Resumo: Este artigo traça uma discussão sobre a produção do conhecimento e a constituição dos sujeitos, a partir da visão interacionista e das concepções teóricas de Vygotsky, Bakhtin e Freire. Na perspectiva dos autores, a produção do conhecimento ocorre nas relações entre sujeitos em processos dialógicos. Por meio da justaposição e da convergência de ideias, este artigo estabelece um diálogo entre suas reflexões, enfatizando os processos de constituição de sujeitos (sujeito, linguagem, interações) e a produção do conhecimento como processo dialógico (sujeitos cognoscentes). Dentre os resultados, destaca-se o “diálogo-ponte”, que entrelaça a visão dos autores nas categorias de inacabamento do sujeito, dialogismo e diálogos com o diferente, vistas como formas de transformações do sujeito, da sociedade e do conhecimento produzido.
Palavras-chave: Vygotsky, Bakhtin, Freire, sujeitos-dialógicos, diálogo-ponte.
Abstract: This article traces a discussion on the production of knowledge and the constitution of subjects, based on the interactionist view and the theoretical conceptions of Vygotsky, Bakhtin, and Freire. From these authors’ perspectives, production of knowledge occurs in the relations between the subjects in dialogical processes. This article stablishes a dialogue between their reflections, by juxtaposing and converging ideas, emphasizing the processes of constitution of the subjects (subject, language, interactions) and the production of knowledge as a dialogical process (cognitive subjects). Among the results, the “bridge-dialogue” stands out, which intertwines the view of these authors concerning the categories of unfinished subject, dialogism, and dialogues with the other as forms of transformation of the subject, the society, and the knowledge produced.
Keywords: Vygotsky, Bakhtin, Freire, dialogical-subject, bridge dialog.
DOSSIÊ 100 ANOS DE PAULO FREIRE: Pedagogias de Paulo Freire, dialogia e comunicação
A produção do conhecimento e a constituição de sujeitos: diálogos com os diferentes Vygotsky, Bakhtin e Freire
Recepção: 12 Maio 2021
Aprovação: 06 Outubro 2021
Este artigo tem como objetivo analisar as aproximações conceituais entre Lev Vygotsky, Mikhail Bakhtin e Paulo Freire a partir de seus conceitos sobre a linguagem e à luz das visões de diálogos coletivos, sociais e históricos, resultado de processos de internalizações entre sujeitos.
Neste estudo, optamos por delinear o que chamamos de diálogo-ponte com a tríade teórica composta por Vygotsky, na visão histórico-cultural do desenvolvimento humano; Bakhtin, estudioso de áreas como a linguística e a teoria literária, com as noções de dialogismo, gêneros do discurso, texto-enunciado 1 e alteridade; e Freire, com seu conjunto de práticas educativas que criticam pedagogias opressoras e propõem formas educativas que buscam a conquista da liberdade, da autonomia e da emancipação dos sujeitos.
Essas abordagens conferem à linguagem uma natureza social, de processos de transformação que se dão nas relações estabelecidas com o outro, categorizadas como “diálogos com o diferente”. Por meio de uma visão dialógica e histórico-cultural em seus estudos, o sujeito passa a ser visto como sujeito de interação, com condições para “produzir conhecimentos” por diferentes interações e com diferentes sujeitos.
Nosso diálogo será sistematizado a partir dos tópicos: processos de constituições de sujeitos: sujeito, linguagem, interações; produção do conhecimento como processo dialógico; sujeitos cognoscentes e diálogo-ponte; e diálogos com o diferente.
O sujeito, fundamental na construção e na produção do conhecimento, ganha cada vez mais destaque na ciência moderna e nas práticas educativas, que passam a destacar o papel ativo do educando no processo de ensino-aprendizagem. Nos estudos sobre a produção do conhecimento, destacam-se a construção do sujeito e os elementos dos quais emergem o ato de aprender e da própria formação da consciência do indivíduo sobre si e sobre o mundo, no caso em questão, a linguagem e os processos de interações e dialógicos, conforme analisaremos nos autores Vygotsky, Bakhtin e Freire ( Figura 1 ).

