Resumo: Tendo como base os conceitos de práticas, representações e apropriação de Roger Chartier, memória coletiva de Maurice Halbwachs e memória subterrânea de Michael Pollak, propõe-se uma análise das formas como a figura umbandista dos pretos-velhos é apropriada atualmente. O estudo, pautado pela metodologia da história oral, permitiu analisar as formas como a experiência de se consultar e conviver regularmente com os pretos-velhos influencia na construção das perspectivas, dos valores e das expectativas desses consulentes, por meio da reelaboração da memória da escravidão negra no Brasil. Foi possível notar, sobretudo, a importância que essas entidades possuem para as pessoas que se reconhecem como negras e estabelecem um vínculo mais próximo com essa figura do escravo sacralizado.
Abstract: Based on the concepts of practices, representations and appropriation (Roger Chartier), collective memory (Maurice Halbwachs) and underground memory (Michael Pollak), this article analyzes contemporary appropriations of Umbanda’s pretos-velhos (“old black” spirits). Using oral history methodology, it investigates how the experience of regularly visiting and consulting with pretos-velhos informs clients’ constructions of perspectives, values and expectations. The focus is on the re-elaboration of the memory of African slavery in Brazil. The analysis illustrates the importance of these entities for those who recognize themselves as black and who establish in this way a closer bond with this figure of a sacralized slave.
Keywords: umbanda, representation, pretos-velhos, oral history, memory.
Palavras chave: umbanda, representação, pretos-velhos, história oral, memória
Artigos
ENXERGANDO OS MORTOS COM OS OUVIDOS: A REELABORAÇÃO DA MEMÓRIA DA ESCRAVIDÃO POR MEIO DA FIGURA UMBANDISTA DOS PRETOS-VELHOS
Recepción: 29 Noviembre 2017
Aprobación: 5 Diciembre 2017
O silêncio sobre o qual deitamos o passado é um silêncio que mente. Há qualquer coisa que fala sempre. Mia Couto1
Trazer essa memória do preto-velho é trazer um pouco da própria história em si.2
Foi meu primeiro contato mesmo com o ancestral ali incorporado.3
Escutar os mortos com os olhos é o título de um artigo de Roger Chartier publicado em 2010,4 em que o autor aborda as questões referentes a representações e apropriações relativas às produções e interpretações de textos escritos. Ao comparar as Ciências Exatas com a Literatura e as Humanidades, ele menciona que, nestas últimas, o passado permanece sempre presente, vivo, inspirando novas criações e delas se desprendendo. Desse modo, abrir-se-ia a possibilidade de, com a leitura de um livro, por exemplo, escutar o que os mortos teriam a dizer, gerando novas interpretações e mantendo-os, dessa forma, vivos. Apropriamo-nos dessa frase, invertendo-a, porém, com o intuito de adequá-la um pouco mais aos resultados da pesquisa aqui apresentados. Propomos, assim, enxergar os pretos-velhos — entidades presentes nos terreiros de umbanda e de outras religiões afro-brasileiras — como um livro, algo a ser lido, decifrado, interpretado pelos consulentes desses cultos, abrindo espaço para um amplo estudo de sua apropriação por um grupo determinado. Esse processo foi analisado por meio da escuta de longas conversas com os leitores dos pretos-velhos, pessoas que, com frequência ou esporadicamente, se consultam com eles. Essas entrevistas permitiram uma reflexão bastante interessante da contemporaneidade, demonstrando como essa figura do escravo, representação de um personagem histórico sacralizado, influencia na construção dos valores, perspectivas e expectativas de um grupo de pessoas que crê e confia nos pretos-velhos.
No Brasil, essas entidades estão presentes em relatos que antecedem o princípio do século XX — período em que, supostamente, teriam sido constituídos os primeiros terreiros de umbanda.5 Em termos gerais, pode-se afirmar que, independentemente da crença, os pretos-velhos são espíritos de escravos africanos (por origem ou ancestralidade), falecidos com idade avançada e em diferentes momentos do passado, que retornam e se comunicam/expressam por meio de médiuns/cavalos — pessoas que possuem a faculdade de incorporar esses espíritos —, permitindo que eles se movam, gesticulem, falem e ajam por meio de seus corpos.
Para além das duas características mais óbvias de sua caracterização, derivadas diretamente da alcunha que recebem — preto (associado à cor de sua pele) e velho (denotando uma condição associada ao tempo de vida) —, essas entidades comungam, ademais, de alguns atributos psicológicos. Extrapolando esse aspecto mais físico, os pretos-velhos são, usualmente, associados a valores como a paciência, a humildade e a sabedoria. Independentemente da religião, os médiuns que recebem os pretos-velhos se portam de modo semelhante:
Quando eles descem o neófito se curva, retorcendo-se como o de um velho esmagado pelo peso dos anos [...]. Falam com uma voz rouca, mas suave, cheia de afeição, o que transmite uma sensação de segurança e familiaridade àqueles que vêm consultá-los.6
Grandes conhecedores de ervas, normalmente fazem uso de arruda, guiné e outras nas instruções de chás e banhos passadas aos consulentes. Rosário, cajado e cachimbo são alguns dos instrumentos que os acompanham durante as conversas e trabalhos que realizam. Também é interessante notar os diálogos que podem ser estabelecidos entre eles e algumas figuras do folclore brasileiro, como o Pai João e a Mãe Maria dos contos populares.7 Uma breve revisão acerca das diferentes abordagens dos pretos-velhos lança luz sobre um personagem que “encarna” (literal e figurativamente) uma memória escravista, corporificando e sacralizando, no presente, a figura do escravo.
A despeito de serem, usualmente, associados aos terreiros de umbanda, os pretos-velhos ultrapassam as fronteiras dessa religião e são representativos da “porosidade” que caracterizaria o campo religioso afro-brasileiro na acepção de Pierre Sanchis.8 A circularidade desse personagem demonstra, de certa forma, o que o autor chama de “contaminação mútua”.9 Em São João del-Rei, cidade mineira em que se desenvolveu a pesquisa aqui apresentada, foi possível encontrá-los em locais de culto de umbanda, quimbanda, magia negra, jurema sagrada, kardecismo, omolokô, além dos atendimentos realizados com essas entidades nos próprios lares dos médiuns.
