Resenhas
FORMAN JR., James. Locking Up Our Own: Crime and Punishment in Black America. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2017. 306 p.
O título do livro, Prendendo os nossos, é bastante provocativo. Foi escrito pelo professor de Direito James Forman Jr, um intelectual negro que fez carreira na defensoria pública na cidade de Washington, D.C., a capital dos Estados Unidos. O argumento central é o apoio dado por lideranças políticas, policiais e judiciais negras ao progressivo endurecimento penal e seus efeitos sobre a vida de pessoas negras, clientes do autor na advocacia pública gratuita.
Na primeira parte do livro, Forman Jr. documenta o papel de lideranças negras no combate ao porte de drogas e armas, bem como a ascensão de negros aos altos escalões da polícia na capital americana, uma cidade de maioria negra. Traz farta documentação de discursos proferidos, textos publicados na imprensa negra, debates legislativos, argumentos que circularam, nas décadas de 1970 e 80, quando o problema da violência contra e entre os negros tornou-se prioridade, levando suas lideranças políticas, religiosas e profissionais a apoiar o endurecimento das leis criminais no nível local.
A segunda parte do livro trata das consequências dessa política, narrando o fenômeno do encarceramento em massa no final dos anos 1990 e o seu impacto desastroso sobre todas as dimensões da vida da população negra americana. O encarceramento massivo, resultado de políticas apoiadas pela população negra, chegou a atingir 25% dos jovens negros; 10% da população adulta está às voltas com a justiça criminal. E isto teve impacto sobre todas as oportunidades de desenvolvimento humano: educação, emprego, moradia, relações familiares, direitos civis. Ter uma acusação criminal limita o acesso a empregos, a escolas, aos programas de assistência pública estatal ou privada, ao voto, deixando os acusados marcados por um tipo de exclusão que tem sido comparada à escravidão e à segregação racial depois da abolição, adentrando o século XX. Mas, desta vez, é como se a opinião pública e o voto dos negros tivessem apoiado leis segregacionistas.
Como entender que líderes negros tivessem corroborado essa política opressiva contra a qual se volta hoje a luta por direitos civis e contra o racismo institucional protagonizado pela polícia e a justiça criminal? É isto que o livro busca entender. As decisões foram sendo tomadas passo a passo. O encarceramento em massa não se construiu da noite para o dia, foi o resultado progressivo de numerosas decisões coletivas e individuais. E as decisões foram tomadas com as melhores intenções, movidas por um espírito público genuinamente preocupado com a tragédia da violência desenfreada que se abatera sobre os bairros negros pobres a partir do fim dos anda década de 1970, associada às disputas pelo mercado de entorpecentes.
Eliminar as drogas e as armas dos bairros negros, e ao mesmo tempo fazer com que a polícia concentrasse sua presença nesses locais a fim de reduzir os crimes letais, pareciam o melhor caminho naquele momento. Parecia o necessário para salvar as vidas dos jovens negros e garantir-lhes um futuro. Do ponto de vista dos agentes que deram apoio incondicional a leis penais duras e a técnicas agressivas de policiamento, as consequências do encarceramento massivo sobre toda a população negra não puderam ser visualizadas. O livro traz então um problema sociológico clássico, que foi chamado por Max Weber de “paradoxo das consequências”: ao agir, os sujeitos são motivados por sentidos morais e interesses que lhes parecem os mais adequados diante da leitura da realidade que fazem a partir do seu prisma, mas não têm controle sobre como suas ações, condutas, decisões, discursos irão reverberar sobre as gerações futuras.
Forman Jr. é filho de ativistas negros que nos anos 1960 participaram da SNCC (Student Nonviolent Coordinating Commitee), organização atuante na luta por direitos civis e na desconstrução da segregação racial nos EUA. Sua origem e trajetória indicam que o autor acompanhou de perto as discussões em torno do significado do crime e da violência para a política negra e, ao que tudo indica, sua família e grupo político a que esta se filiava compartilhavam visões e argumentos que foram vencidos durante mais de três décadas, mas que hoje constituem a linha de frente da luta antirracista no país. Trata-se, portanto, de uma pesquisa que mapeia a trajetória das soluções políticas e dos contextos sociais em que se constroem sua aceitação ou recusa.