Vygotsky 2 postula a transformação do homem, que passa de ser biológico para sócio-histórico por meio dos chamados processos culturais. Nessa perspectiva teórica, o sujeito é um ser biológico dotado de um corpo, cujas funções psicológicas, como atenção, percepção e memória, a priori biológicas, permitem o contato com a realidade objetiva e constroem relações com o mundo por meio de processos psicológicos elementares, base do pensamento. Segundo Vygotsky 3 , essas funções psicológicas se desenvolvem em formas superiores, pois o sujeito biológico torna-se humano pelos processos de interação social (sociogênese) que o constituem e são constituídos ao longo da sua história pessoal e realidade sociocultural, tornando-o cognoscente, mediado pela linguagem e pelos instrumentos culturalmente construídos.
Neste processo, a linguagem tem fundamental papel, pois seu desenvolvimento cria a representação do mundo não pela percepção sensorial, mas através dos signos e ideias. A conexão entre a percepção sensorial e a linguagem evidencia que o sujeito não expressa essa percepção de modo puro, mas pela mediação da linguagem 4 , o que significa dizer que o ser humano é biológico e social ao mesmo tempo. Como social, constitui-se pela interação com os outros. Através desse processo de interação, mediado pela linguagem, o ser humano constrói sua concepção e seu conhecimento de mundo.
Nesta concepção, a linguagem só se realiza na interação com o outro. Sem interação, obviamente, não há linguagem. Sendo assim, os sujeitos são vistos como construtores sociais, uma vez que é por meio de diálogos entre os interlocutores que ocorrem as trocas e a construção de conhecimentos 5 .
Vygotsky 6 empreendeu a trajetória do desenvolvimento intelectual do social para o individual. As interações sociais ganham destaque, pois o movimento do social para o individual ocorre através destes dois princípios: (1) “[…] uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente”; (2) “[…] um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal”. Esse conceito é fundamental no processo ensino-aprendizagem e dele decorrem importantes implicações pedagógicas.
A relação entre o sujeito biológico e o sujeito social em Vygotsky 7 advém dos processos mediatários através das interações com o outro pela linguagem, que ocupa privilegiado espaço na sua constituição psíquica, social e educacional e com a qual o sujeito compreende e age ao produzir conhecimento sobre si, o outro e o mundo.
Neste sentido, Bakhtin apresenta a concepção de linguagem como um sistema dialógico de signos, valorizando o texto como ato comunicativo, organizado numa fronteira entre o dito e o não-dito, considerando, na teoria da enunciação, elementos verbais e extraverbais.
[…] a experiência verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados individuais do outro […]. Nossa fala, isto é, nossos enunciados (que incluem as obras literárias), estão repletos de palavras dos outros, caracterizadas, em graus variáveis pela alteridade ou pela assimilação, caracterizadas, também em graus variáveis, por um emprego consciente e declarado 8 .
A produção de conhecimento do sujeito não se encerra em si mesma, pois é fruto da interação, de ações e suas profundas significações históricas, marcadas por gerações que antecedem o próprio sujeito. O ser humano resulta de uma conquista social e da apropriação da ação prática, e seu conhecimento sobre a realidade e sua intervenção sobre ela têm direta relação com os domínios conceituais com os quais entra em contato por meio de sua realidade social. Como apontado por Bakthin, o sentido é:
Tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha mãe etc.). […] A princípio eu tomo consciência de mim através dos outros; deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim mesmo 9 .
O pensamento bakhtiniano reflete a palavra como uma ponte lançada entre um eu e os outros. O sujeito é definido como um ser que se relaciona com outros sujeitos, intersubjetivo, com caráter de inacabamento, inconclusibilidade, inesgotabilidade e capacidade de transformação de si mesmo e da própria história humana nesse processo de interações.
Essa intersubjetividade leva à concepção do sujeito dialógico. A linguagem dialógica, a partir da relação das vozes exteriores (polifonia 10 ) que marcam os discursos, leva à compreensão de um sujeito que tece o conhecimento, estabelece novas relações e faz ouvir através do seu discurso, recriado a partir de “outras vozes”. Conforme Bakhtin, “nossa fala, isto é, nossos enunciados […] estão repletos de palavras dos outros. [Elas] introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos” 11.