Para o desenvolvimento deste estudo, optou-se pela realização de entrevistas com os frequentadores de dois terreiros de umbanda que tivessem ao menos um preto-velho entre suas entidades mais procuradas. Além de uma maior afinidade com as casas umbandistas, essa escolha decorreu da facilidade de trânsito e do maior conhecimento acerca dessa religião. De qualquer forma, a imersão etnográfica no universo das religiões afro-brasileiras permitiu perceber que, na prática cotidiana, suas fronteiras e suas categorizações se estabelecem de forma consideravelmente tênue e fluida, questão a ser abordada, de maneira mais aprofundada, adiante neste artigo.
Previamente à análise dos resultados das entrevistas, cabem algumas considerações gerais acerca da metodologia aplicada para o seu desenvolvimento. Os terreiros escolhidos, ambos em São João del-Rei, Minas Gerais, foram: a Associação Afro-Brasileira Casa do Tesouro, onde são realizados rituais de candomblé, umbanda e jurema sagrada; e a Tenda Pai José do Congo, local onde acontecem giras de umbanda e quimbanda. As conversas ocorreram entre os meses de junho e novembro de 2016, em sua maioria nos próprios terreiros. Todos os entrevistados já nos conheciam previamente, uma vez que começamos a frequentar as giras e as festas no ano de 2014, pois, partindo da percepção de Eliane Brum de que “não há vidas comuns, apenas olhos domesticados”10 nos inserimos no cotidiano desses terreiros. Todos os frequentadores convidados a participar da pesquisa aceitaram prontamente, e, igualmente, as mães de santo assentiram. Aos entrevistados foi assegurada a oportunidade de solicitar o desligamento do gravador em qualquer momento da conversa, bem como a de posterior supressão de determinados trechos da gravação.
Na “lógica” das religiões afro-brasileiras, a palavra falada é considerada uma importante fonte de axé (força vital) e veículo do poder sagrado. Falar é um ato mágico que impregna por contaminação simbólica o sujeito da fala e seu ouvinte. [...] A entrevista etnográfica, por envolver a transmissão de conhecimentos, também é apreendida pelo grupo a partir desse contexto simbólico.11
Essa sensibilidade com relação às falas, à subjetividade e aos limites dos entrevistados é essencial em qualquer trabalho que envolva a realização de gravações de depoimentos. Esse cuidado, contudo, deve ser ainda maior pelas razões acima expostas.
Assim sendo, almejamos analisar as memórias reelaboradas pelos entrevistados, bem como a forma como o “texto” preto-velho foi apropriado, buscando algumas regularidades nas percepções apresentadas, sem ignorar as especificidades de cada relato. As conversas foram orientadas por um roteiro base de perguntas, que permitiu o estabelecimento dessas comparações. Afinal de contas, como disse Humberto Eco, “um texto sempre pode ter mais de uma interpretação, toda obra é aberta”,12 “mas não escancarada”, ressalvaria Haroldo de Campos.13
As mães de santo da Associação Afro-Brasileira Casa do Tesouro e da Tenda Pai José do Congo, Celina Batalha e Leila Rodrigues, respectivamente, foram as primeiras a ser incluídas no grupo de entrevistados. Em se tratando dos consulentes, optou-se por conversar com alguns filhos da casa e alguns frequentadores esporádicos. No caso específico da Associação Afro-Brasileira Casa do Tesouro, a maior parte dos entrevistados é de filhos da casa, uma vez que, após o início da pesquisa em 2015, houve uma série de mudanças na estrutura do local. Se, até meados de 2015, as giras de umbanda dedicadas aos pretos-velhos ocorriam semanalmente, a partir de então elas foram sendo gradualmente substituídas pelas chamadas mesas rasteiras de jurema sagrada.14 Salienta-se que os mesmos pretos-velhos que se incorporavam nos rituais da umbanda “migraram” para os de jurema, passando a aí dar consultas e fazer atendimentos. De qualquer maneira, essa modificação levou a um decréscimo na frequência de pessoas de fora do terreiro aos rituais, o que restringiu a realização das entrevistas quase que somente aos filhos da casa. Não houve casos de consulente que frequentasse ambos os terreiros pesquisados. No Quadro 1, figura a relação dos entrevistados nos dois terreiros.
É inevitável notar a predominância de mulheres entre os entrevistados. Na prática, em ambos os terreiros, o número de filhas da casa supera o de filhos (ao menos na rotina diária e nas giras e festas). Ademais, considerando-se que um dos fatores cruciais para a seleção dos entrevistados foi a afinidade, as mulheres acabaram se mostrando mais abertas e receptivas com a proposta de participar das conversas. Nos Quadros 2 e 3, reúnem-se informações referentes a cada entrevistado, agrupados de acordo com o terreiro.
Mencione-se que a área de Ciências Humanas foi a opção da maioria dos que cursaram ou cursam o ensino superior: Artes Aplicadas, Dança, Teatro, História e Direito. Somente uma pessoa é da área de Ciências Exatas: Engenharia.
O último questionamento realizado foi a respeito da religião. Nesse caso específico, as respostas foram extremamente variadas e complexas. Quase todas as pessoas desviaram o olhar e começaram a rir ao serem questionadas sobre esse ponto. Quiçá o elemento mais interessante que emergiu das respostas foi o fato de uma única pessoa, Eliana Trindade, ter se reconhecido como umbandista, ainda que com uma pequena ressalva:
Eu falo assim, que eu sou da umbanda, mas a umbanda ela é, assim, ela pertence à religião católica, né?
Os outros entrevistados transitaram entre “espíritas”, “católicos”, “católicos e espíritas”, “candomblecistas” (sobretudo os filhos de santo da mãe Celina). As respostas são sintomáticas do múltiplo pertencimento referido por Pierre Sanchis.15 Uma das sugestões desse autor foi, inclusive, adotada durante as entrevistas: os consulentes foram questionados, num primeiro momento, sobre qual seria sua religião; após a resposta, foram inquiridos se desejavam mencionar uma segunda religião. A resposta foi, na totalidade dos casos, negativa, uma vez que a maior parte dos que vivenciavam esse múltiplo pertencimento já apresentavam, em suas respostas, todas as religiões a que se sentiam vinculados.
