Resumo: O principal objetivo desta investigação foi analisar unidades léxicas relativas à indumentária de uma personagem da obra Chegou o governador (1998), de Bernardo Élis, em correlação com a produção de identidades. Fundamentamo-nos em autores que discutem sobre o estudo lexical no discurso literário, como Cardoso (2018); assim como em teorias gerais do léxico (Biderman, 2001); sobre a Estilística Lexical, lançamos mão da teoria de Martins (2008) e sobre moda, tivemos como aporte teórico Silva, Monteleone e Debom (2019), Orsi e Almeida (2019), dentre outros. A partir da leitura da obra em análise, selecionamos as unidades léxicas relacionadas ao tema em estudo, para, então, procedermos ao seu cotejo em obras lexicográfica e terminográfica, quais sejam, Houaiss e Villar (2009) e Sabino (2007), respectivamente. A relevância deste estudo está em evidenciar como a caracterização da personagem intersecciona-se com as relações sociais, econômicas e com os valores cristãos que permeiam a sociedade da época. Destacam-se como resultados obtidos a caracterização da personagem como graciosa e elegante, pelo uso de indumentárias e tecidos requintados, como a “capinha de pano de prata”.
Palavras-chave: Estilística lexical, Discurso literário, Moda, Identidades.
Abstract: The main objective of this investigation was to analyze lexical units relating to the clothing of a character in the work Chegou o governador (1998), by Bernardo Élis, in correlation with the production of identities. We base ourselves on authors who discuss the lexical study in literary discourse, such as Cardoso (2018); as well as general theories of the lexicon (BIDERMAN, 2001); on Lexical Stylistics, we used the theory of Martins (2008) and about fashion, we had Silva, Monteleone and Debom (2019), Orsi and Almeida (2019), among others. After reading the work under analysis, we selected lexical units related to the theme of our study, and then compared them in lexicography and terminography works, namely Houaiss and Villar (2009) and Sabino (2007), respectively. The relevance of this study lies in showing how the characterization of the character intersects with social and economic relations and with the Christian values that permeated society at the time. The results obtained highlight the characterization of the character as graceful and elegant, through the use of exquisite clothing and fabrics, such as the “silver cloth cape”.
Keywords: Lexical stylistics, Literary discourse, Fashion, Identities.
Artigos
UNIDADES LÉXICAS DA MODA NO DISCURSO LITERÁRIO EM CHEGOU O GOVERNADOR, DE BERNARDO ÉLIS

Recepción: 22 Junio 2023
Aprobación: 11 Agosto 2023
É sabido que obras literárias podem ser investigadas a partir do terreno frutífero da análise linguística, em especial, no caso desse estudo, da análise lexical. Não se trata de mudar o foco do estudo literário para a Linguística de modo a reduzi-lo a uma análise de elementos gramaticais, mas de apresentar uma proposta de estudo, a partir da intersecção entre as investigações literárias e lexicais, de forma que a Lexicologia e a Literatura caminhem por estradas que se convergem em dado ponto.
O discurso literário vem sendo fonte de estudos lexicais e, nessa esfera, a Estilística Lexical demonstra ser um campo profícuo para os estudiosos que visam abordar esse viés investigativo. A respeito de trabalhos desenvolvidos nesta perspectiva no Brasil, podemos citar os empreendimentos alçados por Nilce Sant’Anna Martins, que estudou e compilou o vocabulário das obras de Guimarães Rosa, e pela professora Elis de Almeida Cardoso, que se dedicou ao estudo do léxico em corpora literários dos séculos XX e XXI.
Fundamentamos esse trabalho em teóricos que discorrem sobre o léxico no discurso literário e sobre a Estilística, tais como Biderman (2001), Martins (2011), Cardoso (2018), Oranges (2017), dentre outros. Também recorremos a teorias sobre moda, como Silva, Monteleone e Debom (2019), Orsi e Almeida (2019), entre outros.
Em relação aos procedimentos metodológicos, realizamos o inventário das unidades léxicas extraídas da obra Chegou o governador (1998), de Bernardo Élis, prezando por substantivos e adjetivos que, por vezes, compuseram sintagmas e locuções adjetivas, referentes ao campo da moda. De modo específico, as unidades inventariadas referem-se à Ângela Ludovico. Selecionamos essa personagem para o estudo por se tratar da protagonista do romance e por ser descrita ao longo da narrativa juntamente com os itens de moda utilizados por ela; assim, a personagem e a moda atrelada a ela são descritas no texto literário, por meio do léxico relacionado à indumentária.
Em face do exposto, intencionamos analisar as unidades léxicas da moda utilizada para caracterizar essa personagem. Para isso, delimitamos a seleção das lexias em substantivos e adjetivos, em algumas passagens nos defrontamos com sintagmas, que se juntaram à análise, uma vez que se mostraram produtivos a nossa proposta e são atinentes ao campo da moda.
Acerca da justificativa para a seleção dos substantivos, Biderman (2001) aponta que eles abarcam os morfemas de gênero, número e grau e expressam conceitos, nomeando-
-os. Para a autora, é a classe dos substantivos a mais significativa na “[...] composição do léxico” (Biderman, 1984, p. 20), por esse motivo, os substantivos compuseram a maioria das unidades léxicas relativas à moda utilizada por Ângela Ludovico e, por essa razão foram selecionados para a análise.
A justificativa para o inventário dos adjetivos assenta-se na sustentação de que eles têm como função conferir qualidades aos nomes (substantivos) e determiná-los, conforme expressa Biderman (2001). Isto posto, selecionamos substantivos e adjetivos com o intuito de registrar as unidades léxicas que designam e caracterizam os itens de moda utilizados pela personagem.
Perante às unidades léxicas coletadas, fizemos o cotejo em uma obra lexicográfica e uma terminográfica para explanar o sentido das lexias atinentes à moda, para isso, tomamos o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, de Houaiss e Villar (2009) e o Dicionário da Moda, de Sabino (2007), respectivamente. Além disso, foi necessário verter um olhar às lexias em seus contextos de aparição no romance, ou seja, analisá-las a partir do enunciado em que se manifestam, uma vez que o estudo lexical que possui como corpus o discurso literário não deve se preocupar apenas com as análises de ordem linguísticas, sêmicas e/ou morfológicas, mas necessita levar em conta a realidade extralinguística e os contextos linguísticos e situacionais em que o discurso se assenta (Cardoso, 2018).
À luz do exposto, destacamos que a metodologia adotada é de caráter qualitativo. Para realizar o estudo, compomos o corpus a partir do inventário de lexias referentes à moda utilizadas na caracterização da personagem Ângela Ludovico. O inventário das unidades léxicas foi realizado sem o auxílio de softwares, em outras palavras, realizamos a leitura da obra e a recolha manual das unidades. Após a coleta dos dados e cotejo lexicográfico, intentamos demonstrar como o léxico da moda foi empregado para caracterizar a personagem dentro do romance.
O principal objetivo desse trabalho é realizar uma análise das lexias concernentes à moda, demonstrando como elas influem na caracterização da personagem, com o intuito de mostrar como as unidades léxicas da moda no discurso literário são capazes de propiciar uma construção identitária da personagem na narrativa. Como objetivo específico, pretende-se verificar a relação do léxico da moda com a realidade da época em que o romance se ambienta, a saber, a sociedade goiana no século XIX.
A relevância deste estudo está em evidenciar como a caracterização da personagem intersecciona-se com as relações sociais, econômicas e com os valores cristãos que permeiam a sociedade da época. As unidades léxicas da moda utilizadas também permitem perceber a representação do corpo feminino, em consonância com os padrões de feminilidade e sensualidade da época.
Essa investigação encontra-se dividida em três seções, a saber: i) “Do discurso literário às ciências do léxico: intersecções teóricas”; ii) “Apontamentos acerca da moda do século XIX” e iii) “Moda e sociedade no léxico usado na caracterização da personagem Ângela Ludovico”. Na primeira parte, discutimos sobre o discurso literário e a interseção com o léxico; no segundo momento, dissertamos sobre a moda do período em que a narrativa se insere e, por fim, na terceira seção, apresentamos a análise dos dados inventariados na obra em análise.
