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DE CÉSAR A KAISER: A JORNADA DO HERÓI NO RPG ORDEM PARANORMAL
Muiraquitã, vol. 11, núm. 2, pp. 418-435, 2023
Universidade Federal do Acre

Artigos

Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade is licensed under CC BY-NC-ND 4.0

Recepción: 28 Julio 2023

Aprobación: 22 Octubre 2023

DOI: https://doi.org/10.29327/266889.11.2-23

Resumo: A Jornada do Herói, popularizada por Campbell, é fundamental na narrativa, criando histórias cativantes. Aqui, será explorado o Monomito no contexto dos jogos de RPG de mesa, em que os jogadores assumem papéis de personagens em aventuras. Serão analisadas as seguintes campanhas de Ordem Paranormal: ‘O Segredo na Floresta’ e ‘Desconjuração’, transmitidas por Rafael Lange, na Twitch TV. O foco será na jornada de César Cohen, interpretado por Thiago Campos, e como ele enfrenta desafios que testam suas habilidades e valores, permitindo seu crescimento ao longo da campanha. A estrutura narrativa do Monomito possibilita a exploração de temas universais, como busca por identidade e a luta entre o bem e o mal. Além de entreter o público, a Jornada leva a reflexões e conexões emocionais profundas com a história e o personagem, mesmo dentro de um jogo. Com base nas teorias de Campbell (1997), Lortz (1979), etc., busca-se compreender o impacto da Jornada do Herói nos RPGs e na narrativa interativa.

Palavras-chave: Jornada do Herói, Monomito, RPG, Ordem Paranormal.

Abstract: The Hero’s Journey, popularized by Campbell, is fundamental to storytelling, creating captivating stories. Here, the Monomyth is explored in the context of tabletop role-playing games, in which players take on the roles of characters in adventures. The following Ordem Paranormal campaigns are analyzed: ‘The Secret in the Forest’ and ‘Unconjunction’, broadcast by Rafael Lange, on Twitch TV. The focus is on the journey of César Cohen, played by Thiago Campos, and how he faces challenges that test his skills and values, allowing his growth throughout the campaign. The narrative structure of the monomyth allows the exploration of universal themes, such as the search for identity and the struggle between good and evil. In addition to entertaining the public, the Journey leads to reflections and deep emotional connections with the story and the character, even within a game. Based on the theories of Campbell (1997), Lortz (1979), etc., we seek to understand the impact of the Hero’s Journey on RPGs and interactive storytelling.

Keywords: Hero’s Journey, Monomyth, RPG, Ordem Paranormal.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Jornada do Herói é um tema central e recorrente na narrativa, sendo, portanto, amplamente reconhecido como um dos elementos fundamentais para contar histórias cativantes e envolventes. A estrutura narrativa do Monomito foi popularizada por Joseph Campbell (1997), em seu livro O Herói de Mil Faces, descrevendo uma jornada épica em que o protagonista, ou seja, o herói, enfrenta desafios, supera obstáculos e passa por transformações pessoais ao longo do caminho.

O Monomito tem uma importância que reside no seu poder de cativar o público e, assim, criar uma conexão emocional com a história. Ao seguir essa estrutura, as narrativas conseguem explorar temas universais — tais como coragem, redenção e autodescoberta — tornando-se mais impactantes e significativas para o público. Vale observar que a Jornada do Herói não se restringe apenas ao cinema ou à literatura, mas é aplicada em diferentes formas de mídia, como por exemplo: jogos de videogame, séries e filmes, histórias em quadrinhos e, é claro, nos jogos de RPG de mesa.

O objetivo deste artigo é, justamente, explorar a aplicação do Monomito no contexto dos role-playing games (RPG), na modalidade tabletop. Nesta modalidade de jogo, os jogadores são imersos em uma aventura épica, na qual assumem os papéis de personagens, os quais são criados por eles mesmos. Durante o jogo, um dos jogadores será o narrador responsável por criar o universo e desenvolver a história. Ao longo da campanha, os participantes enfrentam desafios, tomam decisões e experimentam um crescimento pessoal.

No presente artigo, serão analisadas, especificamente, a segunda campanha intitulada ‘O Segredo na Floresta’ e a terceira, ‘Desconjuração’, ambas transmitidas pelo digital influencer Rafael Lange, conhecido como Cellbit, na plataforma TwitchTV. O RPG em questão já conta com seis campanhas dentro do mesmo universo e a lore — história base para a narrativa —, criados pelo próprio streamer. As temporadas foram transmitidas entre 11 de abril a 25 de julho de 2020 e 31 de outubro de 2020 a 22 de maio de 2021, respectivamente. O personagem que se pretende analisar será César Cohen, ou, Kaiser, interpretado pelo streamer e digital influencer, Thiago Campos, também conhecido como Calango.

A análise será focada no conceito narrativo do Monomito, que se baseia em uma estrutura de storyteller épica e mitológica, originada a partir dos estudos do mitólogo Campbell. Em seu livro, como supracitado, é descrito uma trajetória em que o herói se lança em uma aventura, enfrenta desafios e passa por transformações pessoais. Essa Jornada é composta por 17 etapas, a título de exemplo: (i) o chamado para aventura; (ii) o encontro com o mentor; (iii) o enfrentamento de provações etc. Ressalta-se aqui que essa estrutura tem sido amplamente utilizada em diversas modalidades narrativas, desde mitos antigos até obras contemporâneas.

Com base nesse sólido desenvolvimento de personagens complexos e profundos, que é possível com o Monomito, será analisada a jornada de Kaiser, que, ao passar pelas etapas da Jornada, enfrenta desafios que testam suas habilidades, coragem e valores. Elas, então, permitem que sua personalidade seja explorada e seu crescimento evidenciado ao longo da campanha. Ademais, essa narrativa descrita por Campbell, possibilita o reconhecimento de temas universais, como a busca por uma identidade, a luta entre o bem e o mal, o poder da amizade e a redenção. Com a análise proposta, visa-se demonstrar que, à medida que entretém o público, o Monomito leva, também, às reflexões e conexões emocionais profundas com a história e os personagens, mesmo dentro de um jogo.

