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CRÍTICA POLIFÔNICA E CÍRCULOS DOS DISCURSOS: PERCURSOS TEÓRICO-ENUNCIATIVOS DE METODOLOGIA DIALÓGICA NO BRASIL
Muiraquitã, vol. 11, núm. 2, pp. 281-296, 2023
Universidade Federal do Acre

Dossiê

Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade is licensed under CC BY-NC-ND 4.0

Recepción: 07 Septiembre 2023

Aprobación: 03 Diciembre 2023

DOI: https://doi.org/10.29327/266889.11.2-16

Resumo: Este trabalho define um novo modelo de análise literária no Brasil: a Crítica Polifônica. Desenvolvida ao longo dos anos, com pontos de contato com a Análise Dialógica do Discurso, ela se espraia por brasis liminares. Na aproximação entre campos da área de Letras, a crítica polifônica, revisando o constructo bakhtiniano, reformula-se com a recepção criativa de Machado de Assis em respondibilidade a Dostoiévski. No século do mal-estar da cultura – XX – Pessoa, Borges, Calvino; Cândido, Schnaiderman e Bezerra; Freud, Benjamin e Einstein contemplam as ideias de polifonia e multiplicidade. Em contexto de reprodutibilidades digitais pós-pandêmicas, a adoção de novos meandros da matriz bakhtiniana faz com que o fenômeno discursivo e literário se revele em inacabamento, responsividade e liberdade. No encontro da Análise Dialógica do Discurso com a Crítica Polifônica, as experiências humanas (históricas e culturais) vividas no alvorecer deste novo milênio, constituem esse modelo teórico-metodológico para o pensamento dialógico no Ocidente.

Palavras-chave: Crítica polifônica, Bakhtin, Dialogismo, Análise Dialógica do Discurso.

Abstract: This work defines a new model of literary analysis in Brazil: Polyphonic Criticism. Developed over the years, with points of contact with Dialogical Discourse Analysis, it spreads across liminarity brasis. In the betwixt and between the area of Literature, polyphonic criticism, reviewing the Bakhtinian construct, reformulates itself with the creative reception of Machado de Assis in responsibility to Dostoyevsky. In the century of civilization and its discontents – 20th – Pessoa, Borges, Calvino; Candido, Schnaiderman and Bezerra; Freud, Benjamin and Einstein contemplate the ideas of polyphony and multiplicity. In the context of post-pandemic digital reproducibility, the adoption of new bakitinian complexities makes the discursive and literary phenomenon reveal itself in incompleteness, responsiveness and freedom. In the encounter between Dialogical Discourse Analysis and Polyphonic Criticism, human experiences (historical and cultural), lived in the beginning of the new millennium, constitute this theoretical-methodological model for dialogic thinking in the Western.

Keywords: Polyphonic criticism, Bakhtin, Dialogism, Dialogic Discourse Analysis.

INTRODUÇÃO

A relação dialógica entre o literário e a crítica literária reverberam de modo dinâmico e multíplice na trajetória de Mikhail Bakhtin. A Crítica Polifônica, o método empreendido ao longo da vida do estudioso, transparece como forma contínua de buscar sabedoria. Sua concepção de mundo evoca uma metodologia da polifonia como conhecimento e responsividade. A crítica polifônica busca estabelecer o pensar da vida, da arte e da ciência, pela palavra, como uma rede de conexões entre vozes e corpos, fatos e pessoas, personagens e narradores, coisas do discurso e manifestações do cotidiano. Na alteridade, o ser está sempre na sua relação com o inacabamento. A consciência de si mesmo, evocando a existência do outro, entoa uma verdadeira paixão pela palavra viva diante das experiências no social. Nos estudos sobre Rabelais e Dostoiévski, pesquisas que atravessaram sua vida inteira, duas palavras, dois termos chamam a atenção: liberdade, no primeiro; dialogismo, no segundo. Todo o pensamento da polifonia, ou seja, de Mikhail Bakhtin, ampara-se nessas experiências discursivo-volitivas do inacabamento.

A Crítica Polifônica envolveu e envolve o mesmo processo empenhado por Mikhail Bakhtin, que passou a vida toda “repensando o próprio pensamento”. Com esse propósito, utilizamos, de forma dialógica, o método bakhtiniano de tradução adotado pelo Prof. Paulo Bezerra. Ao retraduzir Bakhtin, estabelecendo novas edições, ele setoriza textos que saíram em livros anteriores com novas propostas de organização editorial e retraduz termos de crítica e de teoria. A ideia da Crítica Polifônica é justamente esta: retomar as ideias, as experimentando em novas teses e novas composições. Diante da hipótese nova, uma tese nova acontece em inacabamento e liberdade[1].

A Crítica Polifônica, pois, investiga as ricas possibilidades gestadas no encontro eu-outro e, nesse propósito, aproxima-se de vários círculos do começo do século XX: 1) o círculo de Bakhtin – formado basicamente por seus interlocutores mais imediatos, dentre os quais damos destaque a Volóchinov (1895-1936) e Pável N. Medviédev (18911938) e, ainda, I. Kanaev, pseudônimo que, ao que tudo indica, seria do próprio Bakhtin. Há, também, como agravante, a história de que seus escritos foram alterados pelos dois pensadores mencionados; 2) em uma Rússia distinta, o círculo formalista, marcado por trabalhos de diversos autores em rede, constituiu-se um novo enfoque para se pensar a linguagem: o ser em um processo de comunicação interativa passa a apontar para interfaces com o discurso citado em R. Jakobson; estilização, skáz, noções de construção em I. Tinianov; Teoria da Prosa e o fazer literário com B. Eikhenbaun; o fantástico, a fantasia e a construção do conto em Propp; a arte e a construção da prosa como procedimento (V. Chklovski); o “discurso Dialogado, em Iakubinski; “Monólogo X Diálogo” em Vinogradov (Toledo, 1973). 3) e, enfim, o círculo a que chamamos de polifônico: envolvendo pensadores do século XIX, Dostoiévski, Nietzsche e Machado de Assis; e pensadores do século do mal-estar na humanidade, o extremo século XX – com Freud, Fernando Pessoa, Walter Benjamin, Einstein e as pensadoras e escritoras Virgínia Woolf, Lou Andreas-Salomé, Simone de Beauvoir e Clarice Lispector.