Esse sujeito participa do processo de tessitura, propõe e provoca renovações, produz mudanças, transformações e novos conhecimentos, pois é sujeito gerador de respostas e atitudes, agente de processos de mudança, não ingenuamente, mas a partir da compreensão e ressignificação da realidade mutável, por meio da ação desse “sujeito-agente”.
Imerso às situações e à palavra do “outro”, será capaz de criar outros modelos, epistemologias e racionalidades de caráter autônomo, capazes de rompimentos com modelos pré-estabelecidos e de proposição de modelos emancipatórios, tal qual encontramos nos escritos de Paulo Freire.
Semelhante às concepções vygotskyana e bakhtiniana, o sujeito freireano passa por processos de construções, e é sujeito inacabado, relacional, intersubjetivo, se constrói através de relações horizontais (dialógicas) e pode resistir a relações verticais (não dialógicas). Isso fica evidente no campo educacional, ao propor o rompimento da estrutura autoritária professor-aluno, apresentando categorias como “educador-educando” e “educando-educador” 12 .
Assim o sujeito toma consciência da ação dialógica, comunga com os diferentes, adquire significação como sujeito, como homem e como ser social.
[…] o sujeito sabe que é exatamente o tu que o constitui. Sabe também que, constituído por um tu – um não eu –, esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu passam a ser, na dialética dessas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu 13 .
O autor concebe o sujeito como ser de relação, capaz de relacionar-se com sua realidade e com o mundo. Ser inacabado, que busca sua completude a partir da sua ontológica vocação de humanizar-se na perspectiva do ser mais, e só se constitui no diálogo com o outro, além de ser problematizador da sua própria realidade. O sujeito se descoisifica ao tomar consciência do mundo, “distanciando-se de seu mundo vivido, problematizando-o, ‘decodificando-o’ criticamente, no mesmo movimento da consciência o homem se redescobre como sujeito instaurador desse mundo de sua experiência” 14 .
A capacidade de superação, o ato de pensar e a ação problematizadora permitem ao sujeito ser mais, constituindo-o como um ser responsável pela construção de sua própria história que, também inacabada, o impulsiona a transcender. Para Freire 15 , “[…] a busca do ser mais, não pode realizar-se ao isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires, daí que seja impossível dar-se nas relações antagônicas entre opressores e oprimidos”.
O sujeito é dialógico na medida em que participa de um constante diálogo com seus pares. O diálogo, segundo Freire 16 , possui exigências que devem ser cumpridas, sendo princípios da ação dialógica a colaboração e a comunicação, necessárias às relações de autoridade (não autoritárias) e liberdade entre os sujeitos. O diálogo passa a ser exigência para a vivência social, para a busca de superação das “situações-limites”, para a tomada de consciência, para se acreditar em um “mundo possível”, e finalmente, para práticas sociais e emancipatórias.
Pensarmos esse sujeito cognoscente de relações é pressupor a passagem de uma consciência ingênua para uma consciência crítica, que se processa por meio da ação de problematizar e dos processos dialógicos. O autor defende uma educação comprometida com a libertação dos homens e justifica seu pensar ao propor “a pedagogia do oprimido, que no fundo, é a pedagogia dos homens empenhando-se na luta por sua libertação” 17 .
Ressaltamos a trajetória da constituição do sujeito, partindo do referencial teórico de Vygotsky 18 , que pressupõe a relação entre o biológico e o social, dentro da perspectiva de que o sujeito nasce biológico e torna-se um sujeito cognoscente, na medida em que interage com outros sujeitos e amplia seu potencial humano (atenção, memória) através dos processos dialógicos mediados pela linguagem, como também ratificam Bakhtin 19 e Freire 20 ( Figura 2 ).

Esse sujeito social constitui-se nas interações como um ser humano. E como tal, agente de processos dialógicos, capaz de realizar atos do conhecimento: partilhar e produzir conhecimento. É, portanto, como discutiremos no próximo tópico, um sujeito cognoscente.