Chegou o governador um romance escrito por Bernardo Élis (1998). O autor informa, à orelha do livro, que não se trata de uma narrativa histórica, ainda que faça uso de “seres ações e situações reais e fictícias, tudo na compreensão de que caiba na medida de seu tempo” (Élis, 1998). A esse respeito, concordamos com Araújo (2018, p. 15) quando afirma que “à literatura [...] coube o papel de registrar o cotidiano da sociedade em vários aspectos, momentos e lugares, o que a permitiu ser reconhecida como canal de comunicação e documentação histórica e sociocultural”; contudo, ressaltamos que a literatura não possui como propósito a representação fiel do real, ou seja, não tem como objetivo representar ipsis litteris um fragmento da realidade situado em determinado tempo, mas ela pode servir-se de fatos ocorridos que, por sua vez, podem se mesclar à narrativa ficcional, construindo assim, uma amálgama entre ficção e realidade, culminando no produto final que é a narrativa.
Bernardo Élis Fleury de Campos Curado (1915-1997) foi um escritor goiano que se aventurou na escrita de romances, contos e poesias e também foi professor e advogado, ficando conhecido na carreira literária por Bernardo Élis. Filho de poeta, por meio de quem adquiriu o gosto pelas letras, sempre se manteve ligado a esse campo e foi agraciado com numerosos prêmios por sua escrita, conforme indica a sua biografia (Letras, 2016).
Além de sua produção literária, o autor se enveredou por ensaios culturais e sociológicos referentes ao Brasil e ao estado de Goiás, sua criação intelectual também abarcou as artes plásticas, produção jornalística e pesquisas no campo da História, conforme destaca Vicentini (2016). A autora postula que a obra de Bernardo Élis é volumosa quanto à quantidade de gêneros e que possui uma fundamentação local, ou seja, em seus ensaios, pesquisas e em sua literatura, Élis se volta às questões específicas de Goiás, construindo uma produção de vertente regionalista, tratando de temáticas historicamente localizadas; em especial, àquelas fixadas no ambiente rural (Vicentini, 2016). Neste sentido, vale ressaltar que a obra em estudo se insere nessa corrente literária regionalista, “que busca registrar [...] fatos da sociedade rural que se situam numa situação de risco histórico, isto é, sob o risco de perderem-se na sociedade total dada uma mudança social mais decisiva” (Vicentini, 2016, p. 244).
No caso desta investigação, pesquisar a moda atrelada à caracterização da personagem se justifica na tentativa de investigar o estilo e o léxico utilizados na narrativa para a obtenção de maior expressividade, pois, por meio das roupas, acessórios e itens que se inserem no campo da moda e que são atribuídos a cada personagem, podemos depreender especificidades do contexto cultural abordado na obra, da identidade da personagem e hierarquização social.
O discurso literário se manifesta por meio da linguagem artística. Visando à estética do texto, as palavras são utilizadas, muitas vezes, para além da significação referencial, consoante Cardoso (2018). A mesma teórica aponta que
O discurso literário é um ato linguístico e não pode ser isolado dos outros gêneros e estudado apenas pela literatura. Deve ser tratado também pela linguística como um gênero discursivo plural que mescla aspectos linguísticos e estilísticos, refletindo o contexto, a ideologia do autor, o momento sócio-histórico-cultural etc. A relação entre texto literário e dimensão sociocultural pode ser entendida quando se parte do texto para o contexto, isto é, ao analisar o texto literário do ponto de vista discursivo. (Cardoso, 2018, p. 16)
A partir desta concepção, é possível depreender que o texto literário manifesta uma realidade social e cultural, seja por meio das ações narradas, seja por meio das unidades léxicas utilizadas no discurso, assim como constatou Araújo (2018) quando considera que a literatura pode ser reconhecida como um canal capaz de documentar fatos históricos e socioculturais. Guiraud (1978, p. 23) corrobora esse pensamento ao preconizar que “as palavras guardam o reflexo das coisas que designam ou dos ambientes em que são empregadas [...]”. Diante disso, consideramos que as unidades léxicas constituem uma das formas de representação da linguagem; e, como qualquer outro elemento da comunicação, é necessário considerar os contextos de uso em que elas estão inseridas, no caso de nosso estudo, no discurso literário.
Por sua vez, concebemos, a partir de pesquisas como a de Micheletti (2014), que a estilística é uma disciplina produtiva em diversas perspectivas de estudo do texto; sendo assim, nesse caso, nos será útil à investigação do corpus constituído a partir do texto literário. Quando falamos em léxico, trazemos à lume a concepção de Biderman (2001) de que o léxico é o repositório dos saberes de uma comunidade, dada a sua potencialidade de representar valores, costumes, culturas, identidades e crenças dos seus usuários, medida em que se aproxima dos aspectos extralinguísticos. A respeito disso, a autora afirma que
[...] o léxico de uma língua natural constitui uma forma de registrar o conhecimento do universo. Ao dar nomes aos objetos, o homem os classifica simultaneamente. Assim, a nomeação da realidade pode ser considerada como a etapa primeira no percurso científico do espírito humano de conhecimento do universo. Ao reunir os objetos em grupos, identificando semelhanças e, inversamente, discriminando os traços distintivos que individualizam esses objetos em entidades diferentes, o homem foi estruturando o mundo que o cerca, rotulando essas entidades discriminadas (Biderman, 1987, p. 81).
Se o léxico de uma língua funciona como um espelho ou, como aponta Guiraud (1978), um reflexo, então, ao olharmos para a obra literária, que é fundamentalmente constituída por este léxico, veremos refletidos os valores sociais, econômicos e as condutas à época. Sendo assim, componentes semânticos e morfológicos da língua serão aliados aos referentes sintáticos e contextuais para constituir o foco dos estudos expressivos da estilística léxica, de acordo com Martins (2011).
Investigar o léxico de uma obra literária não se restringe somente a evocar os valores semânticos referenciais das unidades léxicas, mas também na compreensão de que a lexia expressa contornos específicos da linguagem. A esse respeito, Oranges (2017, p. 216) defende que “[...] o entendimento do sentido das palavras deverá se dar apenas pelo significado que elas possuem no contexto da obra, pois é nesse contexto que elas emergem”. Dessa forma, visamos analisar as lexias respaldando-nos em obras de caráter lexicográfico e terminográfico, mas não somente, visto que o contextos em que elas estão inseridas são um preponderante fator semântico levado em consideração durante a análise das unidades léxicas.
A moda, segundo Orsi e Almeida (2019, p. 193), possui uma linguagem própria que “transmite a identidade de um indivíduo e/ou grupo em determinada sociedade e época, portanto, pode ser entendida como forma de comunicação entre o sujeito e o mundo que o cerca”. As autoras também evidenciam que a moda se realiza a partir das escolhas que os indivíduos fazem de roupas, acessórios e maquiagens, que são baseadas em gostos pessoais e sociais, o que faz com que estes sujeitos exteriorizem suas preferências ao se vestirem e se adornarem.
Nos apoiamos em Crane (2006), que discute que durante o século XIX, a moda na Europa começou a ser popularizada em função da Revolução Industrial, que lançou mão das primeiras máquinas de costura. Antes disso, as roupas possuíam um valor elevadamente simbólico, monetário e de status, podendo até constar em documentos como herança. A moda é uma fonte reveladora de identidades e, por meio dela, podemos perscrutar por campos de estudos linguísticos, sociais, históricos, antropológicos, dentre outros. Uma das possíveis formas de se analisar a moda se dá por meio da investigação do léxico que a representa. À luz do exposto, Silva, Monteleone e Debom argumentam que
[...] estudar a moda em sua relação com a história é debruçar-se não apenas sobre as diversas mudanças e gostos ou de transformações de formatos de mangas, vestidos, cores, gravatas e paletós – ainda que isso também faça parte dos estudos históricos sobre a moda. Estudar a moda é olhar para o passado e ver a sociedade, a economia e o cotidiano que se expressam nas formas e materiais de uma vestimenta (Silva; Monteleone; Debom, 2019, p. 14).
