APRESENTAÇÃO
Nascida em 1994, a revista Comunicação & Educação editou sua 10ª edição em 1997, ano em que Paulo Freire nos deixou. Ainda assim, a revista chegou, neste ano de 2021, a seu 26º volume, alcançando sua 66ª edição. Ao longo deste percurso, Paulo Freire e suas ideias acompanharam a caminhada dos editores e autores da revista. Na primeira edição deste ano, Freire foi lembrado, por exemplo, com a publicação de um artigo de Livia Freo Saggin e Jiani Adriana Bonin, “Explorações teóricas para pensar as inter-relações entre educomunicação e comunicação comunitária”. Logo, foi justamente para identificar a contribuição de Freire para a interface entre a Comunicação e a Educação que os editores decidiram lançar uma chamada para artigos sobre a temática, a fim de compor um volume especial que configurasse uma contribuição do Departamento de Comunicações e Artes da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) para as comemorações dos 100 anos do patrono da educação brasileira.
Este volume – dossiê 100 anos de Paulo Freire – soma-se às homenagens prestadas ao centenário do filósofo da educação, teórico da comunicação, educador popular, professor universitário e homem público, Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997). Afinal, Freire é, por sua perspicácia e pela universalidade de seu pensamento, a referência de intelectual brasileiro mais citada no mundo. Sua extensa obra é marcada pelo compromisso com uma filosofia de emancipação das camadas populares por meio da educação.
Lembramos que o educador brasileiro é uma referência fundamental não só para as teorias da Comunicação na América Latina, com influência reconhecida pelos principais pesquisadores da área, mas também é referência internacional para as diferentes vertentes teóricas que pensam e praticam a educação crítica para a mídia e a informação. Sua dialogia segue inspirando e orientando a prática da comunicação libertadora em diversas instituições e movimentos sociais, bem como na educação formal, não formal e informal ao redor do mundo.
A práxis freiriana na interface Comunicação e Educação passou a ser, mais especificamente, a base do pensamento que contribuiu para a emergência e a consolidação, na Ibero-América, do conceito e da prática da Educomunicação.
Paulo Freire se formou em Direito e foi professor de língua portuguesa em escolas de ensino fundamental. Além disso, dirigiu experiências de alfabetização de adultos no governo popular no Brasil, anterior ao golpe militar de 1964. Em seu período de exílio, viveu na Bolívia, no Chile e na Suíça, mas passou pelos Estados Unidos e fez muitas viagens a serviço das sociedades africanas e asiáticas. Freire obteve 35 títulos de doutor honoris causa , entre 1988 e 2013, em reconhecidas universidades de 11 países: Alemanha, Argentina, Bélgica, Brasil, Cuba, Espanha, Estados Unidos, Itália, Portugal, El Salvador e Suécia. Após a sua morte, passou a ser o tema central de estudo e referência para projetos de 32 organizações, em países da África, Europa, Ásia, Oriente Médio e Américas, entre elas os 19 “Institutos Paulo Freire”.
A partir do dia 13 de abril de 2012, pela Lei nº 12.612, Paulo Freire foi oficialmente reconhecido como patrono da educação brasileira. No entanto, o reconhecimento da figura de Freire não é unanimidade em seu próprio país. Setores tradicionalistas tentam deslegitimar a obra do educador, especialmente por seu impacto na formação de uma juventude cada vez mais comprometida com a justiça, a defesa do meio ambiente e a liberdade de expressão. Vale salientar que doutrinação e pedagogia freiriana são coisas que não se misturam; são excludentes, como óleo e água. Com a consciência pedagógica de que a leitura do mundo precede à leitura da palavra, para o educador brasileiro, todos somos sujeitos com histórias, experiências e capacidade para a fala e para o pensamento crítico e que não há e nem pode haver hierarquia cultural em uma relação dialógica que fundamenta o ato pedagógico-comunicativo.
Isto foi o que ficou evidenciado no conteúdo dos 60 textos que, em atendimento à chamada por artigos por parte da Comunicação & Educação , se apresentaram como candidatos a compor o dossiê 100 anos de Paulo Freire . As contribuições vieram de diferentes localidades do Brasil e do mundo, provenientes de distintas áreas do conhecimento, o que atesta, por um lado, a singularidade da obra de Freire e, por outro, a permanência do interesse científico sobre a obra do pensador brasileiro e a validade deste para lidar hodiernamente com os desafios econômicos, filosóficos, políticos, sociais e culturais para uma educação libertadora. A alta qualidade dos artigos submetidos também evidencia a gama de pesquisadoras e pesquisadores dedicados a se aprofundar e encontrar novas perspectivas e caminhos para produzir conhecimento a partir dos fundamentos teórico-epistemológicos de Paulo Freire, bem como a discutir as experiências e os impactos emancipatórios da pedagogia freiriana.