Na abertura do livro, Forman Jr. narra o episódio em que um juiz afro-americano da Corte Superior de Washington evoca Martin Luther King para condenar a conduta de um jovem negro de 15 anos durante uma audiência judicial. No discurso padronizado – que o leitor verá repetido em todos os capítulos do livro por juízes e policiais negros – é asseverado que Dr. King lutou, marchou e morreu para criar as melhores condições para o desenvolvimento da comunidade negra, e seu sonho não era ver jovens enveredarem pelos caminhos fáceis da droga, da violência e do crime patrimonial. Seu sonho era que os jovens negros pudessem trabalhar, estudar e se desenvolver, contribuindo para que sua comunidade superasse as injustiças sociais a que fora condenada. Segundo esse discurso, as condições hoje são outras, com mães, famílias e professores fazendo o seu melhor, mas aquele jovem infrator, infelizmente, não soube respeitar esse legado e aproveitar as oportunidades que lhe foram dadas e, por isso, merecia punição rigorosa.
Forman Jr. dedica sua pesquisa a explicar a plausibilidade do uso do “discurso do Dr. King” para legitimar a imposição do direito penal duro. E também a demonstrar que, para os jovens negros com quem trabalhou como advogado e professor, envolver-se em infrações penais não foi simples escolha individual, como se um mundo de possibilidades promissoras se abrisse à sua frente e eles tivessem escolhido o mau caminho. Cada capítulo é construído a partir da trajetória pessoal de um de seus clientes, na tentativa de demonstrar empiricamente como o encarceramento massivo e o policiamento implacável são obstáculos concretos e incontornáveis – e não escolhas – nas vidas de pessoas negras.
O livro é, em si, uma disputa pelo legado de Martin Luther King e uma forma de se posicionar sobre os rumos do movimento por direito civis. Já na introdução Forman Jr. responde a críticas sobre o movimento hoje colocar peso excessivo sobre a violência policial, ignorando a violência cometida por civis negros. O autor considera este um falso dilema, pois a violência interpessoal e a institucional atingem negros e são produzidas por negros num quadro de racismo em que os brancos também desempenham seu papel. Ele está preocupado com o fracasso das soluções encontradas para superar o racismo, a opressão e a violência. Forças políticas negras também apoiaram reformas estruturais e o fortalecimento de políticas sociais (educação, trabalho, saúde, moradia, integração política) para fazer frente à violência e a perda de perspectivas pelos jovens. Mas não foram ouvidas. Ao invés disso, o apoio dado ao endurecimento penal gerou consequências fartamente apontadas nas pesquisas sócio-jurídicas quanto ao caráter racista do sistema penal americano.
Forman Jr. defende que o encarceramento em massa foi o resultado progressivo de muitos atos esparsos, e não necessariamente coordenados, de policiais, juízes, legisladores, jornalistas, assistentes sociais, administradores públicos e de empresas, agentes de liberdade condicional. Segundo ele, nenhum ator sozinho faz as taxas de encarceramento dobrarem ou triplicarem, como aconteceu. Estas resultaram das ações de atores agindo todos ao mesmo tempo ao longo de quarenta anos. Ninguém é o responsável, todos, de alguma forma, contribuíram para o desfecho.
“Toda geração comete erros”. A primeira frase do capítulo 1 tenta contextualizar o apoio dado pela comunidade negra de Washington à criminalização da maconha em 1975. Se hoje a guerra às drogas é vista como uma das mais terríveis formas de perpetuar a discriminação racial, há quarenta anos ela foi apoiada, e poderia ter sido evitada se os líderes negros tivessem optado pela proposta de proibir a pena de prisão para o porte de maconha defendida por David Clarke, deputado local branco. Ele havia percebido uma onda para liberar o consumo da maconha no país, a despeito de a polícia de Washington realizar muitas prisões, especialmente de negros. Era o momento em que Nixon iniciava a campanha que rotulou Guerra às Drogas, mas esta era dirigida a drogas mais pesadas, como a heroína. E Clarke propôs tratar a maconha em outra chave. Contudo, foi muito criticado por religiosos negros e pela imprensa negra, que convenceram o eleitorado em geral e a bancada negra em particular de que a maconha era a porta de entrada para outras drogas.
