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Recepção: 09 Janeiro 2021
Aprovação: 02 Março 2021
DOI: https://doi.org/10.9771/aa.v0i63.43392
Resumo: O artigo discute a alforria por substituição, modalidade em que o escravo trocava sua liberdade dando em troca outro escravo, tornando-se, pelo menos temporariamente, um senhor de escravos escravizado. Os dados derivam de mais de 400 casos de alforrias registradas nos tabeliães de Salvador, destacando a cidade como local no Brasil em que esse tipo de alforria foi mais usado. O artigo relaciona a substituição ao volume do tráfico transatlântico, à escravidão urbana e ao acesso a redes do tráfico pelos escravos que investiam em outros escravos. Uma das possíveis explicações para o fenômeno vem da natureza da escravidão na parte da África onde se originava a maioria dos cativos baianos, onde a posse de escravos por outros escravos era prática comum. Mas a relação senhor/escravo ganha o centro da cena. Sendo a concessão da alforria prerrogativa senhorial, da mesma forma o era a licença para cativos formarem uma poupança para comprar seus substitutos. Discute-se as negociações entre senhores e alforriados, apontando circunstâncias envolvidas. Vários aspectos da negociação são revelados através de exemplos concretos. O artigo traça, entre outros achados quantitativos, os perfis étnico (com predominância de nagôs) e por gênero (com predominância de mulheres), tanto entre substitutos como entre substituídos, vinculando esse resultado à direção do fluxo do tráfico e à dinâmica do trabalho de ganho na cidade.
Palavras chave: Tráfico e escravidão, Alforria por substituição, Bahia – século XIX.
Abstract: The article discusses manumission by substitution, in which a slave bought his/her freedom giving another slave in exchange, thus becoming, temporarily at least, an enslaved slaveowner. The data derives from more than 400 letters of manumission registered by public notaries in Salvador, making the city a leader in this type of manumission in Brazil. The article relates substitutions to the volume of the transatlantic slave trade, to urban slavery, and access to slave trading networks by the slaves who acquired captives. A possible explanation for the phenomenon is that in the part of Africa where most Bahian slaves originated, possession of slaves by other slaves was a common practice. But in Bahia master-slave relations gains center stage. The concession of manumission was the master’s prerogative, and so was permission for a slave to amass savings and use them to buy another slave. Negotiations between masters and slaves are discussed on the basis of concrete cases. Among other quantitative findings, the article also traces the ethnic (predominantly Nagô) and gender (predominantly female) profiles of both the substitutes and those they substituted, linking the results to both the direction of the slave trade and the dynamics of urban slavery.
Keywords: Slave trade and urban slavery, Manumission by substitution, Nineteenth-century Bahia, Brazil.
O Brasil se destacou como maior importador de cativos africanos nas Américas, 45,5% dos cerca de 10 milhões e 700 mil desembarcados em todo o continente. Quase 700 mil morreram a caminho do Brasil, o equivalente a 37% de todos que sucumbiram durante a travessia do Atlântico com destino às Américas. Na primeira metade do século XIX, após a derrocada da economia exportadora do Haiti revolucionário (1791-1804), o comércio de gente recrudesceu sobretudo em direção às regiões produtoras de açúcar. No intervalo de cinquenta anos (1800-1850), desembarcaram no Brasil 2,1 milhões de africanos, representando 64% dos que sobreviveram à travessia para as Américas no período; e equivalente, ademais, a 67% de todo o tráfico brasileiro no curso de 350 anos. Esses números fazem do século XIX a idade de ouro do comércio negreiro brasileiro.1
Se foi o mais voraz consumidor de mão de obra africana, o Brasil foi também a região que mais alforriou cativos nas Américas. Isso resultaria na formação de um contingente de pessoas libertas e livres de cor que, em meados do século XIX, ultrapassaria tanto a população escravizada, como a livre branca. Na região Nordeste – então percebida como parte do Norte – esse processo foi ainda mais rápido do que no conjunto do país. A América portuguesa e depois o Brasil independente, ao contrário dos Estados Unidos, não contestavam o direito de os senhores alforriarem livremente seus escravos, nem a estes de desfrutar a liberdade nos lugares onde escolhiam viver.2
Eram diversas as modalidades de alforria praticadas no Brasil. Podiam ser gratuitas ou onerosas, com ou sem condições, pagas em dinheiro ou espécie, em ouro, prata, gado, colheita e até… escravos. Quando um cativo era usado como moeda de troca num pleito de alforria, tem-se a alforria por substituição. Embora não se tratasse de um método corriqueiro para alcançar a liberdade, estava difundido por todo o Brasil, e em diversas épocas ( Tabela 1 ). Contudo, ignoro um trabalho exclusivo sobre o tema, e é o que aqui proponho. Trato neste artigo dessa variante de alforria pouco convencional e parcamente conhecida. O cenário é Salvador na primeira metade do século XIX, uma das mais populosas cidades do Brasil escravistas.

A Tabela 1 apresenta dados sobre as alforrias por substituição em diversas épocas e vários pontos do Brasil. Nela eu registrei o local, o período, o número de alforrias de todo tipo, o número e a proporção daquelas por substituição e o nome dos pesquisadores.3 Sem dimensioná-lo quantitativamente, o assunto é mencionado por alguns historiadores da cidade do Rio de Janeiro, às vezes apenas apontando que existiu, outras fornecendo poucos exemplos. A grande urbe escravista do Oitocentos ainda aguarda pesquisa sobre a incidência desse dispositivo de conquista da liberdade. Acrescente-se que tampouco encontrei trabalhos específicos sobre o tema para outras regiões das Américas. Há apenas menção aqui e ali de episódios tais.4
O balanço aqui apresentado mostra que a substituição representou uma porção pequena no conjunto das alforrias em todo canto. Mas, na Bahia, ela parece ter sido mais difundida. Em Minas do Rio de Contas setecentista, localidade mineradora na Chapada Diamantina, encontramos a maior proporção de alforrias por substituição no Brasil. A região continuou alforriando no século seguinte, mas o peso das substituições caiu pela metade. Em Salvador, palco da história aqui contada, as proporções são menores, quer para o século XVIII ou para o XIX.5 No entanto, minha investigação logrou recuperar um volume excepcional de substituições para a primeira metade do século XIX: 413 escravos se libertaram em troca de 436 escravos (onze alforrias foram pagas com mais de um substituto, em geral mãe e filho/a). Tudo somado resulta em 849 pessoas abrangidas (substitutas e substituídas). Esses números expressivos tornam Salvador – até o momento – a cidade atlântica onde mais prosperou esse tipo insólito e desconcertante de alforria.
Além de funcionar como um mecanismo de controle dos escravos – pois em geral beneficiava o “bom serviçal” –, a alforria funcionava como instrumento de renovação da força de trabalho: libertava um cativo maduro na idade para se adquirir outro, em geral mais jovem, com o valor recebido pela alforria. Toda modalidade de alforria tinha então alguma relação com a disponibilidade de cativos à venda. Até seu fim em 1850, o comércio transatlântico de cativos explicaria, em grande medida, os números excepcionais das alforrias no Brasil – só em Salvador, mais de 17 mil entre 1800 e 1850. Não digo nada de novo. Tal já foi reconhecido por muitos historiadores. Márcio Soares resume a questão quando escreve que “o elemento chave para decifrar a ampla difusão das alforrias no Brasil era a visceral dependência do tráfico atlântico de escravos com suas levas e levas de desenraizados”.6 Não surpreende, portanto, que o Brasil, maior escravizador de africanos, fosse também o maior alforriador.
As alforrias, por seu turno, eram mais comuns no meio urbano. Salvador possuía uma população estimada, por baixo, em 65.500 habitantes em meados da década de 1830, dos quais cerca de 42% escravizados. Os escravos e libertos nascidos na África, especificamente, representavam 33,6% da população e 63% do contingente escravizado era africano. Os libertos africanos seriam em torno de 7% da população da cidade, mas compunham 21% de todos os nascidos na África. Entre estes e os nascidos no Brasil, havia em 1835 pelo menos 27 mil cativos com esperança de um dia se alforriar, não importa por quais meios. Contudo, a população africana devia ser maior do que a indicada, pois o tráfico fora intenso na primeira metade do Oitocentos (como se verá daqui a pouco), mas muitos senhores escondiam seus cativos temendo a cobrança de impostos ou sua apreensão por terem desembarcado após a primeira proibição geral do tráfico, em 1831. Quanto aos libertos, fugiam dos arrolamentos populacionais por temerem, além de impostos, mais controle policial sobre suas vidas já bastante vigiadas.7
Como acontecia noutras cidades escravistas da bacia atlântica, em Salvador imperava o sistema de ganho: senhores mandavam seus escravos às ruas para “ganhar”, fosse na venda de secos e molhados, setor que empregava mulheres principalmente; ou no transporte de todo tipo de objetos, inclusive cadeiras de arruar, ocupação masculina; além de outros serviços, mais e menos qualificados, como costureira, lavadeira, marinheiro, barbeiro, alfaiate etc. Eram chamados ganhadores ou ganhadeiras. Maria José Andrade identificou, para todo o século XIX, 82 ocupações exercidas por homens escravizados e dezesseis por mulheres.8
Os ganhadores – que amiúde “viviam sobre si”, fora da casa senhorial – pagavam uma taxa semanal, previamente acertada com seus donos, conservando o excedente. “Pagar a semana” do senhor, se dizia. O ganho favorecia a aquisição da alforria após anos de duro labor e obstinada economia. Mas em vez de pagar a liberdade em “dinheiro de contado”, expressão da época, alguns escravos comprariam outros escravos para substituí-los. Como qualquer alforria, esta resultava de negociação entre senhor e escravo. Um primeiro benefício para o senhor seria evitar a tarefa de ir ele próprio ao mercado negreiro, enquanto a vantagem do escravo seria baratear sua alforria com a compra de um substituto por valor inferior ao seu. E aqui a relação entre tráfico e alforria por substituição se revelava por inteiro.
The Slave Trade Voyages Database estima que, enquanto durou, o tráfico despejou na Bahia em torno 1,5 milhão de africanos, pelo menos 60% embarcados na Costa da Mina, o litoral do golfo do Benin que se estende do Togo ao sudeste da Nigéria. Depois que a França e a Inglaterra – as principais nações traficantes depois de Portugal/Brasil – proibiram a seus cidadãos o comércio negreiro em 1807 e 1815, os baianos, presença marcante na região desde o final do século XVII, passariam a quase monopolizar o negócio. Os africanos embarcados para a Bahia – sobretudo dos portos de Uidá, Porto Novo e Lagos – eram trocados pelo fumo de segunda, dito “refugo” ou “soca”, produzido no Recôncavo baiano. Embora não fosse esse o único produto de troca, era visceral a relação entre o tráfico da Costa da Mina o fumo da Bahia, ali muito apreciado.9
A mais recente estimativa de africanos desembarcados em solo baiano entre 1800 e 1850 é 423.500, equivalente a 20% e fração de toda a importação para o Brasil no período, estimada em 2,1 milhão. Dos chegados à Bahia, nos diz o TSTD, 40% vieram da Costa da Mina. Mas esses dados são equivocados. O problema principal – não o único – está entre os anos de 1816 e 1830, para os quais foram registrados o desembarque de 114.971 (74,5%) supostamente oriundos da África Centro-Ocidental (leia-se Angola-Congo); 29.386 (19%) da Costa da Mina (golfo do Benim); 9.659 (6,2%) de Moçambique; e 3.440 (2,2%) de outras regiões da África, como Senegâmbia e golfo de Biafra. Total: 154.385 no período 1816-1830. Porém, a importação da Costa da Mina nesse intervalo de catorze anos foi com certeza bem maior. É que o TSTD se baseia, inocentemente, em declarações oficiais das viagens e, tal como as autoridades alfandegárias da época, o pesquisador termina ludibriado pelas informações oferecidas pelos traficantes.