A ESTRUTURA DO DOSSIÊ
Os 14 artigos aprovados para esta edição do dossiê foram divididos em cinco eixos temáticos: Pedagogias de Paulo Freire, dialogia e comunicação ; Contribuições da pedagogia freiriana para a decolonização e os povos originários ; Pedagogia de Paulo Freire e o engajamento na práxis ; A dimensão cultural do pensamento freiriano: entre a teoria e a práxis;O pensamento de Paulo Freire: entre o internacional e o regional, o urbano e o rural . Os eixos temáticos são antecedidos por uma entrevista realizada com Moacir Gadotti, professor aposentado da USP e discípulo e parceiro de Freire desde os tempos de seu exílio em Genebra, na década de 1970, até a instalação e a consolidação do Instituto Paulo Freire em São Paulo ao longo da década de 1990, do qual é o atual Presidente de Honra.
Passamos a apresentar os eixos com seus respectivos capítulos, facilitando uma visão de conjunto sobre a contribuição oferecida por esta coletânea.
Abrindo o primeiro eixo temático – Pedagogias de Paulo Freire, dialogia e comunicação –, o leitor se depara com o artigo de Fabiana da Costa Pereira e Ivete Fossá, sob o título “Pedagogias de Paulo Freire: educando para a cidadania com protagonismo na comunicação”, que realiza aproximações e articulações teóricas entre Paulo Freire e Mario Kaplún para pensar uma educação libertadora, baseada na pedagogia da comunicação e na autonomia do sujeito para a conquista da cidadania. O segundo artigo, “A produção do conhecimento e a constituição de sujeitos: diálogos com os diferentes Vygotsky, Bakhtin e Freire”, de Joana d’Arc Vasconcelos Neves, Sandra Nazaré Dias Bastos e Gislene da Silva Oliveira, discute, por sua vez, a produção do conhecimento por meio da perspectiva interacionista com base no “diálogo-ponte” estabelecido entre Freire, Vygotsky e Bakhtin. As pesquisadoras buscaram compreender a produção do conhecimento como processos dialógicos entre sujeitos cognoscentes e inacabados e a sua constituição e decorrentes transformações por meio das interações, do diálogo e da linguagem. Finalmente, o artigo “Vinte anos de fundamentação freiriana na produção do grupo de pesquisa comunicação e educação da Intercom”, sob a responsabilidade de Rose Mara Pinheiro e Ana Luísa Zaniboni Gomes, analisa a presença de Paulo Freire como uma fundamentação teórica na produção científica gerada pelo grupo de pesquisa entre 2001 e 2020. Para tanto, foram investigados os 847 artigos apresentados em congressos nacionais que estavam disponíveis nos anais dos eventos na página oficial da Intercom, na internet. Como resultado, a pesquisa aponta que, em 41% dos textos, os autores fazem referência ao educador brasileiro, em especial às obras Extensão ou comunicação? , Pedagogia do oprimido e Pedagogia da autonomia .
O eixo subsequente – Pedagogia de Paulo Freire e engajamento napráxis – é formado por dois artigos. No primeiro deles – “Paulo Freire e o legado de uma educação partidária em prol da práxis do oprimido” –, Lucia de Fatima Valente e Thalles Valente de Paiva se posicionam politicamente no debate hodierno da educação, tendo como principal alvo o projeto Escola sem Partido. Os pesquisadores se baseiam principalmente nas obras Pedagogia do oprimido , A importância do ato de ler e Pedagogia da autonomia para confrontar a perspectiva da suposta neutralidade da educação e defender que o legado de Freire é partidário e que a política está na educação, pois envolve a defesa de pontos de vista. O segundo artigo deste eixo é de autoria de Joana Salém Vasconcelos, tendo como título “Pedagogia do oprimido: documento da reforma agrária no Chile”. O texto se volta para o livro mais conhecido do patrono da educação brasileira, entendendo-o como um documento histórico que reflete a práxis de Freire, com foco na alfabetização camponesa durante a reforma agrária no Chile. A autora postula que as hipóteses formuladas por Freire antes do golpe civil-militar no Brasil de 1964, com destaque para a hipótese da “aderência ao opressor”, da “cultura do silêncio” e da “tensão entre diálogo e anti-diálogo”, são confirmadas durante o exílio de Freire devido à sua práxis no país latino-americano.
