Resenhas

Recepción: 08 Septiembre 2023
Aprobación: 20 Octubre 2023
O desenvolvimento da modernidade e a consequente chegada da pós-modernidade, cuja característica primordial é a ascensão de mídias diversas, isto é, meios de comunicação em massa que afetaram consideravelmente o sujeito contemporâneo. Tal fato sugere que as sociedades pós-modernas são caracterizadas pela possibilidade de acesso a universos sociais, tanto físicos quanto virtuais, tão variados a ponto do próprio usuário se “fragmentar” frente à heterogeneidade cultural. Isso significa que o referido cenário sociocultural, embora riquíssimo no tocante ao consumo, transtorna o sujeito, uma vez que ele/ela não parece mais apto a acompanhar as demandas de uma realidade continuamente mutável, ou líquida, como diria Bauman.
Aloísio Dantas, autor de O crime, obra publicada no ano de 2023 pela editora Birosca do Meroveu, certamente compreende a eficácia da arte literária para expressar as angústias da figura humana, fato aparentemente paradoxal quando consideramos que o escritor constrói uma obra singular a partir de um universo curto em extensão, formado por elementos verbais encadeados racional e poeticamente. O autor apresenta uma trama em que é possível dialogar com diversas formas de existência a depender dos artifícios discursivos e temáticos escolhidos. Nesse raciocínio, o escritor de O crime tece uma narrativa metamórfica capaz de se adaptar aos diferentes pontos da trama.
De início, somos apresentados ao personagem Pedro, professor da rede particular de ensino. O homem, certo dia, recebe em sua casa uma carta cujo conteúdo o transtorna: “Quando voltou, sentou-se no sofá, abriu o envelope [...] Foi ficando amarelo, suas mãos tremiam, alguma coisa acontecia no texto da carta” (Dantas, 2023, p. 9). O remetente, desconhecido tanto para Pedro quanto para o leitor, afirma, em tom ameaçador, que o destinatário não chegará ao fim do ano, pois uma ferida romperá seu coração. O conflito então se inicia no coração do personagem central, fato intrinsecamente conectado à estrutura da obra. Os acontecimentos vindouros e as atitudes de Pedro são narradas com sentenças objetivas, estas permeadas por constantes quebras de parágrafos, o que favorece a crescente natureza fragmentada do personagem, isto é, a desordem que afeta sua rotina monótona.
Importante salientar que o narrador se consagra como uma peça fundamental para compreendermos o quebra-cabeça proposto pelo autor de O crime, oriundo do pacto ficcional entre leitor-obra. A voz narrativa é heterogênea. O narrador antes heterodiegético se transforma em autodiegético (Pedro), consequentemente, percorremos um fluxo de consciência em que os limites entre prosa e verso não estão mais evidentes, pelo contrário, mesclam-se:
Nessa época, eu era professor do ensino médio, morava num pequeno apartamento de dois quartos, num edifício bem distante do centro [...] De que modo trabalha a memória? Cavando, cavando, toupeira que sobrepõe terra sobre terra e suja os olhos com as cinzas do passado, tapando a visão do futuro [...] Eu que sempre caminhei no centro da estrada, tenho que tatear nas margens, e não trouxe a palavra dos desvios, nem a sinuosa afirmação das negativas (Dantas, 2023, p. 16-17).
O excerto acima engloba períodos que escapam da pura referência aos significados externos dos signos. Os fragmentos relatados pelo narrador alcançam a esfera expressiva da linguagem, impulsionada em demasia pela figura da toupeira devido ao seu trabalho com a terra, alegoria para a memória humana, que prende o sujeito ao passado e, ao mesmo tempo, oculta-lhe o futuro. Nesse ponto, a estrutura da obra ganha contornos que, em um primeiro momento, aparentam pura entropia, pois determinadas construções poéticas quebram sequências objetivas do texto, fato exemplificado no trecho da obra comentado anteriormente.
Tal encadeamento discursivo não se constitui como simples formalidade. Após receber a carta no início da narrativa, Pedro ainda é confrontado com outra mensagem do remetente misterioso. Dessa vez, o conteúdo do recado o encurrala e, enfim, sugere a natureza do crime a ser cometido: estuprar sua aluna Andreia, filha do diretor. O ponto nevrálgico se revela pelo comportamento de Pedro, uma vez que suas atitudes evidenciam um conflito interno entre a ameaça recebida e a índole pura do personagem.
Se o tempo do herói clássico já passou, o herói problemático permanece como uma força inquestionável para peregrinar pelas inconstâncias da sociedade. Pedro é um homem comum cuja simplicidade da rotina é afetada pelo acaso. Não esbanja qualquer grandiosidade, ainda assim, percebe-se como vítima de forças externas: “Conseguiria Pedro manter de pé o seu castelo de cartas?” (Dantas, 2023, p. 31). Relacionar o dilema moral do homem com um castelo de cartas apenas reforça a fragilidade de sua situação, ademais, também sugere o florescimento do absurdo: “Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo” (Camus, 2019, p. 15). De forma semelhante à descrição de Camus acerca da natureza humana em confronto com uma realidade inexplicável, Pedro paulatinamente cultiva sentimentos que o repartem a ponto de não se sentir mais estável frente ao mundo.
