diante da natureza que se revelava diante de seus olhos. Ao atuar nessa função, “uma das duas instâncias pode realmente dar sentido à outra” (Linden, 2018, p. 123). Entre outros aspectos, esse sentido se intensifica nas poucas palavras empregadas para narrar a visão de Kupai que ganha toda a projeção da imagem em traços e cores vibrantes.
A marca da tradição oral é uma presença já anunciada na dedicatória da obra pela referência à memória e aos mágicos ensinamentos transmitidos de um pai para um filho. Portanto, como elemento paratextual, a dedicatória atua como liame das relações de sentido com a narrativa, “em função de contextualizar e reforçar assuntos da história” (Megnegazzi; Debus, 2020, p. 46). Essa contextualização se dá pelos indícios da transmissão de ensinamentos nas histórias contadas que instigam a curiosidade do personagem que encontra na figura do pai a fonte das respostas para todas as suas indagações. Na narrativa, são os elementos dessas histórias que ganham vida no imaginário do pequeno Kupai e acionam a sua busca em compreender o universo que o rodeia.
O medo que todos tinham de serem atingidos pelas flechas de raios que desciam do céu fazia com que o cume da Laje fosse temido e o acesso proibido a todos. Com esses episódios, a narrativa evidencia os elementos de manifestação da natureza que se revestem de divindade para povo de Kupai. A majestosa presença do sol e a projeção de raios e trovões ganham a representação simbólica da dimensão do poder sobrenatural que a natureza exerce sobre o homem. Diante da simbologia de que se reveste esses elementos e o perigo de subir até o cume da Laje, a desobediência não poderia ficar impune:

A autoridade do pai ganha o destaque da espacialidade dupla da página por meio da carga simbólica e semântica que dá contorno à ilustração. A imagem do pai em postura de advertência se sobressai com o colorido azul do cocar que sangra na página dupla e assume a extensão da sombra de Kupai, como uma projeção da autoridade do pai sobre o filho. Com a comunicação feita por meio do jogo de contraste entre os tamanhos do pai e do filho, da expressão do pai e da cor do cocar, a ilustração expande o verbal pela direta referência ao castigo, ou seja, à pena de carregar água por três dias.
Nesse diálogo entre verbal e visual, traços e cores acionam a imaginação do leitor no preenchimento dos espaços lacunares do texto verbal, reiterando a ideia de que, “o fundamental é que a ilustração cause deslocamento, provoque no leitor emoção e o faça imaginar e refletir a partir do que está narrado pelo ilustrador” (Ramos, 2011, p. 26). A reflexão provocada nos remete à ideia de que a ilustração pode evocar a tradição dos povos indígenas na valorização e no respeito aos que são detentores da sabedoria e evocam para si a responsabilidade de repassar os ensinamentos entre as gerações.
Portanto, na projeção da imagem, a ideia selecionada pelo texto é a do castigo vivido pelos personagens. Logo, nesse processo dialógico, a função desencadeada é a de seleção. Nesse caso, “o texto pode selecionar uma parte da mensagem da imagem” (Linden, 2018, p. 123). Essa camada de significados pode ser desvelada por meio da representação do cocar, na extensão e intensidade da cor como possíveis marcas dessa insubstituível autoridade que o filho deve refletir, uma possível metáfora na presença da cor azul no reflexo da sombra de Kupai.
Até esse momento, a trajetória de Kupai segue na busca de compreender a cena do sol mergulhando no rio: “Entrei no rio me lembrando da imagem do sol tomando banho. E logo foram surgindo várias perguntas na minha cabeça, que nem pipocas estourando” (Wapichana, 2016, n.p). Todavia, ao serem descobertos, outro foco de interesse é projetado pelo personagem, com um novo direcionamento para a trama narrativa. A descoberta da desobediência de Kupai e Dum na visita da Laje do Trovão ganha repercussão e dá novos rumos à narrativa devido à projeção das histórias contadas pelo pai sobre os perigos do lugar quando visitado. Na sequência, a projeção da narrativa é direcionada para a história sobre a boca da noite, foco da análise das relações e funções que emergem do diálogo entre o texto e as imagens.