Os bairros negros ainda viviam o trauma da heroína da década de 1960, que fez aumentar a sensação de degradação social e as taxas de crimes violentos. O número de pessoas que desenvolveu o vício aumentou vertiginosamente, tornando-se um grave problema entre os jovens, levando até à morte de crianças por overdose. Douglas Moore, deputado e reconhecido representante da esquerda negra, conectado com o movimento global do Pan-Africanismo, combateu duramente a proposta de Clarke sobre a despenalização da maconha. Creditou a ela o apoio de brancos que tentavam evitar que seus filhos, e futura elite, fossem incriminados. Moore argumentava que o gueto tinha outras condições sociais e familiares, e que o favorecimento ao uso de drogas era uma forma de manter os jovens negros afastados da escola e dos projetos de vida respeitáveis, num novo modo de servidão aos traficantes. Recebeu e transmitiu a proposta do abrandamento em relação à maconha como uma tática para manter a combatividade negra sob controle, introduzir a desagregação social e política na comunidade e evitar que seus jovens disputassem um lugar na política e na sociedade americanas. Moore repercutiu uma forte campanha dos religiosos para alertar sobre os perigos da droga nas comunidades negras, lastreada no medo e nas experiências nefastas das famílias com membros viciados em heroína.
Naquele momento, os argumentos de David Clarke foram tomados como libertarismo de brancos não comprometidos com o que afetava as comunidades negras. Aos dados apresentados por Clarke sobre o alto número de detenções de pessoas negras por porte de maconha, as lideranças contestavam o seu real impacto, posto que as detenções não geravam condenações efetivas e o número de pessoas encarceradas naquele momento não era visto como problema, pois os negros não excediam um terço da população prisional.
No capítulo 2, Forman Jr. discute o apoio ao controle de armas, debatido no mesmo ano de 1975 pelo parlamento local. Os líderes negros também apoiaram o controle penal de armas, a despeito de ter havido propostas para aplicar sanções administrativas, como multas. Este apoio era justificado como medida necessária para reduzir a violência nos bairros negros, desencorajando os jovens a glamourizar a posse de armas. O crime violento tornou-se na época tema das conversas cotidianas, de editoriais na imprensa e do debate político. Até Malcolm X compartilhou esta preocupação em uma visita a Washington anos antes.
A proposta de John Wilson, representante negro no Conselho Municipal, era o banimento da venda, compra e porte de armas na capital. O fato de que condenações criminais por posse de armas recairiam com maior peso sobre a população negra foi minimizado pelo argumento de que os criminosos eram minoria. O tema desta vez dividiu a opinião política negra. Moore e uma parte da esquerda negra eram contra o controle de armas por considerarem que, uma vez que a violência, em especial a violência policial e dos grupos racistas como a Klu Klux Klan, afetava mais os negros, estes deviam ter o direito a andar armados para autodefesa. Após a morte de Martin Luther King, as organizações negras passaram a defender o armamento e a ver o controle de armas como uma forma de manter os negros sob controle.
Mas duas mudanças foram decisivas para a aceitação do controle de armas. Uma delas foi que a violência de negros contra negros trazia um problema novo. A ascensão de políticos, policiais e juízes negros projetava uma nova geração profissionalizada que acreditava que as leis deveriam funcionar para defender vidas negras. Houve uma confiança no projeto de democratização e integração via participação institucional. No final dos anos 1970, várias lideranças apoiaram o controle de armas e propostas de penas obrigatórias para quem as possuísse surgiram em várias cidades americanas. Em Washington, a bancada negra, a despeito das diferenças ideológicas internas, fechou questão sobre penas mandatórias mínimas para crimes cometidos com armas de fogo.
O controle de armas espelhava o combate ao consumo da maconha na forma e no resultado: “servidores públicos eleitos e outros líderes comunitários identificaram uma questão que afligia a comunidade, enfocando a sua dimensão racial, e lideraram uma resposta política que enfatizava a proibição”, escreve Forman Jr.. E conclui: “Nos dois casos, a proibição se amparava na aplicação da lei e na escalada de uma série de penas criminais” (p. 75). O autor reconhece que o projeto dos líderes negros visava chegar às causas do crime através de políticas de emprego e saúde, além do apoio a leis criminais. Mas constata que os conservadores venceram e essas políticas públicas não foram implementadas, o mercado de armas continuou prosperando, houve escalada da violência e as pessoas presas por porte de armas passaram a ser predominantemente negras.