Além disso, ressalte-se que, posteriormente, os entrevistados foram solicitados a relatar o que significava a umbanda em suas vidas, sendo interessante notar que, independentemente da religião anteriormente mencionada, as respostas a essa questão foram profundamente pessoais e emocionadas. A maior parte deles reserva à umbanda uma posição de relevância extrema em sua realidade. Percebe-se, claramente, que ela extrapola os limites “religiosos”, perpassando todos os âmbitos de suas vidas.
A contraposição entre as definições apresentadas sobre a umbanda no meio acadêmico e o cotidiano de suas práticas ritualísticas resulta em duas realidades bastante distintas, uma vez que o estabelecimento de parâmetros rígidos para a definição da umbanda é praticamente impossível. Se, em textos acadêmicos ou em rápida busca pelo tema na internet, o mito fundador da umbanda — remetendo ao jovem médium Zélio Fernandino de Moraes em princípios do século XX, no Rio de Janeiro — emerge como elemento essencial, no cotidiano dos terreiros pesquisados, essa referência não foi constatada. A umbanda aparece como resultado de um longo processo que remete às religiões dos escravos que teriam vivido no Brasil. Sua ritualística varia enormemente entre os terreiros, embora a presença de algumas entidades específicas — pretos-velhos, caboclos, exus, pombagiras, ciganos — apareçam como uma espécie de emblema, o que não implica, contudo, o aprisionamento dessas figuras somente à umbanda.
Eliana Trindade frequenta terreiros de umbanda há mais de trinta anos por influência de familiares. Tendo sido a única pessoa a se declarar umbandista, ela salienta, de maneira apaixonada, o fundamento da caridade inerente aos terreiros dos quais participa — no momento da entrevista, além de frequentar a Tenda Pai José do Congo, era filha de santo da Choupana do Chico Baiano, no bairro das Águas Gerais, em São João del-Rei:
A minha vida é a umbanda [...] Eu vou te falar uma coisa, eu sou apaixonada pela umbanda, e vivo de umbanda. [...] Lá [Tenda Pai José do Congo] é a minha segunda casa. Eu vi os filhos dela [da mãe Leila] crescerem, eu vi os netos dela crescerem, eu vi os bisnetos dela crescerem! Então, eu me sinto em casa, da família mesmo.
Luciana Fonseca, a despeito de se apresentar como católica, deposita enorme confiança na umbanda e sempre se emociona narrando os diversos casos de soluções alcançadas por intermédio de suas entidades:
A umbanda pra mim é tudo, né? Porque eu não conhecia. Minha família, a maioria da minha família é evangélica, inclusive eu também já fui, de frequentar. Então, hoje eu vejo que a umbanda resolve muita coisa mesmo, assim, pra gente, eu acho muito bom. Um lugar que eu tenho paz. [...] Se não fosse o Pai José, na verdade, era pra eu com a Luara [filha mais nova de Luciana] termos morrido no parto.
Simone de Assis, seguidora de diversas religiões do “panteão brasileiro”, que englobaria, segundo declarou, o catolicismo, o espiritismo, a umbanda e o candomblé, também aborda a relevância da umbanda em sua vida. Saliente-se que ela tem o costume de visitar diversos terreiros de umbanda, sem ter sido formalmente iniciada em nenhum deles até o momento da entrevista.
Então acho que é o tipo de religião que vai abraçar toda pessoa, sem nenhum juízo de valor, e num sentido de ajudar essa pessoa a crescer na vida, de melhorar, então acho que é a religião que eu me apego assim.
Cabe ainda transcrever, respectivamente, as falas de Zilvan Lima e Marilaine Rodrigues:
Nossa! Muita coisa boa mesmo! Muita! Eu não sei sinceramente se não fosse, como seria. [...] Parece assim, uma garantia de vida. Tudo eu recorro aqui.
Primeiro é um apoio. E um apoio que eu preciso, assim. [...] Acho primeiro porque por ser de periferia, de uma cidade do interior, e ser negro, a gente acaba tendo pouco espaço de ação. A gente tem a vida um pouco limitada até pela história que dizem que a gente tem. E quando eu me aproximava de uma entidade da umbanda e ouvia ali a história dela, e sabendo que aquela entidade também tava na minha ancestralidade, de certa forma, acaba me dando outra referência.
De maneira geral, pensar a ausência da menção explícita à umbanda ao responderem sobre sua devoção religiosa, tendo em vista esses depoimentos tão emocionados, nos leva a problematizar as definições da religião em si. Ousaríamos afirmar que a umbanda ultrapassa os limites daquilo que seria comumente categorizado como “religioso”, sendo entendida, vivida e sentida como um espaço — no sentido físico, espiritual e emocional — de obtenção de auxílio e suporte. O estabelecimento de um contato direto com as entidades oferece verdadeiro arrimo para os mais diversos aspectos da vida dessas pessoas. O elemento doutrinário normalmente associado às religiões acaba sendo remetido a um segundo plano — talvez disso decorra a ausência da menção direta à umbanda —, o que não reduz sua importância no cotidiano dos entrevistados.
Ainda no que diz respeito a esse tema, saliente-se que, ao menos no caso dos terreiros pesquisados, o estabelecimento das fronteiras doutrinárias e ritualísticas entre as religiões praticadas (umbanda, candomblé e jurema sagrada; ou umbanda e quimbanda) é empreendido sobretudo pelas mães de santo. Embora esse alcance seja respeitado pelos filhos da casa e pelos consulentes, as sensações, emoções e percepções provocadas pelas religiões não necessariamente obedecem a esses limites.
Partimos, então, para uma análise mais aprofundada de algumas das falas, das reações e das sensações que afluíram durante as entrevistas.
Eu descrevo os pretos-velhos pra mim como um avô, aquele avô que você chega, que você desabafa, porque eles têm esse lado. Por isso que chama lá, Vovô isso, Vovó Balbina e tal. Porque a gente tem esse lado mesmo de eles serem os avós nossos.
Por ele ser assim, considero como um vô mesmo, das coisas boas.