Explico. Desde o tratado celebrado entre Portugal e Inglaterra em 1815, e efetivado em 1817, ficara proibido o tráfico acima da linha do equador, que incluía a Costa da Mina, principal provedor de cativos para a Bahia. A partir daquela data, os negreiros declaravam como destino os portos onde o tráfico permanecia liberado. O porto de Molembo, ao norte de Angola, foi o mais citado por eles em seus pedidos de passaporte porque ali a presença oficial portuguesa era nula, ao contrário de Luanda ou Benguela e, portanto, havia a justificativa de retornar sem documentos devidamente reconhecidos. Ou seja, de volta à Bahia da Costa da Mina, declaravam-se os escravos como embarcados em Molembo e a vida seguia.
Assim, a distribuição da origem dos 154.385 cativos trazidos para a Bahia entre 1816 e 1830 deve ser refeita, e mesmo invertida, no que tange às duas principais fontes abastecedoras: leia-se agora 19% de Angola e 74%, no mínimo, da Costa da Mina; no máximo, acrescente-se parte do tráfico moçambicano. Um autor que estudou o tráfico baiano o confirma por outro prisma. Sobre a repressão ao tráfico ilegal, ele escreveu: “Cerca de 54 navios foram apresados pelos britânicos no golfo do Benim entre 1822 e 1830 e julgados em Serra Leoa, e quarenta deles foram apreendidos com passaportes para Molembo”.10 Ou seja, 74% dos passaportes – coincidindo com a estimativa que sugiro para os escravos vindos do golfo – tinham sido emitidos para um destino legítimo, mas os navios se dirigiram a um destino proibido. Com essa nova perspectiva sobre os números do tráfico transatlântico, temos que, dos estimados 423.501 africanos desembarcados na Bahia na primeira metade do século XIX, entre 65% e 75% foram embarcados na Costa da Mina. A correção importa para entender o que virá adiante.
Alforria por substituição e fluxo do tráfico
As alforrias por substituição não estavam uniformemente distribuídas ao longo do tempo. Conforme a Tabela 2 , elas foram mais numerosas entre 1826 e 1830. Nesse intervalo de cinco anos foram registradas 27,8% das substituições realizadas na primeira metade do século XIX. Essa proporção é o dobro daquela dos cinco anos anteriores, calculada em 13,7%, a segunda maior marca para o período; é também a mesma proporção para os vinte anos seguintes (1831-1850) combinados . Foi, ainda, o momento em que as substituições exibiram a mais alta proporção no conjunto das alforrias, 6,1%, aliás, superior a todas as listadas na Tabela 1 . Tais números sugerem que os escravos estavam a comprar escravos num mercado favorável para usá-los como substitutos, imediata ou posteriormente. Mas esse movimento nem sempre combina com o das alforrias em geral, havendo dissonância mais acentuada ao longo da década de 1820.

Não havia uma flutuação sempre equivalente entre volume do tráfico, o das alforrias em geral e, especificamente, daquelas por substituição. Assim, nos primeiros dez anos do século XIX foram desembarcados na Bahia 26,2% dos africanos, mas registradas apenas 9,9% das alforrias em geral e 10,8% daquelas por substituição. Em outros períodos, o tráfico se reduz drasticamente, como logo após a proibição de 1831, mas na mesma época as alforrias se mantêm num patamar razoável. A grande discrepância se dá no quinquênio 1826-1830, quando ocorre um volume de alforrias por substituição em proporção (27,8%) muito superior à do tráfico (13,9%).
No gráfico em seguida observa-se uma maior correlação, no longo prazo, entre as curvas do tráfico e das substituições, com defasagens pontuais. Por exemplo, enquanto estas alcançaram seu maior pico em 1830, o tráfico alcançaria o seu no ano anterior. Esse movimento sugere que cativos eram comprados num momento para serem substitutos em outro adiante. Em números: 36 alforrias por substituição, ou 9%, adquiridas em 1830; no ano anterior, haviam desembarcado 16.297 cativos, cerca de 4% da série 1800-1850. Apesar de parecer porcentagem modesta, essa porção anual de traficados nunca havia sido alcançada em toda a história do comércio negreiro baiano.

Voltemos a destacar o quinquênio 1826-1830, o mais aquinhoado em substituições. Nessa época o tráfico sugava ferozmente suas vítimas da Costa da Mina, de onde foram trazidos 91,2% de todos os africanos importados ( Tabela 2 ). Os conflitos em território iorubá – lembrando que os iorubás eram nossos nagôs – foram devastadores no mesmo período. Eles explicam o substancial incremento da oferta de cativos para o mercado baiano naquele intervalo temporal. As negociações e embarques de cativos em Lagos, por exemplo, eram nessa altura realizados muito rapidamente porque os barracões viviam abarrotados.11 Com o excesso de cativos à venda, seu preço, medido pelo principal item de troca na Costa da Mina, mergulhou de 18,8 rolos de fumo em média, no quinquênio 1821-1825, para 9,6 rolos em 1826-1830, uma queda em torno de 50%.12
Do lado da demanda, nesses exatos cinco anos (1826-1830), houve uma corrida para a aquisição de escravos pelos traficantes brasileiros provocada por um evento diplomático. Em 1826 fora celebrado um tratado entre Brasil e Inglaterra que previa a proibição de todo e qualquer tráfico transatlântico ao final de quatro anos. Era a condição dos ingleses para reconhecer, no ano anterior, a independência do país.13 Os traficantes acreditaram que seus dias de rapina estavam contados e intensificaram suas atividades exatamente nos cinco anos em que as alforrias por substituição atingiram o recorde de quase 30% das adquiridas na primeira metade do Oitocentos.
A intensificação do tráfico nesse período ocorreu em todo o Brasil e já foi apontada por diversos historiadores. Não há novidade quanto a isso. Escrevendo sobre o Rio de Janeiro, então maior mercado negreiro do Atlântico, Manolo Florentino proferiu: “crise de oferta”; e observou que “as elites escravocratas do Sudeste passaram à compra desenfreada de africanos”.14 O mesmo se repetiu na Bahia, mas não apenas “as elites escravocratas” aproveitaram a ocasião; os pequenos investidores, como eram os escravizados, também usufruíram. Igual raciocínio valeria também para o Rio de Janeiro, como sugere Zephyr Frank.15
Um testemunho expressivo do que acontecia no Rio nos foi legado pelo reverendo irlandês Robert Walsh, ali capelão da embaixada britânica entre 1828 e 1829. Na ocasião ele escreveu, perplexo, sobre a febre de consumo de cativos:
Ultimamente a população negra cresceu grandemente. Conforme se aproxima o período para a total abolição do comércio de escravos, os capitais têm por toda parte embarcado na compra de negros, tanto assim que quarenta e cinco mil foram importados, durante o ano de 1828, apenas para a cidade do Rio de Janeiro. É verdade que um grande número destes são enviados para o interior; mas é também verdade que uma grande proporção permanece na cidade, para prover as demandas de uma população branca em expansão, de modo que o aumento deles tem sido além de toda estimativa ordinária; meus olhos ficaram realmente tão familiarizados com feições negras que a ocorrência de um rosto branco nas ruas de algumas partes da cidade me surpreendia como uma novidade.16
Tivesse o reverendo visitado Salvador na mesma época, sairia com impressão semelhante, ou talvez aumentada, a respeito da presença africana na cidade.
William Pennell, cônsul inglês em Salvador, avisou em 20 de março de 1827 a seus superiores em Londres: “Este mercado parece que estará logo superabastecido com escravos”. Em dezembro do mesmo ano, ele confirmava a saturação do mercado negreiro baiano ao informar que haviam partido, de Salvador para o Rio de Janeiro, três navios carregados com 1.131 africanos. Pennell completava sua missiva a dizer que “o tráfico ilícito de escravos este ano, em seu resultado geral, foi mais lucrativo do que qualquer outro empreendimento mercantil saído deste porto”.17
Conforme a Tabela 3 adiante, os números do comércio negreiro escalaram entre 1825, um ano antes do tratado anglo-brasileiro, e 1829, véspera da anunciada proibição. Já no ano do tratado (1826) as importações deram um salto em relação ao ano anterior. No período 1825-1829 a alta seria de 73% para todo o Brasil, mas 170% para a Bahia. Contribuiu para o boom importador, além da oferta abundante e preços módicos na África, a boa fase dos negócios do açúcar, carro-chefe da economia baiana. A produção e a exportação do produto ascenderam consistentemente até meados do século. Na década de 1820 foram criados 110 novos engenhos e na década seguinte, 190. Na véspera da proibição definitiva do tráfico, em 1850, os engenhos matriculados passavam de 700, e continuariam a se multiplicar, embora a um ritmo menor. Se na Bahia o tráfico servia sobretudo para alimentar a máquina escravista dos engenhos, Salvador era peça fundamental de sua engrenagem.18

Tanto pela abundância de africanos nos armazéns negreiros, como pela expectativa de que 1830 veria o fim do tráfico, já nos primeiros meses daquele ano os baianos haviam reduzido suas compras na Costa da Mina. Em abril, os irmãos Richard e John Lander ouviram lamúrias de vários chefes africanos com quem toparam no caminho entre Badagri e o interior do país iorubá. Segundo os fornecedores africanos, os “portugueses [leia-se baianos] já não compram tantos escravos como antes”, e fizeram “queixas muito aflitas da estagnação deste ramo de comércio”.19 Efetivamente, o TSTD detectou queda considerável no número de cativos desembarcados na Bahia, de 16.297 em 1829 para 7.581 em 1830.
O aquecimento da oferta na Costa da Mina teria reduzido os preços dos africanos novos na Bahia. Uma expressão disso encontra-se registrada na ata da reunião de 13 de janeiro de 1830 da mesa administrativa da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, que congregava poderosos comerciantes, a exemplo de Manoel José Ricardo, João Cerqueira Lima, Antônio Pedro da Silva Guimarães, Manoel Francisco Moreira, Joaquim José de Oliveira, Ignacio Antunes Guimarães, Luiz José de Souza Gomes, todos dirigentes da instituição, todos mercadores de escravos na ativa ou aposentados. Pois bem, segundo se lê na dita ata, fora por “alguns irmãos lembrada a precisão de escravos para o serviço do Hospital e Recolhimento, e que agora era boa ocasião de se comprarem tanto pela abundância deles, e baixa no preço, como por se achar breve o tempo [do fim] total do comércio da escravatura”.20 Eis o diagnóstico dos senhores baianos sobre aquela conjuntura, e ajuizado por gente enfronhada no negócio negreiro. Não escapa, em vários aspectos, a relação entre tráfico e filantropia, a propósito.
Confirmariam essa impressão os inventários post-mortem abertos entre 1820 e 1830 ( Tabela 4 ). O valor médio de uma escrava baixou de 279 para 235 mil-réis, queda de 19%, e o de um escravo, de 347 para 290 mil-réis, queda um pouco maior.21 A proporção de cativos mais baratos (menos de 121 mil-réis) era 30,6%, em 1820-1825 e pulou para 43,5%, em 1826-1830, alta de 13%. Nas duas décadas seguintes à proibição de 1831, quando prevaleceu o contrabando, os preços aumentariam seriamente. Nos inventários feitos antes de 1831, encontrei apenas um escravo (equivalente a 1,5%) avaliado em mais de 400 mil-réis; após essa data, mais de duzentos (24,7%).