Uma vez que a aposta fora no sistema penal, o capítulo ٣ do livro volta-se a discutir o papel dos policiais negros na redução da violência e na desconstrução do racismo institucional. Havia sido uma reivindicação histórica do movimento por direitos civis a presença de negros nos quadros policiais. Em muitos casos, a violência racista foi tolerada pela polícia de maioria branca, em outros, policiais brancos participavam de milícias racistas no período do apartheid. Para várias lideranças da luta antirracista, mudar a composição racial dos corpos policiais era uma condição para superar a segregação. Os policiais negros enfrentaram muitos obstáculos para sua aceitação e ascensão. Os policiais brancos recusavam-se a trabalhar com os novos colegas. Num primeiro momento, os negros policiavam apenas bairros negros, não tinham autorização para abordar pessoas brancas e eram discriminados e humilhados por seus superiores.
Ainda assim as forças policiais eram procuradas pelos negros por serem uma das poucas oportunidades de emprego estável disponíveis. Mas, com o avanço da luta antirracista, tornou-se normal haver policiais negros e menos rara a sua ascensão a postos de comando, mesmo tendo que concorrer em seleções pouco transparentes.
Em 1976 realizou-se a primeira conferência reunindo sessenta chefes de polícia, de 24 estados, 55 cidades, todos negros, para discutir as estratégias de combate ao crescimento do crime. Entre eles, Burtell Jefferson, chefe de polícia assistente de Washington, o primeiro negro a chegar a um posto tão alto, com uma trajetória heroica de ascensão profissional em face de numerosos obstáculos enfrentados.
A grande pergunta era como poderiam os policiais negros ser diferentes dos predecessores brancos, que serviram à segregação racial, que consideravam os negros como os elementos a serem controlados e não como cidadãos a serem protegidos. Via-se nos policiais negros um potencial de transformação, acreditando-se que seriam menos abusivos e desrespeitosos, menos corruptos, mais comprometidos em proteger as vidas negras – e a violência policial era um dos principais tópicos da luta por direitos civis. Seriam também mais eficientes, por serem mais confiáveis e terem melhor conhecimento dos estilos de vida nos bairros negros, que eram, afinal, os mais violentos. A pressão sobre eles era enorme. Dr. King havia dito que seriam os “representantes da raça” nos quadros da polícia.
Contrariando as expectativas, um maior número de policiais negros não fez declinar a violência policial. Na agenda dos chefes de polícia reunidos na conferência de 1976, um conjunto de recomendações de caráter repressivo, apoio a penas mandatórias mínimas e ao endurecimento das leis e da repressão policial, tornava os novos protagonistas plenamente integrados ao movimento de recrudescimento do combate ao crime.
Na segunda parte do livro são discutidas as consequências desse movimento. Forman Jr. interpela o endurecimento contra as drogas a partir de dados de outras pesquisas, de sua própria experiência profissional e da trajetória de clientes que tiveram que enfrentar a dureza do sistema criminal americano, que passara a prever penas mínimas obrigatórias de quinze a sessenta anos para delitos relacionados com drogas. No capítulo 4 confronta os efeitos das propostas apoiadas pelo chefe de polícia Burtell Jefferson (e por tantos outros), e suas consequências na vida de Tasha Willis, uma mulher negra, chefe de família, viciada em heroína, que foi a julgamento por ter sido detida comprando uma pequena quantidade da droga de um policial disfarçado, numa situação de flagrante forjado. Forman Jr. discute, através deste caso, como a decisão pelo endurecimento mudou as técnicas policiais, tornando as abordagens e outras ações muito mais agressivas e proativas. Discute o crescimento progressivo do aparato prisional, enquanto as vagas para tratamento de dependência química eram escassas, precárias e pouco confiáveis. Descreve o grande investimento na construção de penitenciárias e o abandono de formas alternativas de lidar com o uso problemático de drogas. Segundo afirma, ninguém deixou de ser preso por falta de vagas nas prisões, mas muita gente foi presa por falta de vagas no sistema de saúde mental.