Imagens e palavras constroem o significado da história e das histórias que perpassam toda a tecitura narrativa em A boca da noite. Ao encontro dessa configuração da narrativa, o dialogismo “define o texto como um ‘tecido de muitas vozes’, ou de muitos textos ou discursos, que se entrecruzam, se completam, respondem umas às outras ou polemizam entre si no interior do texto” (Brait, p. 31, 2007). No enlace das histórias, se no primeiro momento a projeção do foco estava voltada para a visão dos meninos na Laje do Trovão, a partir das indagações de Kupai sobre o banho do sol no rio, no desenrolar da história principal, o conflito narrativo ganha outro contorno. Essa mudança de rumo ocorre a partir do momento que Kupai ouve uma menção à boca da noite na história contada pelo pai: “Após o jantar, papai começou a contar uma história, e justo sobre a Laje do Trovão. [...] Foi nessa noite que ouvi falar pela primeira vez na “boca da noite” (Wapichana, 2016, n.p). Pela via da tradição oral, as histórias ganham vida e são engendradas no imaginário do protagonista que vive imerso na incessante aflição para compreender o verdadeiro significado da boca da noite e lhe atribuir uma forma. O momento encenado revela que o ato de contar histórias obedecia não só ao ritual do tempo marcado com o encontro dos membros da família após o jantar, mas também ao ritual da escuta, momento de aprendizagem representado na imagem dos dois irmãos:

Em um ato colaborativo, a comunicação feita pelo visual intensifica o significado do verbal. A posição dos personagens voltada contra à perspectiva do leitor dá o indicativo de que o elemento que os atrai não está no plano da visão, mas no plano do sentido da audição, a escuta propulsora da imaginação: “Eu nem estava prestando atenção na história que papai contava, mas, quando falou da tal ‘boca da noite’, tratei logo de acordar todos os meus sentidos que estavam quase dormindo” (Wapichana, 2016, n.p). Na ilustração, o momento flagrado é enriquecido com traços característicos de uma marcação étnica, como um registro identitário das tradições culturais de um povo que se identifica nas histórias repassadas entre as gerações.
No diálogo entre verbal e visual, a relação que se instaura entre o texto e a imagem é de colaboração. Nesse caso, “cada um, alternadamente, conduz a narrativa, ou cada um preenche as lacunas do outro. Interação de duas mensagens distintas para uma realização comum do sentido” (Linden, 2018, p. 121). Se o texto descreve o momento da contação de histórias, a imagem intensifica o momento de apreensão do personagem ao ouvir falar na boca da noite. Da alternância na condução da narrativa entre texto e imagem emerge o sentido do contar e do ouvir na construção do imaginário que impulsiona a vida do pequeno Kupai. Quanto à função, o diálogo entre os enunciados dá visibilidade à função completiva, visto que “O texto pode assim trazer um aporte determinante à significação do conjunto retranscrevendo os diálogos ligados a uma cena figurada pela imagem” (Linden, 2018, p. 124). Nesse aporte, a imagem dos dois meninos atentos à contação de histórias do pai globaliza o sentido expresso pelo texto ao anunciar o estado de tensão de Kupai ao ouvir sobre a boca da noite. Sob esse entendimento, a imagem assume a configuração de uma resposta ao texto e, sendo uma resposta, é também uma compreensão resultante de um diálogo. Em consonância com Bakhtin: “A compreensão responsiva é a fase inicial é preparatória para uma resposta (seja qual for a forma de sua realização” (Bakhtin, 2000, p. 291). Assim, texto e imagem participam de um diálogo e, por meio de uma relação de colaboração, a imagem dá continuidade ao sentido criado pelo texto, multiplicando, com isso, a riqueza do já-dito.