O ato de posicionar-se, o qual Bakhtin 21 denominou responsividade ativa, parte sempre de um centro de referência sócio-histórico ou histórico-cultural, do qual projetam-se marcadores por vezes implícitos. A grande interseção com a qual nos deparamos é que a aprendizagem e a produção do conhecimento se constituem de interações produzidas do social para o individual, como proposta por Vygotsky 22 , de forma dialógica, de acordo com Bakhtin, e pelo diálogo verdadeiro e cooperativo, ao qual perseguiu Freire 23 em sua prática e seus escritos.
A singularidade do ser humano destaca-se por sua capacidade de perceber, raciocinar de maneira lógica e organizar-se socialmente de forma complexa, que denote conhecimentos e sentimentos. A essas características Vygotsky denominou “funções superiores”. Segundo o autor:
O conceito de “desenvolvimento das funções psíquicas superiores” abarca dois grupos de fenômenos […]. Trata-se, em primeiro lugar, de processos de domínio dos meios externos do desenvolvimento cultural e do pensamento: a linguagem, a escrita, o cálculo, o desenho; e, em segundo, dos processos de desenvolvimento das funções psíquicas superiores especiais, não limitadas nem determinadas com exatidão, que na psicologia tradicional denominam-se atenção voluntária, memória lógica, formação de conceitos etc. 24 .
Essa capacidade de construir e modificar os conhecimentos internalizados do plano interpsíquico no plano intrapsíquico é o que define a produção do conhecimento, que, aplicado e transformado no cotidiano, constitui o chamado conhecimento historicamente produzido.
Assim, nos escritos de Vygotsky, compreende-se que:
Desde os primeiros dias do desenvolvimento da criança, suas atividades adquirem um significado próprio num sistema de comportamento social e, sendo dirigidas a objetivos definidos, são refratadas através do prisma do ambiente da criança. O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa através de outra pessoa. Essa estrutura humana complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre história individual e história social 25 .
A cognoscência do sujeito constrói-se, para além da genética, a partir do envolvimento entre histórias (individual e social). O homem cria sua própria condição de existência e abre-se em movimentos de possibilidades e mudanças, tornando-se capaz de construir os conhecimentos. Para esse teórico, as mudanças que ocorrem nos sujeitos são frutos de interações entre eles, a sociedade e a cultura. A produção do conhecimento se dá pelas interações do sujeito com o meio, com as quais o homem atribui sentidos ao mundo.
Vygotsky 26 também destaca o importante papel que a linguagem tem na constituição dos indivíduos, pois nela se reflete o pensamento humano. É pela linguagem que os sujeitos transmitem seus pensamentos, sendo considerada o principal sistema simbólico na mediação sujeito-objeto.
Os sujeitos constroem conhecimentos a partir das relações de interação social e dos processos mediatários, por meio de instrumentos ou signos da cultura. Para Vygotsky 27 , o sujeito cognoscente é um todo no qual corpo e mente, biológicos e culturais, se integram no processo histórico-cultural. Na aquisição do conhecimento, atribui seus próprios significados aos instrumentos culturais e constrói novas relações, produzindo novos conhecimentos, como um ser que é, ao mesmo tempo, individual, criativo e único. Um ser incompleto, social, que se constituiu a partir da cultura, da história, das interações com o meio social e da sua capacidade de internalização.
O autor russo Mikhail Bakhtin, em La Poétique de Dostoïevski28 , dá vida ao conceito de dialogismo, apresentando para o princípio dialógico duas concepções desiguais, baseadas nos envolvidos no processo. A primeira refere-se ao diálogo entre sujeitos, ou seja, às interações entre homens e mulheres que desempenham o papel social de interlocutores. A segunda, referindo-se ao diálogo entre discursos, desenvolve a ideia de que a origem do dizer não está naquele que diz, mas no conjunto das muitas vozes que constroem os discursos no processo denominado interdiscurso ou discurso heterogêneo.
De acordo com o autor, todo texto é dialógico. O dialogismo é elemento constitutivo da linguagem e se constitui a partir do diálogo com outros textos. É, portanto, elemento, processo e produto da interação verbal, ou seja, das relações com o outro, com o diferente, com o “não-eu”.