O arcabouço teórico utilizado durante esse trabalho será divido em três momentos, bem como o seu desenvolvimento e a análise. Em um primeiro momento, haverá a descrição e a explicação da Jornada do Herói, descrita por Campbell (1997), utilizando o próprio como referencial, além de trazer pontos de outro autor, Christopher Vogler. Na segunda parte do desenvolvimento, serão apresentadas definições sobre o Role-playing Game (RPG), utilizando Lortz (1979) e Henriksen (2002), na qual será mostrado, também, algumas teorias sobre a jogabilidade, utilizando Montola (2007), Padol (1996), Perrin et. al e Tychesen et. al (2006). Na última parte, antes da análise, haverá a explanação sobre o desenvolvimento e a história narrada pelo streamer Rafael Lange ‘Cellbit’. Por fim, tem-se a análise sobre toda a jornada, com foco no personagem criado e interpretado por Thiago Campos ‘Calango’.

Frente ao exposto, visa-se compreender de que forma a estrutura narrativa do Monomito contribui para o desenvolvimento de personagens complexos e a exploração de temas universais. Com base no arcabouço teórico apresentado, será investigada a jornada do personagem selecionado juntamente com seu desenvolvimento heróico e, assim, de que forma se conecta com os temas abordados ao longo da campanha. Através desse artigo, espera-se proporcionar uma compreensão mais abrangente sobre a importância da Jornada do Herói no contexto dos RPGs de mesa, e seu impacto na narrativa interativa.

A JORNADA DO HERÓI OU O MONOMITO

O Monomito, também conhecido como a Jornada do Herói, é um modelo amplamente utilizado em narrativas que relatam esse processo pelo qual o herói passa. Nessa estrutura, o personagem do herói, de forma simplificada, parte em uma aventura, enfrenta um desafio crucial e retorna transformado.

O conceito do Monomito foi popularizado por Joseph Campbell, renomado mitólogo comparativo, que dedicou seus estudos aos mitos e lendas das mais diversas culturas ao redor do mundo. Campbell, em seu livro O herói de mil faces (1997), demonstrou que essa jornada é uma narrativa universal, que está presente em todas as culturas, dos tempos mais longínquos até os atuais.

Seu trabalho sobre o Monomito teve um impacto profundo na maneira como entendem-se as histórias e a experiência humana. Conforme explorada pelo autor, a Jornada segue uma sequência de etapas reconhecíveis. Durante a narrativa, ele confrontará desafios, encontrará aliados e enfrentará uma crise decisiva, a qual vai testar suas habilidades e determinação. É nesse momento crucial que o herói superará obstáculos e triunfará, obtendo uma recompensa ou conquista significativa. Por fim, o herói retornará ao seu ponto de origem, trazendo consigo o conhecimento adquirido e passando por uma transformação pessoal.

A Jornada do Herói é uma estrutura narrativa poderosa, que pode ser utilizada para contar uma ampla variedade de histórias. Além disso, ela pode ser usada para narrativas sobre aventuras, autodescobertas e transformações. Contudo, também pode ser utilizada para retratar histórias em relação às condições humanas e temas universais da vida, como morte e renascimento. Fazendo uso da citação de Vogler (2015), pode-se elucidar como a Jornada do Herói está presente em todos:

No processo de nos tornarmos seres humanos completos e integrados, somos todos Heróis, enfrentando guardiões e monstros internos, contando com a ajuda de aliados. Na busca de explorarmos nossa própria mente, encontramos professores, guias, demônios, deuses, companheiros, servidores, bodes expiatórios, mestres, sedutores, traidores e auxiliares, como aspectos de nossas personalidades ou como personagens de nossos sonhos. Todos os vilões, pícaros, amantes, amigos e inimigos do Herói podem ser encontrados dentro de nós mesmos (Vogler, 2015, p. 52).

Como fora citado anteriormente, o Monomito pode ser encontrado em muitas histórias diferentes, desde mitos antigos até obras audiovisuais modernas. Dentre as narrativas que seguem o Monomito tem-se, por exemplo: A Odisseia, em que Odisseu passa por todos os passos que serão explicados a frente; Star Wars, o qual o protagonista Luke Skywalker começa como um jovem fazendeiro e volta como o salvador da galáxia; e Senhor dos Anéis, cujo hobbit Frodo Bolseiro passa por diversos desafios e mudanças, retornando no final com uma transformação pessoal profunda.

Em seu livro, Campbell enumera 17 passos que a Jornada do Herói deve ter, dividindo-os em três atos, são eles: (i) A partida, em que se tem o chamado da aventura, a recusa deste chamado, o auxílio do sobrenatural, a passagem pelo primeiro limiar e o ventre da baleia; (ii) A iniciação, formada pelo caminho de provas, o encontro com a deusa, a mulher como tentação, a sintonia com o pai, a apoteose e a benção última; (iii) O retorno, com a recusa do retorno, a fuga mágica, o resgate com auxílio externo, a passagem pelo limiar do retorno, senhor dos dois mundo e, por fim, a liberdade de viver. Para uma compreensão ideal, cada um dos passos será detalhado a seguir.

O ato de número I da explicação sobre o Monomito é chamado de ‘A partida’ por Campbell, isso pois são os momentos iniciais do protagonista em direção à sua aventura. O primeiro passo, ou o ‘chamado da aventura’, o herói é apresentado a uma oportunidade de aventura, mas pode se mostrar relutante em aceitá-la, “[...] significa que o destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida.” (Campbell, 1997, p. 34).

No passo subsequente, ou a ‘recusa do chamado’, o protagonista pode negar o chamado à aventura, seja por medo ou senso de dever. Isso faz com que seja um momento opcional na jornada. Portanto, caso o herói não tenha esse momento de rejeição, passa-se direto à próxima etapa.

Ao longo do terceiro passo, ou o ‘auxílio sobrenatural’, o herói recebe ajuda de um mentor, ou figura sobrenatural, que lhe dá forças para aceitar o chamado à aventura,

“Para aqueles que não recusaram o chamado, o primeiro encontro da jornada do herói se dá com uma figura protetora (que, com frequência, é uma anciã ou um ancião), que fornece ao aventureiro amuletos que o protejam contra as forças titânicas com que ele está prestes a deparar-se” (Campbell, 1997, p. 39).

O quarto passo, ou a ‘passagem pelo primeiro limiar’, é quando o personagem cruza o limite para um mundo novo e desconhecido. Geralmente, é nesse momento em que ele encontrará o ‘guardião do limiar’, “Esses defensores guardam o mundo nas quatro direções – assim como em cima e embaixo –, marcando os limites da esfera ou horizonte de vida presente do herói. Além desses limites estão trevas, o desconhecido e o perigo [...]” (Campbell, 1997, p. 44 - 45).