Em A boca da noite, os afinamentos entre as poesias do texto e da imagem revelam uma atmosfera gerada pela fusão do verbal com o visual, sobretudo nas passagens que representam os sonhos e o imaginário de Kupai. As inquietações em torno de uma ideia materializada da tal boca da noite tomaram conta dos pensamentos do personagem que insistiam em idealizar uma forma: “Fiquei imaginando como era o corpo da noite... Pois se tem boca, tem que ter cabeça, nariz, orelha, cabelo, braços, pernas, mãos, pés... Será que essas partes são parecidas com as do nosso corpo? Porque, se tem boca, deve haver um corpo!” (Wapichana, 2016, n.p). De tanto pensar, durante a noite, essas respostas vieram em forma de pesadelo, como algo aterrorizador e monstruoso gerando uma outra narrativa a partir de tudo o que lhe acontecera enquanto dormia. Nesse engendramento de histórias, a narrativa desvela o poder da palavra de gerar experiências vividas e sonhadas, como também produzir imagens que traduzem o inefável:

Resultante do afinamento poético entre texto e imagem, a experiência de apreensão segue por uma via que supera a leitura do verbal dissociada do visual. Na passagem, após narrar os momentos de aflição e medo vividos durante o pesadelo com a boca da noite, Kupai recorre à proteção da mãe: “– Calma Kupai! Mamãe está aqui. Foi só um sonho ruim! Volte a dormir” (Wapichana, 2016, n.p). O gesto de proteção da mãe é revestido de uma atmosfera sobrenatural na composição do cenário, na projeção das cores e nas configurações visuais empregadas nos traços que dão forma à imagem. Ao encontro dessa configuração, Graça Lima pontua: “A imagem cria a atmosfera do texto e desse modo o potencial imaginário do leitor passa por variações plasticamente distintas” (Lima, 2008, p. 41). Na representação imagética da passagem, constituída por imagens ricas de significado, todos os elementos convergem para a criação da atmosfera onírica narrada. Para a expressão do sonhado, a luminosidade do azul celeste que reveste os personagens contrasta com a cor da noite ornamentada com o céu estrelado que embala mãe e filho.
Ao associar a educação do espírito com a educação para sonhar, Daniel Munduruku confere ao sonho um aspecto relevante da vida indígena. A importância do sonho é transmitida com a retomada dos ensinamentos do avô: “Meu avô diz que é a linguagem que nos permite falar com nós mesmos. Para ele, o sonho era nossa garantia da verdade. Para mim o sonho sempre será o locus onde as histórias ganham realidade” (Munduruku, 2008, p, 109). Uma possível proximidade estética com a narrativa em A boca da noite pela configuração desse locus no universo de Kupai, pois é no sonho que a história sobre a boca da noite ganha a dimensão da realidade moldada no seu imaginário.
Emoldurada com traços e cores que evocam o onírico, o diálogo entre texto e imagem se revela por meio da função de amplificação que ocorre quando um enunciado “diz mais que o outro sem contradizê-lo ou repeti-lo [...] trazendo um discurso suplementar ou sugerindo uma interpretação” (Linden, 2028, p. 125). Sob esse formato, a experiência de leitura transmitida pela imagem torna compreensível a possibilidade de ampliação ou superação do visual sobre o verbal, conforme defende Lima: “A ilustração é uma forma de arte visual que, por sua criatividade, colorido, projeção, estilo ou forma, amplia, diversifica e pode até, por vezes, superar a própria leitura do texto narrado” (Lima, 2008, p. 41). Essa possível superação revela-se nos sentimentos despertados pela percepção da cor e dos demais elementos visuais que compõem a atmosfera que serve de moldura para todo o cenário.
Como se pode perceber, no processo de significação entre o verbal e o visual, a imagem se sobressai na captação do tema sugerido pelo texto. Nesse sentido, torna-se compreensível o pressuposto teórico de Bakhtin (2006) sobre o dialogismo no sentido de ampliar o perfil das relações dialógicas que tanto podem ser de convergência ou de divergência. A proximidade ou o distanciamento se dá pelo fato dessas relações serem tecidas por diferentes fios que se entrecruzam na constituição dos sentidos da narrativa.
Assim, na comunicação da mensagem transmitida pelo texto, a apreensão segue pela via dupla por onde, segundo Ramos, “entram em cena tanto as qualidades intrínsecas do que é visto como as atribuições dadas por aquele que vê” (Ramos, 2011, p. 48). A arte da ilustração, portanto, constitui-se desse potencial de propiciar a experiência estética, de suscitar o questionamento, de preencher lacunas, enfim de intervir na construção de significados. Por meio de formas e cores, a ilustração expressa o escrito, o sonhado e o imaginado, transcende as fronteiras do que é materializado pelas palavras, impulsiona a leitura criadora resultante da percepção única realizada por cada leitor. Tai aspectos evocam as relações dialógicas, também compreendidas a partir de questões ligadas ao tema e à significação:
A significação é um aparato técnico para a realização do tema. Não há tema sem significação, e vice-versa. Além disso, é impossível designar a significação de uma palavra isolada sem fazer dela o elemento de um tema, isto é, sem construir uma enunciação (Bakhtin, 2006, p. 134).