É de consenso dos autores que se debruçam sobre as pesquisas dessa temática que, no século XIX, a sociedade se achava organizada em classes e, consequentemente, a roupa, como instrumento capaz de sublinhar características sociais, também demarcava posições dentro da coletividade. Os materiais, tecidos e trabalhos empregados na feitura das roupas demonstravam a quem eram destinadas, se compostas de têxteis finos e caros, ou daqueles de menor valor, por exemplo. Nesse sentido, se compreende que se vestir é uma forma de se posicionar. A respeito dessas ponderações, Pontes afirma que, no século XIX,
[...] a diferenciação entre os sexos, expressa e experimentada com o auxílio das roupas, dos adornos, dos cosméticos e de tudo o mais que compõe a plasticidade simbólica da moda, atinge patamares inusitados, inseparáveis, por sua vez, da competição entre as classes e frações de classe. Com o advento da burguesia, da democracia (que anulou os privilégios de sangue e eliminou as leis suntuárias no tocante ao uso de certos trajes, tecidos e cores que até então tinham sido privilégio e apanágio das elites aristocráticas), de novos espaços de sociabilidade burguesa (como o teatro, a ópera, as festas, os salões), dos grandes magazins (que ajudaram a introduzir a mulher burguesa no espaço público das cidades), da voga dos grandes costureiros e da máquina de costura (que tornou possível a reprodução em série e a popularização das vestimentas), a moda ganha uma relevância especial e, se bem analisada, funciona como um poderoso meio de apreensão das dimensões sutis e cruciais que conformam o jogo fascinante e impiedoso das interações sociais (Pontes, 2004, p. 30-31, grifo do autor).
Com o decorrer do século XIX, a moda e as vestimentas deixaram de se centrar na posição social ocupada pelo indivíduo na coletividade e deram lugar a uma nova significação, passando a ser também reveladora de personalidades de seus usuários, segundo constatou Brandini (2009). Observamos, pelo exposto, como a moda é passível de representar os sujeitos em múltiplas esferas socioculturais. Orsi e Almeida (2019) discorrem que a moda, no cenário brasileiro do século XIX, sofreu influências da moda europeia, admitindo, todavia, adequações de acordo com a localidade e os fatores climáticos do Brasil. Para essas autoras, outro fator que contribuiu para os usos de moda foi a introdução da cultura negra e indígena nas vestimentas. Assim, o léxico da moda confere a
[...] função de significação dentro da narrativa, principalmente nos romances do século XIX, onde os personagens deixam de representar a sociedade, como era o caso da poesia clássica, e passam a ser vistos como indivíduos inseridos em sociedades com personalidades e características únicas (Ribeiro, 2008, p. 87 apud Aguiar; Viana, 2017, p. 3).
Diante desse cenário, é possível observar que a literatura se serve do léxico relacionado à moda de uma comunidade para conferir expressividade a uma trama narrativa e para caracterizar as personagens. Como é possível observar, o léxico é uma das formas de representação da moda, tal qual representa identidades, a cultura de uma sociedade e seus valores e costumes. Ao dissertar sobre a moda e a história em literatura, Duarte (2011) assevera que a literatura, historicamente, conferiu grande importância às vestimentas; sendo assim, as roupas e a moda funcionam “[...] como um código capaz de acessar conceitos, práticas, representações, como símbolo e recurso construtor de identidades sociais, culturais e de gênero. Ela [a literatura] sempre se valeu das roupas [e da moda] para dar substância aos seus personagens” (Duarte, 2011, p. 1062).
Em vista disso, a autora discorre que a moda e as roupas estão presentes na literatura, assim, personagens são descritos e vestidos, contudo, antes de funcionar como um espelho da realidade sócio-histórica de uma determinada época, a moda representada na literatura, atende primeiramente a requisitos de ordem poética (Duarte, 2011). Neste sentido, analisar a moda que permeia uma personagem em uma narrativa também é uma forma de acessar o estilo do autor, as seleções vocabulares empregadas e os efeitos de sentido que as unidades léxicas da moda são capazes de engendrar.
Em face do que vimos discutindo, consideramos que as unidades léxicas relacionadas à moda são também elementos de caracterização das personagens na narrativa, compondo as suas identidades na trama. De modo complementar, a partir disso, também se faz possível traçar alguns contornos histórico-sociais da moda à época. Neste estudo, nos detivemos ao recorte temporal em que a narrativa transcorre: o século XIX. Esse século é de grande importância para a sociedade brasileira, pois é nesse momento que se intensifica o contato com outras culturas, sobretudo a europeia, consoante Orsi e Almeida (2019).
A personagem Ângela Ludovico se insere na narrativa enquanto uma jovem moradora da cidade de Vila Boa, não pertencente à corte real. O seu núcleo familiar não é ascendente economicamente, entretanto, não se trata de uma mulher com parcos recursos financeiros. A temática do romance de Bernardo Élis gira em torno da paixão entre Ângela e o governador da Capitania de Goiás, Francisco de Assis Mascarenhas, descrito por Élis (1998, p. 6) como “português, natural de Lisboa, filho de José de Assis Mascarenhas Castelo Branco da Costa Lancastre, 4º conde de Sabugal, senhor dos Paços de Sabugal e de Palmas, 9º alcaide-mor de Óbidos e Selir, descendente de um ramo da Casa Real de Bragança [...]”.
Na obra em análise, a personagem Ângela Ludovico é considerada uma personagem redonda, pois “[...] apresenta várias qualidades ou tendências e, por essa razão, é multiforme, complexa, eliminando qualquer possibilidade de simplificação” (Brait, 1987, p. 89). Sabemos que Ângela Ludovico realmente existiu e teve uma relação amorosa com o governador, entretanto, quase não se encontram registros sobre a sua vida. Ao fim da narrativa, no último capítulo do romance, Élis aponta que volvidos os anos, um estudioso[1] da História de Goiás documentou brevemente a respeito da personagem, dizendo que: “a História nada registra sobre ela, que foi o motor que impulsionou todos esses homens e seus gestos de heroísmo ou covardia, amor e ódio. O mundo, como a História, é só dos homens” (Élis, 1998, p. 170).
O fato de serem essas duas personagens de realidades distintas e de classes sociais discrepantes faz com que se estabeleça a dicotomia elite-populacho, conforme disserta Campos (2020), o que causará transtornos à continuidade dessa relação. Ademais, outro fator que fragiliza os laços entre as personagens é o não aceite de Ângela pelo concubinato descrito na trama. Para ela, a realização do matrimônio era essencial para dar continuidade à relação, pois o casal estava à espera de um filho e Ângela solicitava que o governador assumisse a responsabilidade com a criança. Além da oposição entre a corte e as pessoas da sociedade goiana, é possível notar também a polarização senhor-escravo descrita no romance.
Ao nos deparamos com as unidades léxicas referentes à indumentária e aos usos de moda de Ângela, notamos que Élis lança mão de unidades lexicais expressivas para a construção da personagem, composto de lexias[2] e sintagmas que a descrevem. As unidades léxicas utilizadas para a descrição de Ângela contribuem igualmente para esboçarmos uma imagem da moda vigente na época, na localidade em que se ambienta a trama, e como ela representa as personalidades dos sujeitos de maneira geral.
Ângela era uma jovem que, ao mesmo tempo em que se mostrava angelical e graciosa, era forte e destemida. Nesse sentido, ela faz uso do “leque”, que entendemos ser um componente do que, segundo Élis (1998, p. 34), constituía “um vasto código de comunicações [que] se estabelecia entre homens e mulheres por intermédio da linguagem de gestos [...]”. Podemos ver esta lexia sendo atribuída à personagem na seguinte passagem: “Ângela riu-se, abanando o leque com nervosia, atenta à voz do jovem que continuava: – Certamente que a menina terá muitos admiradores e pretendentes... certamente foi por vontade própria que ainda não tomou estado e...” (Élis, 1998, p. 35, grifo nosso).