Então, há o último passo deste ato, chamado de ‘ventre da baleia’, o qual consiste no enfrentamento de um intenso desafio para o protagonista, o que fará com que ele teste sua coragem e/ou força. Então, é a partir desta adversidade que o herói se preparará para o restante da jornada.

Em seu segundo ato, ‘A Iniciação’, o herói já está em sua aventura e deve cumprir os desafios antes de seu retorno. No passo inicial, o protagonista passará pelo que Campbell chama de o ‘caminho de provas’, que consiste em enfrentar uma série de desafios e testes, auxiliando-o a crescer e se desenvolver,

Tendo cruzado o limiar, o herói caminha por uma paisagem onírica povoada por formas curiosamente fluidas e ambíguas, na qual deve sobreviver a uma sucessão de provas. [...]. O herói é auxiliado, de forma encoberta, pelo conselho, pelos amuletos e pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural que havia encontrado antes de penetrar nessa região.” (Campbell, 1997, p. 57).

Em um segundo momento, há o ‘encontro com a Deusa’. Aqui, o herói retorna a um ambiente que é confortável, mesmo ainda na aventura; geralmente esse lugar possui figuras que trazem um conforto fraternal para ele.

No terceiro passo, há a tentação, ou, para o autor, ‘a mulher como tentação’. Nesta altura o personagem do herói é tentado a desistir de sua jornada, ou até mesmo usar seu poder para o mal.

Em seu quarto estágio, o herói passará pela reconciliação com a figura do seu mentor, chamado pelo autor de a ‘sintonia com o pai’,

É essa a provação a partir da qual o herói deve derivar esperança e garantia da figura masculina do auxiliar, por intermédio de cuja magia (amuletos de pólen ou poder de intercessão) ele é protegido ao longo de todas as assustadoras experiências da iniciação, fragilizadora do ego, do pai. Pois, se for impossível confiar na terrível face do pai, nossa fé deve concentrar-se em algum outro lugar (Mulher-Aranha, Mãe Abençoada); e, com essa confiança necessária ao apoio, suportamos a crise — apenas para descobrir, no final de tudo, que o pai e a mãe se refletem um ao outro e são, em essência, a mesma coisa (Campbell, 1997, p. 72)

O próximo acontecimento é uma exaltação do herói, aqui ele irá atingir um estado de iluminação e/ou transformação; Campbell nomeia este passo de ‘apoteose’.

No último passo do ato da iniciação, há a ‘benção última’. Nesse momento, o protagonista recebe uma recompensa ou prêmio por todo seu esforço,

A bênção concedida ao fiel sempre segue a própria estatura deste, assim como a natureza do desejo que o domina: a bênção é tão-somente um símbolo da energia da vida adaptado às exigências de um caso específico. A ironia, é verdade, reside no fato de que, embora o herói que obteve o favor do deus possa pedir a bênção da perfeita iluminação, é comum vê-lo pedir mais anos de vida, armas com as quais possa matar seu próximo ou saúde para os filhos (Campbell, 1997, p. 100).

Por fim, Campbell traz o ato do retorno do herói, e consistirá nos últimos seis passos do Monomito. O primeiro é o que o autor chama de a ‘recusa do retorno’, no qual a personagem heróica vai relutar em retornar ao seu mundo comum.

Terminada a busca do herói, por meio da penetração da fonte, ou por intermédio da graça de alguma personificação masculina ou feminina [...] o aventureiro ainda deve retornar com o seu troféu transmutador da vida[...]. O círculo completo, a norma do monomito, requer que o herói inicie agora o trabalho de trazer os símbolos da sabedoria, [...], onde a benção alcançada pode servir à renovação da comunidade, da nação, do planeta ou dos dez mil mundos.

Mas essa responsabilidade tem sido objeto de frequente recusa (Campbell, 1997, p. 114)

O segundo é a ‘fuga mágica’. Neste momento, o protagonista faz uma jornada de volta ao seu mundo comum, “Se o herói obtiver, em seu triunfo, a bênção da deusa ou do deus e for explicitamente encarregado de retornar ao mundo com algum elixir destinado à restauração da sociedade, o estágio final de sua aventura será apoiado por todos os poderes do seu patrono sobrenatural.” (Campbell, 1997, p. 116). Em todo caso, se o herói não possuir a benção de seu patrono, o terceiro estágio, ‘o resgate com auxílio externo’, terá como assistência a ajuda de um amigo ou aliado para o regresso ao mundo. Então, com o protagonista sendo apoiado, ele deve atravessar o limiar de retorno. Este instante é marcado pela sua volta ao mundo comum, porém com mudanças profundas, devido às suas experiências.

Os dois mundos, divino e humano, só podem ser descritos como distintos entre si – diferentes como a vida e a morte, o dia e a noite. As aventuras do herói se passam fora da terra nossa conhecida, na região das trevas; ali ele completa sua jornada, ou apenas para nós, aprisionado ou em perigo; e seu retorno é descrito como uma volta do além. [...]. E a exploração dessa dimensão, voluntária ou relutante, resume todo o sentido da façanha do herói. Os valores e distinções que parecem importantes na vida normal desaparecem com a terrificante assimilação do eu naquilo que antes não passava de alteridade. [...].

Todavia, sempre deve restar, do ponto de vista da consciência vígil normal, uma certa inconsistência enigmática entre a sabedoria trazida das profundezas e a prudência que costuma ser eficaz no mundo da luz. Daí decorre o divórcio comum entre o oportunismo e a virtude, e a resultante degenerescência da existência humana. (Campbell, 1997, p. 124).

Como quarto passo, tem-se a experiência do herói como o mestre de dois mundos, em que ele alcança o equilíbrio entre seu eu comum e o extraordinário, “Quando o apresentam, o momento é um precioso símbolo, cheio de importância, a ser tratado como um tesouro contemplado” (Campbell, 1997, p. 130).

E, finalmente, para encerrar o Monomito, a ‘liberdade para viver’. Neste momento, o protagonista é livre para viver sua vida de uma maneira nova e, muitas vezes, realizadora. Considera-se, então, o que Campbell (1997, p. 133) diz:

O alvo do mito consiste em dissipar a necessidade dessa ignorância diante da vida por intermédio de uma reconciliação entre consciência individual e vontade universal. E essa reconciliação é realizada através da percepção da verdadeira relação existente entre os passageiros fenômenos do tempo e a vida imperecível que vive e morre em todas as coisas.