Conforme demonstrado nas falas de Eliana Trindade e Luciana Fonseca, respectivamente, uma das associações mais recorrentes que emergiu das entrevistas foi entre os pretos-velhos e essa figura dos avós, das pessoas idosas, bondosas, carinhosas, pacientes. Essa aproximação foi tão repetitiva e imediata que, em diversos casos, a memória da velhice se sobrepôs à da escravidão e do sofrimento. Note-se que tanto a primeira quanto a segunda foram além da questão da idade, ressaltando a figura idosa e familiar do avô. Ambas foram, dentre as entrevistadas, as que relataram com maior emoção sua relação com os pretos-velhos. Eliana conviveu e cambonou o marido, que era médium e recebeu dois pretos-velhos durante décadas; e Luciana teve a própria vida, além da vida de sua filha caçula, salvas, segundo ela, pelo preto-velho Pai José, recebido por mãe Leila. O respeito, a gratidão e a proximidade à entidade são tão profundos que elas acabam por enxergá-la como alguém da família.
De forma geral, o velho acabou falando mais forte que o preto, ao menos num primeiro momento. Ao serem questionados sobre como descreveriam os pretos-velhos, parte dos consulentes respondia principiando pela senilidade e, somente em um segundo momento, se voltava para a figura do escravo. Marilaine Rodrigues e mãe Celina mencionam respectivamente:
Eu vejo assim, os pretos-velhos, imagino eles bem velhos, bem velhos, assim, sofridos, porque a história dos pretos-velhos... a maioria veio da África, na época dos escravos. [...] Eu vejo, imagino eles, bem velhinhos, bem sofridos, calmos, tranquilos, e imagino eles uns doutores da vida.
Olha, eu vejo uma coisa de uma velhice, uma velhice pobre.
Partindo da noção de representação proposta por Chartier, baseada tanto em questões físicas quanto simbólicas, percebe-se, claramente, que muitos dos objetos e trejeitos dos pretos-velhos acabam facilitando essa associação tão direta entre essas entidades e a figura de uma pessoa de idade avançada. No que tange ao físico, o uso da bengala, a dificuldade de locomoção, os tremores das mãos e dos pés, a curvatura da coluna, dentre outros elementos, são prontamente apropriados como características de idosos. Ao menos a idade foi apresentada, em alguns casos, como justificativa para as oferendas realizadas aos pretos-velhos e os objetos que eles normalmente utilizam. Luciana Fonseca e Marilene Pereira apontam, respectivamente:
Eu imagino que deve ser por causa da idade, né? Porque, assim, parece que é bem velhinho. Pela voz, o jeito de conversar, parece ser bem velhinho mesmo. [Justificando o uso da bengala, do charuto e do vinho, enumeradas por ela anteriormente].
Acho a postura por causa da idade, ela deve ser bem velhinha mesmo, eu penso assim.
Em termos mais simbólicos, paciência e sabedoria acabam emergindo nas falas de praticamente todos os entrevistados como a principal qualidade associada, direta ou indiretamente, à senilidade. Na maior parte das vezes, essas características são vinculadas ao auxílio que eles prestam, por escutarem com atenção e mansidão, durante o tempo que for necessário, todas as queixas e problemas dos consulentes. Soraia Santos referiu, durante as entrevistas, que, quando começou a frequentar terreiros de umbanda, costumava ficar conversando durante muito tempo com os pretos-velhos em função das sensações de alívio e cuidado provocadas por eles:
Eu fico até com dó dos pretos-velhos que eu vou consultar, porque eu alugo, alugo, alugo, acaba virando nosso psicólogo!
A explicação para essa aproximação entre a figura dos pretos-velhos e a velhice pode passar por algo que foi levantado por mãe Celina durante as entrevistas:
Essa fala antiga, né? Que ela tá perdida. Do aconselhamento. Que isso é uma coisa que a sociedade perdeu. Assim, a figura da avó. Não essa avó provedora. Que a avó hoje é provedora. Ela sustenta a família, ela sustenta os netos. Mas a avó de antigamente, não, era aquela avó que tinha a palavra da ordem daquela família. A família se reunia em torno daquela velhinha e tal, que dizia: “Meu filho, não faz isso. Vem escutar sua avó”. Então, essa figura assim tá perdida e se busca isso de alguma forma.
Invariavelmente, entretanto, essa calma e sabedoria se desdobram em algo muito mais intenso e profundo. Elas seriam a chave para uma vida de resistência e força. E é nesse momento que emerge a memória do preto. Fica claro que a qualidade de paciente e calmo atribuída aos pretos-velhos não se confunde com submissão apática ao regime escravista. Em absolutamente nenhuma das falas, a entidade foi apropriada dessa forma. O caminho demonstrado pelos consulentes foi justamente o oposto: resistir, ainda que pacificamente, não é se omitir, tampouco quietude se confunde com submissão integral, conforme apresentado na fala de Zilvan Lima transcrita a seguir:
E até nos conselhos que eles dão assim, de encarar as coisas com mais leveza, de ter humildade, sabedoria, e saber fazer silêncio, tem sempre uma coisa da espera que é a resistência. A espera da hora certa de agir. O nego-velho pra mim tem a ver com essa energia que acolhe, que acolhe e por isso que transforma. [...] Quando eu penso numa figura assim de resistência, pra mim é o nego-velho, se for pra falar numa palavra, é resistência.
A experiência e a sabedoria afloram como esteios de sobrevivência, como escudos diante de uma realidade árdua. A questão da corporeidade na construção da representação do preto-velho se mostra essencial na reelaboração dessa memória preta da escravidão. Os desdobramentos podem variar, mas as deformações a que o corpo do médium se submete geram, invariavelmente, releituras da figura dos escravos, consoante as falas de Simone de Assis, Soraia Santos e mãe Leila, respectivamente:
E aí, de repente, quando aquela entidade chega, então o corpo se transforma, e aí a questão do corpo, né? Sei lá, você vê as pessoas pisando torto, e andando com corpo invertido, completamente pra baixo; isso assim, me assusta um pouco, porque na minha cabeça sempre vem a memória da escravidão mesmo. Por que que esses corpos tão desse jeito? Por que que esses pés tão tortos, a mão, que é como se fosse trejeito de que em outras vidas esses seres sofreram muito, e tá todo assim, atrapalhado.