De acordo com o dicionário de Houaiss e Villar (2009), o “leque” é um objeto de “abano feito de material leve (papel, seda, marfim etc.), que se agita manualmente para produzir corrente de ar, geralmente de forma semicircular, montado sobre lâminas móveis que lhe permitem encolher-se quando não está em uso”. Desse modo, para além de ser um objeto que compunha a indumentária das mulheres da época e que servia para abrandar o calor, o “leque” funcionava como um sinal dado pelas mulheres de que os cavalheiros poderiam se aproximar. Com esse intuito, a maneira com que a mulher o manuseava, abrindo e fechando ou a forma de o segurar fazia com que se estabelecesse uma linguagem gestual da conquista, consoante Sabino (2007)[3], em seu Dicionário da Moda.
Esse item que compunha a indumentária das mulheres da época era muito utilizado no cenário dos bailes, que eram importantes eventos na vida das jovens mulheres, uma vez que, para esses eventos, as meninas e moças calculavam meticulosamente seus trajes, ornamentos e formas de se portar e dançar. Segundo informa Torres (2020), o leque, considerado uma expressão abreviada de abano léquio (relativo às ilhas Léquias), representa simbolicamente o elemento “ar” e a sua origem diverge entre estudiosos; assim sendo: “determinados autores defendem o seu aparecimento por volta dos séculos VI e VIII, no Japão, com a utilização e formato que hoje lhe reconhecemos. Todavia, outros, datam o surgimento no período pré-clássico” (Torres, 2020, p. 134). Além disso, para fabricação dos leques eram empregados diversos materiais e técnicas, bem como motivos e estampas. Eram, ainda, considerados objetos de luxo, porque costumavam ostentar bordados requintados, elaborados com fios de ouro, prata ou outros tipos de ornatos (Torres, 2020). Torres aponta que
No Brasil, a difusão dos leques é feita quando da chegada da Família Real Portuguesa, e D. João VI, introduziu, ainda, a tradição dos leques comemorativos, personalizados para e a propósito de determinada data. Estes podiam ser leques de luto, compostos por materiais tais como penas de avestruz, renda e seda pretas, e adornos no mesmo tom. Mas, encontramos também leques de casamento, cujos tons eram brancos ou beges, ornados com pedras e pérolas, e bordados a fios de ouro e prata (Torres, 2020, p. 135).
Desse modo, podemos notar que o uso do leque no século XIX era popularizado, funcionando como um objeto de moda e de comunicação, além de operar como um demarcador social, uma vez que era um acessório luxuoso. Volpi (2013) considera que durante esse século os estilos dos leques se misturaram com os dos séculos anteriores e que surgiram novos modelos, técnicas e designers; ademais, eram encontrados para a venda em cabos trabalhados para a montagem ou prontos para o uso. Diante o exposto, concordamos com o pensamento de Ximenes (2004), para quem o uso de tal peça, assim como o do chapéu e de guarda-sol, funcionava como uma forma de composição da estética das roupas do período.
Em outros momentos da narrativa, podemos notar a força expressiva dos itens léxicos concernentes ao vestuário e acessórios empregados na caracterização de Ângela:
Ângela estava linda, num vaporoso vestido de melcochado, com abertura ao nível do cotovelo, deixando em liberdade os braços, enfeitados de pulseiras de ouro e pedras. Ao pescoço trazia trancelim de ouro de várias voltas, donde pende não apenas um pequeno crucifixo, mas um esgaravatador de ouro que pertenceu à avó; nas mãos refulgem diversos anéis, alguns de prata, outros de ouro, todos ornados de pedras semipreciosas de variegadas cores. Completa a indumentária, uma capinha de pano de prata, bandada de cetim lavrado (Élis, 1998, p. 81, grifos nossos).
A indumentária da personagem não foi composta levando em conta a simplicidade, contudo, suas vestimentas são sublimes, como é possível depreender de seu “vestido”, descrito como “vaporoso”, ou seja, é um vestido elaborado a partir de um tecido “que tem aspecto ou consistência tênue, transparente, diáfana” (Houaiss; Villar, 2009), que é o “melcochado”. A respeito deste tecido, o Dicionário Houaiss registra que ele é uma seda de cor cambiante ou furta-cor (Houaiss; Villar, 2009), Sabino (2007) não o contempla, entretanto, podemos criar uma imagem da designação dada ao vestido: um vestido leve, delicado, sublime, confeccionado com uma seda capaz de alternar suas tonalidades a depender da luz do ambiente.
Complementando seu vestuário, Ângela se vale de acessórios que demonstram seu poder aquisitivo, em decorrência da sua posição na sociedade goiana, tais como as “pulseiras” e “anéis” que, em sua maioria, eram constituídos “de ouro”, “de prata” ou “de pedras semipreciosas”. O Dicionário Houaiss, a respeito da lexia “ouro”, pontua se tratar de um elemento químico em forma de metal que pode ser muito valioso. Nas derivações de sentido desse verbete, é possível observar que versa sobre um objeto valioso, que demonstra riqueza e fortuna (Houaiss; Villar, 2009).
A “prata” é definida por Houaiss e Villar (2009) como “elemento químico, metálico e precioso” e, por extensão de sentido, significa dinheiro, assim como o ouro. As “pedras preciosas” são aquelas compostas por “mineral de brilho e coloração especiais, valioso por sua raridade e dureza, e que se lapida para ser usado em joalheria”, em concordância com Ferreira (2004), e as “semipreciosas” são caracterizadas por configurarem “gema[s] de menor valor comercial que uma pedra preciosa”, conforme Houaiss e Villar (2009). Atualmente, compreendemos que a qualificação das pedras como “semipreciosas” é desatualizada e carrega uma carga depreciativa, em virtude de serem todas as pedras caracterizadas como preciosas e, em alguns casos, pedras entendidas como “semipreciosas” serem avaliadas por preços maiores que as preciosas. Assim sendo, o uso da lexia “gema” é recomendado, em oposição a “pedras preciosas” e “semipreciosas”, e se refere aos materiais lapidados (Ribeiro, 2008; Benutti; Silveira; Pinheiro, 2009; Schumann, 1992).
Assim sendo, as “pulseiras” e “anéis” compostos desses materiais eram capazes de denotar que a sua usuária possuía poder aquisitivo para a obtenção desses acessórios. Outros acessórios de “ouro” que contribuem para a constituição do traje de Ângela referem-se ao “trancelim de ouro de várias voltas” e o “esgaravatador de ouro”. O “trancelim” é referente a um cordão “de ouro” que adorna o pescoço, consonante a Houaiss e Villar (2009), dessa forma, podemos criar uma imagem de um tipo de colar que se envolve ao pescoço da jovem várias vezes, o dicionário de Sabino (2007) não registra essa lexia. Relativo ao “esgaravatador”, o dicionário de Houaiss e Villar (2009) aponta que se trata de um objeto em forma de palito usado para fazer limpeza nos dentes ou ouvidos, atrelado à indumentária, a correlação que inferimos ao uso do esgaravatador de sua avó é relativo ao que Aragão (2019) considera como “joia de afeto”. As joias de afeto, segundo a autora “configuram uma categoria de objetos de adorno pessoal, que foram usadas para marcar vínculos de afeto entre pessoas, ao longo dos oitocentos” (Aragão, 2019, p. 44). Portar uma joia de afeto representava “a presença da pessoa querida, amparo e conforto, recordações vivas de momentos especiais, expressão de emoções, códigos de etiqueta, demarcação dos papéis e ligações afetivas e familiares [...]” (Aragão, 2019, p. 48). Diante ao exposto, consideramos que a personagem utilizou um artigo de uso pessoal de sua avó, o esgaravatador, o transformando em uma peça para compor seus acessórios, com a intenção de manter vivo o sentimento que nutria pela familiar, podendo carregar consigo a lembrança e o afeto.