Na projeção da respondibilidade, no campo das ideologias, somente o outro pode me reconhecer na minha corporalidade (tridimensionalidade) e, ao mesmo tempo, é esse outro que me define, me enforma, me narra: “Compreender esse mundo como mundo dos outros, que nele concluíram as suas vidas – o mundo de Cristo, de Sócrates, de Napoleão, de Púchkin etc. –, é a primeira condição para uma abordagem estética do mundo” (Bakhtin, 2011, p. 102). Há, na elaboração ético-estética de um conhecimento de mundo, um esforço multíplice posto que processado por uma visão pessoal em busca de outridades. Nosso percurso caminha por essas vidas concluídas e vias inacabadas.

Recobramos as poéticas socrática e luciânica para repensar práticas e perspectivas discursivo-enunciativas em tempos de potencial liberdade carnavalizada cerceada. Da confluência de tais referentes, retomamos compreensão de que “de certo modo, respondendo a Sócrates, que pregava a expressão conhece-te a ti mesmo, Bakhtin a transforma e a atualiza a máxima na modernidade: conhece o outro e assim conhecerás a possibilidade de se conhecer” (Silva Junior; Medeiros, 2015, p. 231). Nesse sentido, Bakhtin reformula o método maiêutico e fundamenta a condição (e não sistema) dialógica do discurso. Essa base estrutural da linguagem, do exercício crítico e, por extensão, de toda a atuação humana nas relações de respondibilidade, aponta para a prosaística que, por sua vez, nos leva ao campo da Análise Dialógica do Discurso. Ao movimentar conexões comunicativas e estilizadas, Bakhtin apontou para o dialogismo em consciência pensamental de uma arquitetônica. Sua teoria filosófica geral da linguagem alimenta as análises dos gêneros do discurso e da composição dos gêneros dialógicos.

Em sua cruzada filosófico-filológica, Bakhtin teria sido o primeiro pensador a empreender uma análise que, em nossa mirada, nomeou-se Crítica Polifônica. Seu método dialógico, extraído da prosa de ficção, em Problemas da Poética de Dostoiévski (2018), apresenta as engrenagens dessa crítica em progresso. O inacabamento prosaico apresentado pelo teórico russo, na produção do romancista russo, revela-se definidor, também, das relações discursivas construídas socialmente e estudadas neste trabalho. Uma vez que “investigar a linguagem é também investigar o humano” (Delanoy; Cavalheiro; Benavides, 2018, p. 411), compreendemos que, na interpretação sensível e artística do ser, “dialogicamente, não há síntese, porque os horizontes em interação trabalham juntos (inter-ação), sem se descaracterizarem semanticamente” (Magalhães; Kogawa, 2019, p. 94). O confronto de vozes instigado pela visão do pensador polifônico não visa a uma unidade de conteúdo, que conclua um discurso, um pensamento ou alcance de uma verdade acabada, mas abre brechas para, por meio da exploração da disposição dialógica, o surgimento de um conhecimento responsivo e inacabado. É nesse percurso que a crítica polifônica encontra terreno seminal para sua continuidade no Brasil.

PRESSUPOSTOS DE UM MÉTODO DE ANÁLISE LITERÁRIA POLIFÔNICO E RESPONSIVO

A base teórica aqui descortinada revela-se, então, em um mundo de ideólogos. Mundo edificado no princípio social da polifonia, Bakhtin conduziu-se à reinvenção da arena discursiva, passando por Platão, Luciano, Rabelais, Cervantes e Dostoiévski. É nesse universo carnavalesco que a pluralidade de vozes e a ideia de liberdade estão engendradas. Na “aterrissagem” (traduzida também como rebaixamento), a busca pela equanimização dos indivíduos na arena (festiva, literária, discursiva) leva a pontos de contato com o carnaval (de rua/estilizado). No encontro da polifonia com o carnavalizado, elogio do grotesco, a valoração corporal e a escavação por riquezas materiais confinadas “no fundo da terra” (Bakhtin, 2010, p. 323) evocam imagens geradoras de uma liberdade que subverte o sublime (elevado). Essa conceituação estilizada da ideia de liberdade, enquanto fenômeno social, abarca as seguintes manifestações: do riso, na praça pública, de travestimento, de fingimento, do jogo. Revela-se, ainda, na ambiguidade da linguagem: baixo-corporal, duplo sentido, efeito-cômico, disfarce (farse), folião (brincantes); solilóquio etc.

Há todo um sistema de imagens sincréticas e revolucionárias que compõem o contexto rabelaisiano estudado por Bakhtin em sua obra A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento (2010). As relações humanas da praça pública e de suas festas populares, palcos de potencial liberdade ideológico-filosófica – assimilados pela pena da galhofa de François Rabelais – fornecem farto material para os estudos da carnavalização realizados pelo teórico russo (Bakhtin, 2002). Em sua continuidade no Brasil, afinal Bakhtin não conheceu a cultura carnavalesca brasileira (como sempre enfatiza o tradutor de Estética da Criação Verbal, Paulo Bezerra), o pensador russo ganhou contornos e nuances inovadoras. Por isso, todo indivíduo é um compreendedor, conforme tradução recente de Bezerra em “A questão do discurso dialógico” (Bakhtin, 2016, p. 113): “A compreensão não repete nem dubla o falante, ela cria sua própria concepção, seu próprio conteúdo; cada falante e cada compreendedor”. A díade falante-compreendedor, conforme traduzida nessa edição, está na base do diálogo, da arena, do dialogismo, da Análise Dialógica do Discurso e da própria Crítica Polifônica. As categorias de falar e ouvir são simultâneas: todo sujeito é um ideólogo (ou poderia ser) em sua atuação discursiva e ideóloga no mundo.