Todavia, os dados sobre preços de substitutos que consegui reunir para a primeira metade do Oitocentos não parecem corroborar com os vários indícios de queda de preços apresentados até aqui para a década de 1820. A Tabela 5 foi criada a partir de 77 cartas de alforria nas quais foram registrados os valores pagos por substitutos, dos quais apenas dezoito descritos como ladinos, cujos preços, porém, não destoavam daqueles registrados para os pretos novos. Pode-se observar um aumento consistente dos preços nominais – não deflacionados – que se tornaria significativo entre 1821-1825 e 1826-1830, quando se observa um avanço de 48%, o maior em toda a primeira metade do Oitocentos. E mais: os libertos por troca pagavam mais caro pela liberdade do que os que a compravam com moeda corrente, em torno de 210 mil-réis entre 1825 e 1830, e sendo mulheres, menos ainda: 183,5 mil-réis. Enquanto isso, uma substituta valeria em torno de 260 mil-réis no mesmo período; e usei o feminino “substituta” porque a maioria era mulher.22 Nenhuma das cinco mulheres apreçadas em 1830 foi comprada por menos de 300 mil-réis. Compare-se com os 197 mil-réis pagos pela alforria por uma mulher em 1829-1830. Só a partir da década de 1840, período de ilegalidade do tráfico, ambos os preços convergiriam, o do preto novo e o da alforria em dinheiro.23

Assim, os valores declarados nas cartas por substituição – com destaque para o período 1826-1830 – contradizem os dados vistos até agora, quais sejam: a queda no preço do cativo (em rolos de fumo) na África; o superabastecimento do mercado negreiro baiano, sugerindo baixa no preço do negro novo; o grande número de substituições no período; e a palavra experta dos traficantes da Santa Casa sobre o barateamento de negros novos. Tudo a indicar que se vivia um tempo bom para o comprador de cativos, um buyer’s market . Como explicar o paradoxo?
Talvez valha a pena lançar uma visão mais ampla sobre o mercado baiano na década que vai de 1825 a 1835. Trata-se de um período de forte pressão inflacionária causada por uma derrama de dinheiro falso que vinha do tempo da guerra da independência, em 1822-1823. O problema, que não se resumiu à Bahia, foi acompanhado de considerável desvalorização do real frente à libra inglesa.24 Várias tentativas de retirar o dinheiro podre de circulação falharam. Os comerciantes se recusavam a receber pagamentos em moeda ou majoravam seus preços para lucrar no momento em que o governo substituísse o meio circulante. Quem mais sofria era precisamente o consumidor sem recursos, e por isso as tensões sociais subiram à flor da pele. Em janeiro de 1828 o presidente da província avisava ao ministro da Fazenda que a substituição da moeda falsa era o único meio para se evitar a “anarquia”.25 O tema da moeda falsa também dominou a correspondência consular inglesa: “Este mal recai mais duro sobre as classes pobres, e principalmente de funcionários civis e militares”, que viviam de salário.26 Uma operação de troca das moedas, feita em maio daquele ano, teve resultado pífio. O problema permanecia cinco anos depois, quando o então presidente, falando sobre carestia, comunicou à Corte que os “pacíficos cidadãos, tanto da Cidade como do Recôncavo, não podem encobrir a desesperação em que se acham pelo mal da moeda falsa”. Um mês depois mencionava o “excessivo preço dos gêneros, principalmente os de primeira necessidade”. E em janeiro de 1834 decretava: “a fome não tem lei”. De fato, entre o final da década de 1820 e meados da seguinte diversas revoltas de escravos e de gente livre abalaram a província. Embora as condições materiais não fossem o único ingrediente envolvido, elas contribuíram um bocado.27
Assim, os pretos novos estavam sendo comprados, inclusive por outros escravos, num contexto inflacionário e politicamente tenso. Estamos a falar de preços nominais, não reais. Mesmo estes, porém, sofreram aumento, embora não tão pronunciado, conforme aponta Barickman para os escravos rurais.28 Uma explicação para o comportamento dos preços é que, apesar da oferta de cativos ser grande, a procura também o era, e pelos mesmos motivos: a expectativa do fim iminente do tráfico. Acompanhando os consumidores em geral, muitos escravos atentos ao mercado negreiro decidiram investir suas economias por perceberem que logo os preços estourariam, o que de fato aconteceu depois de 1831. Anotem, porém, que mercadorias e serviços fornecidos por ganhadeiras e ganhadores também terão sofrido reajustes nessa quadra de crise, permitindo que pudessem amortecer o impacto da inflação sobre os preços dos negros novos que compravam.
Os números também sugerem que os alforriados por substituição, de ambos os sexos, seriam valorizados acima da média por serem ganhadores bem sucedidos. Daí terem podido granjear e poupar dinheiro suficiente para dar por si substitutos mais caros, os melhores, mais fortes, bonitos, sobretudo saudáveis, é claro, enfim, substitutos que enchessem os olhos dos senhores para que a proposta de troca os entusiasmasse. A escrava jeje Maria, por exemplo, conquistou a alforria em 1828, segundo sua senhora, “pelos bons serviços que me tem prestado e por receber dela ao fazer desta uma escrava Nação Nagô, como lhe havia pedido, muito a meu contento, em preço de duzentos e noventa mil-réis”.29 O contentamento da senhora transpira dessa carta de alforria, apesar de abrir mão de uma cativa que devia ser ganhadeira lucrativa. Foi também com júbilo que a senhora do cabra Jorge, 18 anos, comemorou sua substituição, em 1827, por uma preta nova oferecida pela mãe do moço, “a qual custou duzentos e quarenta mil reis em lote e de que já estando de posse em seu lugar, e me ser mais conveniente e vantajoso de preço, e em razão de ser uma escrava capaz para todo serviço, o que ainda não é o mesmo cabrinha etc.”.30 No caso de Jorge, a senhora sugere que o preço da alforria dele valeria menos do que o valor da preta nova. Ou seja, estamos diante de senhoras calculistas, que celebram o grande negócio que fizeram com a troca de seus cativos.
Já foi sem grande entusiasmo que o casal Manoel do Nascimento de Jesus e Thomazia Maria de Souza aceitou libertar sua escrava, Izabel de Souza, por outra adquirida por apenas 160 mil-réis, a mais barata das sete substitutas apreçadas para o ano de 1827.31 É de lamentar não sabermos a diferença entre esta escrava e aquelas apresentadas no parágrafo anterior. Talvez muitos escravos comprassem cativos mais baratos – chamados “refugo” –, os quais, embora em plena idade produtiva, se apresentassem doentes, esquálidos, deprimidos, mas que, tratados – amiúde por cirurgiões-barbeiros também africanos –, recuperariam a saúde e o ânimo para a vida.32
Pode ter sido esse o enredo de uma história de substituição que não deu certo. Ildefonso, presume-se, comprou Francisco recém-chegado, doente e, por má-fé ou porque o acreditasse curado, ofereceu-o em troca de sua liberdade a sua senhora, Maria Feliciana de Sam Primo. Era 1834, época de tráfico ilegal, quando os cativos sofriam mais durante a travessia e o desembarque clandestino. Desde que fora entregue a Maria Feliciana, Francisco vivia doente e incapacitado para o trabalho, e ela exigiu, sob ameaça de acionar a Justiça, que Ildefonso o recebesse de volta e pagasse sua alforria em dinheiro. O liberto aceitou entregar 360 mil-réis por sua liberdade, além dos gastos com médicos e remédios para Francisco. Feito isso, Ildefonso recebeu nova carta de liberdade, que foi correndo registrar no tabelião mais próximo. A alforria custara bem mais que um substituto no período, avaliado em 276 mil-réis, e mais também que os 292 mil-réis detectados por Mattoso, Klein e Engerman para alforrias pagas por escravos adultos.33
Enquanto Ildefonso e sua senhora se resolviam, Francisco mofava na prisão – quando devia estar se tratando de seus achaques –, onde permaneceria até o novo acordo ser fechado. Só então seria devolvido a Ildefonso. Este pensara ter feito um excelente negócio ao adquirir Francisco por um valor decerto menor do que teria desembolsado por sua própria alforria, mas o plano falhou porque o substituto ainda não se curara das mazelas que teria porventura contraído na longa travessia rumo ao Brasil. Sorte que Ildefonso comprara o escravo sem esgotar todo o dinheiro poupado em seus anos de cativeiro, daí ter podido pagar prontamente sua alforria quando coagido pela senhora.
Facilitava o acesso dos compradores escravizados ao mercado negreiro sua familiaridade com redes mercantis na praça da Bahia, inclusive para compra a crédito. Muitos libertos e libertas por substituição residiam ou trabalhavam como ganhadores e ganhadeiras na zona portuária, onde também viviam e/ou negociavam os traficantes grandes e pequenos. Traficantes e negros de ganho não seriam estranhos entre si. Antes de 1831, era na Conceição da Praia ou no Pilar, freguesia vizinha, que desembarcavam os pretos novos, e a pouca distância do centro comercial ficavam os armazéns em que eles eram depositados, vendidos e leiloados.34

Escravos e escravas se dirigiam a esses depósitos, sobretudo os localizados em Água de Meninos, para realizar suas próprias compras, mas com a permissão de seus senhores e senhoras. Ali os africanos eram oferecidos à venda “em lotes”. A expressão “comprado (ou comprada) no lote” consta de algumas cartas de alforria, especialmente antes da proibição de 1831. Em 1815, José Corrêa escreveu que outorgara liberdade a Rita, nação nagô, “por ter recebido dela outra escrava, que a comprou no lote, de nação jeje”.35 No mesmo ano Josefa, jeje, obteve sua alforria ao entregar “uma escrava nova do lote, de nação também jeje, que dela recebi”, escreveu sua senhora, Isabel Maria de Bastos Varella.36 Em 1834, Maria Francisca Rodrigues Seixas alforriou Claudina, mais uma jeje, “pela quantia de quatrocentos mil reis, no valor de uma negra que por meu consentimento em lote foi comprada, e os outros duzentos mil reis em dinheiro corrente”.37 Também Gertrudes, jeje, comprou para substituí-la “uma escrava nova da mesma nação jeje, a qual houve por compra que dela fez em lote no Armazém em Água de Meninos”.38 D. Anna Maria de São Victor libertou Jesuina, tapa, “por me ter parido uma cria como pelos bons serviços que sempre me prestou, e por dar por si uma escrava da mesma nação comprada em lote de escravos novos”.39
Os vendedores atendiam compradores escravizados como a qualquer cliente, e até lhes passavam recibos das transações realizadas. Na teoria, quem era escravizado não tinha personalidade jurídica para fazer esse tipo de negócio, mas na prática o consentimento senhorial valia como lei.40 Assim, em 1830, a africana Rita, nagô, se fez substituir por uma negra nova, também nagô, “comprada com seu dinheiro a […] Manoel Antônio Gonçalves, como mostrou com o recibo deste”, segundo carta de alforria escrita pela senhora Francisca Rosa Barbosa.41 O senhor José da Silva Cruz, por seu turno, escreveu em 1836 que Josefa, nagô, “por sua liberdade me oferece uma escrava de nome Anna, Nação Nagô, que com minha licença a comprou, e dela tem pago a Imperial sisa de vinte mil-réis, cuja escrava a recebo em troca livre e desembargada”.42 Ou seja, com o aval do senhor, Josefa presidira todo o processo de escolha, barganha e compra da nova cativa, e entregou ao senhor um recibo dando conta de sua quitação junto ao vendedor. No recibo constava ainda que ela havia pago o imposto de transmissão de propriedade, a sisa. O recibo passado à africana Rita devia ter as mesmas características daquele mencionado na carta de Josefa e, como elas, a maioria das libertas que assim se alforriaram teriam igual recibo para provar que a propriedade era legítima e não fruto de cambalacho.