Com o artigo de Antônio Joaquim Severino, intitulado “A emancipação dos povos colonizados na proposta educacional freiriana: decolonização e interculturalidade”, tem início o terceiro eixo temático – Contribuições da pedagogia freiriana para a decolonização e os povos originários. O professor Severino evidencia a contribuição pioneira de Freire para a decolonização, uma vez que o educador apontou para a necessidade de uma tomada de consciência da condição de colonialidade cultural persistente nas sociedades periféricas do planeta, defendendo a interculturalidade como o elemento essencial da prática educativa, que atua favoravelmente ao processo de emancipação dos povos colonizados.
O eixo segue com um trabalho de Josélia Gomes Neves dedicado ao tema das comunidades originárias do Brasil, sob a designação “Paulo Freire: um olhar de amorosidade para a educação escolar indígena”. O artigo resultou da análise de um documento que reproduz parte de um diálogo de Paulo Freire com os participantes da 8ª Assembleia Regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ocorrido em junho de 1982, em Cuiabá. De acordo com a autora, a análise do documento permitiu compreender o pensamento fronteiriço de Paulo Freire, que articula classe e etnia. De forma geral, conclui a autora, o encontro propiciou uma importante reflexão sobre a alteridade e foi pontuado por considerações e perguntas próprias das vivências dialógicas e do enfrentamento das tensões entre culturas assimétricas.
Por sua vez, os pesquisadores Fabrício Valentim da Silva, Marc-André Éthier e Stéphanie Demers, que responderem pelo terceiro artigo do eixo, analisam a noção de emancipação presente em livros didáticos de inspiração freiriana – “Uma análise do conteúdo de livros didáticos para a alfabetização emancipatória de adultos no contexto educacional pós-colonial: o caso da Amazônia brasileira na década de 1980”. O texto aborda a alfabetização de adultos no contexto da educação pós-colonial no norte do Brasil entre as décadas de 1960 e 1980. Os autores verificam, em sua conclusão, que os conteúdos dos subsídios didáticos favoráveis à alfabetização emancipadora implementada no período haviam sido definidos a partir do perfil que identifica e caracteriza o cidadão orientado à justiça ou à prática da cidadania participativa.
Sob uma perspectiva didática, contextualizada na passagem do ensino médio para o superior, Zilda Martins Barbosa e Renata Nascimento da Silva abordam, no texto “Comunidade de aprendizado na pós-graduação: cursos preparatórios em uma dialogia que nasce da solidariedade”, as noções de educação emancipatória e pedagogia dialógica integradas à comunidade de aprendizado em favor do pensamento decolonizador, tomando como objeto de análise as ações coletivas propostas pelos Cursos Preparatórios para Pós-Graduação (CPP). As autoras compreendem que as mobilizações estudantis questionam as epistemologias eurocêntricas e a meritocracia como pensamentos e métodos dominantes.
A quarta divisão temática – A dimensão cultural do pensamento freiriano: entre a teoria e apráxis – contribui com dois textos. A partir do primeiro, intitulado “Reflexões em torno dos círculos de cultura na perspectiva freiriana: um espaço-tempo de comunicar-formar sujeitos sociais”, os pesquisadores André Gustavo Ferreira da Silva e Allan Diêgo Rodrigues Figueiredo focam os círculos de cultura, espaços onde se deram as origens da práxis freiriana na experiência de alfabetização de Freire em Angicos. O círculo é compreendido como um contraponto à educação bancária, um espaço-tempo dialógico-comunicativo na formação dos sujeitos sociais. As categorias de dialogicidade e comunicação fundamentam a dinâmica dos círculos como uma prática educativa coletiva. Já o segundo texto, de Carlos Henrique Silva e Filomena Bomfim, tendo como título “O teatro na alfabetização de adultos: Paulo Freire em tempos de pandemia”, apresenta uma experiência de alfabetização de adultos que utiliza o teatro como método e prática educomunicativa, sendo o recurso de grupo do WhatsApp o dispositivo de comunicação. A metodologia desenvolvida articula as vivências do estudante, os círculos de cultura, a expansão vocabular e o trabalho com palavras geradoras em diferentes níveis, que envolvem a alfabetização midiática, a alfabetização por meio de narrativas e da construção de personagens fictícios, bem como a alfabetização construída a partir da relação do aluno com outros e com o mundo.