Ao pescoço também levava um “pequeno crucifixo”, que é definido por Houaiss e Villar (2009) como qualquer representação feita de cristo à cruz. A religião católica foi importante na sociedade do século XIX e influenciou fortemente o comportamento feminino, defendendo a sacralidade do casamento e uma educação religiosa para as mulheres, visando o futuro dessas mulheres como esposas e mães, desse modo, elas eram vistas como essenciais na manutenção e fortalecimento de um lar cristão (Almeida, 2012). No que toca ao cenário religioso oitocentista, entendemos que “antes da primeira constituição republicana brasileira, de 1891, o catolicismo era a religião oficial do Estado e a única tolerada. [...] Quem era brasileiro devia ser também católico, ou não tinha lugar na sociedade” (Prandi, 2009, p. 50). À luz do exposto, a religiosidade se mostra presente na narrativa por meio do “crucifixo” utilizado pela personagem. Ângela faz uso desse item enquanto um acessório de uso rotineiro, assim é possível observar como o contexto religioso também influía na forma com que as mulheres se mostravam à sociedade, ou seja, se elas faziam uso de itens religiosos, do que é possível constatar que a sua vivência era permeada pelos valores simbólicos que são engendrados por esse acessório.
Para complementar a descrição da moda usada na caracterização da personagem, Élis utiliza a expressão “capinha de pano de prata, bandada de cetim lavrado” (1998, p. 81). Esse sintagma confere alguns traços da moda selecionada para Ângela, revelando aspectos de sua personalidade. O Dicionário de Houaiss e Villar (2009) define que a “capinha” é uma capa pequena. Desse modo, inferimos que esta lexia advém de “capa”, que remonta a uma espécie de veste sem mangas, utilizada sobreposta à roupa, contudo, no texto literário em estudo, designa uma peça do vestuário qualificada por seu tamanho. Em consonância com Martins (2011), concebemos que os processos de derivação sufixal, aqui especialmente a partir do sufixo -inho, configuram recursos estilísticos que agregam valores afetivos à carga semântica do radical, podendo manifestar “a apreciação, o carinho, a delicadeza, a ternura, a humildade, a cortesia” (Martins, 2011, p. 146). Desse modo, o uso de “capinha”, em detrimento de “capa”, pode estar ligado à delicadeza da veste utilizada pela personagem ou à pequena dimensão da peça.
Em relação à “capinha”, ainda é informado que seu material é o “pano de prata”. Como anteriormente mencionado, a prata carrega consigo a correlação com posses e riqueza, fazendo da pequena capa um artigo que transparece o luxo. À vista disso, o “pano de prata” é um tipo de tecido produzido a partir de fibras químicas artificiais, nas quais a matéria prima é de origem metálica, podendo ser elaborado a partir de materiais como ouro, prata, cobre, alumínio, latão, entre outros, conforme pontua Pezzolo (2017). Os fios constituídos por estes insumos foram utilizados desde a antiguidade para constituir tecidos, com a finalidade de conferir luxo a decorações de roupas e estofados, os fios metálicos tinham como objetivo serem funcionais e decorativos e historicamente compuseram vestuários de reis, rainhas e pessoas de status (Kuasne, 2009; Tecidos, 2011).
Ao dissertar sobre o uso desses tecidos na Idade Média, Pezzolo (2017) aponta que eles constituíam as vestes das classes mais ricas e do alto clero ortodoxo da época. Diante disso, entendemos que algumas características engendradas por esses têxteis são o luxo, a riqueza e, em consequência, um posicionamento elevado na hierarquia social, uma vez que são restritos às pessoas que eram detentoras de poder, status e recursos aquisitivos. À luz do exposto, constatamos que o “pano de prata” descrito na narrativa é referente a um tecido composto pela fibra metálica de prata, que conferiu uma característica de requinte à capinha utilizada pela personagem, o que faz com que Ângela seja caracterizada e perpassada por ares de opulência.
Além disso, no tocante às características dessa “capinha”, ela é “bandada de cetim lavrado”, ou seja, o ato de “pôr banda” refere-se a guarnecer, adornar a peça (Houaiss; Villar, 2009) com o tecido de cetim, nesse caso. O texto aponta que o “cetim” ainda foi “lavrado”, ou seja, diferentemente dos panos lisos, possui uma decoração “constituída por motivos mais ou menos complexos, criados pelo cruzamento de teias e de tramas”, conforme aponta Costa (2004, p. 158). O lavor é feito por meio de agulhas, como apontam Houaiss e Villar (2009). O cetim é conhecido por ser macio, lustroso, brilhante e absolutamente liso, de vários tipos e qualidades, sendo utilizado para compor desde vestidos de noivas a fantasias de carnaval, como asseveram Sabino (2007), Houaiss e Villar (2009).
Defronte a outro excerto da narrativa, é possível nos colocarmos diante de trajes que compõem o vestuário de Ângela, lhe conferindo uma qualidade particular em relação aos demais personagens da trama. A situação envolve um disfarce para que possa sair à noite sem ser vista. Os acessórios “capa” e “luvas” foram usados para dissimular a sua verdadeira identidade ao andar pela noite com o intuito de visitar o governador às escondidas. Como mostra o trecho a seguir:
Mal se passara talvez um quarto de hora, o governador ouviu que lhe batiam mansamente na porta. Sem perguntar, abriu e quem entrou foi uma pessoa embuçada em uma capa. Na sombra, por trás de quem entrou, havia um vulto que ponderou: – Nunca se esqueça de perguntar quem bate na sua porta, senhor conde. Olhe lá! A D. Francisco não pareceu estranha essa voz, mas estava muito curioso em descobrir quem entrara tão completamente embuçado. Assim, fechada a porta, o governador delicadamente retirou a longa capa em que se embuçava o visitante, cujas vestes causaram admiração pelo luxo. Num gesto rápido, o jovem viu que a visita retirava as luvas pretas e delas saíam duas mãos alvas e delicadas que não lhe eram estranhas. Aí D. Francisco olhou atentamente e reconheceu os traços fisionômicos de quem lhe era muito familiar, embora as feições escondessem debaixo de uma grossa tintura preta.
– Ora, veja só! Era Ângela que ali estava na sua frente, o rosto besuntado de azeite e carvão para disfarçar-se em escrava. (Élis, 1998, p. 85, grifos nossos)
É possível notar que a “capa”, “longa capa” “luvas pretas” são atreladas à capacidade de envolver a personagem em um universo distinto do seu, ela podia fazer uso dessas roupas no cenário noturno, pois essa atitude possibilitava que ela passe despercebida aos olhos da sociedade, visto que assume uma nova identidade. Em seu imaginário vestindo-se com esses trajes, seria tida com uma escravizada e, ao fazer isso, tomaria para si uma posição de invisibilização dentro do panorama social exposto pela trama, visto que mulheres e homens escravizados recebiam esse tratamento. Entendemos então, que o vestir está relacionado às percepções negativas ou positivas das identidades na esfera social, o que é asseverado na passagem retromencionada quando a retirada da capa utilizada pela personagem descobre as suas vestes de luxo, nesse momento ela não era mais vista como uma “pessoa embuçada em uma capa” (Élis, 1998, p. 85), era Ângela.
Como anteriormente mencionado, a “capa” se refere a um item utilizado sobreposto à roupa, aqui, com o intuito de ocultar uma identidade, nesse caso, diferentemente de “capinha”, temos a unidade léxica “capa” e “longa capa”. A “longa capa” é utilizada por Ângela para esconder a sua verdadeira identidade; a qualificação conferida à “capa” pelo adjetivo “longa” nos dá a ideia de disfarce, enquanto a “capinha”, contrariamente, demonstra a delicadeza, sofisticação e poder aquisitivo da personagem. As “luvas” são definidas por Houaiss e Villar (2009) como uma peça do vestuário que pode ser confeccionada em diversos materiais e cumpre o objetivo de cobrir as mãos. Pode ser usada para distintos fins, como enfeite ou acessório, sendo comuns na composição de indumentária do século XIX, tanto no período diurno quanto no noturno, como sugere Sabino (2007). A “luva preta”, então, observada na descrição da personagem, teve por finalidade tornar o tom de pele de Ângela similar ao de uma pele negra, pois a “capa” poderia não cobrir essa parte do corpo, fazendo com que pudesse ser descoberta. Nessa situação, a cor utilizada para caracterizar as “luvas” são de intensa significação pois aqui, assume outro viés, o da distinção social.