De teor semelhante foi o recibo de Thomazia da França, crioula, entregue a sua senhora, Maria Marcelina da Silva, em 1833. A escrava dada em troca, que se chamava Esperança e era nagô, fora, segundo Maria Marcelina, “comprada à Senhora Felisberta Maria de Jesus, pela quantia de trezentos mil-réis, como consta do escrito de venda que nesta mesma ocasião recebo, e que fica em meu poder para título e minha clareza e segurança, e mais a quantia de cem mil réis em moeda corrente”.43 Essa carta caríssima adiciona informação importante: o recibo passado à liberta ficava em mãos da senhora como garantia – ou “clareza e segurança” – de posse da substituta. E devia ser sempre assim nas substituições.
Em lugar de ir ao mercado negreiro na Bahia, os alforriados podiam encomendar “peças” da África a capitães e tripulantes de tumbeiros. Muitos africanos libertos e escravizados se empregavam no circuito atlântico como marinheiros, intérpretes, oficiais mecânicos, barbeiros- curadores ou mesmo pequenos comerciantes de gente.44 Sobre a alforria de seu escravo Augusto, nação tapa, José Antônio Gonçalves escreveu em 1828 o seguinte:
o forro de hoje para sempre recebendo do mesmo escravo uma negra nova que a houve por carregação que fez para a costa de África por meu consentimento no valor de duzentos mil reis e outros duzentos mil reis em dinheiro de contado que perfaz a quantia de quatrocentos mil reis, preço este que recebo pela sua alforria do dito meu escravo Augusto, o qual poderá gozar de sua liberdade como se de ventre livre nascera e para constar lhe dou este perante as testemunhas abaixo assinadas.45
O mais provável é que Augusto tivesse encomendado a “negra nova” a um capitão ou tripulante de tumbeiro, mas talvez fosse ele próprio tripulante e aproveitou a viagem para adquirir sua substituta. Nesses casos os cativos dados em troca não eram daqueles “comprados em lote”, ou seja, após o desembarque e sua exposição à venda – eram comprados diretamente na África, que fique claro, ou “por carregação”.46
O liberto nagô Leão Seixas tornou-se negociante de escravos quando ainda era ele mesmo escravizado. Ao escrever seu testamento, em 1864, declarou que se alforriara do poder de seu senhor, cerca de vinte anos antes, “dando por minha liberdade mais de oito contos de reis, em dinheiro e escravos, no tempo em que [eu] negociava para a Costa d’África”. O africano parece ter contabilizado, como pagamento por sua alforria, a mercadoria adquirida por seu próprio esforço que repassara para o senhor durante a vida sob cativeiro. Esses seriam, porventura, os “bons serviços” aludidos por João Lourenço Seixas, senhor de Leão Seixas, quando escreveu a carta de alforria, em 1843, sem mencionar haver recebido em troca qualquer valor em dinheiro ou escravo. Para o senhor, tudo antes recebido do ganho de seu cativo nada mais era do que a parte que lhe cabia. Leão discordava desse raciocínio.47
Outro africano que serviu no tráfico respondia pelo nome de Elias Pinto Coelho, de nação jeje. Sua carta de alforria, de 1835, diz que ele “se ocupava em andar embarcado”, sem dúvida em navios negreiros. É possível que fosse escravo do capitão e traficante João Pinto Coelho, falecido havia pouco tempo. Teria sido na condição de auxiliar desse capitão que Elias adquirira, na Costa da Mina, uma escrava e seu filho de 3 ou 4 anos dados em troca de sua liberdade às herdeiras daquele senhor. Na ocasião, mãe e filho juntos foram avaliados em 300 mil-réis.48 Esse liberto, antes de receber a alforria, já era conhecido como Elias Pinto Coelho, com nome e sobrenome, coisa pouco comum para um escravo, sobretudo se africano. Mas sendo ele de confiança, o senhor emprestou-lhe seu nome, até para facilitar a circulação do cativo no mundo dos negócios, onde ninguém trataria com pessoa que se apresentasse apenas com um prenome. A concessão não era gratuita, ela propiciava os ganhos senhoriais.
A sociedade no tráfico entre um escravo e seu senhor foi explicitada numa procuração em que o capitão José Pereira da Costa e sua mulher, Maria Victoria Pereira, juntamente com seu escravo João Pereira – de novo o uso do nome da família senhorial –, instituíram representantes no Rio de Janeiro para buscar indenização por prejuízos incorridos pela captura, que alegavam ilegal, de um tumbeiro nas águas de Badagri, em 1813. Tinham sido embarcados 55 cativos até o momento da captura pelos ingleses, sete dos quais morreriam a caminho da colônia de Serra Leoa. O caso ainda se arrastava em 1818, ano da procuração, passada, entre outras razões, “para receber na Junta do Comércio ou outro qualquer tribunal toda a quantia que lhes pertencer da tomadia do bergantim denominado Desforço ”. O proprietário do navio era o poderoso traficante José Tavares França. O julgamento deveria se dar no âmbito da recém-instalada comissão mista luso-britânica de combate ao tráfico, com filiais em Serra Leoa e no Rio de Janeiro, daí se designar procuradores na Corte. Não importam agora os detalhes do caso, mas apontar que José Pereira (capitão do navio apreendido) e seu escravo João Pereira (decerto seu marinheiro) tinham ambos investido naquela viagem negreira e talvez em outras. Apenas mais um exemplo de traficantezinho escravizado.49
Até parentes podiam entrar na lista de fornecedores de substitutos. Escravo do engenho Natiba, no Recôncavo, Domingos, um mina, disse a seu senhor, Antônio Pereira de Meneses Doria, que comprara por 300 mil-réis um escravo das mãos de um irmão já forro que vivia em Salvador. O substituto aparentemente não era preto novo, chamava-se André e era nagô. Além de André, Domingos deu mais 100 mil-réis por sua liberdade. Não consegui apurar a origem do dinheiro que permitiu a Domingos, um escravo rural, comprar alforria tão custosa. Talvez crédito contraído com o irmão. Domingos não ficaria no engenho muito tempo. Escrita sua alforria em 26 de fevereiro de 1834, no dia 4 de março já estava em Salvador a registrá-la junto ao tabelião. Quiçá fora viver com o irmão, talvez um daqueles pequenos traficantes de que antes falei.50
Finalmente, não se deve descartar que os compradores tomassem emprestado dinheiro das juntas de alforria para adquirir negros novos. Essas instituições de crédito, invisíveis aos olhos dos brancos, seguiam o modelo da eṣuṣu iorubá (e talvez outras de distintas origens): valores eram depositados periodicamente por cada membro que, num sistema de rodízio, podia sacar para comprar a alforria ou fazer outro negócio. Em vez de pagar pela alforria em dinheiro, este podia ser usado para a compra de um substituto. Supõe-se, eu insisto, que seria mais barato obter dessa maneira a liberdade.51
Perfil dos substituídos e substitutos
Na primeira metade do Oitocentos, a Costa da Mina – ela de novo – forneceu um pouco menos de 10% dos africanos importados pelo Brasil, mas 88% daqueles dali retirados para as Américas desembarcaram na Bahia.52 Chegaram, por exemplo, a 80% dos africanos batizados na freguesia da Conceição da Praia entre 1824 e 1830.53 No período 1800-1850, a Bahia foi o destino mais frequente dos capturados nas guerras daomeanas do final do século XVIII, no jihad em território haussá (norte da atual Nigéria) durante as duas primeiras décadas do século XIX e, como já disse, nas guerras iorubás entre 1820 e 1850. Esses últimos conflitos foram os mais relevantes para o tráfico baiano oitocentista, constituindo na Bahia a maior diáspora iorubá (nagô) nas Américas. Um testemunho direto desses conflitos foi dado por Samuel Crowther: “Por alguns anos as guerras vinham se fazendo em meu País (Oyó), as quais produziram muita devastação e banho de sangue: as mulheres, como os homens que se renderam ou foram capturados, com as crianças, foram tomados como cativos”. Seus captores “não tinham outro emprego além de vendê-los para espanhóis e portugueses [leia-se baianos] na costa”, a caminho da qual “passamos por diversas cidades e vilas que tinham sido reduzidas a cinzas”.54 Em relação aos conflitos no sul do território iorubá, particularmente em Egba, o missionário Thomas Bowen escreveu sobre o que ouviu de nativos: “Multidões foram capturadas e vendidas para traficantes ( slavers) que as embarcavam para Cuba e Brasil, onde um grande número delas ainda vivem”.55 Ele se referia a nossos nagôs, e parte do resultado disso está na Tabela 6 (além da Tabela 2 ).

A tabela expressa como a rota do tráfico se refletiu no perfil dos alforriados e seus substitutos. Além da origem na África e da cor dos nascidos no Brasil, ela traz a distribuição por gênero dos envolvidos.
Nas alforrias por substituição, o número de mulheres superava em muito o de homens: 275 (67,2%) mulheres e apenas 134 (32,8%) homens. Estudos sobre alforria – e não só no Brasil – apontam que as mulheres, sobretudo as aqui nascidas, se libertavam mais que os homens, sobretudo quando gratuitamente.56 Na Bahia, elas eram em torno de 40% das pessoas escravizadas, mas 60% das libertas, uma larga vantagem de 20% sobre os homens.57 Esse resultado decorria, em parte, de estarem elas mais próximas da família senhorial e, desse modo, com mais chances de serem reconhecidas como merecedoras da alforria. O argumento, porém, vale mais para a escravidão doméstica, na qual predominavam as mulheres, em especial as crioulas. O estudo de Nishida aponta que, entre os africanos, a proporção de mulheres (53%) e homens (47%) era mais equilibrada do que entre crioulos e mestiços – aqui mulheres adultas despontam como 60% de quem recebeu qualquer tipo de alforria, e chegam a 70% quando somadas a crianças de ambos os sexos, geralmente alforriadas pelos bons serviços das mães e amiúde junto com estas. Isso para todo o século XIX. Se concentro o foco sobre os anos em que mais alforrias por substituição ocorreram (1821-1835), as africanas abocanharam 56,6% no conjunto das alforrias , mas elas eram também maioria entre as mulheres escravizadas. Ainda com Nishida, quanto às liberdades pagas (aí incluídas as substituições), 52,8% das mulheres africanas obtiveram sua liberdade por esse meio, contra 47,6% dos homens também africanos. Este último dado indica que elas foram mais eficientes do que eles em amealhar meios para se libertarem.58
Já meus dados sobre substituições, especificamente, apontam que, entre a gente vinda da África, a proporção de mulheres sobe para 67%, se distanciando consideráveis 14,2% da proporção encontrada por Nishida para alforrias pagas. Ou seja, quando tiveram de pagar pela liberdade, elas lançaram mão do esquema da substituição com mais frequência do que os homens. O desempenho no ganho de rua e não o trabalho doméstico foi o que mais contou para esse resultado. As africanas eram exímias negociantes, hábeis para ganhar, fazer render e poupar dinheiro. Esse descortino comercial não recuava quando a mercadoria a ser adquirida e passada adiante era um ser humano. Eram elas, mais do que os homens, que se dirigiam aos armazéns de negros novos para comprar substitutas, e ali talvez tivessem mais crédito que eles.