Da parte deles, essa parte de experiência. Eu nem vejo como sofrimento. Acúmulo de experiência. Quando mais experiente, mais você sabe. Vai trabalhando, trabalhando, trabalha tanto que você curva, né? Acaba pesando de tanta ajuda, né? De tanto trabalho que teve mesmo. Mas não é o trabalho do sofrimento. Engraçado, nunca encarei isso, essa essência deles como sofrimento, não. Eles até agora assim não me passam isso de sofrimento. Mas assim, agora pra gente eu já... essa parte pelo menos, o que eu carrego pra mim, quanto mais eu me encolho, mais eu me curvo, mas eu me encolho também como proteção, sabe? Eu tenho que me encolher pra eu me defender. E, na verdade, se eu me encolho, eu me curvo, né? Então, eu prefiro, dependendo do que eu passar, eu prefiro me fechar. Eu encaro é desse jeito.
Mas a maioria dos pretos-velhos que eu vejo muito sofrido; tem preto-velho que trabalha aqui comigo que tem até problema de visão, fala que é cego. Isso aí foi couro no tronco.
Essa última fala se refere ao Pai Benedito do Engenho, preto-velho do médium Fernando, filho de santo da mãe Leila e marido de outra entrevistada, Eliana Trindade. Ele faleceu no decorrer desta pesquisa, antes que fosse possível entrevistá-lo. São vários os relatos sobre ele e os dois pretos-velhos com quem trabalhava (Pai Benedito e Pai Francisco). O primeiro se apresentava como cego e demandava o auxílio constante de um cambono para se locomover ou benzer outras pessoas.
O elemento da corporeidade do preto-velho acaba se constituindo como uma forma muito forte de reelaboração de uma memória de sofrimento, ou “traumatizante”, como mencionado por Pollak.16 Os gestos e a postura não deixam de se constituir como uma estrutura de comunicação informal, que diz muito acerca dos maus-tratos sofridos pelos escravos no Brasil.
Os trechos apresentados revelam, ainda, outro aspecto que chamou muita atenção no decorrer das conversas: a associação (ou não) dessa memória preta com o sofrimento, com a dor. Considerando-se as respostas recolhidas, percebeu-se que o estabelecimento ou não desse vínculo passa pela forma como a pessoa se declara com relação à cor da sua pele. No que diz respeito ao grupo pesquisado, a memória preta passa, de maneira geral, pelo ato de se reconhecer negro. Foram no total doze pessoas entrevistadas, e somente duas se declararam brancas. Em ambos os casos, a memória recriada a partir dos pretos-velhos remete muito mais à simplicidade, humildade e sabedoria. Além disso, a imagem reelaborada relativiza o próprio tempo, aproximando o ser escravo de ontem ao ser negro de hoje, com suas qualidades e potencialidades sobrepondo-se às questões de dor e sofrimento. Transcrevem-se, a seguir, respectivamente, as falas de mãe Celina e Gabriel Rufo, os dois entrevistados que se apresentaram como brancos:
Para mim fala mais alto a simplicidade [que o sofrimento]. E assim, mesmo no dia de hoje, você vê uma preta velha, uma senhora, negra e tal. Você busca um pouco nela, uma sabedoria. Por exemplo, a Dona Tereza ali [faz sinal apontando para a vizinhança]: “Oh, minha filha”. Tá sempre rindo, mas ela vai falar alguma coisa que vai fazer você prestar atenção.
O negro carrega com ele o poder de síntese, que é o que é a fluidez tecnológica hoje. Aerodinâmica, dos carros, do avião, tudo isso você já tinha naquelas pequenas imagens de esculturas africanas. Então, onde que eu quero chegar. Se a gente tem isso vindo de um lugar, de um continente, que se esparramou pelo mundo. É que a gente tem uma tendência a não falar dessas coisas que eu tou falando, que é essa coisa da origem, da arte, da música, da religiosidade. A escravidão do negro no Brasil é um período de miséria humana. A gente ainda tem uma dívida enorme com o povo negro, mas a gente também não pode só ficar falando da miséria humana.
Entre os que se declararam negros e pardos, somente duas pessoas não fizeram essa associação direta entre os pretos-velhos e o sofrimento. Cabe ressaltar aqui que vários entrevistados ficaram claramente emocionados ao tratar do assunto, chegando, em alguns casos, a chorar e a solicitar um pequeno intervalo na conversa. Essas reações podem ser, em parte, justificadas por algo que será tratado em um tópico à parte, acerca da apropriação dos pretos-velhos como ancestrais. Note-se, também, que as pessoas que mais se emocionaram e trataram com maior profundidade dessa questão do sofrimento foram justamente os dois únicos autodeclarados negros que estão cursando o ensino superior. Nesses casos, as relações estabelecidas entre memória e sofrimento acabaram desaguando, novamente, em um discurso de resistência a partir do paralelo erigido entre as realidades da escravidão e a atual. Conforme mencionado por Ana Lugão Rios e Hebe Mattos, “a construção de memórias coletivas se faz, necessariamente, como função de questões políticas e identitárias vividas no tempo presente”.17 Zilvan Lima, autodeclarado negro, estudante de graduação em Teatro na Universidade Federal de São João del-Rei justifica se dedicar ao culto aos ancestrais almejando manter a viva memória dos mesmos:
O nego-velho, ele presentifica tudo que eu preciso resistir, do que imagino que a minha família precisou resistir, só por ter a cor da pele que a gente tem. Ou só por ter a origem humilde que a gente tem.
Simone de Assis, que também se apresentou como negra, cursa História na Universidade Federal de São João del-Rei e está vinculada ao movimento estudantil e negro na cidade, declarou:
São poucos [os estudantes negros no curso superior de História da Universidade Federal de São João del-Rei], e, então, qual seria também a minha contribuição enquanto pessoa que está estudando, que história que eu vou querer contar? Claro que eu vou querer contar um pouco dessa história, da memória da escravidão, tudo o mais. E trazer as coisas que dentro da sociedade mais incomodam, não incomodam, quer dizer, as outras pessoas olham com maus olhos. [...] Aí trazer essa memória do preto-velho é trazer um pouco da própria história em si e pras pessoas conhecerem mesmo, e olhar com respeito. [...] Eu acho que é forte, a minha identificação. É! Porque, assim, eu sou uma preta!
Nos dois casos. a construção desse discurso mais envolvido e engajado pode ser, de certa forma, entendido a partir das experiências próprias de cada pessoa no processo de apropriação de uma realidade. Nesses casos, as “bagagens” acadêmicas provavelmente teriam influenciado na forma como os pretos-velhos são internalizados.
