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UMA HISTÓRIA DO MOVIMENTO LGBT EM MAPUTO *
A HISTORY OF THE LGBT MOVEMENT IN MAPUTO
Afro-Ásia, núm. 64, pp. 320-362, 2021
Universidade Federal da Bahia

ARTIGOS


Recepção: 15 Abril 2020

Aprovação: 29 Abril 2021

DOI: https://doi.org/10.9771/aa.v0i64.36387

Financiamento

Fonte: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Descrição completa: Agradeço as leituras atentas das pareceristas e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por ter apoiado financeiramente esta pesquisa, desenvolvida na Universidade de Brasília.

Resumo: A partir de pesquisa etnográfica e documental, o artigo apresenta uma genea- logia do movimento LGBT moçambicano desde sua origem até os dias atuais. Nesse sentido, ele aborda as primeiras festas homossexuais; o primeiro jornal do movimento; a institucionalização do movimento na organização “LAMBDA”; e a relação desta última com o Estado moçambicano. Dois são os argumentos aqui apresentados: respondendo aos debates sobre os discursos de exogenia da homos- sexualidade em África, argumento que a história do movimento LGBT local é uma das razões pelas quais faz sentido para o senso comum, em Moçambique, atribuir a “homossexualidade” aos estrangeiros, aos brancos e à cidade. Em segundo lugar, o artigo busca se contrapor aos africanistas que enfatizam a homofobia no continente, demonstrando a particular ambiguidade que há na relação do Estado Moçambicano com o movimento LGBT local.

Palavras chave: Moçambique, Ativismo, LGBT, Homossexualidade.

Abstract: Based on ethnographic and archival research, this article presents a genealogy of the Mozambican LGBT movement from its origin to the present. Thus, it addresses the first homosexual parties; the movement’s first newspaper; the movement’s institutionalization via the organization known as “LAMBDA”; and the latter’s relationship to the Mozambican state. Two arguments are presented here: first, responding to debates about discourse on the exogeneity of homosexuality in Africa, I argue that the history of the local LGBT movement is one of the reasons that the predominating discourse in Mozambique identifies “homosexuality” with foreigners, with whites and with urban settings . Second, the article takes issue with Africanists that emphasize homophobia on the continent, showing that there is a certain ambiguity in the relationship between the Mozambican state and the local LGBT movement.

Keywords: Mozambique, Activism, LGBT, Homosexuality.

Em 1960, Moçambique era colônia sob ocupação e dominação portuguesas, com marcadores raciais e sociais nítidos: 98% da população era africana, em uma sociedade hierarquizada conforme o Estatuto do Indigenato, que distinguia portugueses brancos dos “assimilados” e indígenas.1 É nesta época que uma primeira geração de colonos em Moçambique dispõe de seus corpos e de seus afetos para de alguma forma confrontar a sociedade colonial heteronormativa, como pode ser resgatado pelo relato em primeira pessoa do jornalista homos- sexual Guilherme de Melo.2 Ainda colonial e majoritariamente branco, um protomovimento homossexual em território moçambicano surgiria através da sequência de vários eventos. Listo os mais significativos dos quais temos notícia: primeiro, a maneira semipública com que Reinaldo Ferreira e Jorge Godinho tocavam suas vidas sexuais e afetivas no cotidiano urbano de Lourenço Marques; depois e de maneira mais ampla, o escândalo público da anulação do casamento do já famoso jornalista Guilherme de Melo, que, em seguida, assume sua homossexualidade ao viver com um soldado português; até as famosas festas privadas de amigos homossexuais que começaram no réveillon do ano de 1961 para 1962 na casa do já mencionado Jorge Godinho.

No entanto, na ocasião da independência de Moçambique, em 1975, há uma ruptura entre essa primeira geração homossexual – predominantemente branca e que se exila em Portugal – e outra, composta primordialmente por gente mais nova, que – ainda que majoritariamente branca – permanece em Moçambique.3 Se já tratei, no primeiro capítulo de minha tese,4 a partir principalmente da obra de Guilherme de Melo, sobre essa primeira geração de colonos brancos, neste artigo analisarei as gerações seguintes de homossexuais, herdeiras desses primeiros atos de contestação. Particularmente, será analisado o movimento homossexual que começa no período multipartidário e neoliberal moçambicano, em 2000, com o jornal As Cores do Amor e os debates que ele propõe à sociedade moçambicana.