Quanto aos nascidos no Brasil, impressiona o sucesso disparado delas sobre os homens alforriados por permuta: 70% eram mulheres. No caso das pessoas nascidas no Brasil, é possível que houvesse uma combinação entre trabalho de rua, trabalho doméstico e maior proximidade com a família senhorial, sendo muitas delas “crias da casa”, ou seja, nascidas sob o teto senhorial. Some-se a possibilidade de que parte do dinheiro investido na compra da substituta resultasse de doações de padrinhos e familiares libertos ou livres.
Quanto aos substitutos, a distribuição entre homens e mulheres corresponde basicamente àquela dos substituídos. Normal esse resultado, pois, em geral, homem se trocava no cativeiro por homem e mulher por mulher. Os números são os seguintes: 115 homens substituídos por outros homens, apenas dezoito por mulheres; e 275 mulheres substituídas por outras, somente 25 por homens. Significa que os senhores buscavam receber como pagamento pela alforria escravos que, de certeza, dessem continuidade ao trabalho – além de outras satisfações – antes extraído de quem se libertava.
Passemos a outra variável das substituições: a origem dos implicados. Em primeiro lugar, o menor número dos nascidos no Brasil, apenas 22% dos substituídos e não mais que 2% dos substitutos (subtraídos os não identificados de um e outro grupo). Para dimensionar a diferença, os escravos nascidos no Brasil correspondiam a 37% da população escravizada em Salvador em meados da década de 1830. Claro, muitos se libertavam por outros meios, fosse a liberdade condicional ou a gratuita e imediata. Os brasileiros escravizados pouco usaram outros escravos para pagar suas alforrias, e é possível que isso significasse menor participação no ganho de rua –– onde a presença africana era esmagadora – e, portanto, menor acesso ao dinheiro que comprava cativos importados. Cabe enfatizar o último ponto, pois os crioulos e mestiços se trocavam por africanos. Muitos substitutos nascidos no Brasil eram filhos de mães africanas trocados junto com elas. Em nenhum caso uma criança acompanhou seu pai nesse tipo de transação.
A grande maioria dos africanos envolvidos vinha da África Ocidental, representando 93,6% dos alforriados e 90,2% de seus substitutos, considerando apenas aqueles cujas nações foram declaradas (ver Gráfico 2 ). Temos então 270 libertos da África Ocidental contra apenas 21 de outras Áfricas, e quanto a seus substitutos, 198 da primeira e apenas 36 das demais. Os centro-ocidentais, em particular angolas, apesar de serem cerca de 15% a 30% – a depender do período – da população escravizada de Salvador, estavam pouco representados: 7,2% entre os substituídos e 15,4% entre os substitutos. Quanto ao gênero, se radicaliza a desigualdade encontrada no padrão geral dos libertos – as mulheres predominaram amplamente entre os centro-ocidentais, 17 contra 4; mas se estreita entre substitutos – 21 mulheres para 15 homens.

A participação dos africanos ocidentais é esmagadora, tanto entre os substituídos como os substitutos, e os nagôs se destacam entre eles. Volto a explicar que nagô era o termo usado na Bahia para definir os falantes de iorubá. Nesse período uma identidade iorubá alargada inexistia na África, mas na Bahia existia a nagô. Entre os afro-ocidentais, os nagôs eram 86 (32%) dos libertos e 119 (60%) dos substitutos, perfazendo quase 44% dos africanos ocidentais presentes nos dois lados da manumissão. O peso dos nagôs, sobretudo entre os substitutos, é um exato reflexo da concentração cada vez maior do tráfico em cima dessa nação no período aqui tratado.
Jejes, minas, haussás e tapas (termo usado pelos iorubás para os nupes), nessa ordem, seguiam os nagôs em número de alforriados e substitutos, somando 46% dos africanos ocidentais envolvidos no rolo da troca. Os jejes não falavam a mesma língua como os nagôs, mas com paciência conseguiam se entender por terem línguas aparentadas – fon, mahi, ewe, aja, aïzo, gen etc. – hoje reunidas no tronco gbe . Já o termo mina podia incluir gente de qualquer grupo embarcado na Costa da Mina, de fato todos os afro-ocidentais da Tabela 6 , exceto os poucos calabares (do Velho e Novo Calabar, no golfo de Biafra) e santomés (da Ilha de São Tomé). Mas mina podia também indicar, strictu sensu , origem em Mina Grande e Mina Pequena – ou Popo Grande e Popo Pequeno –, comunidades formadas por descendentes de migrantes da Costa do Ouro, na atual Gana. Os demais grupos da África Ocidental – haussá, borno, benim, gurma etc. – mantiveram na Bahia, grosso modo, etnônimos pelos quais já eram identificados e se identificavam na própria África.

Se na Bahia os africanos ocidentais passariam com o tempo a se identificar por etnônimos mais específicos, fora da Bahia o guarda-chuva mina continuaria a recobri-los. Em toda parte em que estudos sobre alforria foram feitos, os “minas” se destacaram diante dos alforriados de outras nações. O mesmo teria acontecido na Bahia.59
Parente escraviza parente?
Em 33% das alforrias, libertos e substitutos pertenciam à mesma nação. Ou seja, nagô se trocou por nagô, jeje por jeje, haussá por haussá, mina por mina, e assim por diante. Entre os nagôs, essa proporção alcançou 56%, e no caso das mulheres o índice sobe para 61%. Os interessados em comprar cativos, para qualquer finalidade, estavam limitados pelo que o mercado oferecia, e nessa época eram sobretudo mulheres e homens nagôs que estavam disponíveis à venda. Ou seja, se uma nagô decidisse se alforriar por troca ela teria, quase inevitavelmente, que obter alguém de sua própria nação para substituí-la. Da mesma forma, os libertos de outras nações africanas, além dos brasileiros, entregaram como moeda de troca cativos nagôs na sua maioria. Dos 44 jejes para os quais conhecemos a origem de seus substitutos, apenas 27,3% se trocaram por outros jejes; dos 19 haussás, apenas um se trocou por outro haussá.
O perfil étnico do mercado negreiro terminou por subverter uma regra de ouro da escravidão africana. Do lado de lá do Atlântico era tabu escravizar a própria gente, exceto em situações excepcionais, como a punição de um crime, a ocorrência de uma crise alimentar extrema (venda para garantir a sobrevivência da comunidade e dos próprios vendidos) e a penhora (espécie de escravidão temporária por dívida). Como aponta John Peel, se era comum a escravização por guerra e sequestro entre subgrupos iorubás (oyó, egba, ijexá, ijebu etc.), sobretudo a partir da década de 1820, a escravização interna a cada subgrupo era em geral interditada. O estudo de Olatunji Ojo confirma e detalha essa perspectiva, mostrando ainda que os escravizáveis em território iorubá variavam segundo as alianças feitas sob a égide de Oyó.60
Uma vez na Bahia, a escravização de membros da mesma nação talvez se desse apenas entre aqueles que não pertencessem à comunidade étnica específica de onde se originavam. Nesse sentido, o nagô de Oyó, por exemplo, quiçá não escravizasse, mesmo no Brasil, o nagô de Oyó; e o haussá de Kano também não escravizaria o haussá de Kano. Entretanto, se na África grupos rivais em conflito no interior dessas pequenas pátrias puderam capturar seus conterrâneos – conflitos entre diferentes facções no interior do reino de Oyó, ou muçulmanos mutuamente hostis em Kano, por exemplo – e vendê-los a traficantes, não seria de estranhar que os pudessem escravizar na Bahia. Nada mais eficaz do que a guerra para promover a ruptura de valores culturais e solidariedades sociais – e assim a subversão de costumes, no caso o tabu de escravizar no interior do grupo, vinha de antes da travessia do Atlântico. O escravo era por definição o desenraizado, o expatriado, o estrangeiro – e a ele seria legítimo escravizar.61 E bastava o sujeito se tornar inimigo por disputa comercial, judicial, política, religiosa, familiar para ser redefinido como “o outro” escravizável. O jovem Samuel Crowther foi capturado e vendido por muçulmanos de Oyó, gente de seu próprio grupo étnico, embora de outra religião; e o muçulmano Rufino José Maria, também de Oyó, foi capturado e vendido por muçulmanos haussás, gente da mesma religião embora de outro grupo étnico.62
Ainda assim, há de se perguntar: as nações africanas – nagôs, jejes, haussás, angolas – não refizeram no Brasil, sob o cativeiro, identidades étnicas mais amplas que implicariam em laços de solidariedade inibidores, em tese, da escravização endógena? Não chegaram os membros da mesma nação a se tratarem mutuamente segundo a nomenclatura local do parentesco – pois chamavam-se “parentes” uns aos outros? Não pertenciam às mesmas irmandades católicas e frequentavam os mesmos grupos islâmicos e terreiros de candomblé? Não tendiam a casar, morar, fugir e se rebelar entre parentes de nação? E, no entanto, se escravizavam uns aos outros. Parente a escravizar parente.
Uma explicação seria que o africano escravizado havia anos na Bahia, que já absorvera muito da cultura e visão senhorial do mundo, o africano ladino , enfim, via o recém-chegado – ou boçal – como o outro, o estranho, o desenraizado, o escravizável. Nesse sentido, ladino seria uma identidade embutida no estofo identitário das nações africanas na Bahia. Não seria, então, desde a primeira hora do desembarque que o cativo egresso de Oyó, Egba, Ijexá ou Ijebu virava um membro da nação nagô na Bahia. Levava tempo. O ladino não se via como parente do boçal, escravizá-lo não lhe roubava o sono. Contudo, mesmo depois de ladinizado, o escravo não se beneficiava com a liberdade por ser da mesma nação do senhor, seria pelo contrário absorvido num patamar subalterno daquele grupo étnico. Uma vez escravizado, sempre escravo, pelo menos até poder se alforriar pelos diversos meios disponíveis. Ou seja, as nações africanas tinham suas hierarquias internas, tinham ricos e pobres, escravos e senhores.63
Era evidente a vantagem prática de o africano, escravizado ou liberto, possuir um cativo de sua própria nação: a afinidade cultural, sobretudo a mesma língua – porta de entrada ao universo simbólico –, permitia comunicação mais direta e eficaz.64 O benefício começava no momento da compra. O africano estava mais apto a “ler” o corpo do negro novo, em busca de sinais de origem específica, lugar na hierarquia social, inserção religiosa. Porque falavam a mesma língua, podiam conversar sobre temas de interesse para o comprador, como saúde, idade, experiência de trabalho, circunstâncias da captura na África. Em suma, o comprador ladino tinha como fazer o preto boçal falar. Este, por seu turno, podia perguntar sobre sua nova condição num mundo desconhecido, para que finalidade fora trazido de tão longe, se seria canibalizado pelo homem branco (medo perene dos traficados), e algum grau de confiança e calma decorrer da conversa.65 Enfim, as primeiras lições sobre o cativeiro lhe seriam transmitidas já no ato da compra por seu futuro parente étnico.