A Jornada do Herói, conforme delineada por Joseph Campbell, oferece uma estrutura poderosa para compreender e contar histórias que ressoam com experiências universais e transformações pessoais. Sendo assim, explicitado a teoria e passos do Monomito, descritos por Campbell, cabe agora passar para uma breve explicação do que é o RPG.

O QUE É O RPG

Jogo de interpretação de papéis, role-playing game, ou RPG, é uma modalidade de jogo no qual os jogadores criam personagens e interagem com um mundo fictício, através de narrativas. Esse tipo de jogo geralmente é liderado por um narrador — ou como é conhecido popularmente, o mestre — o qual cria o mundo e controla todos nos personagens não-jogáveis, ou NPCs (non-playable characters).

Para sintetizar o que é o RPG, foram tomados como base Lortz (1979) e Henriksen (2002), que dizem: (i) “[…] any game which allows a number of players to assume the roles of imaginary characters and operate with some degree of freedom in an imaginary environment.[1] (Lortz, 1979, p. 36) e; (ii) “[…] a media, where a person, through immersion into a role and the world of this role, is given the opportunity to participate in and interact with the contents of this world.[2] (Henriksen, 2002, p.44).

É importante manter em evidência que, além do estilo de jogo tradicional conhecido como pen-and-paper (caneta e papel) ou table-top (de mesa), o RPG não está limitado apenas a essa forma. De acordo com Dormans (2006), pode-se destacar-se mais três modalidades. Essas modalidades podem incluir computer (RPGs eletrônicos), que são jogados em computadores ou consoles de videogame, live-action (RPGs ao vivo), nos quais os participantes assumem os papéis dos personagens em eventos presenciais, e massively multiplayer (multijogador massivo), que são jogados através da internet, permitindo a interação entre jogadores de diferentes partes do mundo. Essa categorização acontece com base no meio, método e escala. No entanto, para fins deste artigo, será utilizado apenas a table-top.

Esta modalidade de jogo tem início no começo dos anos 1970. Em 1971, Dave Arneson criou um jogo de guerra chamado Blackmoor, que se passava em um mundo fantástico. Em 1974, Arneson e Gary Gygax desenvolveram o primeiro grande RPG que foi comercializado, o Dungeons & Dragons (D&D). Foi assim, então, que uma indústria inteiramente nova se desenvolveu e não demorou muito até esse tipo de jogo se tornar um hobby extremamente popular entre as mais diversas idades.

Desde o lançamento de D&D, foram publicados centenas de diferentes tipos de RPGs. Esses jogos variam em termos de ambientação, modalidade narrativa, regras e temas. Alguns dos jogos mais conhecidos hoje são, por exemplo: Pathfinder, Call of Cthulhu, Shadowrun e Vampire: The Masquerade.

O RPG de mesa tem conquistado espaço significativo no mercado brasileiro. Dentro deste contexto, surgiram jogos desenvolvidos por autores nacionais, como por exemplo, o mais popular deles, “Tormenta”, lançado em 1999 e desenvolvido e escrito por Marcelo Cassaro, Rogério Saladino, J. M. Trevisan e Guilherme Dei Svaldi. Além de muitos outros, que muitas das vezes são inspirados pela rica cultura brasileira, como “A Bandeira do Elefante e da Arara”, desenvolvido pelo emigrante Christopher Kastensmidt e publicado em 2017.

Cabe dizer aqui que a pandemia de COVID-19 proporcionou um impacto significativo no mundo dos RPGs Table-top, já que, por conta do distanciamento social, muitos grupos de jogadores tiveram que adotar ferramentas online, o que facilitou a dispersão do jogo pela população. Ainda em decorrência da pandemia, pode-se dizer que o Table-top RPG, voltou a ter um espaço maior no mercado. Segundo o portal estadunidense ICv2, durante o ano de 2020, as vendas de livros para criação de campanhas nos Estados Unidos cresceram cerca de 31%. Esse crescimento está ligado intrinsecamente, também, à popularização de lives de sessões de RPG ao vivo em diversas plataformas, como a Twitch e o Youtube.

É importante ressaltar que, nesse contexto pandêmico, o RPG desempenhou um papel importante como uma forma de entretenimento e conexão. Com o isolamento social, muitas pessoas encontraram nessa modalidade uma oportunidade para continuar a se socializar. Dessa maneira, a modalidade tabletop se mostrou uma atividade inclusiva, criativa e envolvente que ajudou muitos a aliviarem o estresse e a solidão durante este período tão desafiador (Braga, 2022).

Sobre a pandemia e o RPG no Brasil, pode-se afirmar que os influenciadores digitais tiveram um papel relevante na disseminação e popularização desse hobby. Esses influenciadores contribuem para a visibilidade do RPG de mesa nacionalmente, atraindo novos jogadores e incentivando a comunidade a se reunir e se envolver cada vez mais nesse universo criativo e colaborativo.

Devido a um desses influenciadores, em 2022, mais um RPG foi criado e bastante difundido em território nacional, Ordem Paranormal RPG, o jogo que dá origem a este artigo. Foi criado e escrito por Dan Ramos, Felipe Della Corte, Guilherme Dei Svaldi, Pedro Coimbra, Sílvia Sala, Rafael Dei Svaldi e, principalmente, Rafael Lange ‘Cellbit’.

Sobre a jogabilidade e mecânicas dos RPGs, podem ser jogados com qualquer quantidade de jogadores, mas, em sua maioria, o jogo é composto de 3 a 6 pessoas. A duração do jogo também é variável, podendo ser desde uma única sessão, conhecido como one shot, até uma campanha de longa duração.

O narrador e os jogadores trabalham em cooperação para criar uma história que é desenvolvida por suas decisões e ações. Esses jogadores se revezam descrevendo ações de seus personagens e o mestre determina o resultado dessas, de acordo com as regras. Sendo assim, podemos dizer que o RPG “Allows people to become simultaneously both the artist who create a story and the audience who watches the story unfold.[3] (Padol,1996).

Os papéis do mestre e dos jogadores são a base da narrativa e da interação entre os participantes. Como supracitado, o narrador desempenha o papel autoritário de aplicar as regras, e essa autoridade se torna necessária já que o jogo funciona como um “[...] storytelling with rules[4] (Tychsen et al., 2006, p. 254). Enquanto isso, os jogadores são os protagonistas da história controlando e representando os personagens principais e tomando decisões que afetam o curso dos acontecimentos.