Convém mencionar que, independentemente da maneira como é realizada a reelaboração da memória da escravidão, a força dos pretos-velhos é um ponto comum nas falas de todos os entrevistados. Toda sua habilidade de lidar com situações adversas implica, invariavelmente, o redimensionamento dos problemas enfrentados atualmente, conforme exposto nas falas de Eliana Trindade e Neide Neves, respectivamente:
Quando você depara com a história que eles têm, que eles passaram, na época deles, na época da escravidão, que eles ficavam no tronco, eles passavam fome. Então, quando eles passam a contar aquilo pra gente, os problemas da gente chegam a ser até bem minúsculos mesmo, perto deles.
Você fica pensando assim: é, a gente sofre, mas eles já sofreram tanto, mas eles te passam tanta calma que você acha que seu problema perto do deles é pequenininho.
Antes de finalizar esse tópico, retomem-se algumas passagens que agregam novamente o preto e o velho. A despeito de as leituras apresentadas até o momento privilegiarem um ou outro elemento, o caráter conciliatório dos pretos-velhos acaba prevalecendo em alguns depoimentos. Zilvan Lima congrega os dois aspectos (negro e idoso) num elemento comum: a exclusão de ambos na sociedade atual, a despeito de sua relevância. Essa percepção ainda reforça sua opinião anteriormente apresentada acerca da resistência constante dessas figuras, do embate cotidiano para se manterem vivas num ambiente que as marginalizaria:
O clássico nego-velho que eu acho que, assim, se for pensar no Brasil, mostra a figura que é essencial mas que não é valorizada, sabe? O agricultor, que é o cara que alimenta todo mundo, mas que, ao mesmo tempo, ninguém sabe quem é, o que que faz. O avô que organiza a família ali e tal, mas que, ao mesmo tempo, você idoso não é valorizado [...]. O nego-velho pra mim é a figura que mostra melhor, assim, melhor é difícil de falar, mas é a figura que mostra muito bem o que que o negro precisou fazer pra manter viva uma memória, pra manter vivo um tipo de vida e, principalmente, para se manter vivo.
Já Gabriel Rufo elabora uma análise um pouco distinta, ainda que culmine no caráter agregador dos pretos-velhos. Ressalte-se que a forma como ele aborda esse aspecto conciliador localiza as entidades umbandistas num ponto intermediário entre os senhores e os escravos, retirando-as, de certa forma, de sua posição de escravas, dando a entender que o preto-velho teria um pouco desses dois extremos — escravo e senhor — sem, contudo, se constituir efetivamente enquanto um deles:
Eu sou um homem branco que estou no candomblé. A minha pele é branca. Mas tudo que eu escuto é música de negro, tudo que me influencia vem dos negros, a estética da arte africana, tudo. Então, eu acho que o preto-velho, ele é uma figura que possibilita os contatos, quando ele fala com o dono da fazenda e fala com o escravo. Ele junta os dois. E o preto-velho nasce dessa junção, dessa mistura.
Mônica Souza defende que a forma como as pessoas se dirigiriam aos pretos-velhos — ressaltando as características mais africanas e escravas, aqui aproximadas à noção do preto; ou valorizando o caráter mais familiar e paternal, privilegiando o velho — variaria conforme o contexto ou a dimensão específica em que se realizaria sua apreensão.18 A autora argumenta que em contextos mais coletivos sobressairia o “escravo”, enquanto em contextos mais particulares e pessoais, destacar-se-iam o “vovô” e demais alcunhas de trato familiar. Ela ainda menciona um terceiro contexto, ainda mais íntimo, em que a “vovó”, por exemplo, se torna “minha vovó”. No caso da pesquisa aqui apresentada, a forma como o preto-velho é apropriado passaria, ao menos num primeiro momento, pela cor do consulente; e, num segundo momento, transitaria de modo relativamente natural entre esses três “contextos”. Salienta-se, contudo, que nessa apropriação do preto-velho como o “avô”, a interpretação parte de uma noção de senilidade (é a velhice que emerge nas entrevistas), para, posteriormente, desembocar na figura familiar, mais próxima. Essa questão do parentesco será melhor discutida a seguir.
Tendo como base o que foi apresentado anteriormente, abre-se a possibilidade de análise da forma como se delineia a identificação entre a figura dos pretos-velhos e os consulentes em si, as distintas maneiras de aproximação e os entrelaçamentos cabíveis entre a memória dessas entidades que é reelaborada e suas próprias lembranças. Emerge, novamente, uma diferenciação discursiva bastante clara entre aqueles que se declararam negros e os demais, incluindo-se, entretanto, os pardos nesse segundo grupo. No primeiro caso, tanto as noções de ancestralidade africana quanto dos antepassados negros transbordam nas falas, perpassando muitas das respostas. Esses dois tempos, do ancestral longínquo e do antepassado próximo, são relativizados e acercados no tecer de uma história que também é a do entrevistado. No segundo grupo, prevalece uma identificação temporalmente mais recente e vinculada, sobretudo, à figura dos antepassados, dos avós. Eliana Trindade realiza essa aproximação entre os pretos-velhos e os avós. Em seu relato, ela comenta que sua avó era uma grande amiga, tendo sido, inclusive, uma de suas maiores confidentes ao longo de muitos anos. Em momento posterior, ela menciona que essa posição de grande amiga é hoje, de certa forma, ocupada pela preta-velha Vovó Maria Conga:
A lembrança que eles trazem é dos meus avós. Que eu chegava na roça, que eu com a minha avó a gente era amiga.
Esse carinho pelos pretos-velhos, a sensação de aconchego e tranquilidade que geram, sempre associados a essa figura do avô transparecem, também, nas falas de Marilaine Rodrigues e Neide Neves. Ambos os casos remetem-se à história pessoal, emaranhando as lembranças que possuem de seus antepassados mais próximos àquelas reelaboradas com os pretos-velhos:
Igual que tem assim, os avós, eu tive muito pouco contato com a minha avó, quando a minha avó morreu eu tava com nove pra dez anos, então, assim, eu sinto falta. Quando você vê um preto-velho, você imagina um vovô mesmo, aquele vô, aquela vó que dá vontade de ficar pertinho, coladinho.