A origem mesma dos africanos pode em parte esclarecer a escravização endógena e mesmo o relativo triunfo da alforria por substituição na Bahia. Os afro-ocidentais vinham de sociedades urbanizadas, mercantis, traficantes e escravistas, algumas delas – talvez as mais comprometidas com a escravidão – onde o Islã havia penetrado profunda e largamente, como entre os haussás, e continuava a expandir-se. O major inglês Dixon Denham, que esteve em 1824 em Kano, empório comercial haussá, calculou em 30 a 40 mil sua população, e metade dela escravizada. O major visitou um mercado de escravos no qual “o comprador examina-os com a maior atenção e, de certa forma, da mesma maneira que um marinheiro voluntário é examinado pelo médico: olha a língua, os dentes, olhos e membros, e busca detectar rupturas por tosse forçada”. A cena por Denham testemunhada em Kano se repetia, e não era com marinheiros, nos mercados negreiros das colônias inglesas do Caribe ou qualquer ponto das Américas onde houvesse escravidão. Denham também observou ser comum a alforria por ocasião da morte do senhor ou de festas religiosas, momentos propícios para o exercício da piedade muçulmana, como aliás acontecia sob a escravidão cristã, sobretudo católica.66
Três anos depois, o capitão Clapperton, que acompanhara Denham naquela expedição, retornou à mesma cidade de Kano, e aumentou a aposta: para cada habitante livre haveria trinta escravizados. E acrescentou ser comum que escravos fossem donos de escravos. Clapperton observou que, entre os haussás, uma nação com numerosos quadros na Bahia, “não é incomum para os escravos […] possuírem escravos e propriedade, os quais, se não têm filhos, irão com sua morte para seus senhores”. Se tinham filhos os bens iam para eles. Clapperton anotou que uma mulher, poderosa nos círculos políticos haussás, tinha mais de quarenta cativos, “embora fosse ela própria uma escrava”. Também confirmou ser comum a alforria. E os irmãos Richard e John Lander, auxiliares de Clapperton, presenciaram escravos muçulmanos do rei de Badagri, na Costa da Mina, a vender cativos, provavelmente a negociantes baianos.67
A escravidão africana possibilitava a ascensão social dos escravizados muito mais do que a brasileira. Podiam chegar a altos postos do poder político e militar, e por esta via acumular riqueza, contada também em cativos. Segundo os irmãos Landers, um escravo haussá do recém-falecido chefe de Jenna teria sido entronado pelo alafin de Oyó para prevenir ambições políticas da elite local. Os ilaris, escravos do palácio real de Oyó, possuíam cativos, assim como os escravos-soldados iorubás ( omo ogun ), que se apossavam de parte dos prisioneiros feitos nos campos de batalha e nas aldeias inimigas, e os vendiam a traficantes e outros clientes. Em toda a região, segundo Clapperton, havia o escravo de ganho, o escravo que possuía roça e vendia seu excedente, e existia a possibilidade, como na Bahia, de comprar tanto a alforria como a outro escravo. O historiador E. Adeniyi Oroge escreveu que, “por razões econômicas e sociais, todo iorubá normalmente aspirava adquirir escravos” – inclusive o iorubá escravizado.68 Sobre o reino de Lagos, a historiadora Kristin Mann observou que “um dos primeiros investimentos dos escravos que em Lagos acumulavam algum capital era a compra de um escravo para uso próprio”. A historiadora também sugere ter havido aqueles que, além de terem mais status por servirem aos poderosos, eram mais ricos do que a média dos habitantes livres.69 Aquelas eram também sociedades acostumadas com o resgate de prisioneiros de guerra, de sequestrados e penhorados, recuperados muitas vezes em troca de cativos. Tudo isso se repetia em diversas regiões do litoral e do interior da Costa da Mina, de onde partiu a imensa maioria dos africanos escravizados na Bahia oitocentista.70
Visto sob diversos ângulos, os africanos não conheceram na Bahia a novidade de que escravos podiam possuir escravos. Pelo contrário, talvez possam ter sido eles a introduzir a novidade, ou pelo menos a torná-la mais difundida.
O substituto: boçal, ladinizado, ladino…
Lê-se amiúde nas cartas de alforria o mui vago “trocado ou trocada por um escravo ou uma escrava”, e nesse caso ignoramos se o substituto ou substituta era ladina ou boçal.71 Em geral era boçal ou recém-ladinizado. Quando se registra “em troca de um escravo ou uma escrava novo ou nova”, temos explicitada a condição de boçal. E quando falta ao substituto um nome cristão pode-se presumir que ainda não tivesse sido batizado, quase sempre um sinal de negro novo. E digo quase sempre porque às vezes o próprio registro de batismo revela que levara anos para o cativo ser batizado, fosse nascido na África ou no Brasil. Não era regra, mas acontecia muitas vezes.
Algumas alforrias dispõem com todas as letras qual a situação. Em meados de 1828, em plena estação de compra frenética de africanos, João Antônio da Fonseca, senhor de Francisca, jeje, declarou que a alforriava em troca de “outra escrava nova ainda pagã”.72 Nenhum nome. Não tiveram seus nomes registrados 53% dos substitutos, apenas é dito que fulana dera “outra escrava”, “escrava boçal”, “preta nova” e mais expressões que sugerem arribada recente na Bahia. O anonimato do escravo substituto foi explicitado quando, em dezembro de 1830, Maria Antônia, de nação jeje-mahi, trocou-se por “uma [escrava] nova sem nome ”. Decerto a africana tinha um nome, mas não cristão. A perda do nome africano era aspecto fundamental de iniciação no regime de cativeiro. A senhora, além disso, escreveu que só aceitava a troca de uma ladina por uma boçal “por querer beneficiar a dita minha escrava Maria Antônia e ser meu gosto protegê-la em razão do amor que lhe tenho e oito anos que me serviu”.73 Tanto amor declarado e bons serviços recebidos não fizeram a senhora alforriar gratuitamente sua escrava...
Quase 50% dos substitutos foram apresentados com os devidos nomes cristãos. Já teriam, então, se iniciado nos costumes locais, em particular sua religião, embora nuns poucos casos o senhor declarasse apenas o nome que pensava dar no momento do batismo. Em 1819, por exemplo, um senhor recebeu pela alforria de seu escravo um valor em dinheiro e “um moleque pequeno de nação Cabinda, por nome Marcos, ainda por batizar”.74 A senhora de uma escrava jeje escreveu que a alforriara “por me haver oferecido uma escrava nova de Nação Benguela por batizar, tratada com o nome de Catharina ou Maria”. Essa imprecisão nominal acentuava a brutalidade emocional decorrente da troca do nome africano pelo cristão.75
Africanas e africanos deviam, em tese, receber um mínimo de instrução religiosa para se habilitar ao sacramento do batismo e ganhar – ou ter consagrado – seus nomes cristãos. Entre 1824 e 1836, quando era pároco da Conceição da Praia, o zeloso Manoel Dendê Bus recusava batizar africanos que não dessem mostras de catequizados. Sobre uma dessas recusas, ele escreveu, em novembro de 1830, que a nova nagô de um africano forro fora levada a batizar em outra freguesia, “tendo vindo aqui e não lha querendo eu batizar por nada saber de reza”.76 Talvez exigisse dela recitar passagens de um catecismo para a doutrinação de pretos novos concebido no início do século XVIII e ainda vigente no XIX. Tratava-se da “Breve instrução dos mysterios da fé, acommodada ao modo de fallar dos escravos do Brasil”, que começava com a doutrina da unicidade de Deus combinada com a da Santíssima Trindade. O breve manual de colonização mental também apresentava o demônio ao catecúmeno, prometia o Paraíso para o bom fiel e condenava o mau ao Inferno. Para facilitar a conversão, a Igreja previa que a instrução fosse feita “ou por quem lhes falem no seu idioma, ou na nossa língua quando eles já a possam entender”.77 A Igreja acenava com a possibilidade de que o aprendizado da religião antecedesse o da língua senhorial, ladinização doutrinária antes da linguística. Também previa o contrário: que o pagão já entendesse a língua do branco.
Não creio que, na sua maioria, os batizandos estivessem minimamente preparados para encarar o sacramento, porque muitos senhores tinham pressa em ter um documento que confirmasse seu direito de propriedade. De todo modo, alguma dose de ladinização o recém- converso carregava para a pia batismal, sinalizando que, talvez, a maior parte dos escravos que entregassem a seus senhores africanos com nomes cristãos os teriam instruído, e não apenas nos mistérios da religião dos brancos, mas em outros aspectos da vida sob o cativeiro, em especial o aprendizado das tarefas a serem cumpridas obedientemente. Claro, esse aprendizado poderia se verificar antes e após o batismo, durante mais ou menos tempo.
Indício disso está representado na Tabela 6 , que conta o tempo decorrido entre a redação da carta de alforria pelo senhor e seu registro em tabelião pelo liberto. Presume-se que, muita vez, o intervalo entre um e outro ato fosse o necessário para que se cumprissem as condições para efetivar a alforria, e nesse caso, que fosse entregue um escravo “a contento”, como se lê em diversos desses documentos. O senhor devia, inclusive, reter o papel de liberdade durante a transição. Contudo, em mais da metade das cartas para as quais temos informação, o período decorrido entre concessão e registro foi curto, vinte ou menos dias. Consideradas aquelas registradas em até 100 dias, chegamos a 70,2%. Mas não se deve tomar data de redação da carta como fatalmente próxima da data de aquisição do substituto pelo forro, pois amiúde teria sido adquirido havia mais tempo, com frequência anos antes.