Essas regras podem ser determinadas por dados e/ou sistema de decisão de ação, e fornecem uma estrutura para o jogo determinar o sucesso ou fracasso das ações do personagem com base em probabilidade e cálculos. Essas mecânicas também podem incorporar aspectos de combate, exploração, interação social, proporcionando variedade e desafios ao jogo.

A criação de personagens e a construção de histórias são elementos-chave das mecânicas do RPG de mesa. Os jogadores têm a oportunidade de desenvolver personagens únicos, definindo suas características, habilidades e motivações. Além disso, eles contribuem para a estrutura da história por meio de suas escolhas, trabalhando com o mestre do jogo para moldar o enredo.

Outro ponto importante para esse tipo de jogo é a ambientação, no que diz respeito a essa questão, os RPGs oferecem uma infinidade de opções. Como por exemplo, os jogos supracitados: (i) D&D e Pathfinder, que tomam como base na criação de seus mundos a Idade Média, sendo repleto de castelos, cavaleiros, magia e uma mitologia própria criada pelos seus escritores; (ii) Call of Cthulu, que pode se passar no período contemporâneo e se utiliza da mitologia criada pelo autor H. P. Lovecraft; (iii) Shadowrun, que combina ficção científica cyberpunk com uma estética vitoriana; e (iv) Vampire: The Masquarade, que pode ter como ambientação diversos períodos históricos reais, mas contando sempre com a existência de vampiros. Existem muito mais universos e gêneros narrativos possíveis, cada um com sua própria mitologia, geografia, cultura e o mais importante de tudo, cada um com suas próprias regras.

Quanto a criação dessas histórias e mundos, a modalidade table-top oferece cenários pré-definidos, que são publicados pelas editoras e proporcionam um universo detalhado e estabelecido, dando a chance de os personagens criados pelos jogadores participarem da ‘lore[5] oficial do universo.

Outra modalidade de cenário, mais popular entre os grupos que se dedicam ao jogo como hobby, é a criação de seus próprios mundos personalizados, dessa maneira a história e o ambiente são moldados de acordo com os gostos, preferências e elementos culturais dos próprios jogadores. Essa criação mostra que o RPG é “[...] an interactive process of defining and re-defing an imaginary game world, done by a group of participants according to a recognized structure of power.[6] (Montola, 2007, p. 179).

Algo tão importante quanto o cenário e universo, nos quais se passará a história do jogo, é a interpretação dos personagens pelos jogadores, que dá nome ao jogo, role playing. Nesse processo, os jogadores devem assumir a identidade e personalidade do personagem criado. Isso geralmente envolve pensar, agir e falar como ele e, dessa forma, imergem completamente no jogo. Durante a campanha os players têm a chance de desenvolver personalidades complexas e motivações profundas para seus aventureiros daquele mundo. Por esse motivo, pode-se dizer que o RPG é, acima de tudo, “A game of character development, simulating the process of personal development commonly called life” (Perrin et al., 1980, p. 03).

Esse desenvolvimento é o que adiciona um aprofundamento entre as interações dos personagens e o enredo, enriquecendo a experiência e tornando mais prazeroso o jogo. Essa imersão profunda pode levar a uma construção inconsciente da Jornada do Herói, seguindo padrões narrativos arquetípicos semelhantes aos propostos por Joseph Campbell. O envolvimento ativo na história e a identificação com os desafios e conquistas do personagem proporcionam uma experiência gratificante e memorável, e isso não podia ser diferente no sistema criado por Rafael Lange ‘Cellbit”: Ordem Paranormal.

O UNIVERSO DA "ORDEM PARANORMAL"

O RPG Ordem Paranormal teve seu início em fevereiro de 2020. Ele foi criado como uma diversão entre amigos, o qual foi transmitido ao vivo no canal do mestre. De pronto, os players eram Gabriela Cattuzzo ‘Bagi’, Lucas Rossi ‘Luba’, Luis Gouveia ‘Ljoga’, Rafael Knittel ‘Rakin’ e Rafael Lange ‘Cellbit’, que, durante todas as sessões, ocupa o lugar de mestre.

O sucesso da franquia foi considerável e quatro temporadas foram criadas — ‘Ordem Paranormal’, ‘O Segredo na Floresta’, ‘Desconjuração’ e ‘Calamidade’, sendo que a última ainda não está completa, contando somente com a parte 1 disponível. Depois delas, dois spin-offs foram lançados — ‘O Segredo na Ilha’ e ‘Sinais do Outro Lado’ — bem como uma one-shot com membros de países diferentes, ‘Quarentena’. Além dos RPGs, houve também a transformação da primeira temporada em uma HQ, ‘Ordem Paranormal: Inicialização’, lançada em maio de 2023, e um jogo, ‘Enigma do Medo’, que está previsto para ser disponibilizado ainda no mesmo ano.

O Ordem Paranormal trata-se de um universo em que a realidade e o mundo sobrenatural são divididos por uma fina camada chamada membrana. Essa divisória é extremamente sensível ao medo humano do sobrenatural, sendo assim, quanto mais medo as pessoas sentirem, mais enfraquecida ela fica. De modo geral, os personagens principais são parte da organização que tenta impedir esse enfraquecimento, chamada de Ordo Realitas.

Esse grupo de pessoas é responsável por impedir que as pessoas espalhem o medo pela realidade e enfraqueçam a membrana. Os escriptas, como são chamados aqueles que querem romper a divisória entre mundos, podem ter ambições e objetivos diferentes, mas os agentes da ordem são instruídos a combaterem eles a qualquer custo e, para isso, acabam criando bases ao redor do Brasil, principalmente, para afrontá-los.

Na primeira temporada, com o mesmo nome da franquia, tem-se a introdução ao universo em que é possível acompanhar Elizabeth Webber (Bagi), Thiago Fritz (Rakin) e Daniel Heartmann (Luba) como agentes da ordem, que vão ao Colégio Nostradamus investigar sobre aparições paranormais. Enquanto realizam a inspeção, encontram Alexsander Kothe (Ljoga) um professor do colégio que os auxilia na resolução do caso. Ao longo dos três episódios da temporada, o caso acaba sendo maior do que os três agentes conseguiam lidar e, apesar de o resolverem parcialmente, Alex e Daniel morrem ao longo dos combates (Lange, 2020a).