Tornar-se falante-compreendedor, conviver em múltiplas atmosferas

(...) institui seu agir responsivo em cada evento da vida, pois, pela interação com o outro, constitui-se como sujeito ético e responsivo na existência. Dessa percepção de sujeito, vemos que a linguagem atravessar todo esse processo e, conforme Bakhtin, a palavra não é monológica, e sim dialógica (Cavalheiro; de Souza; Páscoa, 2022, p. 65).

Nesse campo, a palavra é dialógica na medida em que não dissocia o elemento ético-estético-cognitivo na compreensão do dialogal. Quer dizer, o fenômeno linguístico realiza-se sempre em resposta (ética) ao outro-receptor e às conjunturas pelas quais surge para se modular em variadas disposições (estética), que sejam capazes de gerar um conhecimento (cognitivo) responsivo. Assim, embora no eixo teórico se pontuem distintos modos de operar o fenômeno tríplice, na arena aberta da comunicação humana, em que o sujeito atua discursivamente, sua manutenção é orgânica e intimamente interligada. Nesse sentido, é interessante notar o que Bóris Schnaiderman (1982) vai apontar sobre Bakhtin: ele teria rompido com certo determinismo causal do século XIX. Isso seria fruto de obras plenas de contrastes e de saltos, “onde as ideias mais elevadas se misturam com o cotidiano mais trivial (Schnaiderman, 1982). Schnaiderman sintetiza elementos que, em nossa perspectiva, relacionam-se à busca da Crítica Polifônica em sua característica mais respondível – o inacabamento:

O real empírico mistura-se [...] ao simbólico, a realidade aparentemente chã é, muitas vezes, paródia, estilização de uma outra realidade, mas não apenas para iludir a censura, e sim num jogo de máscaras, de duplicação do mundo, de fragmentação da imagem numa totalidade múltipla e variada ao infinito, dinâmica e fluida, em que o real é a máscara de outro real, em que nada é definitivo ou estratificado (Schnaiderman, 1982, p. 67).

Podemos compreender que, no diálogo (com liberdade), em que nada é estratificado ou definitivo, há uma consolidação do humano, da outridade. Essa compreensão da realidade fundamental da linguagem leva às relações sociais e culturais. Deste modo, o Diálogo na arte leva à dialogicidade, em interação dinâmica das enunciações e dos fenômenos em perspectiva que busca a imagem do humano na linguagem. Essa percepção enformada nos gêneros e seus hibridismos convidam à réplica, por meio da autoconsciência, de máscaras, de vozes variadas e de elementos discursivos e performáticos. Com o suporte de teses contraditórias e da pluralidade temática, várias hipóteses bakhtinianas se organizam pela abordagem estilística da prosificação da cultura. Do estudo da diversidade monológica/dialógica/polifônica do discurso à Crítica Polifônica, não apenas como fenômeno restrito à literatura, essa investigação crítica quer encontrar no indivíduo, na palavra viva, na liberdade e no inacabamento seus caminhos de expressão.

Assim, construímos uma poética dialógica dos gêneros literários e dos discursos através do aparato teórico de Mikhail Bakhtin em contínua prática com as ideias de Walter Benjamim, Italo Calvino, Antonio Candido, Bóris Schnaiderman, Paulo Bezerra, Willi Bolle, dentre outros. No campo dos estudos dialógicos brasileiros, destacamos também Beth Brait, Juciane dos Santos Cavalheiro, Tamiris Machado Gonçalves, Adail Sobral e tantas outras pesquisas que se mobilizaram neste quesito. No âmbito mais restrito da Universidade de Brasília, observamos o pensamento de Mikhail Bakhtin transitando de forma substancial desde estudos dedicados à Análise do Discurso Crítica até em trabalhos etnográficos dedicados a línguas indígenas brasileiras e questões quilombolas – com a presença dos próprios agentes no processo. Esse alcance se dá nos estudos da geopoesia, uma das ramificações da Crítica Polifônica.

Embora as formas discursivas não ocorram de maneira isolada, mas se combinem nas mais diversas manifestações, há um predomínio aparente do dialogismo na obra do pensador russo e nas teorias desdobradas de seu pensamento no Brasil. Aproximar as atividades estéticas e éticas e “responder” ao momento atual da crítica literária, bem como à filosofia e à análise do discurso, é perceber o vasto alcance da renovação de seu trabalho no Ocidente. Em arena aberta para o embate, temos a confirmação de um pensador polifônico, que permitiu formas diversificadas de recepção da sua obra e uma continuidade em várias ciências e práticas.

Reconsiderar esse legado significa definir a polifonia como instrumento crítico central do exercício analítico-filosófico de Bakhtin. No constante trabalho de releitura, esta abordagem é a constatação de uma prática intelectual ao longo de uma vida que propunha um exercício de crítica que instaurava a renovação de poéticas e de estéticas. Ao atribuir a Dostoiévski a criação do romance polifônico, esse elemento crucial para a autonomia discursiva, para a liberdade conceitual, a proximidade com a carnavalização, com o cinismo, com a utopia crítica e, até mesmo, com manifestações monológicas, Bakhtin utiliza o dialogismo como caminho para uma compreensão teórica das mais diversas questões: literárias, culturais, filosóficas, linguísticas, filológicas etc. Para entender a construção desta nossa arquitetônica de uma Teoria do Literário (ou do Discurso; ou do Texto, com Todorov) é necessário vislumbrar as fronteiras que separam e unem vertentes. Com isto, avançamos na importação do alheio (ideias europeias), mas as transformando em próprio (autônomo e respondível) em solo tupiniquim.