Para tanto, preciso antes brevemente definir conceitualmente o que estou chamando de “protomovimento homossexual” (ocorrido na década de 1960, formado apenas por homens na então Lourenço Marques) e o que estou chamando propriamente de “movimento LGBT” em Moçambique, surgido no período pós-colonial e composto também por mulheres. Apesar de o cientista político Charles Tilly ter uma perspectiva um tanto normativa sobre como se configuraria o que chama de “movimento social”, a distinção historicamente informada que ele faz desta com outras formas de atuação política – como a sindicalização e as organizações partidárias – parece aqui produtiva. Isso ocorre, entre outras razões, porque Tilly está lidando com um fenômeno político origi- nalmente ocidental, o que coincide com a formação social e política da elite gay lourenço-marquina.5

Destaco particularmente sua ideia sobre a interação de três antigos elementos que, reorganizados, constituíram uma nova forma de fazer política no Ocidente, surgida na segunda metade do século XVIII: a interação entre “campanha”, “repertório” e “representações públicas de valor, unidade, números e comprometimento referentes à causa”.6 Assim, as parties gays privadas da década de 1960 em Lourenço Marques, ainda que tivessem instituído o corpo e a sexualidade como lócus de alguma reivindicação política e que tivessem algum tipo de organização micros- social por uma causa minimamente comum, ainda não possuíam algo como uma “campanha”, um “repertório” ou “representações públicas de valor, unidade, números e comprometimento referentes à causa”.

Por “campanha”, Tilly entendia “um esforço público sustentado de elaboração de reivindicações coletivas direcionadas a determinadas autoridades”.7 Por “autoridades”, este autor não quis dizer apenas aquelas governamentais, mas também os “donos de propriedades, funcionários religiosos, e outros cujas ações (ou omissões) afetam significativamente o bem-estar de muitas pessoas”.8 Tilly compreendia ainda o “reper- tório” como um conjunto de distintas atividades, tais como a “criação de associações e coalizões para finalidades específicas, reuniões públicas, desfiles solenes, vigílias, comícios, demonstrações, iniciativas reivin- dicatórias, declarações para e nos meios de comunicação de massa, e panfletagem”.9 Por fim, para “representações públicas de valor, unidade, números e comprometimento referentes à causa”, Tilly listou alguns dos possíveis conteúdos:

valor: comportamento sóbrio; roupas asseadas; presença de clérigos, dignatários e mães com crianças;

unidade: emblemas, faixas, bandeiras ou vestimentas combinadas; marchas em formações organizadas; canções e cantos;

números: contagem de participantes; número de assinaturas em petições; quantidade de mensagens dos partidários; capacidade de encher as ruas;

comprometimento: enfrentamento do mau tempo; participação visível de idosos e portadores de deficiências; resistência à repressão; sacri- fícios, subscrições e/ou atos de benemerência ostensivos.10

Alguns desses elementos, como veremos, só irão aparecer clara- mente na virada da década de 1990 para os anos 2000, período, portanto, posterior ao Acordo de Paz de 1992 e ao estabelecimento, em 1994, do multipartidarismo no país. Esta é a razão pela qual preferi classificar as parties gays da década de 1960 como “protomovimento” e deixar desde já clara a ruptura histórica entre as parties e o que irá ocorrer na virada do milênio, no Moçambique já independente.

Assim, o objetivo deste artigo é demonstrar uma genea- logia possível do movimento LGBT moçambicano.11 Do ponto de vista retórico, este movimento buscará apenas mais recentemente suas origens no período colonial, mas ganhará existência de fato na confecção de um jornal “clandestino” e culminará na instituciona- lização de uma organização local de nome “LAMBDA” em 2006.