Com o sucesso que alcança, Cellbit resolve dar continuidade à história e segue com ‘O Segredo na Floresta’ (Lange, 2020b). Thiago e Liz continuam e há a introdução de três novos personagens inicialmente: Cristopher Cohen (Ljoga), César Cohen — interpretado por Thiago Elias Campos ‘Calango’ e Joui Jouki (Luba). Os cinco agentes são instruídos a viajar para uma cidade no sul do país, Carpazinha, para investigar sobre um desaparecimento de duas pessoas, depois que um corpo foi encontrado com uma cicatriz na testa, que era conhecida como marca dos esoterroristas, e que podia estar, de alguma forma, ligada com o caso do colégio. Então, eles rapidamente viajam para a cidade e começam as investigações.

Lá, eles são direcionados para um bar na beira da rodovia chamado Suvaco Seco, que aparenta ser um centro de brigas de gangues locais. Nele, conhecem Arthur Cervero — interpretado por Rafael Montes ‘Guaxinim’—, filho do dono do bar, e ele resolve ajudar os agentes com o caso, mesmo sem saber sobre a real intenção deles. Arthur então conta sobre a gangue rival do grupo de seu pai, os Assombrados, que posteriormente seria revelado que eles realmente ajudavam esoterroristas, servindo de guardas para a mansão em que se organizavam.

Ao longo da história e das investigações, o grupo, agora com Arthur, encontra diversos empecilhos e desafios para enfrentar. Contudo, nem todos acabam sobrevivendo aos combates. A primeira morte da temporada é de Cris, pai de César, por uma onda de aranhas na floresta, perto do bar. Em seguida, num confronto com os Assombrados e uma criatura paranormal, o Virgulino, o pai de Arthur, Brúlio, é morto por ela. E, ao final da temporada, Thiago morre tentando derrotar uma criatura, o Deus da Morte.

Na campanha seguinte, ‘Desconjuração’ (Lange, 2021), têm-se vivo Joui, Liz, Arthur e César, que agora muda seu nome para Kaiser, além da introdução das personagens Luciano e Fernando Carvalho (Ljoga), Dante (Rakin), Erin Parker e Beatrice Portinari — vividas por Camila Vieira ‘Kalera’, e Beatriz Parizotto ‘Triz Pariz’, respectivamente. Dando continuidade a narrativa, a investigação dessa vez é focada em dois lugares: o orfanato Santa Menefreda, em que Beatrice e Dante cresceram, e uma mansão no interior de São Paulo. Ambos os lugares estão com a membrana terrivelmente enfraquecidas e a ordem começa a tentar descobrir o que ocorreu e se há alguma relação entre eles.

Ao longo da história são introduzidos os elementos em que o paranormal se baseia — Conhecimento, Energia, Morte, Medo e Sangue. Então, descobrem que, quanto mais são expostos ao paranormal, mais podem se conectar com o “outro lado”, e fazem uso desses elementos para combater os esoterroristas — os quais, nessa temporada, são chamados também de escriptas. Esses escriptas se mostram presentes na história dos personagens que vieram do orfanato, já que também cresceram no mesmo lugar e, além disso, um deles, Anthony, antes de ser mandado para lá, era amigo de infância de Kaiser.

As investigações continuam e eles são encaminhados à mansão, apelidada de endiabrada, a qual é preenchida por criaturas do outro lado. Os agentes conseguem combater todas e são guiados para o covil dos escriptas, que sequestram uma criança do condomínio e tentam transformá-la no Kian, entidade mais velha do universo, a qual, toda vez que enfraquecida, reencarna em um corpo novo. Os agentes conseguem impedir que a criança seja transformada, assim, Kian se transforma na segunda opção de reencarnação: o agente Luciano.

Logo, ele revela que, na verdade, pretende acabar com o paranormal destruindo por completo a membrana e acabando com o outro lado, para que apenas a realidade viva.

A ordem não concorda com a decisão e parte para o combate contra ele, que acaba em uma derrota dolorosa.

Assim como em ‘O Segredo na Floresta’, em ‘Desconjuração’, ocorrem diversas mortes e catástrofes que impactam drasticamente toda a vida dos personagens. A primeira é do NPC, Tristan, que é morto por uma criatura da mansão endiabrada, o Espreitador. Quando voltam ao orfanato, em um combate com uma entidade de sangue, Kaiser tenta explodir uma granada na criatura, mas erra. O explosivo bate na parede e ricocheteia atingindo em cheio o jovem, que tem o lado esquerdo do seu rosto totalmente deformado e queimado. Em seguida, Beatrice descobre que seu urutau, Orpheu, é o guardião de suas memórias e, quando ele é morto, elas são libertas.

Com esse retorno, revela-se que Beatrice, na verdade, se chama Lilian e foi exposta por completo ao paranormal, acarretando a perda de toda a sua sanidade, levando-a a um estado de morto-vivo. Então, Dante, que era apaixonado por ela a vida toda, entra em desespero e tenta descobrir se há alguma maneira de salvá-la usando um ritual de leitura de mentes. Contudo, como ela já não tinha uma mente, ele é castigado por querer ver mais do que devia e acaba ficando cego.

Ao final da temporada, no conflito final, Erin acaba perdendo toda a sua sanidade também, mas, ao invés de tronar-se uma morta-viva, enlouquece e acaba explodindo uma granada nela mesma. Logo depois, Fernando é morto por Kian, que anteriormente era seu marido Luciano, por um ritual de beijo da morte. E, por último, em uma missão suicida para tentar salvar, pelo menos, seus amigos, Kaiser tenta combater Kian sozinho e acaba recebendo um ritual de inexistência da entidade, que sobrevive.

Kian, então, continua seu plano de combater o paranormal, à sua maneira, e segue na temporada seguinte, Calamidade, reunindo mais escriptas, enquanto a ordem se organiza para reunir agentes ao redor do mundo para combater a entidade.

Ao longo das duas temporadas que Kaiser esteve vivo, ele passou por diversos problemas e traumas para tentar ajudar tanto seus amigos quanto a humanidade contra os esoterroristas. A partir disso, é possível traçar uma comparação de sua trajetória com a Jornada do Herói, como será mostrado a seguir.

ANÁLISE - DE CÉSAR A KAISER

César Oliveira Cohen foi um jovem adulto de 30 anos que dedicou grande parte dos seus dias ao mundo da tecnologia. Era um hacker e programador e usava suas habilidades para ajudar tanto seus amigos quanto a Ordo a combater os esoterroristas. Ele tornou-se um agente quando sua mãe foi misteriosamente morta depois de um evento paranormal e, então, decidiu investigar por conta própria como e porque aquilo poderia ter acontecido. E, depois de diversas pesquisas, acaba encontrando a Ordo Realitas e descobre que seu pai, Cristopher Cohen, também faz parte dela, e vivia afastado da família por conta disso.