Dentre vários textos, compilados em Estética da criação verbal (2011), passando por suas teses mais consistentes, Problemas da poética de Dostoiévski e Cultura popular na Idade Média e no Renascimento – no contexto de François Rabelais, o dialógico e sua realização decorreram do olhar/escutar atento o discurso do outro. Das fendas que os elementos paradoxais dos gêneros podem apresentar, reter, excluir, ampliar, a plataforma de observação de Bakhtin sempre foi paradoxal. Da busca dos elementos utópicos (práxis) nas análises e reflexões sobre o indivíduo, ele expandia a noção de inconclusibilidade e de liberdade. Com isto, apreendeu do romance polifônico o método crítico polifônico de análise. Como coloca Paulo Bezerra, podemos ampliar o diálogo, estabelecer paradigmas para os eixos da literatura comparada e do literário com as outras artes, sempre conscientes de que respondemos de um locus carnavalizado – o Brasil.

PRÁTICAS DE ANÁLISE LITERÁRIA: A METODOLOGIA DA CRÍTICA POLIFÔNICA

Na esteira do que disse Augusto Ponzio, em A revolução bakhtiniana (2010, p. 186), defendemos que o dialogismo pode ser entendido como uma resposta à dialética monológica sem incorrer em “idealismo polifônico”, como sugeria a primeira recepção na Rússia. Nesse sentido, percebemos que o fato de o dialogismo predominar nas atividades de Bakhtin pode levar a recepção a supervalorizar o dialógico e deixar de enxergar a presença um certo outro no discurso, na constituição da obra. Isto significa dizer que é importante estudá-lo sempre de uma perspectiva que não proponha uma conclusão definitiva, mas a constituição de uma obra em processo, onde um cruzamento de relações sempre retorna.

No capítulo “O romance polifônico de Dostoiévski e seu enfoque na crítica literária”, em Problemas da poética de Dostoiévski, em referência a Leonid Grossman, destaca-se a articulação criativa de elementos canônicos e unificados: “Dostoiévski coaduna os contrários. [...] Sua meta é superar a maior dificuldade para o artista: criar de materiais heterogêneos, heterovolentes e profundamente estranhos uma obra de arte una e integral” (Bakhtin, 2002b, p. 13). Essa capacidade e criatividade polifônicas são assim descritas:

Eis porque o livro de Jó, as Revelações de São João, os Textos Evangélicos, a Palavra de Simião Novo Teólogo, tudo que alimenta as páginas de seus romances e dá o tom a diversos capítulos combina-se de maneira original com o jornal, a anedota, a paródia, a cena de rua, o grotesco e inclusive o panfleto (Bakhtin, 2002b, p. 13).

Do literário à interpretação, Bakhtin combinou discursos, textos e contextos, recriando elementos crus da realidade e da fantasia, analisando a relação entre consciências (Bakhtin, 2008, p. 79). Ampliando o coro da “língua original e difícil do povo” (Bakhtin, 2002a, p. 419) com o ético e o estético no mesmo campo, tal esforço decorreu de uma máxima do teórico russo: “todos os enunciados no processo de comunicação, independentemente de sua dimensão, são dialógicos” (Fiorin, 2019, p. 21). Destarte, no contexto da recepção do dialógico, percebemos a proximidade das representações de movimentos literários e históricos e a expressão crítica (respondível) de atividades e desejos de grupos sociais. Isso aparece em Foucault, como a possibilidade de um sistema alternativo, ou como rejeição de um sistema. Há também uma gama de trabalhos no campo da Análise do Discurso que se aproxima de maneira coerente desta forma de pensamento. Por outro lado, o método polifônico aproxima-se de P. Ricouer, quando o historiador aponta certas utopias (literárias) como detentoras de um método oculto, aliado à complexa gramática da “imaginação cultural” (Gardiner, 2010, p. 221). Neste sentido, recordamos:

as fronteiras entre o dialógico e o monológico devem ser ultrapassadas. Enxergar o método polifônico como limiar aberto no tempo e no espaço é o estudo de ambos ocorrendo em constante embate. Para nós, o dialogismo é anterior a Dostoiévski – uma obra, no sentido borgiano, é sempre o ponto de fuga para a outra, ambas constituem elemento polêmico no campo da respondibilidade: ‘A unidade do monólogo e a unidade peculiar do diálogo’ (Bakhtin, 2003, p. 402) são marcas da arena discursiva a que chamamos vida (Silva Junior, 2012, p. 908).

Ainda nesta seara, em “Metodologia das ciências humanas”, embora de forma fragmentada, temos importantes considerações sobre o tema:

Ao monologizar-se, a consciência criadora é completada com palavras anônimas. Esse processo de monologização é muito importante. Depois, a consciência monologizada entra como um todo único e singular em um novo diálogo (já com novas vozes externas do outro) (Bakhtin, p. 403).

Uma vez que o leitor é uma consciência entre as consciências e a crítica literária é uma resposta imediata e monologizante à obra, a crítica polifônica visa à superação dessa condição da recepção interpretadora e aproxima-se da obra no campo da respondibilidade. Consciente de que ninguém disse, e nem dirá, a última palavra, o exercício polifônico teórico permite ao crítico participar do dialogismo, exatamente como o leitor (Bakhtin, 2003, p. 404-405).

Decorre daí, também, a base para reflexão de outro teórico que, assim como o estudioso russo, lançou mão da crítica literária em tempos de totalitarismo, Walter Benjamin: “Não se trata de apresentar as obras literárias no contexto de seu tempo, mas de apresentar, no tempo em que elas nasceram, o tempo que as revela e conhece: o nosso” (Benjamin, 2006 apud Bolle, 2006, p. 47). Nesta prática metodológico-analítica, reside um sistema crítico-polifônico em nossa criação ensaística:

Mas a função dessa consciência e a forma de seu caráter ativo são diferentes daquela do romance monológico: a consciência do autor não transforma as consciências dos outros (ou seja, as consciências dos heróis) em objetos nem faz desta definições acabadas à revelia. Ela sente ao seu lado e diante de si as consciências eqüipolentes dos outros, tão infinitas e inconclusas quanto ela mesma. Ela reflete e recria não um mundo de objetos mas precisamente essas consciências dos outros com os seus mundos, recriando-as na sua autêntica inconclusibilidade (pois a essência delas reside nessa inconclusibilidade) (Bakhtin, 2008, p. 77).