O quinto eixo temático – O pensamento de Paulo Freire: entre o internacional e o regional, o urbano e o rural – se volta para a dimensão mobilizadora da obra de Freire. Silvia Maria Manfredi, na condição de presidente do Instituto Paulo Freire na Itália, recupera e analisa, no artigo “Cruzando fronteiras: as obras e o legado de Freire na Itália”, a permanência de Paulo Freire na Europa durante seu exílio entre 1970 e 1980, momento em que suas obras começaram a ser traduzidas e conhecidas em diferentes países do velho continente, conquistando, definitivamente, a Itália. A autora entende que a presença de Freire em território italiano pode ser identificada em dois períodos: o primeiro durante os anos de 1960 e 1970, em que as experiências de Freire na América Latina iluminaram os debates em torno das lutas emancipatórias dos movimentos sociais e culturais italianos, que contaram com o apoio de setores progressistas da Igreja Católica. Neste tempo, Freire e seus assessores desenvolveram, em parceria com os dirigentes do movimento sindical italiano, o projeto das 150 horas, uma luta pelo direito ao estudo. Enquanto esteve em Genebra, Freire também estabeleceu uma interlocução com pedagogistas italianos envolvidos em ações coletivas pautadas em valores emancipatórios. O segundo período se deu após um interregno de duas décadas, durante os anos 1980 e 1990, quando uma nova onda de interesse e de difusão da pedagogia freiriana foi impulsionada pela realização do II Fórum Internacional de Paulo Freire, em 2000, na Universidade de Bolonha. Assim, o Instituto Paulo Freire-Itália, criado em 2005, em rede com os demais institutos freirianos, assume o papel de levar adiante a tarefa de custodiar, difundir e reinventar o legado freiriano pelos continentes.
Na sequência, a última unidade temática é voltada para o nordeste do Brasil com dois estudos de caso que retratam a inserção da proposta freiriana em sua missão mobilizadora em territórios dominados por estruturas arcaicas de práticas sociais: os estados da Paraíba e da Bahia. O primeiro movimento foi descrito por Claviano Nascimento de Sousa, Thaynara Policarpo de Souza Gouveia e Diogo Lopes de Oliveira, em seu texto denominado “O povo que pronuncia seu mundo: Paulo Freire e a superação da cultura do silêncio no semiárido paraibano”. O estudo situa a comunicação popular e os movimentos sociais em oposição ao status quo que impõe às classes marginalizadas práticas de convivência silenciosa com suas condições de vida. Os objetos da análise são as ações desenvolvidas pelo Grupo de Trabalho em Comunicação da Articulação do Semiárido (ASA) entre os anos de 2020 e 2021 que tinham como objetivo promover o diálogo entre agricultores, técnicos de organizações sociais e cientistas sociais para confrontar o que Freire define como cultura do silêncio, tendo como força motriz a Teoria da Libertação. A amostra, composta por sete ações desenvolvidas nesse período, aponta resultados animadores no sentido da superação da opressão sobre o direito à práxis do diálogo e ao processo de emancipação comunicativa, beneficiando, assim, o povo nordestino.
Já o terceiro texto da unidade temática é voltado para “Paulo Freire e suas marcas no Vale do São Francisco”, um artigo escrito por Francisco de Assis Silva a partir da sua tese defendida em um programa de cooperação interinstitucional envolvendo a ECA-USP e a Universidade do Estado da Bahia (Uneb). O artigo aborda as contribuições de Paulo Freire para a implantação de um projeto de educação popular na Bahia. O objeto de tal estudo é constituído pelo trabalho de formação continuada oferecido por Freire e a sua equipe na década de 1980, que atendia às lideranças populares de municípios filiados à Diocese de Juazeiro, localizada às margens do rio São Francisco e administrada pelo então conhecido “bispo dos excluídos”, Dom José Rodrigues de Souza. Os desdobramentos das ações realizadas nesse processo geraram novas possibilidades de construção de conhecimento. Tais possibilidades se refletem, na atualidade, nos jovens formados por Freire, pois estes hoje atuam adotando novos paradigmas para o trabalho local, por exemplo, a educomunicação, de orientação freiriana, que é empregada no espaço da própria Uneb na formação de futuros docentes e comunicadores sociais.
Os 14 artigos que a leitora e o leitor tem em tela pronunciam freirianamente o mundo dialético e dialógico, cujos condicionamentos históricos e sociais, posto que Freire não os reconhece como determinações, são discutidos, enfrentados e pensados em suas possibilidades de ser mais. Esperamos que a inabalável fé freiriana de que mulheres e homens possam ler e transformar o mundo esteja presente em cada palavra deste dossiê e nas lutas por liberdade.
Uma boa leitura!
São Paulo, dezembro de 2021.
Autor notes
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