O diálogo, num sentido amplo, é o resultado de uma atividade interativa entre um (ou mais) locutor(es) e seu(s) interlocutor(es), assim como entre enunciados que o precedem e com aqueles que o sucedem, configurando-se tanto por meio do texto-enunciado escrito quanto por meio da fala e/ou dos recursos não verbais 29 .
De acordo com Brait 30 , no círculo bakhtiniano, o conceito de dialogismo é apresentado de três maneiras distintas, que deixam entrever um fio condutor dessa ideia bakhtiniana: oeu e o tu , pois a ação, a produção dos discursos (diálogos) ou composicional se dão sempre em relação a um outro . O processo dialógico é essencial para a aprendizagem das linguagens e, mais restritamente, da língua materna, pois o contato entre pares estabelece a relação entre os sujeitos, a sociedade e o conhecimento.
Pensar em dialogismo é refletir sobre as diferenças. O mundo exterior chega até um eu pela palavra do outro . Não cabe aqui a ideia de um dialogismo como forma de passividade ou assujeitamento, mas como um processo no qual os indivíduos se deparam com os diálogos do outro, das memórias coletivas e tornam-se capazes de opinar, contestar, concordar, discordar e passar pelo processo de enfrentamento e de tomada de posição. Assim:
É importante atentar para o significado de diálogo em Bakhtin como um princípio geral da linguagem, de comunhão solidária e coletiva, mas sem passividade e não apenas como comunicação ou troca de opiniões vis-à-vis entre parceiros. Também é preciso frisar que o grande mérito de Bakhtin para os estudos do discurso foi introduzir o sujeito e seu contexto social via dialogismo interativo, trazendo com ele a história 31 .
Propomos categorizar o dialogismo bakhtiniano a partir do seu contínuo caráter do diálogo com o diferente, também como discurso emancipador , ou pelo menos capaz de levar ao processo emancipatório , pois o sujeito vê-se diante desse lugar de confrontos ideológicos que é a linguagem – construída social e historicamente por um “eu-tu” –, através da qual são permanentemente veiculados.
É por meio de inúmeros discursos, valores culturais, sociais, econômicos, repletos de contradições e divergências que ele, “sujeito em construção”, projeta-se social e historicamente, através da palavra, que é um fenômeno ideológico por excelência e carrega uma carga de valores culturais que expressam as divergências de opiniões e as contradições da sociedade, tornando-se assim um “palco de conflitos” . Como afirma Pires:
A alteridade intervém sempre. A identidade é um movimento em direção ao outro, um reconhecimento de si pelo outro que tanto pode ser a sociedade como a cultura. E o elo é a linguagem. Através da palavra, defino-me, em relação ao outro, em última análise, em relação à coletividade. […] A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor 32 .
É a presunção de um destinatário e suas respostas que estabelece o caráter responsivo do discurso. Um locutor sujeito do discurso espera na palavra do outro esse caráter de responsividade de todo enunciado (unidade e elo da comunicação discursiva). A responsividade se sobrepõe à mera compreensão passiva, repetidora do pensamento, e abre espaço para a “voz e a palavra do outro ”, tornando “minha palavra” uma resposta e ao mesmo tempo uma apropriação dos sentidos que atribuo aos nomes que já existem e a toda carga semântica e ideológica que trazem em si nas circunstâncias de produção.
A palavra, em Freire 33 , é instrumento mediador e norteador do processo de construção do conhecimento, de modo que, na epistemologia freireana, torna-se um elemento privilegiado para a assimilação do conhecimento e de sua produção, ganhando um sentido de ação capaz de estabelecer um ininterrupto processo de integração cultural e social.
A linguagem é concebida como uma abordagem de compreensão da sociedade, como uma ação dialógica e um instrumento de formação do sujeito e de superação de dominação. O direito à palavra é de todos os homens e, como tal, deve ser compartilhado.
[…] dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais 34 .
Através dessa reflexão sobre a palavra e sobre o direito de dizê-la, surgem dois conceitos-chave do pensamento freiriano: sujeito e diálogo. Para o autor, a educação é feita por meio do diálogo entre os sujeitos, e os educadores democráticos estão e são dialógicos. O diálogo, além de instrumento nesse processo, passa a representar uma condição humana.