Sempre que o pensador russo trata das relações discursivas, percebemos uma variação que pode ser estabelecida da seguinte maneira: dialogismo, interações dialógicas predominantes e/ou liminares, interações dialógicas superficiais, relações monológicas, relações monológicas com dialogismo invertido (um indivíduo não ouve o outro; ouve a si mesmo em situação de diálogo), monologismo; dialogismo monológico, monologismo dialógico, solilóquio com dupla enunciação, fluxo de consciência, confissão verbal, confissão silenciosa, raizama.

Dessas variantes infinitas e inconclusas, em contato com as consciências equipolentes, o percurso desta teoria polifônica, na grande teia das ideias, interagindo no campo das culturas ao longo dos séculos, foi desenvolvido durante toda a existência do pensador russo. O dialogismo foi sua visão do ético e do estético. O monologismo, uma visão a ser superada – política e literariamente, mantém-se no dogma, nos regimes autoritários, nas Teses, nas ideias fixas e, até mesmo, em grandes obras literárias em que perduram castas, classes altas, heróis, e teorias específicas (como nos casos de Tolstói, na Rússia; e José de Alencar, no Brasil).

Nas suas releituras, respondendo a si mesmo e aos problemas de seu país, isto pode ser notoriamente percebido nos livros sobre Rabelais e Dostoiévski. Portanto, a polifonia configura-se como um exercício de desapego e de inacabamento no próprio momento da crítica. Nos “Adendos” da quarta edição brasileira de Problemas da poética de Dostoiévski, encontramos algumas fendas para essa renovação analítica:

Os dois adendos são, ao mesmo tempo, um comentário a Problemas da poética de Dostoiévski e um projeto de sua reformulação, no qual Bakhtin torna mais amplos e precisos os seguintes conceitos: o dialogismo como forma de interação e intercomplementação entre as personagens literárias; o monologismo como pensamento único e por isso autoritário, seu desdobramento no processo de construção de personagens romanescas; a polifonia como método discursivo do universo aberto em formação; o autor e sua relação dialógica com as personagens; a relação eu-outro como fenômeno sociológico; o inacabamento/inconclusibilidade das personagens como visão de mundo em formação, razão porque não se pode dizer a última palavra sobre eles nem concluí-los; o ativismo especial do autor no romance polifônico, no qual o autor é a consciência das consciências, a despeito de seu distanciamento em relação ao universo representado e da grande liberdade que concede às suas personagens (Bezerra, 2008, p. 7).

Entendendo essas notas como revisão e releitura da própria obra, e pistas para o aprofundamento das questões levantadas por sua recepção no Brasil, reafirmamos o caráter polifônico e respondível de sua compreensão crítica do cultural, do discursivo e do literário e a importância de uma continuidade e renovação por vias dessa interação que o pensamento dos círculos faculta. No sentido lato do termo, “incorporado ao patrimônio de uma civilização” (Candido, 1993, p. 29), posto que profundamente ligado à conjuntura através da qual se realiza, esses “Adendos” nos auxiliam a compreender o quanto a visão de mundo projeta-se em condição de inconclusibilidade nos estudos literários e da linguagem. Tais apontamentos são essenciais (escritos em 1961 – época do início de sua recepção no Ocidente) para a renovação (no sentido ambivalente-rabelaisiano) em constante busca de modalidades e variantes por meio de sua tese central, que é a polifonia e a liberdade literárias – que, por sua vez, imitam uma necessidade vital.

CONSIDERAÇÕES A PARTIR DOS ESTUDOS DE DOSTOIÉVSKI: PROBLEMAS DE UMA CRÍTICA POLIFÔNICA

O dialogismo em Dostoiévski encontra ecos na tradição dos diálogos socráticos e luciânicos, no romance humorístico, no realismo e fantasia (sério-cômicos). Mas o monologismo de Homero, Dante, Tolstói, por sua vez, reside nos épico-dogmáticos, nas variantes religiosas e artísticas medievais e coloniais, que também oferecem importantes manifestações (discursivas e artísticas) da longa tradição que alia cultura e literatura. Uma celeuma a ser debatida em outro espaço é a presença do cristianismo em Dostoiévski e Bakhtin – reduzindo o alcance axiomático de suas visões. Dois exemplos podem responder a isso: 1) Dostoiévski, no desfecho de Crime e castigo surge como possível força interagente que leva Raskolnikóv a se entregar; 2) Bakhtin crucifica Tolstói pelo tolstoísmo, mas simpatiza com uma certa nuance moralista no cristianismo do autor de Os demônios.

De toda maneira, Bakhtin aponta para uma força profética em Dostoiévski e percebe o século XX como momento urgente para se realizar e estabelecer o dialogismo nas formas estéticas e discursivas, frente aos sistemas políticos autoritários e violentos característicos daquela conjuntura (e da nossa, nos últimos anos). Uma vez que o monologismo precisaria ser superado, sua possibilidade só se efetuaria a partir do pós-guerra, mas a invasão europeia em África, instaurando colônias, demonstra uma tendência imperialista e monofônica da humanidade. Nos interstícios da intelectualidade francesa, sua obra é traduzida e lida justamente quando Lévi-Strauss, Benveniste, Foucault, Kristeva, Lacan, dentre outros, aprofundam e apontam para as mudanças na análise do âmbito discursivo moderno.