Por exemplo, a alta proporção (29%) de alforrias por substituição nos vinte anos anteriores à proibição definitiva do tráfico (1850), sugere que numerosos forros não negociaram a troca logo após a aquisição dos substitutos. O mais provável é que os tivessem comprado na época de preços mais baixos para se fazerem substituir num período de preços altos, após a proibição de 1831. Contudo, independentemente do período em que tais acordos se verificaram, a maioria dos senhores exigia que os substitutos fossem antes treinados para seu novo papel – o que incluía conhecer os rudimentos da língua local (o bastante para receber ordens), decorar algum catecismo (o suficiente para ser batizado), obedecer ao senhor, entender o serviço a ser feito e seguir uma rotina de trabalho. Em 22 de março de 1824, o escravo haussá Innocencio batizou sua escrava Maria, de nação cabinda, na matriz da Conceição da Praia, o que significa que a tivesse comprado alguns meses antes, entre o final de 1823 e o início do ano seguinte, digamos. Mas foi somente no dia 30 de junho de 1824 que o senhor de Innocencio escreveu sua carta de alforria, recebendo por ele a “negrinha” Maria e mais trinta mil-réis. A carta, no entanto, só seria registrada quatro meses depois, talvez o tempo que restava para que o liberto preparasse a menina para o cativeiro no Brasil. Ou seja, ao todo foram gastos pelo menos nove meses na instrução de Maria, possivelmente entre janeiro e setembro de 1824. Entrementes, ela trabalhou para Innocencio, seu senhor escravizado.78
A história de outra alforria por substituição exemplifica o uso do trabalho do escravo substituto pelo escravo-senhor durante um longo período. Em 1800, o oficial de pedreiro Ventura, de nação jeje, batizou Torcato, também jeje, quando este tinha cerca de 14 anos, treinou-o como pedreiro e depois de nove anos o fez substituí-lo no cativeiro. É óbvio que Ventura não tivera a intenção de se libertar por troca imediata, ou era seu dono que se negava a fazê-lo. Sua chance surgiu quando, em 1809, morreu-lhe o senhor, João Fernandes Ramos, branco, casado, e fez-se o inventário de seus bens. Avaliado em 300 mil-réis, Ventura apresentou como substituto Torcato, que foi avaliado em 200 mil-réis – talvez por não ser tão bom pedreiro como o senhor, ou ser adrede subavaliado–, e desembolsou mais 100 mil-réis, para só então ver-se liberto.79
Portanto, nem todos os escravos deram como substitutos cativos que tivessem acabado de comprar. Não eram senhores contingentes. Amiúde mantiveram seus escravos durante algum ou muito tempo a trabalhar, a render ganhos, antes de usá-los em suas demandas de liberdade. Também encorajado pela morte do senhor, o africano jeje Francisco Xavier entregou aos herdeiros um outro cativo, “de dezoito a vinte anos, do mesmo nome, e da mesma Nação, já costumado ao serviço de carregador e tão bem de casa”.80 Claro que o substituto trabalhara para o escravo-senhor antes de ser transferido, devidamente ladinizado, para seus novos donos. Outro exemplo: dona Leonor Berenguer Cezar, de distinta família baiana, escreveu ter aceitado, em troca de sua escrava haussá Felicidade, “outra escrava de nome Carlota, de nação nagô, já ladina, que eu recebi no ato de escrever este [documento]”, em 1830.81
Como o Torcato antes apresentado, o substituto podia ser ladino de longa data. Em 1831, Ilária estava muito doente, ela tinha uma filha de peito e servia num engenho do Recôncavo baiano, onde também serviam seu pai e sua mãe, todos escravizados. O casal possuía um escravo mina, Antônio, que ocupava o destacado posto de mestre de açúcar e era hábil fabricante de aguardente, atividades que previam comprido aprendizado e muitos anos de experiência. Antônio, ladino a muitos títulos, foi dado como substituto de Ilária e sua filha, o que significou a libertação de dois ventres daquela família escravizada.82
Enfim, em demandas de liberdade, o escravo com frequência valia-se de um cativo que já senhoreava havia algum ou muito tempo, e o fazia sob o estímulo de um conjunto de fatores: oportunidade, necessidade, desejos e sentimentos, aliás, não só seus, mas também do senhor. Este podia rejeitar a proposta de troca, mesmo se tivesse permitido que seu escravo escravizasse a outro. Ou seja, consentia seu escravo a comprar um escravo, especificamente para usá-lo como substituto, ou fazê-lo sem qualquer compromisso de alforria.83 A hora de demandar a liberdade nem sempre era negociada com antecedência pelas partes interessadas. Mas quase sempre, senão sempre, fazia parte do acordo preparar o substituto para as obrigações do cativeiro. Não era um procedimento fácil. Envolvia “quebrar” o africano novo, para usar uma expressão vigente no escravismo estadunidense. Envolvia tratar o recém-chegado na corda curta, inclusive castigando-o, sobretudo os refratários ao aprendizado. Mais uma vantagem para o senhor que alforriava por esse método: se isentar do trabalho sujo e amiúde ingrato de transformar o africano em escravo.
O treinamento de um africano para servir de substituto se insinua em algumas alforrias e se explicita em outras, a indicar que senhores que alforriavam exigiam, na sua maioria, receber escravos que desempenhassem as mesmas tarefas antes executadas pelos agora libertos. O alforriado Ventura, há pouco apresentado, era pedreiro, assim como seu escravo Torcato. Em 1828, Gregório, carregador de cadeira, deu a seu senhor outro carregador de cadeira. Em 1832, Antônio, mais um carregador de cadeira, foi substituído no cativeiro por “um escravo seu também carregador de cadeira de Nação nagô”, escreveu a senhora de Antônio, que ainda deu 150 mil-réis para chegar ao preço da alforria. Alguns, entre vários exemplos.84
Não satisfeitos com um acordo meramente oral, uns tantos senhores, ao lavrar cartas de alforria, deixavam bem clara a obrigação de os libertos treinar – “quebrar” – seus substitutos, para somente depois gozar da liberdade contratada. Em 1811, Antônio da Silva Lisboa alforriou a lavadeira Maria Benedicta, nação mina, sob a condição de que “continuará no mesmo exercício de lavar a roupa da minha casa, como fazia até agora, enquanto não ensinar e fizer hábil uma escrava que lhe hei de entregar para aprender e saber bem lavar”. Lisboa e Benedicta haviam negociado que esta pagaria por sua liberdade 150 mil-réis, “para com eles comprar a escrava que me deve ficar em lugar dela, a que ela se obriga ensinar”, insistiu o senhor.85 Noutro exemplo, Anna, nação angola, comprada por Rosa da Trindade Silva em 1825, foi alforriada cinco anos depois “pelo bem que me tem servido e por me dar a quantia de trezentos mil-réis em moeda de cobre”, pagos na hora de fazer a carta. Havia porém “a condição de estar em minha companhia e fazer-me todo o serviço que lhe for possível pelo tempo de seis meses, enquanto não ficar ladina e pronta uma escrava nova que hei de comprar com a dita quantia para o meu serviço por ser este o nosso trato, e condição com que aceitei e ajustamos esta sua carta de alforria, que a faço de muita minha livre vontade, e sem constrangimento”.86 Encontrei uma dezena de cartas com cláusulas semelhantes.
Apolinário, nação mina, negociou sua alforria com seu senhor, Francisco Lourenço da Costa Lima, que em 1812 contratou com um terceiro homem receber do escravo a quantia de 200 mil-réis para comprar um substituto. Apolinário era um escravo valioso, que trabalhava na lide do mar como mergulhador e cordoeiro, mas para
o dito liberto poder ficar gozando desta liberdade inteiramente será obrigado a ensinar [ao escravo substituto] a sua ocupação de mergulhador e cordoeiro no espaço de dois anos, sem por isto receber estipêndio algum, bem como pelos serviços que ele mesmo liberto exercitar durante este tempo, e só percebendo a comida, visto que este foi o ajuste e condição principal com que se forra por valer muito mais de duzentos mil reis.87
Que história! Nenhuma das três últimas alforrias foi rigorosamente por substituição, mas era como se fossem, vez que os senhores contrataram com as pessoas que escravizavam usar o dinheiro delas recebido para comprar outras para substituí-las.88 As próprias forras e forros tinham a transação como troca.
Passo agora a alforrias com a condição expressa de o substituído instruir o substituto nas tarefas que cumpria. A primeira, de 1816, diz respeito à crioula Victoria, uma experiente comerciante. Segundo sua senhora, a cativa “se pertende libertar com a condição de me deixar outra escrava ou escravo preenchendo o exercício em que ela é ocupada de vender fazendas secas pelo Recôncavo, ensinando-lhe o método de vender, caminhos, fazer contas, e tudo quanto pode concorrer para suprir a falta da dita…”.89 Ensinar tantos macetes envolvidos nessa ocupação não seria tarefa para poucos dias.
Já Gertrudes, nagô, batizada pelo comerciante Antônio José de Souza Lobo em 1824, aos 26 anos de idade presumível, foi treinada como lavadeira e de serviços gerais. Vinte e cinco anos depois, em 1849, quando ela contava 51 anos de idade, o traficante decidiu detalhar o que esperava de outra escrava, igualmente chamada Gertrudes, que havia concordado receber como substituta. Ele a aceitaria somente após estar ela habilitada a desempenhar todas as tarefas que a liberta costumava fazer. Em suas palavras: “com a condição porém de me dar [a escrava] pronta de lavar, e mais serviços que me prestava, de entregas de leite, compras, etc.”. Treinar a substituta para ser uma escrava “pronta” pode ter durado até dois anos e meio, já que esta carta de alforria fora escrita em 8 de novembro de 1849, mas só registrada em 5 de maio de 1852. E acrescente-se um detalhe da transação: a Gertrudes que se libertava, ademais de entregar uma nova Gertrudes, recheou a algibeira do senhor com 150 mil-réis.90
Não por acaso as escravas envolvidas nesse acordo de manumissão tinham o mesmo nome e eram da mesma nação africana, nagô. É um sinal de que Antônio José Lobo, que concedia a alforria, exigiu nada menos que uma réplica exata da pessoa que deixava seus serviços, um exemplo impressionante de reificação da pessoa escravizada por um membro da classe senhorial. Aliás, Antônio Lobo, que também era traficante, tinha por profissão coisificar corpos africanos.
Encontrei 36 alforrias em que se repetiam os nomes dos envolvidos, e muitos substitutos ainda pagãos receberiam nomes iguais aos dos libertos uma vez concluída a troca e aqueles batizados e integrados às senzalas dos novos senhores. Mas nenhum gesto do tipo foi tão original quanto o de um liberto chamado Aniceto, que deu por si uma escrava a quem ele, ou quiçá seu senhor, nomeou Aniceta.91
Um senhor famoso abraçou o costume de transferir o nome de sua liberta para o de uma africana que lhe fora dada em troca. Em 1831, Antônio Pereira Rebouças – homem livre de cor, advogado, futuro conselheiro do Império, pai do abolicionista André Rebouças – e seu sogro, André Pinto da Silveira – traficante de escravos e denunciante da Revolta dos Malês –, possuíam em sociedade a cativa Felicidade, que foi libertada por um documento breve e seco, onde se lê:
Libertamos a nossa Escrava de nome Felicidade, nação mina, por nos ter dado em seu lugar uma outra escrava ainda meia boçal, que apesar de ainda não se achar, digo, apesar de não se achar por ora batizada, tão bem se chama Felicidade, de Nação Nagô. Poderá a dita liberta gozar de sua liberdade como se ela nunca fosse [dela] privada.92
E assinaram. Nenhuma das fórmulas paternalistas de praxe, como estima e reconhecimento por bons serviços, mas também nenhuma condição restritiva à liberdade da Felicidade – atentem para o nome – que libertavam, nem menção aos atributos da Felicidade que agora escravizavam, exceto sua nação e meia boçalidade. A africana estava em vias de tornar-se ladina, já tinha nome cristão mas faltava ser batizada. Reforça o que já se disse aqui: nem sempre a substituta registrada com nome cristão já teria passado pela pia batismal.
Presume-se que, em geral, cabia tão somente ao senhor a decisão de dar ao substituto o nome do ladino que se libertava. Mas isso podia resultar de acordo entre senhor e liberto. Por exemplo, na carta por ele escrita, em 1831, Francisco Gomes Mascarenhas esclareceu ter combinado com o liberto Jonas, nagô, transferir seu nome ao substituto: “tendo para o substituir recebido em troca e por pagamento dele outro escravo da mesma Nação e [a]o qual pus o seu mesmo nome, convenção esta entre nós ajustada e com a qual me dou por muito satisfeito”.93
O senhor Mascarenhas não esqueceu de registrar no mesmo documento que, além de receber um negro novo, a liberdade de Jonas fora outorgada “em consequência dos bons serviços que me tem prestado”. Bons serviços seriam então a premissa para a troca, implicava em ladinidade e muitos anos de cativeiro. Quem se alforriava não era, via de regra, negro jovem. Mas sabe-se pouco sobre a idade dos forros. E sobre os substitutos sabe-se que eram mais jovens que os substituídos, sobretudo os recém-chegados da África. Consulte-se os registros de batismo da Conceição da Praia, onde o já citado pároco Dendê Bus estimou que 60% dos africanos batizados tinham de 17 a 30 anos. E numa lista de 238 africanos apresados de contrabando, em 1836, 65% contavam entre 16 e 20 anos.94 Essa ocorrência é com frequência sugerida nas cartas de alforria, quando se referem ao substituto como “moleque”, “molecão”, “moleca”, “ainda moço”, “ainda nova” e assim por diante. Trocava-se um cativo na faixa dos trinta a cinquenta anos, até mais, por outro que amiúde nem chegara aos 20.95
Em busca de ainda maiores vantagens, 17% dos senhores não consideraram suficiente que seus escravos, fossem crioulos ou ladinos, jovens ou adultos, homens ou mulheres, dessem em troca apenas um escravo. Exigiram mais de um. Tinham seus ladinos por valiosos demais para serem trocados em paridade por boçais ainda inábeis nas tarefas executadas por quem substituiriam. Alguns (21 mais exatamente) reclamaram dois, em um caso, três, ou, mais frequentemente, a combinação de um escravo e algum dinheiro. Contei 63 alforrias com complementação pecuniária, 15% das substituições. Já dei vários exemplos aqui. Eis a lógica: quem comprava a liberdade era avaliado em moeda corrente, bem como seu substituto, e a diferença paga em dinheiro.