Veremos, então, como esta organização irá hegemonizar a luta LGBT no país, como ela pretende “institucionalizar” a homossexualidade em Moçambique e como ela se relaciona com o Estado.12

Os prides de Joanesburgo e as parties em Maputo

Interessado em saber as origens do movimento LGBT em Moçambique, pensei tê-las encontrado implícitas nas páginas dos jornais que, desde a década de 1980, noticiavam um grande volume de matérias, de forma neutra ou positivada, sobre causas gays pelo mundo.13 Ao descobrir, através dos jornalistas diretamente envolvidos nesses jornais, que não havia naquela época uma militância ou uma agenda consciente para o tema, recorri ao radialista moçambicano gay e, para os padrões raciais locais, branco, Miguel de Brito, reconhecido por alguns como um dos pioneiros vivos desse movimento. Em entrevista generosamente concedida a mim, ele me explicou o contexto político e social no qual o movimento gay teria surgido em Maputo na virada do século, e no qual a vida gay da vizinha Joanesburgo, na África do Sul, teve um papel fundamental.

Miguel diz que um movimento gay em Moçambique se iniciou após o fim da guerra civil no país (1977-1992) e coincidiu com a abertura democrática na África do Sul, que, por sua vez, acabava de pôr fim ao regime do apartheid e se tornava o primeiro país do mundo a proibir, expressamente, a discriminação por orientação sexual em sua constituição.14 A razão era a proximidade física, econômica e histórica entre a capital moçambicana e a cidade de Joanesburgo, no país vizinho, que fazia com houvesse uma enorme circulação de viajantes de ambos os países e entre eles. Segundo Miguel, diferente de Maputo, Joanesburgo já teria na década de 1990 uma “cena gay muuuuito forte”, com um circuito de discotecas, cafés e bares especializados no público LGBT.15 Assim, ele me conta que – como faziam já há alguns anos – diversos gays moçambicanos foram à Joanesburgo em 1999 para a pride de comemoração dos 30 anos da Revolta de Stonewall. Seria a partir dessa experiência que a ideia de dar início a um movimento gay em Moçambique ganhou concretude.

Muitos desses moçambicanos se encontravam em Joanesburgo. Quando voltavam, tentaram criar um pouco de vida social gay aqui em Moçambique. Muito privada, era nível de fazer festas ou em casa de pessoas ou se alugavam sítios privados e se faziam festas lá. Então, começou a crescer também um pouco esta coisa da comunidade, de pessoas que se encontravam […]. Mas era tudo muito à volta da festa, do sexo, não era nada político, nada militante, nada ativista.16 Mas foi nessa altura que se conseguiu. Sabe, por que… Por que não fazer mais de nível de como socialização, direitos etc.? Então surgiu a ideia de fazer As Cores do Amor.17

Compreendendo a lógica de Miguel que associa entretenimento à perspectiva apolítica, permito-me dela discordar. Penso que tais tipos de reunião já são uma forma de contestação que utiliza a própria corporeidade contra o poder heteronormativo que a governa. De qualquer forma, o primeiro movimento ativista pela causa gay se institucionalizaria a partir de um periódico denominado As Cores do Amor , escrito e publicado por esses homossexuais moçambicanos da segunda geração, que eram, mais ou menos, herdeiros de uma elite de outrora.

Antes de avançarmos para a análise deste jornal, que será esmiuçado na próxima seção, é importante demonstrar com mais detalhes as origens das tais festas em Maputo, quem as frequentava e como era a vida social dos gays na capital do país nessa virada do século XX para o XXI. Tal detalhamento é necessário se quisermos compreender os vetores modernos da ideia difusa de que a homossexualidade é algo dos estran- geiros, da cidade e, no limite, dos brancos.18