No rasto dessa recepção, no século XXI, retomamos reflexão seminal do tradutor e crítico literário de Bakhtin, para quem, em “nosso contexto atual, essas concepções filosóficas são um suporte teórico fundamental para aqueles que não aceitam novas concepções “monológicas do mundo e do discurso autoritário” (Bezerra, 1997, p. 12). Com esta proposição crítica, situada em “Prefácio à segunda edição brasileira” de Problemas da Poética de Dostoiévski, apresentamos que é possível ampliar o quadro das variantes discursivas no campo crítico polifônico tendo em vista seu caráter de enfrentamento de certos pressupostos pretensamente monológicos. O dialogismo revela-se em superação dessa consciência monológica estabelecida por um jogo dramático-respondível posto que concentrado na liberdade, inacabamento e convite à réplica. Afastando-se de certa entidade mecânica, acabada e intertextual, em direção à “interdiscursividade” (Fiorin, 2006, p. 181), a aplicação de uma arquitetônica da respondibilidade faculta a compreensão dialógico-discursiva da realidade em construção, dos gêneros em formação e também da aproximação do método crítico polifônico ao campo da Análise Dialógica do Discurso.

Nessas aproximações predominantes e/ou liminares, no decorrer do livro de 1929, sobre o novo modelo artístico inaugurado por Dostoiévski, Bakhtin faz uma grande análise dessas relações, instaura a ideia de uma tradição do romance polifônico e aponta para as questões entre dialogismos e monologismos. Relações discursivas que ele pretendia aprofundar – como comprovam os “Adendos”. Tais “passagens crítico-polifônicas” permitem entender que há uma condição liminar que prova que o diálogo, na condição eu/outro, é sempre fronteiriço e constituído pela interação de vozes. O limen, nesse sentido, permite entradas e saídas discursivas – passagens, como diria Walter Benjamim. Essa liminaridade faculta experiências, pressente processos, modaliza funções (discursos realizados por grupos e indivíduos) e permite mapear estruturas culturais. Isso significa dizer que as fronteiras polifônicas permitem entender como os discursos são percebidos, como assimilam e geram cronotopos, a atuação de cada indivíduo em cada papel, e como cada personagem é interpretado – com variantes para os espaços público e privado etc. (a discussão entre literatura e performance aponta para essas condições e características liminares, pensando em uma aproximação entre Mikhail Bakhtin e Victor Turner – conforme Turner (2008).

Essas relações dialógicas tentam superar o “modelo monológico do mundo” (Bakhtin, 2008, p. 328) e podem ser apreendidas, por exemplo, em variantes naturalistas – nas invenções forçadas de imagens cotidianas como mostra Antonio Candido em seu livro O discurso e a cidade (Candido, 1993). Essas relações superficiais ligam-se diretamente às limitações da recepção crítica e dos desdobramentos e/ou explicações que toda teoria possa vir a ter. Vide o exemplo bakhtiniano: é lido por diversas tradições, responde a todas elas, pois suas teses rompem com os aparentes limites mono-teóricos, justamente por convidarem ao debate e ter essa visão de fronteira – continuamente revista por ele.

A tradição do diálogo gerou duas grandes linhas filosóficas (platonismo/aristotelismo) que reverberam ainda hoje, e que foram referências para o cinismo greco-romano, para o estoicismo romano, para o mundo medieval Cristão e, segundo Bakhtin, é a epigênese do romance polifônico (carnavalizado, humorístico etc.). Por outro lado, fendas positivas e fronteiriças: Sócrates defendia ideias próprias articulando as vozes dos outros em arena. Seu pensamento também tem base dialogal quando o pensamos como personagem de Platão – que, segundo Aristóteles, teria usado o método dramático para fazer filosofia e poética (Aristóteles, 1966).

Algumas relações monológicas com o dialogismo invertido (ouvir a si mesmo e nunca ouvir o outro enquanto dialoga com ele) apresentam-se com aspectos complexos. Na hierarquia que todo romance e/ou obra literária, de modo geral, apresenta: personagens principais, centrais, coadjuvantes, passageiros com grandes papéis (Falstaff, por exemplo); mesmo nos romances dostoievskianos, por exemplo, nas arenas de Os demônios, de O Idiota e de Os Irmãos Karamazov, isto é recorrente. Nestes livros, personagens encontram-se sempre em condição de embate e estão sempre propensos à última palavra, a um último ato. Ouvem-se a si mesmos na ação dramática – vide, por exemplo, Fiódor Pavlovitch Karamázov (O Pai). O dialogismo pode ser perscrutado nos elementos psicológicos estilizados no romance, pois o elemento interior do personagem enquadra-se no âmbito do romance polifônico. Nessa arena, “Tudo se transforma: cada ideia, cada época, cada regozijo desaparece, para que outras ideias, outras épocas e outras formas de regozijo tenham lugar: vida é luta” (Silva Junior; Paula Neto, 2021, p. 170).

As traduções de Paulo Bezerra, por serem bakhtinianas, valorizam esse aspecto da cultura Russa captada pelo autor de Crime e Castigo. Enquanto atores sociais exibem uma tendência ao monologismo, essa ideia nasce do embate entre Mikhail Bakhtin e Vyatcheslav Ivánov na discussão do “romance-tragédia” e sua superação com o “romance-socrático” – conforme Bakhtin (2002b, p. 08-09). Enquanto personagens de romance movem-se em uma arena dialógica com o monologismo invertido – provavelmente Hamlet, ao instaurar o método de fingir loucura e seus famosos solilóquios, move-se na possibilidade de relações dialógicas com o monologismo trágico e, ao mesmo tempo, como sistema ideologizante que confronta a “superioridade do gênero dramático” (vide a tanatografia de Augusto Silva Junior, 2008; 2014; 2021, outra vertente da crítica polifônica). A teoria da “ideia fixa”, de Brás Cubas, por exemplo, também se encontra nessa linhagem shakespearena.