Para a comparação da trajetória de César e a Jornada do Herói, os atos serão separados e os momentos em que relações podem ser traçadas, pontuados.

No começo da história de ‘O Segredo na Floresta’ (Lange, 2020b), o público é apresentado ao grupo à medida que eles se conhecem também. Quando Cris percebe que seu filho, César, está fazendo parte da Ordo, assim como ele, tenta impedi-lo de ir para Carpazinha em missão. O pai, preocupado, então, tenta convencer César de que a viagem seria extremamente perigosa e que ele não estava pronto para os desafios que essa missão guardava. No entanto, o filho insiste que seu pai não o conhece, e é revelado sobre o caso de sua mãe e sua motivação para ir a viagem, assim como de entrar para a Ordem. Sendo assim, Cristopher desiste de tentar impedi-lo e resolve protegê-lo a todo custo enquanto estiverem no caso. Tem-se, então, o primeiro passo do primeiro ato: o ‘chamado para a aventura’.

Em seguida, como segundo passo, não há exatamente uma ‘recusa da aventura’, porém César tem seu primeiro grande desafio, o qual o faz pensar em desistir da missão: a morte de Cris. O ocorrido acaba fazendo com que o herói repense sobre a continuidade da missão, bem como se deveria desistir dela e voltar para a casa. Contudo, já partindo para o terceiro passo, Thiago, o qual aqui servirá como o sábio ancião, o convence a permanecer na investigação, mostrando que todos ali tinham perdido tudo para o paranormal — Thiago, seus pais; Liz, sua mãe e Joui, seu melhor amigo — e que seus entes queridos gostariam que eles não tivessem morrido em vão.

Eles, então, continuam as buscas e se deparam com Santo Berço, uma cidade perdida no tempo no meio de uma densa floresta. Lá, além do tempo passar de uma forma completamente diferente da realidade, os cidadãos são chamados de lusídios: possuem a pele acinzentada e marcas únicas e semelhantes a tatuagens ao longo do corpo. Então, a descoberta desse novo mundo representa, também, a passagem pelo ‘primeiro limiar’. No entanto, esse portal tem um guardião responsável por manter o local: o Deus da Morte — o qual, depois, seria revelado que é o encarregado de manter a relíquia do elemento de Morte em segurança.

Ao enfrentar o mantenedor do Santo Berço, tem-se o último passo do primeiro ato, o ‘ventre da baleia’. Na batalha, o monstro acaba aprisionando Thiago em uma bolha em que o tempo passa extremamente mais rápido e ele, que tinha em torno de 30 anos também, acaba ficando com 84 anos. Então, numa tentativa desesperada de salvar Liz, Arthur, Joui e César, Thiago resolve explodir uma bomba extremamente potente e, assim, matar a entidade. Contudo, como estava muito velho, não iria conseguir correr para se salvar também e, portanto, se suicida para salvar seus companheiros.

O segundo ato começa a se desenvolver no arco seguinte, Desconjuração (Lange, 2021). No começo da temporada, os personagens conhecidos acabam sendo apenas Arthur e César. Contudo, ocorre uma mudança de nomes: César muda seu nome para Kaiser e acaba alterando tanto a sua aparência, como mostrado abaixo, quanto sua postura e personalidade. Ele começa a passar o dia todo no laboratório de tecnologias da Ordo junto com Samuel (Cellbit), outro hacker e agente, e se mostra menos empolgado e ativo em missões. Com isso, mostra-se o herói em seu momento de transformação.


Figuras 1
A esquerda, César em O Segredo na Floresta e a direita em Desconjuração.

O encontro com a Deusa, aqui, será representado pelo momento em que Joui retorna a Ordo, depois de ter tentado encontrar sobre o desaparecimento repentino de Liz — que não é retratado diretamente na campanha, e sim, como um acontecimento no interlúdio entre as temporadas. Após a morte de Cris e de toda a gangue que o pai de Arthur havia fundado, os Gaudérios, os dois jovens juntam-se e acabam formando uma família, composta por Ivete (Cellbit) — a qual era a dona do Suvaco Seco e que, após os ocorridos, muda-se para São Paulo com Arthur — e Joui. Eles alugam um apartamento na cidade e moram juntos, como mãe e filhos. Assim, quando os quatro estão juntos novamente, há um momento de paz para o herói.

No entanto, como o próprio Cellbit repete diversas vezes ao longo da temporada, “a desconjuração é brutal” e diversos desafios dolorosos são colocados para os personagens, assim representando o caminho de provas que seria enfrentado por Kaiser. Eles vão desde confrontos com esoterroristas comuns até o reencontro com Liz e sua execução brutal na frente dos agentes, feita pelo líder provisório dos escriptas, Gal — interpretado por João Miranda.

Essa sequência de provas leva Kaiser ao último passo do segundo ato, o recebimento das bênçãos. Elas serão representadas pelo processo de transcender usando objetos sobrenaturais. Como os personagens começam a ter maior contato direto com seres sobrenaturais, o “outro lado” se interessa cada vez mais pelos agentes, que têm seus níveis de exposição ao paranormal em crescimento acelerado. Assim, como recompensa por isso, eles começam a ter mais afinidade com os elementos e, quando levam um objeto amaldiçoado a um círculo especial, feito para que essa conexão seja feita, eles ganham em troca os artefatos para um ritual, que podem utilizar em combate. Esse momento de contato entre os dois mundos é o que chamam no universo de “transcender”. Então, com Kaiser desenvolvendo uma grande e crescente afinidade com o elemento de Energia, o segundo ato termina.

O terceiro e último ato acontece do meio para o final da temporada. Começa com um momento muito grande de provação para o herói: as fotos que ele carrega para se acalmar — pois, após a morte de seu pai e Thiago, Kaiser desenvolve depressão e ataques de pânico, os quais se tornam comuns no seu dia a dia — são afetadas pelo paranormal. Todas as fotos que possuem faces acabam tendo suas bocas removidas e, progressivamente, ficam sem rosto. Esses acontecimentos são relacionados ao momento de ‘provação do herói’, sendo o primeiro passo e, quando ele se vê abalado e fraco perante o paranormal, tem-se também o momento de ‘recusa ao retorno à aventura’ pois Kaiser começa a acreditar que não tem potencial e força o suficiente para combater os escriptas.