Te remete assim, no tempo que você acha que seus avós, você pensa, né, que seus avós eram daquele jeito ou então suas bisavós, porque até as avós a gente conhece. Bisa, tetra, então assim, é uma paz e uma sabedoria, é um povo, o que que eles passam pra você?
A fala de Neide já deixa transparecer, contudo, um pouco dessa noção do ancestral, daquela figura mais distante, um familiar longínquo, cujas histórias se ouviu contar. Dentre todos os entrevistados, Zilvan Lima é, muito provavelmente, o que transita de maneira mais cristalina entre os antepassados e os ancestrais na apropriação realizada dos pretos-velhos. A figura dos ancestrais emerge de maneira muito forte em todas as suas falas, sendo apresentada como o fundamento de sua religiosidade. Essa percepção é pincelada por diversas passagens em que afloram os relatos acerca de seus avós e familiares mais próximos. Esses antepassados estão, de alguma forma, vivos em sua interpretação dos pretos-velhos e nos sentimentos gerados por eles:
Já depois de ter mudado aqui pra Minas, pra São João del-Rei, eu conheci um amigo que trabalhava com nego-velho, Pai Cipriano. E foi meu primeiro contato mesmo com o ancestral ali incorporado.
Pra mim, incorporar um nego-velho é pensar um pouco assim, de que história que resiste na minha família. Qual que é a história que foi essencial ali. Sou eu que tenho a descendência indígena e negra muito forte, e quando ouço falar de como começou a constituir família, minha bisavó foi caçada feito cachorro e o cara sequestrou ela e foi aí que começou a linhagem do que a gente entende como a família da gente hoje. Se for pensar que do jeito que as pessoas me veem pela cor da minha pele hoje... O nego-velho, ele presentifica tudo que eu preciso resistir, do que imagino que a minha família precisou resistir, só por ter a cor da pele que a gente tem. Ou só por ter a origem humilde que a gente tem.
A apropriação realizada por Simone de Assis também retoma um pouco de sua história pessoal, sem, entretanto, apresentar a figura específica do avô:
Acho que é forte, a minha identificação. É! Porque assim, eu sou uma preta! Me identifico demais, no sentido do que eles contam e vivem, e aí o meu falar também, a minha história é essa.
Conforme transparece nos trechos acima transcritos, a estruturação da fala no caso daqueles que se reconhecem negros é extremamente engajada e emocionada, conduzindo, de certa maneira, a um processo de construção de identidade. Nesses casos, a reelaboração da memória envolve a recriação de um passado comum que teima em se fazer presente, ainda que de maneiras distintas, na vida dessas pessoas. Uma vez mais, chama atenção o envolvimento pessoal e emocional de Zilvan Lima com os pretos-velhos, salientando que ele é um médium de incorporação que recebe um preto-velho — Pai João —, dando, conforme mencionado por ele, “corpo” a essa memória:
Às vezes tem uma memória que eu acho que não é minha, ou que é de um corpo muito mais antigo do que só os 27 anos que eu tenho. Acho que até a história que a gente ouve, de negro escravizado, que não sei o quê... De frente pro nego-velho traz tudo isso à tona pra mim. De que negro que é esse que tá aqui. Que negro que é esse que a gente tem. A herança dele é tão forte a ponto de precisar trazer pro corpo e tal.
Soraia Santos estabelece um paralelo entre a história de luta e marginalização vivenciada por esses antepassados escravos e uma realidade de discriminação vivenciada pelos negros e praticantes das religiões afro-brasileiras atualmente. Ao longo da conversa, ela narra, inclusive, uma situação em que perdeu o emprego após sua chefe, católica, descobrir que ela era candomblecista:
Tem essa parte que contando com o que a gente passa, com a metade do que os negros passaram e o que a gente passa até hoje, com certeza tem, só que de forma diferente. Tipo assim, eles no tempo deles, eu acredito e eu sinto que eles adquiriram a experiência. Depois veio essa parte do preconceito dentro da religião mesmo que começou a ser descoberto, tanto é que eles tocavam escondido. E pra disfarçar também até pros capitães do mato, pra disfarçar eles tavam rezando pro santo que era da Igreja, e agora também isso fica muito latente pra gente, mas assim duma forma sutil, mas quem tiver essa sensibilidade aflorada sabe que, dentro da nossa religião, tanto é que tá muito forte essa parte da intolerância, tá muito visto, mas não tá daquela forma que era mais bruta, mais rígida, porque bem ou mal hoje a gente pode ter o terreiro e pode tá cantando. Mas assim, esse preconceito de hoje de tudo o que eles passaram tá muito latente com as pessoas, não adianta, dependendo eu acho que com quem você conversa, dependendo o católico tem o preconceito. Qualquer pessoa tem um preconceito, porque é o próprio homem que faz esse preconceito ficar escuro. Porque fala que é umbanda já pensa que é feitiçaria, não sabe o que é. Não sabe nem o que é. Ah, feitiçaria, não sabe o que tem por detrás da história. Da história deles, mas que hoje eu ainda sinto isso. Como forma de repressão hoje mesmo.
É possível perceber em muitas falas que o passado escravista reelaborado pela sacralização do escravo na figura do preto-velho ecoa, de maneira muito intensa, no presente dos negros. Há uma ressignificação dessas memórias do cativeiro nas vivências contemporâneas: no preconceito, na exclusão e no racismo. De certa forma, para muitos, é como se a escravidão ainda existisse, “e a liberdade, por meio da luta ou obtida com o auxílio da intervenção divina, é um contínuo princípio de esperança, que se renova na evocação do passado”.19 “Luta” e “intervenção divina” se entrelaçam na entidade umbandista dos pretos-velhos por meio das noções de resistência, ancestralidade e sacralização. Talvez em função dessa convergência, os termos mais recorrentes para descrever a sensação gerada pelos pretos-velhos — dentre os que se declaram negros — seja “alívio” e “apoio”. Ao presentificar e, até certo ponto, personificar essa memória do cativeiro, os “negos-velhos” (como são chamados por alguns dos entrevistados) acabam por fortalecer as esperanças de uma nova “libertação”, agora das amarras e grilhões sociais e culturais, e não mais legais.