Com base nessa explicação, o tema se apresenta como o elemento único da enunciação, não é reiterável, mas é a expressão da situação concreta de constituição do enunciado. Somente a enunciação tomada em toda a sua amplitude possui um tema. Integrando a composição cromática da obra, as cores convocadas atuam na construção do tema e interferem nas categorias narrativas, entre outros aspectos, como elementos da composição espacial e temporal.
Em A boca da noite, após a noite de pesadelo do Kupai, a sequência narrativa é marcada pela presença do intenso amarelo como referência à luz de um novo dia a ser enfrentado pelo personagem. Dessa forma, a interação entre palavra e imagem resulta em uma apreensão mais significativa da obra em suas diferentes nuances de cores e imagens, conforme revela a passagem:

A luminosidade produzida resulta do contraste das cores que evocam a ideia do tempo transcorrido. Na materialização desse efeito, o intenso amarelo atua como ponto da dinâmica temporal da narrativa. Se a noite de Kupai fora marcada pelo medo do desconhecido, o novo dia trazia o conflito de enfrentar os questionamentos e a curiosidade dos que ansiavam por uma explicação acerca dos tormentos vividos pelo pequeno:
Acho que não demorou muito para o sol acordar a gente.
Que bom que tem o sol para ajudar os nossos olhos a ver tudo.
Quando levantei, vi que todos me olhavam, curiosos para saber o que tinha acontecido comigo à noite. Não teve jeito. Tive que contar com detalhes aquele pesadelo para toda a família à beira do fogo. Riram muito depois que contei. Especialmente meu pai. Mas não deixei barato também. Olhei para meu pai e fui logo perguntando, sem rodeio, o que era a “boca da noite”? (Wapichana, 2016, n.p).
A repetida menção ao sol no enunciado verbal é materializada no amarelo cromático que predomina na composição do cenário. Na transição da noite para o dia a narrativa marca a continuidade da aflita busca do personagem em desvendar o mistério da boca da noite. Nos elementos convocados, a imagem amplia a ideia do contexto da cena narrada, por meio de referências que evocam o momento vivido naquele espaço.
No contraste das cores, a perspectiva do olhar reproduzido pela ilustração aproxima essa memória do tempo, tanto pela presença de elementos que remetem à noite, quanto pela predominância da corna composição de partes do cenário que remetem ao dia. Com essas características, a relação dialógica entre texto e imagem é de redundância parcial, pois, de acordo com Linden (2018), embora haja a congruência dos discursos, um deles se sobressai em relação ao outro. Na passagem, os recursos empregados na composição do enunciado visual intensificam os sentidos suscitados pelo verbal. Sobre o potencial desses recursos, Ramos afirma: “A imagem torna-se mais rica quando explora as potencialidades expressivas de linha, cor, forma, criando ritmos visuais. Esses elementos plásticos contribuem para estruturar a narrativa” (Ramos, 2011, p. 146). Portanto, ao estruturarem a narrativa, essas potencialidades também auxiliam na apreensão de todas as nuances poéticas que envolvem o verbal e o visual.
Ainda como intervenção significativa das cores, o contraste entre noite e dia também marca as ilustrações do cenário onde ocorre o diálogo entre pai e filho, no momento quando Kupai recebe a explicação sobre o que seria a boca da noite:
– Boca da noite é quando o sol se despede e a noite vai tomando seu lugar no mundo. A boca da noite é muito importante para a gente descansar, sonhar. Ela reúne a família para jantar e depois todos dormem juntos e a noite deixa o céu cheinho de estrelas” (Wapichana, 2016, n.p).
Descrita como um tempo de transição entre o dia e a noite, a boca da noite traz consigo o ritual da despedida do sol e da chegada da lua, representado na configuração do colorido das páginas e nos elementos integrantes de cada tempo:

Na configuração das páginas, imagens e cores traduzem os limites da marcação temporal que evocam a ideia da boca da noite. Nessa conjunção verbo-visual, a imagem do pai repassando o ensinamento ao filho intensifica o sentido da narrativa: “Papai olhou pra mim e tentou me explicar enquanto terminara de se preparar para o trabalho” (Wapichana, 2016, n.p). A relação de sentidos com a narrativa se instaura com as imagens por meio dos ornamentos identitários do pai, sobretudo pela presença do cocar que se reveste de simbologia, um indicativo de respeito e de autoridade para ensinar.