Em Freire 35 , os processos de significação e materialidade são determinados pela linguagem, compreendida como uma oportunidade de “atos de fala” aos oprimidos, sujeitos “calados” no contexto sócio-histórico-cultural, tornando-se um caminho possível para o desenvolvimento individual e coletivo dentro do projeto de política democrática, no qual surgem práticas de resistência diferenciadas, problematizadoras e emancipatórias. Desse modo, o sujeito:
Não é mero espectador do processo, mas cada vez mais sujeito, na medida em que, crítico, capta suas contradições. Não é também seu proprietário. Reconhece, porém, que, se não pode deter nem antecipar, pode e deve, como sujeito, com outros sujeitos, ajudar e acelerar as transformações, na medida em que conhece para poder interferir 36 .
Freire 37 define diálogo como “encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu”. Através do diálogo, ganham significação no mundo enquanto homens e sujeitos não adaptados, mas quando críticos de sua existência, são homens com o mundo e capazes de refletir sobre a realidade na qual estão inseridos.
Por isso, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes 38 .
O diálogo, tal como definido por Freire 39 , não se limita a uma simples troca, mas pressupõe o processo emancipatório, pois “a conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não de um pelo outro. Conquista do mundo para a libertação dos homens”, e requer algumas exigências ou princípios, a saber, o amor ao mundo e às pessoas, a humildade, a fé nas pessoas, a esperança e o pensar verdadeiro.
Em síntese, o diálogo é um princípio de libertação, um avesso do ato opressor e de dominação, o oposto das estruturas impostas por relações verticalizadas, uma poderosa ferramenta de emancipação, pois “somente o diálogo, que implica num pensar crítico, é capaz, também, de gerá-la” 40 .
Freire propõe uma vasta literatura com reflexões acerca da educação, da ação pedagógica, da dialogicidade e de sua importância na transformação social, mediante a conscientização e a emancipação dos sujeitos. Neste texto, enfatizamos as obras das pedagogias freireanas – Pedagogia da autonomia ( 1996 ), Pedagogia da esperança ( 1992 ), Pedagogia do diálogo e do conflito41 ( 1995 ), Pedagogia da indignação ( 2000 ), Por uma pedagogia da pergunta42 ( 1985 ) e Pedagogia do oprimido ( 1987b ) – para evidenciar a intrínseca relação ontológica, epistemológica e política do pensamento freireano, segundo o qual as relações entre sujeito e consciência e realidade permeiam suas experiências e análises sobre práticas e processos pedagógicos dialógicos e não dialógicos. Assim, na unidade dialética entre o ser e o pensar; entre a teoria e a prática, a educação é capaz de tecer práticas emancipatórias através de ações dialógicas.
Para o educador, a prática educativa precisa ter sentido, ser criativa e crítica e partir da problematização da realidade do educando. A produção do conhecimento se faz, tão somente, se o educando é chamado a conhecer, pois a “ curiosidade do professor e dos alunos, em ação, se encontra na base do ensinaprender ” 43 . O neologismo 44 verbal ensinaprender traduz a concepção de ensino-aprendizagem e educação mediada e dialógica proposta pelo autor.
Abordar a proposta pedagógica de Freire é considerar pedagogias de caráter reflexivo sobre prática educativa e social, que vai de encontro a propostas educativas de ensino-aprendizagem com organização vertical. Freire 45 denominou “educação bancária” aquela guiada pelos princípios do cientificismo moderno com práticas educativas que concebem os indivíduos como vazios de conhecimento, comparados a uma “tábula rasa”.
Opostas às práticas “bancárias” , as pedagogias propõem um fazer problematizador – uma proposta pedagógica na qual a prática educativa tem um sentido de libertação, dando livre e crítica participação ao educando, em oposição à escola de princípios autoritários. Pressupõe, assim, o processo de conscientização mediado pela linguagem e pelo diálogo, no qual a prática é “comprometida com a libertação, se empenha na desmistificação. Por isso, a primeira nega o diálogo, enquanto a segunda tem nele a indispensável relação ao ato cognoscente, desvelador da realidade” 46 .