Em outro fragmento da trama, também é possível ver expressa essa relação, porque a personagem necessita se disfarçar de escravizada para sair de Vila Boa, visto que os escravizados transitavam sem serem reconhecidos. Dessa maneira, temos a seguinte passagem: “Enquanto tomava conhecimento da tal notícia, o Sr. Brás Martinho expedia novas ordens. Que Ângela vestisse roupa grossa de escravo e pintasse o rosto e as mãos de preto para deixar a Vila pela madrugada” (Élis, 1998, p. 119, grifo nosso).
Ante o exposto, podemos constatar que as roupas destinadas às pessoas da elite correspondiam a vestes mais elaboradas e compostas de materiais finos e variados, enquanto as roupas de escravizados eram confeccionadas a partir de materiais grossos e pouco valiosos, o que vai ao encontro dos estudos alavancados por Bernardo e Murakawa (2016), a respeito dos têxteis documentados no Brasil Colônia, a partir dos quais reconhecem que, para os negros escravizados, eram confeccionadas vestimentas de tecidos rústicos, constantemente empregando-se os mesmos tecidos com que se embrulhavam produtos, o que confere a essas pessoas uma objetificação, colocando-as em uma esfera de mercadorias, que poderiam inclusive ser comercializadas. Ademais, a objetificação pode ser ratificada pela capacidade de tornar a roupa deste grupo uma “fantasia” que conferia invisibilidade social.
Diante dos fragmentos da obra trazidos à lume, podemos perceber nuances da moda oitocentista que caracterizam a personagem em estudo, como é possível observar no trecho abaixo:
E Ângela chamou Lídia para ajudá-la a vestir-se. Botou um vestido de cassa levemente rosado, de corpinho muito curto e mangas de enormes volumes, conhecidas como mangas de presunto. Tinha um toucado alto, enfeitado de plumas, levando na cintura uma espécie de rosário de grandes contas de ouro, com ouros e brilhantes também nos brincos, braceletes e anéis. Bem, nos brincos não eram brilhantes. Eram outras pedras que os brilhantes eram proibidos pelo rei de serem usados na Colônia. Aqui, só pedras semipreciosas. Displicentemente caído nos ombros, havia um xale claro com fios dourados. Iria acompanhada de Lídia que levava saia de ganga azul por cima de uma blusa de chita e um grande lenço branco dobrado em triângulo posto na cabeça (Élis, 1998, p. 106-107, grifos nossos).
Frente a esse trecho, conseguimos construir uma representação imagética do vestuário de Ângela, que trajava um “vestido de cassa levemente rosado”. Segundo registram Houaiss e Villar (2009) e Sabino (2007), o “vestido” é considerado uma peça da indumentária feminina que pode se constituir de duas peças separadas ou uma inteiriça e que cobre parte do tronco e dos quadris, podendo ter tamanhos variados, com ou sem a presença de mangas. Em especial, o “vestido” presente na descrição da personagem, nesse excerto, é confeccionado a partir de um tecido denominado por “cassa”, que pode ser de linho ou de algodão e é um tecido fino e transparente, em conformidade com Sabino (2007) e Houaiss e Villar (2009). Outra informação que merece destaque neste trecho trata-se da cor, ao mencionar que ele é “levemente rosado”, ou seja, possui uma cor leve, “tirante a rosa; roseado” (Houaiss; Villar, 2009).
Referente ao vestido da personagem, vê-se que ele possui um “corpinho muito curto e mangas de enormes volumes” (Élis, 1998, p. 106, grifos nossos). Neste excerto, o “corpinho” remonta à parte superior do “vestido”, que é definido como sendo o mesmo que o corpete, conforme aponta o dicionário Houaiss (2009). Aqui, mais uma vez ocorre o fenômeno da derivação sufixal com o acréscimo do sufixo -inho, relacionado ao radical corp-, o que gera uma mudança semântica da palavra primitiva, ou seja, há uma criação lexical que confere expressividade à indumentária utilizada e designa uma peça de vestuário: o corpete. Conforme aponta Martins (2011), nesse caso, a sufixação por meio do sufixo -inho pode representar uma dimensão pequena do “corpo” do vestido.
O corpete, conforme postula Reis (2012) era usado geralmente debaixo da roupa, redefinindo as formas do torso, diminuindo a cintura e evidenciando o busto, além disso, funcionava como um suporte para a coluna, o objetivo dessa peça para o vestuário era “ajustar, modelar e modificar as medidas da silhueta”, colocando em evidência uma cintura fina e modelada e conferindo vislumbre ao busto feminino, essa peça
[...] surgiu como se fosse uma armadura rígida, com várias camadas de tecidos grossos reforçadas por cordas, usados apenas por nobres, que se destacavam do restante da sociedade. Todavia, essas peças resultavam em grande desconforto e eram usadas exclusivamente por mulheres integrantes da nobreza. Com o tempo, tomou contornos mais confortáveis, mas a sua confecção realizava-se mediante trabalho árduo e de custos elevados. Servia de base para a roupa feminina, a fim de assentar bem a vestimenta. Seu uso foi mais difundido na época Vitoriana, tornando-se então peça indispensável para que a mulher se adequasse aos padrões de beleza exigidos na época. Ganhou tecidos especiais para sua confecção, o que permitia maior uso de criatividade para ser elaborado e favorecia uma cintura cada vez menor (Reis, 2012. p. 17).
Segundo disserta a autora, “na metade do século XIX, o vestuário feminino pesava entre cinco e quinze quilos. Era composto por espartilho, camadas de corpetes, três ou mais anáguas, uma armação de saia ou crinolina, um vestido comprido, além de acessórios como xales, toucas ou chapéus” (Reis, 2012, p. 14).
Assim, é possível notar que o uso desse item era comum à moda da época e foi utilizado na caracterização da personagem descrita por Élis. Entre inúmeros significados que abarcam o uso dessa peça, bem como do espartilho, ter o corpo espartilhado durante o século XIX demonstrava respeitabilidade e autodisciplina (Reis, 2012). Apesar de o dicionário Houaiss definir o “corpinho” enquanto sinônimo de espartilho, ao consultar a obra “Enciclopédia da Moda: de 1840 à década de 90”, de autoria de Georgina O’Hara Callan (2007), nos defrontamos com uma acepção na qual o “corpinho” é definido enquanto “[...] peça íntima popular até a década de 20. Baseado na camisola, era muito armado com barbatanas e acolchoado para dar uma aparência cheia, arqueada e arredondada ao busto. Ajustado em volta dos seios ou ligeiramente mais comprido, foi, mais tarde, substituído pelo SUTIÔ (Callan, 2007, p. 95).
Acreditamos que as peças definidas enquanto “corpinho” e “espartilho” são interpretadas pelo dicionário Houaiss como sinônimas pelo caráter de semelhança que compartilham: ambas eram entendidas como peças do vestuário utilizadas na parte de cima do corpo e com funcionalidades parecidas, pois apresentavam-se ajustadas ao busto com a finalidade de valorizá-lo, além disso, possuíam armações em barbatanas para conferir a sustentação que era característica destes artigos de moda.
O sintagma “mangas de enormes volumes” parece remeter às “mangas presunto”, no entanto, o Dicionário Houaiss não registra essa significação, concernente a uma expressão cristalizada na linguagem especializada da moda, que alude ao “tipo de manga com grande volume na altura da cava, ajustando-se no punho e reproduzindo a forma de um presunto com osso. A manga presunto foi muito usada entre as décadas de 1880 e 1890, mas já foi revivida em outras décadas do século XIX” (Sabino, 2007, p. 424). Esse tipo de manga volumosa foi empregada na segunda metade do século XIX e compôs o vestuário agregando amplitude às peças, o volume que anteriormente integrava as saias agora aparece nas mangas. A expressão utilizada por Élis para referir-se a elas nos dá a dimensão do volume que compunha a indumentária. Acerca do uso de “mangas de enormes volumes” para a composição do vestuário da época, Ximenes (2004, p. 45) discorre que durante o século XIX, “por volta de 1822 as saias se encurtam, tomando forma de sino, mais armadas e as mangas ficam mais fofas, provocando maior destaque ainda; mas paradoxalmente acentuando a impressão de fragilidade da figura feminina”. Nesse sentido, a capacidade de mangas volumosas conotarem a fragilidade feminina na moda deste período assevera de forma mais intensa o papel social da mulher e os valores aos quais estavam submetidas, assim, podemos notar parte da personalidade de Ângela Ludovico sendo manifestada através dos costumes de moda em voga.