Até as religiosas esqueciam de seu dever de piedade nessa hora. Germano, cativo haussá do Convento das Ursulinas, deu por troca Tito e mais 20 mil-reis, em 1817. O cálculo da transação foi feito da seguinte maneira: “por preço e quantia de cento e setenta mil reis que nos entregou no valor do escravo Tito, que dele recebemos, e mais vinte mil reis em moeda corrente”, nas palavras da boa madre superiora Maria José do Coração de Jesus.96 Tito era ladino, ao que parece. E seu senhor, Germano, figura ter sido um escravo bom de negócio, tanto quanto suas donas. Pois em 1813 o encontramos nas folhas de um livro de batismos como senhor de outro escravo, Antônio. Não sei se quatro anos depois, quando se trocara por Tito, ele ainda possuía Antônio ou já teria feito algum rolo com ele também.97
Havia escravos tão lucrativos que seus senhores não hesitaram em estabelecer preços exorbitantes. A alforria de Geraldo custou-lhe 518 mil-réis, pagos com outro escravo, Antônio, avaliado em 280 mil-réis, mais 238 mil-réis em dinheiro, operação detalhada em documento lavrado pelo filho da proprietária em 1830.98 Outra alforria particularmente onerosa foi a do nagô Antônio. Seu senhor, Antônio Grillo, recebeu em pagamento um nagô de 16 anos, Manoel, além de um pequeno saveiro e 300 mil-réis em dinheiro, que era o preço médio de um escravo em 1834, quando o ajuste teve lugar. Grillo, no entanto, fez questão de registrar que fora o próprio escravo a propor o negócio: “trato que muito de sua livre vontade me ofereceu, e entregou a bem de sua alforria”. Fazia ainda parte do trato que a liberdade de Antônio só seria efetivada após um ano, tempo necessário para que ensinasse a Manoel suas obrigações. Pelos bens que Antônio acumulara ainda jovem – teria cerca de 25 anos de idade –, ele fora lançado cedo ao cativeiro baiano e descobriu uma mina de ouro no mercado do ganho. Vivia de transportar pessoas e cargas do cais do porto para os navios fundeados ao largo. Tão lucrativo era o escravo que o senhor não o libertaria senão por uma oferta irrecusável, e sabendo disso Antônio lhe apresentou uma proposta de alforria à altura.99
Contas ainda mais complexas estão descritas na alforria lavrada em 1826 em benefício do cozinheiro mina Izidorio. A este – escreveu seu senhor – “o tenho forro pela quantia de setecentos e quarenta e um mil, quatrocentos e oitenta réis, que os recebi da forma seguinte: trezentos mil-réis em dinheiro de contado, duzentos mil-réis, valor de um escravo, aliás de um preto de Nome Antônio, de Nação Nagô, cozinheiro, duzentos e quarenta e um quatrocentos e oitenta réis, saldo de uma conta que me apresenta de Maria de Jesus com recibo que o dito liberto pagou por minha ordem”. Portanto, o liberto se trocou por um escravo ladino, além de altas quantias em dinheiro, uma das quais o valor de dívida pendente do senhor com uma credora. Foi a liberdade mais cara que encontrei. Decerto os dotes culinários de Izidorio eram deveras apreciados.100
Mais raro na alforria por substituição era o africano ser libertado sob a condição de seguir prestando serviços ao antigo senhor. Em 1828, Adolfo, nação borno e sapateiro, entregou a Manoel Dias, que era traficante, um “moleque novo nação nagô”. Sobre o escravo que libertava, Dias escreveu: “a quem mandei ensinar o oficio de sapateiro, em cuja aprendizagem gastou seis anos, por isso [o forro] debaixo da condição e obrigação de fazer e consertar todo calçado do meu uso”. Além do menino nagô e de trabalho não remunerado, o liberto “se faz digno [da alforria] pela sua ajustada conduta, fidelidade e amizade que sempre me consagrou no espaço de vinte anos pouco mais ou menos que me foi sujeito, e houve a mim por permutação que dele mandei fazer na Costa da África”.101 Ou seja, Manoel Dias fora o primeiro e único senhor de Adolfo, desde sua compra na África até sua alforria.
Lisa Castillo complementa essa história: sete anos depois – era o ano de 1835 – Adolfo José Dias, que adotara o nome de família do ex-senhor, se tornaria padrinho do já ladino e crescido “moleque novo” que o substituíra e receberia o nome cristão de… Adolfo. Ou seja, as relações entre senhor escravizado e seu ex-escravo não se esgotara na transação da alforria. Quiçá, além de afilhado, o substituto se havia tornado aprendiz de sapateiro do padrinho, liberando-o de sua obrigação de consertar os sapatos do traficante Manoel Dias. Pouco depois daquele batismo, o Adolfo forro fugiu de uma Bahia rescaldada pela derrota dos malês, sob clima de perseguição aos africanos, indo se estabelecer em Uidá, onde senhoreou outros cativos e deixou descendentes hoje identificáveis na sociedade local. Seus bons serviços ao senhor o levariam longe.102
Em muitos casos, mas não neste, o reconhecimento de bons serviços, lealdade, obediência compensavam a diferença de preço entre substituído e substituto. Mais do que dinheiro, bons serviços – a metade que cabia ao escravizado no sistema de dominação paternalista – foram mencionados em 79 alforrias por substituição.
Arremate
Alforrias por substituição, como qualquer alforria, às vezes viravam encrenca por safadeza de uma das partes, máxime a parte senhorial. Com efeito, achei duas alforrias por substituição que viraram caso de polícia. Em 1833, uma senhora recusou-se a libertar uma escrava que já lhe tinha entregado sua substituta. A desavença foi parar no colo do juiz de paz da freguesia. A ele a crioula Maria denunciou que Maria Severa não lhe passara carta de alforria, apesar de ela já ter cumprido sua parte no acordo, inclusive “ensinado os seus préstimos” à escrava dada em troca. Para castigá-la pela ousadia de tê-la denunciado, Severa acorrentou Maria em casa. Informado do ocorrido, o juiz adentrou o imóvel, soltou a liberta dos grilhões que a prendiam e lhe garantiu proteção policial. Representada por seu marido, a senhora fez queixa ao chefe de polícia, que pediu explicações ao juiz e ele esclareceu ter agido para suspender um ato ilegal de sevícia senhorial. O bafafá criado pela Maria escravizada parece ter dado certo. Uma carta de alforria foi lavrada, e nela descobrimos que a crioula havia dado por sua liberdade, além de uma escrava, dois filhos desta.103
A outra história do mesmo naipe: numa queixa ao chefe de polícia feita em 1870, a também crioula Maria d’Assumpção denunciou que “os senhores Barata & Cia. prometeram-lhe conceder liberdade se a Suplicante se fizesse substituir por outra escrava, o que a mesma […] efetivamente fez dando a seus Senhores a quantia de 600$ mil reis com cuja quantia seus mesmos Senhores compraram uma escrava de nome Joanna também crioula”. A carta de alforria não fora porém escrita, mandando seus senhores “unicamente que a Suplicante fosse viver” como liberta. Mas, vejam só, Barata & Cia agora a queriam vender.104 Desconheço o desfecho da disputa.
Muitas histórias como essas devem ter acontecido e estão enterradas nos arquivos ou se perderam no passado. Porém, em geral, o esquema da alforria por substituição funcionou. E na Bahia ela vicejou como em nenhuma outra sociedade escravista nas Américas. Embora favorecesse também os nascidos no Brasil, como essas duas Marias, foram os africanos quem mais lançaram mão de outros cativos como moeda de troca. Uma combinação de escravidão de ganho com tráfico transatlântico favorecia tais transações, esses os elementos “estruturais” da questão.
Contou ainda que os escravos compradores tivessem origem principalmente na Costa da Mina. Vinham de sociedades mercantis e urbanizadas, com economias políticas complexas, nas quais testemunharam ou vivenciaram a escravidão, a compra e venda de cativos, a posse de escravos por escravos e o resgate de um escravo por outro. Mas não precisamos acentuar demasiadamente a experiência africana, pois os que se fizeram substituir encontraram na Bahia uma sociedade deveras comprometida com a escravidão e o comércio negreiro, onde a pulsão por possuir escravos e utilizá-los de diversas formas era generalizada, onde o número de libertos africanos que possuíam cativos não era pequeno, e onde africanos libertos e escravizados podiam participar da engrenagem do tráfico. Onde, ao contrário de outras regiões nas Américas, não havia barreira legal que proibisse escravos de comprar e possuir escravos. Daí para o escravo entender que podia se substituir no cativeiro a distância era curta.
Para explicar a força da alforria por substituição na velha Bahia deve-se levar em conta não apenas o escravo que se alforriava, mas também seus senhores. O que levava um senhor a aceitar ou a induzir seu escravo a pagar pela liberdade com outro escravo, em lugar de dinheiro? Tivéssemos um perfil detalhado de quem eram esses senhores talvez pudéssemos responder melhor a questão. Sabemos, porém, que 49,7% eram homens, 41,2% mulheres, 5,9% casais e 2,7% instituições como conventos e hospitais. Seria bom também saber a nacionalidade, características raciais, se africanos, crioulos, pardos, brancos, se libertos ou livres. Como se tratava de cenário urbano, na sua maioria seriam pequenos e médios escravistas, isto sim. Talvez esteja aí uma parte da resposta: senhores e senhoras com pouco traquejo com o negócio negreiro, que se animariam com a possibilidade de trocar escravos maduros por outros mais jovens, bem escolhidos e treinados pelos ladinos que se alforriavam.
Independentemente do perfil dos senhores, qualquer tipo de alforria implicava em negociação de alguma espécie entre eles e seus escravizados, e portanto de algum comprometimento destes com a ordem senhorial. A alforria por substituição arrastava essa trama a um patamar superior, pois ensejava transformar o escravizado em escravizador – por mais transitória que fosse essa condição – como expediente para alcançar a liberdade. Embora método de alforria incomum e proporcionalmente exíguo, na Bahia ele foi usado numa extensão invulgar se comparado com outras regiões escravistas no Brasil, e mesmo nas Américas em seu conjunto. Ao contrário de uma esquisitice da escravidão brasileira, porém, a alforria por substituição seria mais um elemento de sua supremacia entre nós.
Agradecimentos
* A principal fonte para as alforrias aqui analisadas são os Livros de Notas do Tabelião (doravante LNT), guardados no Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Agradeço a Urano Andrade pela coleta de muitas delas. Lisa Castillo também disponibilizou notas de pesquisa, além de comentar o texto. Sou grato ainda pelos comentários de Carlos da Silva Jr., Daniele Silva Souza, Kátia Almeida, Luís Nicolau Parés, Roquinaldo Ferreira e os membros do grupo de pesquisa “Escravidão e invenção da liberdade”, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia. Daniele e principalmente Marina Barbosa me ajudaram a transformar o banco de dados em estatísticas. Este é mais um resultado de pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Notas