A epistemologia freireana propõe a problematização da realidade a partir de uma palavra advinda da realidade do grupo participante, da criação de situações de fala e não de conteúdos pré-estabelecidos. Há estreita relação entre a palavra decodificada e o cotidiano dos educandos. A palavra chega carregada de subjetivações e não oca e abstrata. Essa aproximação faz os mecanismos de leitura e escrita se entrelaçarem com as experiências vividas e a subjetividade e identidade do grupo.
De modo geral, a educação bancária está a serviço da dominação, possui uma ação antidialógica, inibe formas de criatividade e tem caráter domesticador e conservador. Em contrapartida, a educação libertadora, proposta na obra Pedagogia do oprimido ( 1987b ), serve à libertação, é dialógica, estimula a criatividade, a consciência crítica e a reflexão, critica o autoritarismo e formas de dominação. É, portanto, revolucionária.
Freire 47 sintetiza esse fazer dialógico e problematizador ao afirmar: “Ninguém educa ninguém e ninguém se educa sozinho. Os homens se educam juntos na transformação do mundo”. Os sujeitos permutam conhecimento, para o qual não há o depositário e o depositante. Há, sim, um processo de mediatização desse conhecimento de mundo pelos homens.
Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas 48 .
Propõe-se a construção do conhecimento por meio do diálogo, pressupondo-se a existência da troca recíproca de saberes entre educadores e educandos. Evita-se a mecânica repetição de conteúdos, não depositados como única visão, mas partilhados como saber construído a partir do encontro de saberes e realidades, que traz os sujeitos para o processo.
Na verdade, seria uma contradição, se inacabado e consciente do inacabamento, o ser humano não se inserisse em um movimento de busca. É nesse sentido que, para mulheres e homens, estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros 49 .
Dessa forma, um sujeito consciente de seu inacabamento apreende o mundo à sua volta, pensa e reflete sobre ele, constrói pontos de vista sobre e com a prática da classe, participa da luta pela superação.
Nesta lógica, os autores Vygotsky, Bakhtin e Freire apresentam a categorização do inacabamento do sujeito e da construção desse sujeito a partir do contato com os diferentes, que possibilita ao sujeito constituir-se como um eu diferente de tu ou de outros , fazendo parte de processos de subjetivações e de comunicação com os pares, elemento essencial para sua formação.
Em Bakhtin, o sujeito dialógico é dotado do princípio da alteridade, capacidade de colocar-se no lugar do outro, pois o discurso se constrói a partir do tripé falante-ouvinte-tema, por meio da palavra do outro eu me identifico ou não. Essa intersubjetivação dota o sujeito do caráter responsivo, porque o contato com os diferentes (falante ou ouvinte) exige dele sempre uma ação-resposta em relação ao tema.
Pode-se estabelecer uma relação entre o princípio bakhtiniano de alteridade com uma das exigências do diálogo propostas por Paulo Freire: a humildade. Nesses autores, tem-se o ato “colocar-se no lugar do outro”, reconhecê-lo.
A autossuficiência é incompatível com o diálogo. Os homens que não têm humildade ou a perdem, não podem aproximar-se do povo. Não podem ser seus companheiros de pronúncia do mundo. Se alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto os outros, é que lhe falta ainda muito a caminhar, para chegar ao lugar de encontro com eles. Neste lugar de encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais 50 .
A ação de resposta ou responsividade da teoria bakhtiniana articula-se com a categoria de emancipação freireana, pois a ação de resposta do sujeito não é assujeitamento, mas uma tomada de posição, permitindo ou não desencadear ações emancipatórias na vida social.
Para Freire, a ação dialógica permite que o sujeito participe ativamente da vida em sociedade, a partir da tomada ou não da consciência de “estar” no mundo. O diálogo com o outro é essencial e desencadeia a formação do sujeito para a prática social, a cidadania e as ações de resistência, que originam as práticas emancipatórias, viabilizando a formação de uma sociedade mais justa, pautada na democracia, com a prática educativa entrelaçada à ação libertadora.