Em relação ao plano expressivo, a trama é dividida em 100 capítulos, estes que, dado o teor metamórfico do texto, aparentam funcionar como gêneros isolados, muitas vezes compreensíveis sem o conhecimento prévio do enredo. Inclusive, a notável técnica com a qual o autor tece a diegese da obra viabiliza efeitos diversos, entre os quais vale destacar a metalinguagem do ato criativo, observada em uma discussão entre narrador e personagem:
Contar histórias é difícil, e torna-se uma ação complexa quando você conhece aquele sobre quem você elabora discursos [...] Pedro me visitou aos gritos e apontando o dedo: “Seja homem, deixe de contar mentiras”. Sua reclamação era a de que eu o acusava de ser estuprador, ele que sempre fora um professor decente. No começo não tinha reclamado, porque acreditava que a narrativa seria uma biografia elogiosa (Dantas, 2023, p. 35).
No trecho acima, apresenta-se a complexidade do papel do narrador considerando o sujeito referente, isto é, o personagem sobre quem aquele desenvolve o discurso literário. A própria voz narrativa comenta a indignação de Pedro em relação ao teor dos fatos narrados, aparentemente caluniosos. Nesse contexto, a identidade do narrador é uma incógnita, tendo em vista que não se trata mais, como julgado anteriormente, de um narrador espectador de fora da diegese, mas sim de dentro, ou seja, um narrador homodiegético, capaz de interagir com o personagem central.
O aspecto temporal também sofre oscilações com o prosseguimento da história. De início, é possível constatar o tempo cronológico pelo encadeamento dos fatos que, explicitamente, denotam um grau de linearidade. Contudo, à medida que o dilema de Pedro alcança proporções críticas, o enredo sofre modificações substanciais no tocante à estrutura de determinados capítulos, que mais se assemelham a contos subjetivos e quebram o conforto do tempo cronológico:
Vocês sabem o que é morar numa sala vazia, onde uma criança não lhe vem azucrinar o juízo, nem um parente indesejado vem mudar o canal de seu programa favorito, ou a esposa vem esconder com meiguice o excesso de gasto naquela viagem que não fora prevista, a sogra que o irrita com um rosto fechado, enquanto pega o melhor pedaço da carne, o sogro que exige dinheiro emprestado e não entende as suas dificuldades financeiras, o tio com a renca de filhos, que no domingo insiste em passar o dia? (Dantas, 2023, p. 62).
Esse longo questionamento é apenas um fragmento de uma série de capítulos em que o narrador desenvolve narrativas curtas para dissertar sobre variadas carências humanas — muitas vezes de forma alegórica. À primeira vista, tais discursos parecem destoar da fábula de Pedro, entretanto, um olhar mais atento revela a intrínseca relação entre as reflexões impostas ao leitor e a formação do personagem principal. Se Pedro incorpora a banalidade do sujeito pós-moderno, consequentemente também personifica suas deficiências espirituais e sociais. Nesse raciocínio, o modelo anti-heroico ou a fragmentação do classicismo épico é a representação da atual condição humana em um mundo onde os valores mudaram devido à quebra de paradigmas, pois: “No fundo de toda beleza jaz algo de desumano, e essas colinas, a doçura do céu, esses desenhos de árvores, eis que no mesmo instante perdem o sentido ilusório com que os revestimos, agora mais longínquos que um paraíso perdido” (Camus, 2019, p. 21). A partir do momento em que o sujeito pós-moderno se liberta dos grilhões de uma confortante realidade estável, depara-se, enfim, com a crise de consciência.
O embate psicológico de Pedro parece se converter em uma espécie de odisseia singular quando, mais ao fim da novela, sua relação com Andreia adquire tonalidades de um amor proibido. Em meio à euforia de amantes apaixonados, os dois personagens fogem da cidade natal para viver a promessa de uma vida liberta dos grilhões do destino. Essa existência peregrina coincide com o afloramento de outra linha narrativa que subverte as expectativas do leitor, resumida pelo seguinte trecho da obra: “Fantasia é a substituição de uma realidade por outra, atravessar os campos floridos e encontrar do outro lado apenas terra seca” (Dantas, 2023, p. 86). Doravante, o caos discursivo se fortalece pela revelação de que Pedro é um homem esquizofrênico que fora internado pela suposta esposa Andreia, cuja voz narrativa assume o controle já nas páginas finais da obra.
Em suma, a produção de Aloísio Dantas não se consagra apenas como um exemplo claro de técnica narrativa, mas também como um exercício de contínua desintegração do ato criativo, fato esse que não significa demérito algum para a obra literária; pelo contrário, revela a maturidade estilística de um escritor consciente das diferentes vozes que impele os sujeitos da pós-modernidade em suas próprias odisseias. Em meio à entropia da sociedade, Aloísio Dantas tece a trama de personagens largados ao acaso, ou como afirma o escritor: “Eram simplesmente dois personagens desperdiçados, de uma narrativa que o autor esqueceu de contar” (Dantas, 2023, p. 109). Caso a Literatura possa ser considerada o espelho da sociedade, o reflexo mostrado nem sempre vai agradar os leitores, principalmente aqueles que acreditam fielmente na unidade indissociável do homem contemporâneo.
REFERÊNCIAS
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2019.
DANTAS, Aloísio. O crime. Campina Grande: A Birosca do Meroveu, 2023. 109 p.