Tornou-se comum dizer que a porta da justiça é giratória, que os criminosos ficam apenas poucas horas presos devido à leniência das leis. O chefe de polícia Jefferson e seu aliado John Ray, um advogado eleito para o Conselho Municipal, passaram a defender o endurecimento das leis de drogas e armas, nos anos 1980, utilizando um discurso de desigualdade racial que considerava que os crimes cometidos contra brancos seriam sempre punidos, mas que as vítimas negras restavam esquecidas – o que resultou no apoio dos eleitores às medidas de endurecimento e aumento das penas, especialmente pela associação reiteradamente reproduzida entre droga e violência, droga e armas.
Forman Jr. considera fato que o mercado de drogas produziu situações emergenciais especialmente dramáticas nos bairros negros. Contudo, pergunta como teria sido se Jefferson e Ray tivessem desencadeado uma intensa campanha de apoio do público a melhorias do sistema de saúde e ao aumento no número de leitos para tratamento de drogadição, ao invés de considerar o sistema penal e a obrigatoriedade da prisão como as únicas respostas possíveis. Ou se tivessem levado em conta a opinião daqueles que consideravam a expansão do mercado de drogas como vinculada ao desemprego e à extrema pobreza. Talvez a Sra. Willis pudesse ter conseguido uma vaga para tratamento de desintoxicação e um emprego decente, o que não aconteceu, aumentando vertiginosamente suas chances de novamente enfrentar um tribunal.
Eu sabia que o que o pequeno distrito federal [Washington, D.C.] tinha a oferecer a ela – e o que a pequena América tinha a oferecer a ela – era voltar àquele fórum. E era polícia e prisão – não auxílio, ironiza o autor (p. 150).
No capítulo 5 são descritos os debates de um período extremamente crítico (1988-92), em que o crack se tornou epidêmico nos bairros pobres, protagonizando feiras a céu aberto e uma alta trágica nas taxas de homicídio. O autor reconstrói a perspectiva dos jovens negros pobres que eram seus alunos numa escola que recrutava aqueles com maiores dificuldades de aprendizagem e com trajetórias mais vulneráveis. Para eles, a polícia representava um obstáculo constante, pois eram parados quase diariamente e tratados de modo muito agressivo.
Forman Jr. observa que a polícia passou a trabalhar com uma inversão da presunção de inocência, o que teve impacto devastador na vida dos “suspeitos”, pois nenhuma dose de bom comportamento era suficiente para amenizar a presunção de culpa. A epidemia de crack motivou a emergência do “policiamento guerreiro” (warrior policing), com modos mais agressivos, armamento mais potente, o abuso como tática para realizar abordagens, revistas e imobilização.
O crack expandiu o mercado de drogas violento, com disputas por territórios entre gangues com armamento pesado, transformando os bairros em campos de morte. Os jovens negros foram as grandes vítimas da violência letal. Também cresceu o número de consumidores no mercado de armas. Neste contexto, a guerra às drogas não é apenas sobre drogas. É entendida como luta contra o crime violento. E essa luta é o que serve de justificativa para o comportamento guerreiro da polícia, que encara o gueto como território inimigo. A agressividade policial é parte do quadro de endurecimento penal e encarceramento massivo.
Ainda que a esquerda negra encaminhasse demandas por políticas não repressivas como resposta ao crime, ela pregou o endurecimento como uma resposta também válida e lhe deu apoio, sem conseguir viabilizar outras opções.
Nesse contexto, Washington, D.C., implementou um programa chamado Clean Sweep (Varredura Limpa), levado a cabo por uma polícia composta por 50% de oficiais negros e chefiada pelo afro-americano Isaac Fulwood Jr.. A operação concentrou-se nos bairros com maiores taxas de homicídio (todos negros e pobres), excluindo o setor majoritariamente branco e os bairros onde viviam as classes média e alta negras. Consistia a operação em revistas de automóveis muito frequentes e minuciosas, e também abordagens ostensivas e sistemáticas a pedestres. Carros novos dirigidos por pessoas negras eram sempre parados. Nos primeiros dezoito meses, a operação realizou 46 mil detenções, uma para cada catorze habitantes da capital, o que causou uma crise de superlotação carcerária. Mesmo assim, o número de homicídios continuava a crescer. A operação seria cancelada e até seu comandante reconheceu, mais tarde, que seu custo social fora altíssimo. Um abismo entre a juventude negra e a polícia havia sido criado.