Dessa forma, os ornamentos indígenas atuam na formalização de um sistema cultural na tecitura narrativa. Nesse caso, em sua função simbólica, a proposta da linguagem visual, segundo Ciça Fittipaldi, é “sugerir significados sobrepostos aos referentes, muitas vezes determinados por convenções culturais” (Fittipaldi, 2008, p. 113). Assim, para além de uma mera referência decorativa, os ornamentos do pai evocam sentidos de autoridade e experiência. No contexto ficcional, é por meio das histórias contadas pelo pai que o filho vive a experiência do primeiro contato com “a boca da noite”. De palavra ouvida e pronunciada, a boca da noite passa a ser sentida e imaginada, mas só pode ser compreendida pela explicação de quem é detentor da sabedoria, para quem o pequeno Kupai direciona suas buscas por respostas.
A função de repetição marca o alinhamento discursivo entre verbal e visual, pois, conforme evidenciado, “A leitura da segunda mensagem não traz então nenhuma informação suplementar, e o leitor tem a sensação de ler a mesma mensagem de outra maneira” (Linden, 2018, p. 123). Embora essa função tenha proximidade com a relação de redundância, com sobreposição total dos conteúdos, a autora salienta a importância de considerar os efeitos produzidos na leitura dessa função, bem como as lacunas que se abrem para novas interpretações.
Por essa via de desvelamento das imagens, a leitura das metáforas visuais é um profícuo caminho para a apreensão significativa dos diferentes tipos de diálogos que se instauram entre texto e imagem na obra. É nesse sentido que Salisbury e Styles ressaltam a atuação dos leitores na interpretação dos símbolos visuais: “não é de se surpreender que, quando confrontados com complexos textos multimodais, [...] tentem descobrir como as imagens podem simbolizar alguma coisa, ou como palavras e imagens juntas podem construir algum significado” (Salisbury; Styles, 2013, p. 81). Na obra, a singularidade dos elementos de composição dos enunciados verbais e visuais, como marcas representativas de uma tradição cultural, é determinante para que palavras e imagens conjuguem os significados da narrativa.
No engendramento poético entre texto e imagem na obra A boca da noite, as palavras, as cores e a forma das ilustrações intensificam o diálogo de onde emergem relações de redundância e colaboração da imagem em relação ao texto e funções de repetição, seleção, revelação, amplificação e função completiva do verbal em relação ao visual.
Na materialização dessas relações dialógicas, diferentes recursos foram convocados a fim de produzir os efeitos responsáveis pela proposta enunciativa da obra. Como elemento integrante desse diálogo, as cores aderiram à estratégia de provocar uma relação de redundância por provocarem uma certa congruência com os sentidos suscitados pelo verbal. De um modo geral, texto e imagem participam de um diálogo colaborativo na condução da narrativa. Todavia, o perfil desse diálogo se intensifica à medida que a imagem cumpre o papel de preencher as lacunas deixadas pelo verbal, produzindo, assim, uma relação de colaboração entre os enunciados.
Na execução de suas funções, texto e imagem assumem papéis diferenciados que vão da repetição à amplificação dos sentidos produzidos por um em relação ao outro. De qualquer forma, essas diferentes reações são resultantes das relações dialógicas entre o texto e a imagem que podem ser consensuais, convergentes ou apontarem para uma participação mais intensa de um em face do outro, produzindo, assim, um efeito de superação. Tão densa quanto as demais, a função de seleção faz aflorar elementos que se encontram nas entrelinhas do narrado. Nessa convocação, a imagem traz consigo, entre outros aspectos, o elemento simbólico que se reveste de um significado convencionalmente estabelecido pelo contexto étnico-cultural encenado. A imagem do cocar assume essa função diante do texto que seleciona a experiência do castigo do personagem pela desobediência à autoridade do pai. Numa atitude de superação, o enunciado imagético intensifica os sentidos tecidos pelo verbal, gerando diferentes vias de acesso às camadas de significação da narrativa.
Ao revelarem suas relações e funções, texto e imagem desvelam um dinâmico processo de interação capaz de potencializar os estímulos responsivos na construção de significados pelo leitor. O efeito produzido resulta de uma ação conjunta de elementos articulados entre as duas linguagens, delineando, assim, a ideia de diálogo sustentada pelo pensamento bakhtiniano, entendido sempre como uma reação, um ponto de tensão que se opõe ao passivo, ao inerte e ao solitário. Portanto, as relações dialógicas que se instauram entre os enunciados verbais e visuais na obra são relações de sentido geradoras de outras relações e funções responsivas de um enunciado em face do outro.