Outra descrição utilizada na caracterização da personagem foi “toucado alto, enfeitado de plumas”, em que “toucado” refere-se ao “conjunto dos adornos na cabeça de uma mulher”, compondo o seu penteado, consoante Houaiss e Villar (2009). Neste caso, entendemos ser um “toucado” elaborado de modo elevado à cabeça e adornado de plumas, que contribui para a representação de Ângela como uma mulher elegante e glamourosa. Segundo pontua Schindler (2001), o mundo ocidental viveu um momento de assomado uso de enfeites plumários no campo da moda a partir do encerramento do rococó, é nesse momento que as senhoras começam a fazer uso de penteados e perucas que se mostravam cada vez maiores e mais elaborados, neste sentido, o uso plumário se incorpora à moda e integra a ornamentação.
A complementação da descrição do traje da personagem referida também inclui o item “rosário de grandes contas de ouro”, em que nota-se mais uma vez a interferência de símbolos, nesse caso, do catolicismo, atrelados ao vestir. O rosário não é, à primeira vista, um item de moda, se constituindo como um objeto em forma de fio com 165 pequenas contas, cada uma delas representando uma oração na doutrina da Igreja Católica, em conformidade com Houaiss e Villar (2009). Deste modo, é importante observar que a religiosidade católica estava imbuída no cenário goiano oitocentista, podendo ser observada através de elementos que complementavam a indumentária da personagem Ângela Ludovico, que ao fazer uso do rosário, apropria para si a característica de mulher praticante do catolicismo.
É possível observar, a partir do trecho supracitado do romance que, com alguma frequência, a personagem recorria às joias para compor seu visual, sendo os ornatos, em sua maioria, elaborados a partir de materiais como “ouro” e “brilhantes”, além de “pedras semipreciosas”. As lexias que remetem a esses objetos de ornamentação são “brincos”, “braceletes” e “anéis” e, no que concerne ao material empregado, temos as lexias “de ouro”, “brilhantes” e “pedras semipreciosas”, que denotam uma posição hierárquica relativamente alta da personagem dentro da sociedade goiana do século XIX.
A personagem também é caracterizada pelo uso de um “bracelete”, definido por Houaiss e Villar (2009), como um objeto de adorno feito de materiais diversos, em formato de aro, para ser usado no pulso, antebraço ou braço. Relativamente ao fragmento em análise, o “bracelete” de Ângela possui “ouro” e “brilhantes” em sua composição, o que assevera o caráter precioso de suas jóias.
Para integrar a composição do traje de Ângela, nesse excerto é informado que ela utiliza um “xale”, como pode ser observado a partir do fragmento: “Displicentemente caído nos ombros, havia um xale claro com fios dourados” (Élis, 1998, p. 107, grifos nossos). O “xale” é definido por Houaiss e Villar (2009) como uma manta de lã ou seda, que faz parte da indumentária feminina como ornato ou agasalho. É utilizado sobre os ombros, tronco ou cabeça. Sabino (2007) assinala que os “xales” são utilizados desde o século XVIII e possuíam bordados, tendo sido, no século XIX, grandes aliados da moda. A descrição do “xale” nos permitiu tecer uma representação imagética da sua aparência: ele possuía coloração clara, com fios dourados. Observamos que as roupas e acessórios utilizados pela personagem aqui analisada geralmente são de colorações claras e possuem como atributo a leveza e graciosidade.
Outra característica da sua indumentária é descrita em momento posterior na narrativa, quando a personagem Ângela recebe a visita do governador em sua casa. Para tal recepção, ela apresenta-se bem vestida, porque desejava causar uma “boa impressão”, mesmo que a relação entre eles não estivesse fluindo como o esperado. Ao preparar-se para o encontro,
Ângela estava nervosa. Queria apresentar-se bem vestida, bem disposta e com sua beleza bem cuidada. Trazia um vestido de pano leve e claro, cujo enfeite estava na meia-anquinha do roupão e nos ricos passamares do gibão de seda pinhoela. Calçava sapatilhas de renda da mesma cor do roupão e tinha os cabelos meio soltos, arrepanhados no alto da cabeça por um arranjo em coque, apoiando num grande pente de tartaruga (Élis, 1998, p. 153, grifos nossos).
A personagem elegeu um “vestido de pano leve e claro” de maneira pretensiosa, porque queria parecer elegante e bem disposta para receber o governador. Crê-se que essas características constituem estigmas aos quais as mulheres eram submetidas à época, pois deveriam se apresentar bonitas e bem dispostas em qualquer situação. Um vestido constituído de “pano leve e claro” seria uma peça para transparecer esse cuidado e demonstrar ao governador uma segurança e singeleza . Acerca do uso das cores, Smith (2008) pontua que uma cor pode determinar e exercer influência na forma com que as pessoas que a utilizam são entendidas e percebidas na sociedade, ou seja, para a autora, as cores desempenham um papel e possuem funções simbólicas, especialmente no que se refere à moda, elas têm a capacidade de emitir julgamentos e de omitir ou evidenciar identidades de seus usuários. Diante disso, acreditamos que ao utilizar uma roupa de tons claros, a personagem agrega para si características como a inocência, pureza, sutilidade e nobreza, uma vez que determinadas cores frias são associadas ao simbolismo da paz, do sagrado e religioso, da harmonia e do status social, diferentemente de uma cor quente como o vermelho que é associado à paixão, sensualidade, sangue e fogo (Pina, 2009). Assim, ao utilizar um vestido de “pano leve e claro”, Ângela se apropria, mesmo que inconscientemente, das propriedades simbólicas que são engendradas pelas cores de tonalidades claras, o que corrobora com seu status social, pois acreditamos que os tecidos de cores mais alvas “significavam status social elevado por causa da pureza da cor” (Pezzolo, 2017, p. 17).
Juntamente ao “vestido”, foi utilizada uma “meia-anquinha”, apetrecho bastante característico da moda da época, caracterizado por uma “armação de arame ou almofadas, usadas pelas mulheres até meados do século XIX para realçar os quadris e dar mais roda às saias”, conforme nos revelam Houaiss e Villar (2009). As anquinhas, também conhecidas como bustle[4], foram utilizadas majoritariamente nas décadas de 1860 e 1870 (Callan, 2007) e eram confeccionadas em diversos materiais. Com o tempo, elas sofreram modificações em seus tamanhos e formatos. O objetivo dessa peça do vestuário era de conferir volume aos vestidos na região das nádegas e, com isso, modelar a silhueta. Laver (1989, p. 196), pontua que em “meados da década [de 1870], a anquinha alta havia desaparecido” e a partir da segunda metade da década de 1880 as anquinhas retornam em novo formato, nessa nova modelagem, a peça se “projetava horizontalmente nas costas, mas a estrutura não era mais um artifício de crina, como no início da década de 1870” (Laver, 1989, p. 198). A respeito do uso da “anquinha”, Sabino ressalta que era usada
[...] para das volume à parte posterior das saias dos vestidos, muito usada entre 1870 e 1880 após o desaparecimento da crinolina em torno de 1867. O volume da peça era conseguido por intermédio de uma estrutura de tela de arame que podia ser inteiriça ou confeccionada com gomos dessa mesma tela interligados por tiras de tecido. Era presa à cintura por meio de um cinto acoplado à parte superior da estrutura de arame e geralmente fechado por uma fivela. Podia também ser um enchimento costurado a um dos tipos de anáguas usados por baixo do vestido. Com o passar do tempo, reduziu-se a uma pequena almofada ou peça acochoada preenchida com materiais como cortiça ou penas e, em torno de 1890, quase já não era mais usada (Sabino, 2007, p. 60).