O legado dessa política foi que a polícia não aprendeu a implementar um modelo de policiamento que não fosse baseado em táticas abusivas. A lógica de considerar os jovens negros como inimigos ainda não foi revertida e todo o potencial da juventude para prevenir a violência e o crime continuou a ser desprezado. Eles sentiram-se desencorajados a respeitar as leis por causa do próprio contato com a polícia. A polícia não conseguia fazer seu trabalho senão por meio de “estratégias de policiamento militarizadas, forjadas na violência e no caos da epidemia do crack” (p. 183).
No sexto capítulo são abordadas outras interfaces nefastas de uma política punitivista de combate ao crime. Nos EUA, o acesso a emprego, moradia subsidiada, programas assistenciais é bloqueado para pessoas que possuam registros criminais, mesmo que não tenham sido condenadas. Forman Jr. conta o caso de uma cliente sua que foi demitida da empresa FedEx por possuir um registro de detenção por porte de maconha numa das muitas revistas diariamente realizadas nos automóveis. Todas as dimensões da vida ficam sujeitas aos registros criminais. São, portanto, efeitos que persistem no presente, mesmo após o abandono das táticas mais agressivas de policiamento.
No policiamento, as operações continuam a se basear na revista de carros em certos bairros e outros não, o que foi autorizado pela Suprema Corte. O policiamento continua a praticar filtragem racial. E, se não bastasse, o endurecimento penal continua a ser justificado por discursos que tentam supor o apoio de Martin Luther King a essas ações pelo fato de serem justificadas em nome da proteção dos negros contra a violência. Mas desconsideram-se os efeitos que as políticas penais produzem em termos de desigualdade e injustiça raciais. Forman Jr. acredita que a classe social é um dos fatores que explica um quadro em que boa parte da elite negra adere às políticas punitivas que recaem, com seu enorme peso, sobre os negros pobres.
Num aspecto as coisas se tornaram piores: eles continuam a ser parados e revistados em decorrência de onde moram e da cor da sua pele, mas agora é dito que isto é como o Dr. King gostaria que fosse. (p. 211).
Nas conclusões, Forman Jr. aponta para as mudanças em curso. A crítica à guerra às drogas começa a surtir alguns efeitos. O árduo trabalho de pesquisadores e ativistas em documentar a desigualdade racial nesse âmbito vem sendo reconhecido. A crítica ao encarceramento em massa ganha corpo, com mudanças nesse sentido propostas pelo presidente Barack Obama, por exemplo. Pouco a pouco, essa política começa a ser desmontada, o que é auxiliado pelo declínio das taxas de violência, que permite começar a considerar respostas alternativas. Fica patente, assim, o quanto uma sociedade com altas taxas de violência se predispõe a apoiar políticas penais mais duras.
Contudo, os discursos e práticas ainda são muito tímidos quando limitam a mudança de atitude apenas aos crimes não violentos. Milhares estão encarcerados por delitos cometidos com armas de fogo, e alguns desses delitos não são tão graves ou não são representativos de uma carreira criminosa já consolidada. Mas quando se trabalha com a etiqueta “crime violento” não há como escapar de um julgamento que mais uma vez reduz todas as dimensões de uma vida a um ato que pode ter sido isolado ou desesperado.
James Forman Jr. endossa um programa de reformas para a desconstrução do encarceramento em massa. Assim como foi construído, progressivamente, a partir de uma série de eventos concomitantes, a sua desconstrução também depende de um programa extenso de ações para rever a legislação dura, para permitir um tratamento judicial alternativo, penas substitutivas à prisão, a ampliação dos programas de saúde e de assistência a usuários de drogas, a melhora da educação nas prisões, a restauração do direito dos condenados ao voto, o aperfeiçoamento da assistência jurídica aos pobres, o apoio aos egressos da prisão. Ideias que, segundo o autor, não são novas, mas que passaram por ridículas ou ingênuas ao longo de quatro décadas. Contudo, ele considera que, para além de mudanças políticas, são necessárias mudanças de atitude individual dos juízes, policiais, promotores, empregadores, das escolas. Mudança de atitude até mesmo das vítimas da violência, quando se mostrarem mais dispostas a aceitar formas de justiça em que haja espaço para o perdão e não apenas para a vingança.