Novamente instauramos relação com dois Pensadores da Análise do Discurso (2019), Anderson Magalhães e João Kogawa, que já grifaram a distinção fulcral entre os métodos dialéticos e dialógicos compreendidos por Bakhtin: no primeiro, o cruzamento de vozes (tese e antítese) visa a um conteúdo de “caráter monológico” (Bakhtin, 2018, p. 125); no segundo, a busca e a experimentação ganham tamanho destaque que já não pode haver síntese, mas inacabamento. Neste sentido, a dialética teleológica seria dialógica, pois ela não buscaria apenas um fim. A literatura engajada, o teatro político, a revolução de Brecht, as peças radiofônicas de Benjamin ganham força dialógica. No campo da crítica, os ensaios curtos de Lukács, a exemplo daqueles sobre Balzac e o personagem Vautrin, aspiram à crítica polifônica, ao contrário de seu Teoria do romance – mais conectado à aproximação hegeliana com a épica e à tríade aristotélica.

A gradação entre as relações predominantes e de superfície varia de acordo com a vivência, experiência, ou ato, ao ocuparem uma posição significativa isonômica, visando a posicionar-se como portadora de uma verdade aberta para um horizonte de expectativas. Se a verdade convida ao inacabamento, à vida, ao discurso em desenvolvimento, ela está mais próxima do dialogismo; se ela se propõe com axiomas inquestionáveis, independente, desqualificando a resposta do outro, mentalidade fechada e totalizante, ela estará mais próxima do monologismo. Historicamente, um discurso pode passar de uma situação a outra – desde que sua construção esteja ou não pautada pelo diálogo. O revolucionário nesta teoria polifônica é justamente a valorização utópico-crítica do diálogo, do inacabamento, na constatação de que ninguém ainda disse a última palavra. Resistente a qualquer monologismo axiomático, inclusive da própria crítica literária (muitas vezes dogmática e fechada, a exemplo da linhagem que utiliza Derrida no Brasil), a crítica polifônica é um convite ao diálogo, à liberdade e à outridade.

O que aproxima a Crítica Polifônica da Análise Dialógica do Discurso é justamente a capacidade de moverem-se em campos ambivalentes, utópico-práticos quando em grupo, esperançosos e pensamentais quando trabalho individual, contrapondo-se ao que o monologismo tem de mais realista: as relações de poder, as imposições ideológicas, sempre propensas ao silenciamento (individualista) do outro.

Há elementos diferentes nos horizontes destas visões, mas no campo específico e potencial de sentidos: um e outro são limen (Turner, 2008) e nunca substância absoluta. Observamos a relação entre a Análise Dialógica do Discurso e a Crítica Polifônica como um caminho para uma teoria da inconclusibilidade. É nesse sentido que concordamos com a hipótese de que “uma análise concreta da enunciação é possível se ela for entendida ‘como unidade contraditória e tensa de duas tendências opostas da vida’: uma que centralize e outra que descentralize” (Delanoy; Cavalheiro; Boenavides, 2018, p. 412).

Como pontua Bakhtin (2018), o dialogismo realiza-se sempre de forma polêmica, pois se insurge desse contraste fomentado em zona histórico-social. Essa perspectiva discursivo-enunciativa, quando transplantada da Análise Dialógica do Discurso para o campo dos estudos crítico-literários, torna-se relevante para compreendermos o panorama das literaturas sério-cômicas, desde os diálogos socráticos e as sátiras menipeias até a consolidação polifônica discutida acima em Dostoiévski. Tratam-se, afinal, de discussões que, extraídas do campo restrito d’Os gêneros do discurso (Bakhtin, 2016), situam-se em alçada abrangente, pois ofertam pistas para discussões filosófico-ideológicas, históricas e referentes à nossa atualidade viva no grande tempo da literatura.

Com a evocação crítica a tais literaturas (dialógicas, satíricas e polifônicas), o conteúdo inacabado por elas enformado surge como substância da teoria dialógica do discurso em Bakhtin, para a qual “a noção de gênero está calcada no entendimento de produção discursiva viva, porque oriunda de uma sociedade dinâmica. Assim, os gêneros do discurso comportam plasticidade e fluidez” (Gonçalves; Gomes, 2022, p. 5). A íntima associação entre os caracteres ético e estético arraigadas ao conhecimento inacabado, posto que profundamente responsivo, fornecem profundo valor teórico-analítico-metodológico. Nosso artigo atravessa tais vias justamente para expor o caráter plástico do conteúdo gerado em suporte dialógico. As literaturas evocadas colocaram-se como matérias ilustrativas do discurso e da língua socialmente vivos que se servem de motores do inacabamento presentificado nas relações humanas.

O elemento estético previsto pelo pressuposto bakhtiniano, referente a uma “informação material” (Magalhães; Kogawa, 2019, p. 26), viabiliza diferenciados usos da língua em suas mais diferentes esferas (pessoais, sociais, artísticas, jurídicas, pedagógicas etc.). Com o elemento ético, visualizamos o fenômeno da bivocalização em formação histórica e cultural. A união de ambos (efetivada em íntima interação dos aspectos lexicais, sintáticos e semânticos) agrega-se à estilização e entonação do gênero. Se pensarmos na projeção desse fenômeno em tempos de reprodutibilidade técnica (Benjamin, 1987) e digital, por exemplo, temos todo um conjunto de enformações discursivas: publicísticos, encomiásticos, jornalísticos (jornal impresso, revista, rádio, TV), cordel, quadrinhos, redes digitais etc.