Em crise por essa descrença em si mesmo, ocorre o terceiro passo desse ato chamado de ‘fuga mágica’. Kaiser é salvo pelos seus amigos, principalmente Arthur e Joui, que o convencem de sua grande capacidade de combate contra o paranormal, e ele resolve retomar sua luta. Então, juntos, derrotam o Espreitador, entidade a qual estava deformando suas fotos, e que acaba matando Tristan na mansão endiabrada.

O passo seguinte, ‘senhor dos dois mundos’, ocorre quando Kaiser atinge 50% de exposição paranormal e, assim, transcende de uma forma diferente das anteriores, já que alcançou um nível muito elevado de poder e o “outro lado” não precisa mais de amuletos amaldiçoados para ter interesse nele. Então, nesse momento, Kaiser se vê de frente com ele mesmo para enfrentar suas inseguranças e é revelado seu maior medo: o esquecimento. Assim, ele lida de frente com sua mente e começa a mostrar uma postura diferente perante seus amigos e inimigos: fica mais confiante e sem medo de entrar em perigos, agora o “outro lado” está lhe protegendo.

Contudo, mesmo com essa proteção sobrenatural, Kaiser não chega a executar o último passo do ato e não consegue a ‘liberdade de viver’. Na batalha final contra o verdadeiro líder e vilão da temporada, Kian, o herói se vê tendo que salvar todos os seus amigos usando os rituais que adquiriu e sendo ajudado pela Magistrada, a líder da seita das máscaras, mantenedora do elemento de Conhecimento e responsável pelo equilíbrio entre o paranormal e o mundo real. Kian e Kaiser travam uma batalha incessante, mas o vilão é muito mais forte que o jovem, o qual acaba recebendo um ritual que concretiza o seu maior medo, o Inexistência, que consiste em apagar a existência e registros físicos da pessoa que o recebe.

No entanto, o herói se mostra confiante até o fim quando, em suas últimas palavras permitidas por Kian, fala “hoje eu não sou César, não sou Kaiser. Hoje, eu sou o AngelOfTheNight!” (Lange, 2021). Esse era o username de César nos jogos que frequentava, que eram os lugares em que ele conseguia ser a forma mais pura dele, lugar onde realmente se sentia vivo.

Assim, em suma, pode-se ver como a história de César e sua transformação para Kaiser e, por fim, AngelOfTheNight pode ser semelhante a heróis canônicos, tendo como base o Monomito, mesmo que não intencionalmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o presente artigo, foi aberto o espaço para uma forma narrativa não convencional, distante da tradicional escrita solitária, em que uma única pessoa constrói uma história. Aponta-se que narrativas podem ser elaboradas de diferentes maneiras, sem perderem a capacidade de serem analisadas de forma tradicional.

Ao popularizar sua teoria sobre a Jornada do Herói, Campbell (1997) talvez não tivesse consciência do impacto que sua obra alcançaria. Por meio da análise de duas temporadas do RPG Ordem Paranormal, produzido e conduzido por Rafael Lange ‘Cellbit’, pode-se constatar a presença marcante do Monomito em uma narrativa construída de forma coletiva e, em certa medida, improvisada, por meio de seus personagens, de modo mais enfático no personagem analisado, César Cohen ‘Kaiser’.

De maneira perceptível, foi possível visualizar as semelhanças das etapas da Jornada do Herói e a trajetória do personagem, desde sua jornada inicial até sua transformação em Kaiser e, por fim, sua trágica morte com Angel Of The Night. Destaca-se, portanto, que este estudo apresentou, de forma abrangente, a estrutura narrativa do Monomito e sua interação com jogos RPG, aqui exemplificado com o Ordem Paranormal.

Essa análise revela que as narrativas podem ser moldadas de diferentes maneiras, mas continuam suscetíveis às mesmas análises e reflexões profundas, independentemente de sua forma de criação. Evidencia-se, também, a relevância e a universalidade da Jornada do Herói como estrutura narrativa, com capacidade de atravessar diferentes formas de mídia e cativar o público, mesmo quando inserida em um contexto de jogo.

Com esse estudo, buscou-se proporcionar uma compreensão ampla sobre a importância da Jornada do Herói no contexto dos RPGs de mesa, e seu impacto na construção de narrativas interativas.

Por fim, torna-se importante frisar que em nenhum momento foi infringida a premissa fundamental, já que os autores permaneceram conscientes de suas limitações de conhecimento, em consonância com a Ordo Realitas, uma vez que “saber tudo é perder tudo” (Lange, 2023, p.104).

REFERÊNCIAS

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LANGE, Rafael. Resumão de O Segredo na Floresta: Nome Temporada começa às 18:00!. São Paulo: Cellbit/ Twitch TV, 31 de outubro de 2020b. 1 vídeo (350 minutos). [Live]. Disponível em: https://www.twitch.tv/videos/787649160. Acesso em: 29/05/23.

LANGE, Rafael. Resumo da Temporada: Ordem Paranormal: Desconjuração. São Paulo: Cellbit/ Twitch TV, 22 de maio de 2021. 1 vídeo (657 minutos). [Live]. Disponível em: https://www.twitch.tv/videos/1031225179. Acesso em: 30/05/23.

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VOGLER, Christopher. A Jornada do Escritor: Estrutura mítica para escritores. 3. ed. São Paulo: Aleph, 2015.

Notas

[1] “[...] qualquer jogo que permita que um número de jogadores assuma os papéis de personagens imaginários e opere com algum grau de liberdade em um ambiente imaginário.” (tradução nossa)
[2] “[...] uma mídia, na qual uma pessoa, por meio da imersão em um papel e no mundo desse papel, tem a oportunidade de participar e interagir com o conteúdo desse mundo.” (tradução nossa)
[3] “Permite que as pessoas se tornem simultaneamente os artistas que criam uma história e a audiência que observa a história se desenrolar.” (tradução nossa)
[4] “[...] uma narração de história com regras” (tradução nossa).
[5] A “lore” de um RPG de mesa inclui detalhes sobre a história do mundo ficcional, os personagens icônicos, as raças, as culturas, os eventos históricos e qualquer outro elemento que contribua para a imersão e compreensão da narrativa do jogo.
[6] “um processo interativo de definição e redefinição de um jogo imaginário em um mundo fictício, realizado por um grupo de participantes, de acordo com uma estrutura de poder reconhecida.” (tradução nossa)
[7] Um jogo de desenvolvimento de personagens, simulando o processo de desenvolvimento pessoal comumente chamado de vida. (tradução nossa)


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