Resenhas
HISTÓRIAS OCULTAS: TRAFICANTES, INVESTIDORES, NAVIOS
MARQUES, Leonardo. The United States and the Transatlantic Slave Trade to the Americas. New Haven: Yale University Press, 2016. 313 p.
Neste livro, o professor Leonardo Marques analisa com perspicácia a participação dos Estados Unidos no tráfico transatlântico de escravos, desde a independência daquele país até os últimos desembarques de cativos em Cuba, no final da década 1860. O livro narra as “profundas transformações estruturais” nos países atlânticos após a Revolução Americana (1776-1781) e a Guerra Civil nos EUA (1861-1865). Essas transformações incluíram a criação de novas tecnologias, a industrialização em países do Atlântico Norte, a especialização na produção de culturas agrícolas específicas e a liberdade comercial. Elas permitiram uma “reconfiguração do capitalismo histórico ao longo do século XIX” que resultou numa “acumulação de capital em escala sem precedentes” (pp. 259-60). Os traficantes, investidores e construtores de navios dos Estados Unidos aproveitaram as oportunidades decorrentes do expansionismo americano.
No primeiro período, entre 1776 e 1820, os investidores do estado de Rhode Island possibilitaram a entrada dos Estados Unidos no comércio transatlântico de escravos. A família D’Wolf, de Bristol, e seus colaboradores estruturaram um comércio triangular entre Rhode Island, África Ocidental e Caribe. Esses comerciantes trocavam rum da Nova Inglaterra por escravos Africanos, que eram levados para Cuba e para o sul dos EUA. O açúcar produzido em Cuba era usado para a produção de rum. Marques afirma que tais “produtos forjaram as conexões transatlânticas, tanto quanto os ventos e as correntes oceânicas” (p. 21). As famílias de Rhode Island (juntamente com várias outras famílias de prestígio na Nova Inglaterra) enriqueceram e investiram seus lucros em vários setores, incluindo destilarias de rum, bancos, companhias de seguros e universidades nos Estados Unidos.1 Este primeiro período é distinto daquele em que os comerciantes dos Estados Unidos financiaram diretamente o tráfico de escravos.
Muitas leis contra o tráfico de escravos aprovadas nos Estados Unidos (1794, 1800, 1807, 1818, 1820) contribuíram para o fim da participação de Rhode Island no negócio. As pressões internacionais também desempenharam um papel decisivo, a exemplo da aprovação pela Inglaterra da lei de 1807 que proibiu o tráfico no império britânico, e da assinatura de tratados bilaterais entre a Inglaterra e vários países, a partir de 1817, que proibiam o tráfico de escravos. Essa dialética entre a política interna dos Estados Unidos, a proibição do tráfico internacional de escravos e as pressões externas exercidas pela Inglaterra entre 1807 e 1860 é bem tratada neste livro.
O segundo período aconteceu entre 1820 e 1851, quando a produção de açúcar e café em Cuba e no Brasil teve aumento significativo como decorrência da Revolução Haitiana (1791-1804). A fim de suprir a necessidade de mão de obra para as lavouras de açúcar e café, os traficantes e as elites mercantis desses países incrementaram a importação de escravos africanos. Comerciantes e cidadãos dos Estados Unidos responderam imediatamente às novas oportunidades de mercado: experientes capitães de navios e marinheiros estadunidenses buscaram trabalho nos tumbeiros e aumentou exponencialmente o número dessas embarcações construídas nos Estados Unidos. Entre 1820 e 1867, os traficantes transportaram mais de dois milhões de escravos para Cuba e Brasil. Os navios construídos pelos Estados Unidos transportaram mais de um milhão desses africanos.
O terceiro período cobre a década de 1850. Com o fim do comércio de escravos para o Brasil (1850-1851), os traficantes dos Estados Unidos voltaram sua atenção para Cuba. Os navios e portos norte-americanos (Nova York, Baltimore, Nova Orleans) desempenharam um papel decisivo durante este período, o que permitiu considerável aumento nos desembarques de escravos na ilha espanhola. Devido às ramificações do tráfico de escravos e aos subterfúgios usados pelos traficantes, foi grande o esforço daqueles que representavam causas humanitárias para forjar políticas efetivas com o objetivo de suprimir o tráfico de escravos.