Nesse caso, há a ocorrência de uma leve anquinha, pois é possível depreender que “meia-anquinha” se refere a um menor volume concedido às saias das vestimentas. Essa lexia se liga ao “roupão” trajado pela personagem, o qual, de acordo com Houaiss e Villar (2009), constitui uma peça larga e comprida, que é própria para se usar em casa. Costa e Sales (2015), informam que essa veste é “[...] longa e confortável, aberta na frente, de mangas compridas e cinto, usada sobre a roupa de dormir ou sobre a roupa de baixo, ou para ficar à vontade” (Costa; Sales, 2015, p. 370). Em relação a essa peça do vestuário, Callan informa que se trata de um “casaco largo, de mangas compridas, feito de tecidos luxuosos e usado dentro de casa. Geralmente, é abotoado ou fechado com zíper até a gola alta” (Callan, 2007, p. 273-274), neste caso, acreditamos se tratar de um roupão para a deixar mais confortável em sua casa e para garantir sua boa apresentação, uma vez que essa peça também transmitia uma sofisticação graças a sua decoração. Cremos que, por ser o seu vestido de “pano leve e claro”, pouco trabalhado, o motivo de a personagem utilizar o roupão se centra em agregar às suas vestes a elegância que almejava expressar, uma vez que por meio da descrição deste item do vestuário, podemos entender que se trata de uma vestimenta luxuosa e detalhadamente ornamentada.
A descrição do vestuário da personagem perpassa pelo sintagma “passamares do gibão de seda pinhoela”, relativo à riqueza do ornato do roupão de Ângela, uma vez que, segundo as obras consultadas, os passamanes são adornos de fita, galão, franjas, dentre outros, relativos ao trabalho da passamanaria, esses enfeites podem ser feitos de prata, ouro ou seda, constituindo “fitas, franjas, galões, borlas ou bordados” (Sabino, 2007, p. 48), com a finalidade de enfeitar roupas, cortinas e estofados, conforme apontam Houaiss e Villar (2009) e Sabino (2007). Nesse sentido, notamos que a personagem vestia, além do “vestido de pano leve e claro”, um “roupão” adornado em “seda pinhoela”.
O “gibão” é definido como um tipo de casaco curto, semelhante a um colete e que era comumente utilizado sobre uma camisa, como registram Houaiss e Villar (2009) e Sabino (2007). Acerca dessa peça do vestuário, Callan (2007, p. 145) nos diz se tratar “originalmente de um casaco de operário [...], cortado com ombros largos e mangas compridas. Feito de mélton, sarja ou lã, foi pela primeira vez adaptado ao uso informal durante a década de 20, voltando a ser popular na década de 50”. Prioritariamente, essa vestimenta era destinada ao público masculino, figurando como a principal peça do guarda-roupa dos homens no século XVI, a sua extensão podia chegar até os joelhos, essa espécie de jaqueta sofreu diversas modificações a depender do tempo (Laver, 1989). No caso da ocorrência dessa lexia no trecho em análise, acreditamos na hipótese de se tratar de um uso sinonímico empreendido por Élis, constituindo um recurso estilístico para se referir ao roupão anteriormente citado, possivelmente essa seleção vocabular foi realizada a fim de evitar a repetição da unidade léxica, como pode ser observado no fragmento: “Trazia um vestido de pano leve e claro, cujo enfeite estava na meia-anquinha do roupão e nos ricos passamares do gibão de seda pinhoela” (Élis, 1998, p. 153, grifos nossos). Consideramos essa hipótese uma vez que o “roupão” possui características aproximadas do “gibão”, ambos são vestes compridas e que possuem uma abertura frontal.
Os passamanes que adornavam o “roupão” foram elaborados a partir de “seda pinhoela”, um antigo tecido ornamentado por círculos aveludados, consoante Houaiss e Villar (2009), no que diz respeito ao contexto do discurso literário em análise, se encontra atrelado a um “vestido” e um “robe”. Para finalizar a descrição do traje presente nesse trecho, notamos que Ângela faz uso de “sapatilhas de renda”. Essa peça do vestuário diz respeito a um calçado flexível e macio, com sola fina, geralmente utilizado em casa e composto de um tecido fino e delicado que forma desenhos variados de acordo com os entrelaçamentos dos fios que compõem sua malha aberta, as rendas são aplicadas para a guarnição de utensílios de moda, de acordo com Houaiss e Villar (2009).
Um último toque é dado à composição do visual de Ângela com o uso do “pente de tartaruga”, que é semelhante a um pente usado para desembaraçar o cabelo, possuindo dentes maiores, com a finalidade de prender ou adornar os cabelos. Recebe este nome devido ao seu material, porque é elaborado a partir da “tartaruga”, material derivado do casco das tartarugas, especialmente da tartaruga marinha Eretmochelys imbricata, a tartaruga-de-pente, como registram Houaiss e Villar (2009). Este utensílio era utilizado
[...] para asseio pessoal e como adorno por mulheres de diversas culturas. Durante o período colonial no Brasil, o pente foi bastante utilizado, revelando a preocupação das mulheres com os cabelos nos espaços públicos, onde eram exibidos variados tipos de penteados, como coques e tranças [...] (Glossário, 2021, grifo no original).
Diante disso, entendemos que esse item, que compôs o penteado de Ângela, pode ser considerado como parte dos acessórios da personagem, demonstrando que, mesmo em um ambiente informal, o cuidado com os cabelos e sua apresentação impecável se mostrava essencial para ela.
A partir das análises empreendidas, foi possível verificar como os itens léxicos relativos à moda caracterizaram Ângela Ludovico dentro de uma trama literária situada no século XIX e como a moda é capaz de se fazer reveladora da identidade, anseios e vontades da personagem. Por meio de substantivos, adjetivos, locuções adjetivas e sintagmas o discurso literário foi revelador dos costumes e culturas de moda desta época, visto que ao léxico é dado o poder de registrar os costumes de um povo.
Diante das análises desenvolvidas nesta investigação, constatamos ser a moda representativa da cultura e identidade de uma parcela da sociedade na qual se encontra situada, sendo assim capaz de representar essas identidades. Atendemos aos objetivos inicialmente propostos ao discorrer sobre a moda no cenário goiano oitocentista, representada pela literatura regionalista, em especial, na obra Chegou o governador,de Bernardo Élis (1998).
Concluímos que Ângela, a personagem sobre a qual nos detivemos, é caracterizada enquanto uma mulher delicada, mediante o uso de vestimentas que têm em sua composição tecidos como o “melcochado” e a “cassa”, por exemplo, porém destemida e decidida em situações que cercam a sua vida, ao usar “luvas” e “capa” para não ser reconhecida em suas saídas noturnas. Os usos de moda que permeiam essa personagem demonstram que ela pertencia à uma camada social goiana que era prestigiada à época. Entretanto, para o governador e sua comitiva, ela compunha a classe popular, o que vai ao encontro da constatação de Campos (2020) sobre a dicotomia elite-populacho que se estabelece na trama. Os indivíduos da Coroa eram considerados pertencentes à elite e, para eles, as pessoas naturais de Vila Boa eram o povo, uma camada inferior.
Diante da caracterização da personagem feita a partir do vocabulário da moda, fica evidente que Ângela se apresentava à sociedade como uma mulher influente na sociedade vilaboense, pois em seu guarda-roupa constavam itens de moda que demonstravam o luxo, a exemplo do uso de acessórios, como “pulseiras” e “anéis” em “prata” e “ouro”, “esgaravatador de ouro”, “trancelim de ouro”; além disso, em contraposição, algumas de suas peças perpassavam características como a singeleza e a religiosidade, como mostram as unidades léxicas “crucifixo” e “rosário”, apontando um contraste na construção de sua identidade na trama.
Há um perfil idealizado de mulher na descrição da personagem, por meio do uso de cores claras, por exemplo, em suas vestimentas, como em “vestido de pano leve e claro” e “xale claro com fios dourados”, que também conferem-lhe elegância. O uso da lexia “corpinho muito curto” também revela uma construção da feminilidade da personagem, alinhada aos padrões da época, que colocavam em evidência o corpo da mulher, com a cintura afinada e o busto em destaque.
Ressaltamos a importância do desenvolvimento de estudos nessa vertente, visto que, como é possível constatar por meio desta investigação e das pesquisas que compuseram o corpo bibliográfico deste estudo, há ainda um espaço reduzido no cenário das pesquisas que interrelacionam linguagem, léxico, estilística, moda, e literatura.