Vale notar que o século XX com seus “círculos”, mais ou menos “conscientes” e organizados, tais como o Formalista e o Estruturalista e outros mais espraiados, como o de Bakhtin, que influenciará o círculo da Crítica Polifônica no século XXI, articula-se em linguagens movendo-se em concretudes e inconcretudes da linguagem. Discorre confrontos enunciativos nos mais diversos campos: poéticos, noéticos, linguísticos, filosóficos, sociológicos, antropológicos, dentre outros. Nesse aspecto, reside a importância dos conceitos de enformação e de estilização para o campo polifônico. O processo de estilização no sentido dialógico, a feitura da obra assimilada pelo exercício de crítica polifônica, a “Realização do grande tempo” (Bakhtin, 2018) na convergência de discursos, gêneros e linguagens leva ao pensamento e à compreensão do mundo em uma perspectiva voltada para a relação eu-outro. Esses processos de enformação e de assimilação estilística de ideias e estilos, a alteração do tom, do discurso, do contexto (social/psicológico/paródico) levam a uma compreensão maior da análise literária. Ambos caminham para o diálogo circular – bakhtiniano e polifônico – entre a vida mundana e um mundo discursivamente sempre vivo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O debate até aqui mobilizado conjugou duas grandes bases investigativas correspondentes: a Análise Dialógica do Discurso, situada na cena das teorias linguísticas do século XXI, e a Crítica Polifônica, formulada em inspirações bakhtinianas na arena dos estudos literários. Tais confluências nos autorizam a definir, como reflexões derradeiras deste artigo, uma retomada da teoria dos gêneros literários do discurso, de Mikhail Bakhtin, como terreno base e frutífero das representações dos pensamentos e do modo de ver o mundo captados nas peculiaridades de obras desde a épica da Antiguidade Clássica, passando pelas sátiras menipeias até o alvorecer do romance moderno e polifônico. Uma vez que “onde há estilo há gênero” (Bakhtin, 2016, p. 21), somos capazes de esmiuçar uma realidade sociocultural em contínuo processo de formação e transformação por intermédio do caráter altamente plástico das disposições literárias constitutivas de cada gênero.

No grande tempo, o trabalho (enunciado) estético que dialoga com enunciados congêneres em sua atualidade viva ou através dos tempos leva à compreensão do discurso e da obra artística como réplicas, modos de fazer ciência da linguagem que dissolvem as fronteiras da nossa época. A obra de arte – enunciado – faz parte da comunicação discursiva, mas no campo da estética permite que a respondibilidade esteja premente e a consciência de que ninguém disse a última palavra continue acesa: “Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade” (Bakhtin, p. 33, 2003).

Essa consciência (de desejo) de que a última palavra do mundo e sobre o mundo não foi dita leva ao entendimento de um mundo aberto, livre em que tudo ainda está por vir. Nessa relação constante com a liberdade, o dialogismo, a arena, a carnavalização, a autoconsciência narrativa, a Análise Dialógica do Discurso, a língua, as linguagens e a atualidade são vivas e criativas. Há uma percepção mutável e dinâmica da realidade e o princípio da expressividade máxima em performance, na corporalidade, no gesto, no cotidiano, na festa, no trabalho.

Essa aproximação entre a Crítica Polifônica, a Análise Dialógica do Discurso e os círculos do século XX aponta para a constituição de novos “círculos” neste novo milênio. Entre métodos e formulação de problemas, entre a ciência e as ciências da linguagem, metodologias vão se constituindo em responsividade. Neste caso, os percursos teórico-enunciativos trazidos aqui se apresentam como metodologias concretas e inacabadas – posto que o reconhecimento de um Círculo também demanda um tempo, um conjunto de ideias, uma arena que possa ser historicizada. Há muitas metodologias dialógicas no Brasil.

Curioso é notar que essa discussão ganha força em uma Rússia que, desde o século XIX até o século XXI, atravessou inúmeras contradições e ideias dentro e fora do lugar. No Brasil, país de memória e práticas coloniais, que ainda hoje perduram, essa busca pelo diálogo aponta que as ciências da linguagem e da educação acreditam na transformação pela palavra. Entre os movimentos epistemológicos e hermenêuticos, a Crítica Polifônica abre-se em respondibilidade, pois busca sempre o diálogo transdisciplinar. Essa prática estabelece como prisma justamente a máxima bakhtiniana, sempre repetida por Paulo Bezerra – a de que ninguém disse a última palavra. Esse texto deveria se findar com dois pontos e uma página em branco. Mas, há uma palavra, citada inúmeras vezes no livro Cultura popular na Idade Média e no Renascimento, que também é um convite à outridade, à palavra-outra do outro: liberdade.

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Notas

[1] Este artigo movimenta algumas forças dialógicas: trata-se de esforço responsivo de 20 anos de pesquisas que desenvolvemos em grupo de pesquisa intitulado a (DPG/UnB). Daí, as retomadas pensamentais contidas neste texto, submetido à Revista Muiraquitã. Há conceitos, reflexões e hipóteses já esmiuçados em outros trabalhos, mas que cientificamente ganham condições intelectuais completamente novas. Além da Tese de doutorado Morte e decomposição biográfica em Memórias póstumas de Brás Cubas (UFF, 2008; sob orientação de Paulo Bezerra), seguimos desdobramentos de uma leitura constante e filosófica de Mikhail Bakhtin: 1) comunicação realizada em 2011, intitulada “Prolegômenos de poética histórica: crítica polifônica, literatura e cultura”; 2) com resumo expandido publicado, em Anais do Congresso de Humanidades, com título homônimo (vide referências). De modo geral, essa respondibilidade ocorre em nossos escritos em uma dezena de textos de base bakhtiniana, todos voltados para o exercício da crítica polifônica. Uma das ideias do artigo foi justamente estabelecer essa revisão das pesquisas, tendo em vista os conceitos e o campo crítico instaurados pela chamada da Muiraquitã. Ainda, responde a uma pesquisa que vimos desenvolvendo entre Análise do Discurso e Crítica Polifônica (no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Práticas Sociais da Universidade de Brasília (POSLIT/UnB) e no Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes da Universidade Estadual do Amazonas (PPGLA/UEA). Explicamos o processo utilizado (perceptível nos “Adendos” de Problemas da poética de Dostoiévski) ao longo do próprio texto. Enfim, o caminho dos Prolegômenos teve uma abordagem filosófica e o texto enviado para a Revista Muiraquitã apresenta uma abordagem carnavalizada (aberta para balanço) da questão voltada para os círculos de estudos das linguagens, no sentido mais amplo encetado pelo pensador russo e os pensadores à sua roda e aqui apresentados.


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