O quarto e último período ocorreu na década de 1860, quando dois eventos importantes mereceram atenção. Ao contrário de seus predecessores, o presidente Abraham Lincoln (eleito em novembro de 1860) recusou-se a perdoar Nathaniel Gordon, um capitão de Portland, Maine, considerado culpado por um júri de Nova York por transportar a bordo do navio Erie africanos para Cuba. A pena para o crime era a morte. Enforcado em 21 de fevereiro de 1862, Gordon foi o único traficante executado na história dos Estados Unidos. A morte de Gordon soou como um trovão no mundo atlântico. O segundo evento chave foi a adesão de Lincoln ao tratado de Lyons-Seward, em 1862. Pela primeira vez, os Estados Unidos selaram com a Inglaterra um acordo para a busca de navios de ambas as nacionalidades suspeitos de transportar escravos. A quantidade de navios negreiros nos portos dos Estados Unidos e o número de africanos transportados em navios com a bandeira dos Estados Unidos diminuíram sensivelmente. Três séculos e meio do tráfico transatlântico de cativos africanos, que resultou no embarque de aproximadamente 12,5 milhões de filhos da mãe África, chegava ao fim em 1867.
Leonardo Marques publica evidências da influência e do impacto dos indivíduos na história. Representantes oficiais dos Estados Unidos, tanto no Brasil como em Cuba, reportaram atividades ilegais, investigaram transações ilícitas em casas comerciais e ajudaram a indiciar traficantes dos Estados Unidos. Outros facilitaram o tráfico de escravos. Havia juízes nos Estados Unidos que trabalharam diligentemente para suprimir todas as formas de envolvimento dos Estados Unidos no tráfico de escravos e outros que faziam vista grossa. O autor oferece uma grande quantidade de informações sobre traficantes, suas práticas comerciais e atores que investiram no comércio de escravos.
O livro lança luz sobre um importante debate. Até que ponto o capital americano desempenhou algum papel no comércio de escravos transatlânticos no século XIX? Ao discutir o período 1820-1850, Marques cita o livro clássico de W. E. B. Du Bois, The Suppression of the African Slave-Trade to the United States of America, 1638-1870:
Finalmente, o comércio americano de escravos foi feito principalmente pelo capital dos Estados Unidos, por navios dos Estados Unidos, capitaneados por cidadãos dos Estados Unidos e sob a bandeira dos Estados Unidos.2 (p. 201)
Ao questionar esta afirmação, Marques enfatiza que o investimento direto dos Estados Unidos em viagens escravistas desapareceu em 1820, com a saída dos traficantes de Rhode Island. Após 1820, os capitais espanhois e portugueses dominaram o tráfico; capitães e marinheiros dos Estados Unidos eram apenas funcionários do tráfico. No entanto, entre 1807 a 1868, centenas de navios construídos nos Estados Unidos transportaram africanos e facilitaram o tráfico de escravos da África para Cuba e Brasil. Indivíduos e indústria naval dos Estados Unidos tinham pleno conhecimento das atividades desprezíveis às quais esses navios estavam destinados. Ademais, a construção de navios na costa leste dos Estados Unidos beneficiou as economias locais e regionais de Portland, no Maine, e Nova Orleans, na Louisiana. Conforme observado por muitos historiadores,
a indústria empregou centenas de marinheiros, carpinteiros, fabricantes de vela e ferrarias, para não mencionar madeireiras. Duas mil árvores, principalmente carvalhos e pinheiros, eram cortadas para construir um único navio de porte adequado.3
Deve-se considerar que a construção de navios, a mais avançada tecnologia produzida nos Estados Unidos desde 1700 até meados do século XIX, pode ser vista como uma forma de investimento de capitais com origem nos Estados Unidos. Pesquisas adicionais lançarão luz sobre este “momento inovador do capitalismo histórico” (p. 4).
Um último comentário. Diversas localidades, cidades, regiões, estados e países são mencionados no livro. Por exemplo, na página 21, são citados Charleston, Savannah, Havana, Rhode Island, Gold Coast, Alta Guiné, Serra Leoa e Senegambia. Faltou um mapa. Tal mapa, mesmo sendo apenas referente ao Atlântico, poderia ser útil tanto para leitores especialistas como para leigos.