Os autores privilegiam a linguagem como um caminho que possibilita o desenvolvimento individual e coletivo. Para Vygotsky, a linguagem faz parte da constituição do sujeito; para Bakhtin, ela representa um sistema dialógico de signos e valoriza o texto como ato comunicativo; em Freire, determina os processos de significação e de materialidade, que oportunizam “atos de fala” aos oprimidos, sujeitos “calados” em seus contextos sócio-histórico-culturais.
Entre esses pensadores o sujeito é identificado como um ser inacabado, inconcluso, que encontra no social, nas interações, no dialogismo e no diálogo com os diferentes, por meio da palavra, da linguagem e dos processos dialógicos, possibilidades de práticas que conduzem à produção de conhecimentos e à emancipação (constituição do sujeito), uma vez que é pelo diálogo que se respeita a culturalidade do outro, justamente porque o compreende, no diálogo, como outro.
O “diálogo-ponte” tecido neste texto provém da escolha dos conceitos que permeiam a tríade teórica em estudo. Cada autor percorre o aspecto social do sujeito cognoscente ao delinear suas relações dialógicas a partir da capacidade de agir, pensar e se posicionar diante dos diálogos e da produção de conhecimentos. Apresentam perspectivas que categorizam o sujeito de relação, o inacabamento e o fundamental papel das linguagens na constituição dos sujeitos. Sujeitos que se constroem e produzem conhecimentos a partir do contato com “os diferentes” ( Figura 3 ).

Os teóricos ressaltam o inacabamento do sujeito e seu aspecto dialógico e postulam a ação do sujeito através da linguagem, tomada como um fator social. Estabelecem o dialogismo, ou seja, a relação com “os diferentes”, como fator essencial na formação do sujeito e da possibilidade de ele, a partir das ações dialógicas, participar ou não de processos emancipatórios.
A tríade demonstra que o contato com os diferentes possibilita ao sujeito constituir-se como um eu diferente de tu ou de outros . Essa construção faz parte de processos de subjetivação e necessita da comunicação com os pares, portanto, o diálogo com o outro torna-se um elemento essencial para sua formação.
Vygotsky deixa como legado a noção de que o ser humano é biológico e social, evidenciando que, como social, constitui-se pela interação com os outros e pelos processos de interação mediados pela linguagem. Segundo o autor, o ser humano concebe e constrói seu conhecimento de mundo, desenvolvendo-se a partir de processos interpessoais transformados num processo intrapessoal.
Por sua vez, Bakhtin enfatiza que o sujeito é dialógico e dotado do princípio da alteridade, capacidade de colocar-se no lugar do outro, pois o discurso se constrói a partir do tripé falante-ouvinte-tema. É por meio da palavra do “outro” que eu me identifico ou não. Essa intersubjetivação dota o sujeito do caráter responsivo, de modo que o contato com os diferentes (falante ou ouvinte) exige-lhe sempre uma ação-resposta em relação ao tema. Essa ação de responsividade na teoria bakhtiniana é o que nos motiva a afirmar o caráter inovador de trazer para o leitor a identificação da categoria de emancipação nos escritos do autor. Pois a ação de resposta do sujeito não diz respeito a uma forma de assujeitamento, mas denota uma tomada de posição que lhe permitirá desencadear ações emancipatórias na vida social.
Para Freire, é a ação dialógica que permite ao sujeito participar ou não ativamente da vida em sociedade, a partir da tomada da consciência de “estar” no mundo. Assim, para o autor, o diálogo com o outro é essencial, configura-se em ação capaz de desencadear a formação do sujeito para a prática social, a cidadania, as ações diferenciadas e de resistência, que promovem práticas emancipatórias e educativas entrelaçadas à ação libertadora, viabilizando a formação de uma sociedade pautada na democracia e na justiça.
Evidenciamos pontos de convergência entre Vygotsky, Bakhtin e Freire, pois seus construtos teóricos trazem a dimensão do sujeito incompleto, essencialmente social, constituído a partir da cultura, da história, de interações e “diálogos com o diferente”, mediados pela linguagem, em processos transformadores do sujeito, da sociedade ou do próprio conhecimento.
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