Seguindo essa linha e extrapolando um pouco as narrativas pessoais, é plausível aventar possibilidades, como a transcrita a seguir, que atribuem a uma memória coletiva da própria região de São João del-Rei a notoriedade dos pretos-velhos. Também nesse caso, a memória reelaborada e a consequente importância que lhe é atribuída perpassa a cor. A fala é de mãe Celina, nascida no Rio de Janeiro, que mantém o vínculo do terreiro que chefia com uma casa matriz localizada em São Gonçalo, RJ:
Eu acho que o preto-velho em Minas, o preto-velho tem uma predileção pelas pessoas, né? Por exemplo, no Rio você vê as pessoas mais interessadas em exu, querem ir pra gira de exu, e querem ver festa de exu. Aqui, as pessoas querem ver o preto-velho. Eu acho que é um pouco da herança aqui da cidade, da região, de mineração. A ancestralidade das pessoas que trabalham nos terreiros [...]. Então assim, cada um tem essa sua história pregressa, meu pai, meu avô, não sei quê... Eles têm essa coisa da herança da entidade.
Para além dessa percepção dos pretos-velhos enquanto ancestrais e/ou antepassados, a apropriação dessas entidades se estrutura, em muitos casos, a partir de uma aproximação de suas características mais marcantes com aquelas de parentes ou conhecidos. As narrativas de mãe Leila e Soraia Santos, respectivamente, demonstram bem isso:
Eu tive um tio, que esse não tem tantos anos, Ritápolis lembra dele. [...] Foi do tempo da escravidão lá, rapazinho tudo, e tinha um preto-velho que montava nele, arriava nele, você precisa ver, minha filha. Subia até poste, subia tudo. Levaram pra Barbacena achando que era doido, ele fugiu. Mas ele era um preto-velho escrito. Ele fazia tudo mesmo. Ele acostumou com o tipo da escravidão mesmo.
A Vovó Josefina me lembra muito o estilo, o jeito de olhar me lembra muito o jeito da minha avó.
A despeito de o tio de mãe Leila já ter falecido há muitos anos, ele se faz presente no processo de reelaboração da memória da escravidão por intermédio da figura do preto-velho. A entidade umbandista acaba atuando como um fio que, ao ser puxado, traz consigo uma série de recordações que remetem a períodos relativamente distantes — embora sempre muito pessoais. No caso da fala de Soraia, percebe-se como a apropriação se alicerça em algo familiar: o olhar da avó. Saliente-se que, durante sua narrativa, a entrevistada mencionou que a avó a teria criado, uma vez que sua mãe falecera quando ela ainda era muito pequena.
Emerge, de maneira bastante explícita no decorrer das entrevistas, a percepção de continuidade entre os tempos. Passado e presente não afloram como momentos longínquos ou distintos. O exemplo de resistência e superação, ou o “ancestral encarnado”, visível, palpável engendra uma série de sentimentos e atitudes sobretudo na parcela que se apresenta como negra. Conclui-se, claramente, que, no processo de apropriação dos pretos-velhos, paciência não se confunde com concordância à ordem estabelecida pelo regime escravista. Pelo contrário, essa calma é percebida muito mais como estratégica e deliberada, com o intuito de sobrepujar os desafios impostos pelas condições a que esses espíritos teriam sido submetidos em vida. Nesse ponto, refuto um argumento apresentado por Mônica Souza,20 apesar de admirar enormemente seu trabalho. Em artigo dedicado à análise do processo de elaboração de memórias associadas à escrava Anastácia e aos pretos-velhos, a autora menciona que: “Anastácia é uma figura polissêmica: serve tanto à religiosidade quanto à política. O preto-velho, entretanto, possui um sentido restrito à religiosidade”. Conforme visto anteriormente, o preto-velho atua de maneira muito profunda, ainda que indiretamente, em termos sociais e políticos. Ao se firmar como exemplo de resistência e força, pautado em valores como paciência e sabedoria, ele ampara grande parte dos que o procuram em sua luta diária, dando ânimo e influenciando suas atitudes. A riqueza na interpretação dos pretos-velhos emerge, sobretudo, de dois elementos. Primeiramente, da harmonização entre a capacidade de resistir e a qualidade de preservar a calma; em segundo lugar, mas não menos relevante, por permitir uma experiência singular àqueles que os procuram, anuviando as diferenças entre um passado histórico teoricamente afastado e as situações de luta e resistência cotidianas e contemporâneas. A história encarnada — figurativa e literalmente — pelos pretos-velhos é, de certa forma, a experiência familiar e doméstica desses consulentes.
É relativamente frequente a prática de ofertar comidas, bebidas e fumo aos pretos-velhos — tanto ao espírito no momento em que se apresenta por intermédio do médium, quanto a suas imagens nos altares das casas e terreiros. Essa ação teria como intuito principal mantê-los, de certa forma, vivos — numa definição muito extensa do termo. Vivos em um sentido energético e material; e vivos em uma acepção mais ampla, espiritual e memorialística. A recorrência dessa entidade nos terreiros é significativa para que se mantenha viva a memória dos ancestrais e antepassados.21
Essas entidades se apresentam, contemporânea e cotidianamente, nos mais distintos lugares com traços, posturas e trejeitos que remetem ao tempo do cativeiro, visando a auxiliar aqueles que os procuram na solução de impasses atuais e na previsão e no auxílio para situações que ainda estão por vir. É nos pretos-velhos e nas pretas-velhas que os caminhos das experiências e das expectativas se entrecruzam e têm suas fronteiras erodidas: o passado se faz presente e ainda permite que se vislumbre o futuro.
Não somos nós que guardamos lembranças, as lembranças é que nos guardam a nós. Essas coisas que são as memórias, que parecem etéreas e fragmentadas, elas são uma costureira que constrói essa totalidade que é nossa alma. Nós estamos muito amarrados a um tempo linear que não é concebido assim em Moçambique. Os moçambicanos têm uma ideia de que o passado se mistura com o futuro e com o presente, é uma ideia de um tempo redondo, circular.22
Nesse emaranhado dos tempos bastante representativos da cosmologia centro-africana, habitam os pretos-velhos. Guardando o futuro e semeando o passado, como diria Mia Couto ao se referir à circularidade do tempo.23 Tecendo, desfiando e entrelaçando, conjuntamente com todos aqueles que os buscam, as narrativas e memórias do cativeiro.