Quando conversamos sobre essas festas, Miguel mencionou uma tentativa de abrirem uma discoteca gay em Maputo; no entanto, a discoteca “Pirâmide” não teria ido para frente por ter se demons - trado economicamente inviável. A certa altura, eles avaliaram que um lugar marcadamente gay afugentaria possíveis frequentadores gays discretos, que eram a maioria. Quem encabeçava tal tentativa era Luis Perdiz, um gay português e branco, radicado em Maputo e que havia sido professor de Miguel no secundário. Seria ele que, junto de outros amigos, organizaria festas gays no Centro Hípico de Maputo, lugar que até recentemente promoveu festas desse tipo e que até hoje ocupa o imaginário dos LGBT da cidade.19 Segundo Miguel, o público da festa era “misturado”: havia moçambicanos brancos, em geral mais velhos, moçambicanos negros, mas, no geral, o público era predominantemente masculino. Ele mesmo disse que na época desconhecia quem eram as lésbicas moçambicanas. Em certo momento, Miguel afirmou que mais de 80% do público era composto por pessoas da periferia de Maputo e que sempre fora assim:

Sempre foi assim na nossa comunidade. Então, tinhas os… vamos dizer assim, “os gays com dinheiro”, com uma boa vida, com carro, casa etc. Depois tinha os outros todos que… era o único espaço que eles tinham pra se divertir um bocado etc. Mas sempre foi uma… nesse ponto de vista, uma comunidade, em termos econômicos, muito mais desfavorecida do que favorecida. Em termos sociais, muito mais negra que outra coisa qualquer. Sempre, sempre foi assim.20

Uma das razões para o dito alto contingente de população negra e periférica nas festas – no geral mais pauperizada pela estrutura econômica remanescente do período colonial racista, agravado pelo neoliberalismo da década de 1990 – seria a não cobrança de bilhetes para a entrada. Miguel revela que a ideia foi discutida à época entre os organizadores, que teriam acabado optando pela gratuidade. Assim, é somente no pós-independência que os negros adentrariam em massa na cultura gay maputense, gestada desde o início da década de 1960.21

Se os negros eram um grande contingente de participantes das festas, sua organização ainda ficava a cargo de uma minoria composta majoritariamente por homens brancos. Além dos moçambicanos propria- mente, Miguel conta que, com frequência, apareciam nas festas diplomatas gays estrangeiros em missão em Moçambique, e sugeriu que a certa altura havia tantos, que suspeitava que circulasse entre os diplomatas a ideia de que Maputo era um lugar “relaxado” para viver a homossexualidade:

Sempre houve uma pequena comunidade de expatriados. Ingleses, franceses, americanos, depende de quem aparecia a trabalhar em Moçambique. Chegamos a ter alguns embaixadores (risos). O primeiro a dar a cara foi o embaixador americano. [Em 19]99. Depois tivemos o embaixador francês, depois o embaixador espanhol, depois o embaixador holandês… E é engraçado porque acho que nos círculos diplomáticos a palavra passava um bocado de que Maputo era um sítio relativamente relaxado, então… Houve uma altura que começou a ser estranho a quantidade de diplomatas [gays] que vinham para Maputo.22

Para além de observar a insistente narrativa sobre a “tolerância” para as questões LGBT em Moçambique, tal trecho demonstra um outro dado importante que pode nos ajudar a compreender a percepção do senso comum, ainda atual no país, de que a homossexualidade é exógena ao contexto africano em geral e, em particular, a Moçambique. Tanto os organizadores das tais festas quanto os europeus que as frequentavam eram, na maioria, brancos, e, de certa forma, importaram os símbolos e modelos da já fervente cultura gay sul-africana e do norte do planeta para a realidade moçambicana.23 Essa influência estrangeira e localmente branca na origem da organização das festas e da comunidade LGBT moçam- bicana teve o impacto de estabelecer, de alguma forma não intencional e em congruência com outros processos históricos simultâneos – como na legislação e na mídia –, uma marca externa e branca à homossexualidade, ao que é ser homossexual e, principalmente, como se organizar politica- mente no contexto do neoliberalismo e das sociedades civis ocidentais dos anos 1990.24

Em outra parte da conversa, quando Miguel contava suas primeiras referências de juventude do que era ser gay em Maputo, ele revelou de forma ainda mais explícita como a cultura gay, tal qual a conhecemos moderna e globalmente, fora preconizada, em Moçambique, por homens brancos:

Por volta dos meus quatorze, quinze anos. […] As primeiras festas são desse tempo. Digamos, segunda metade dos anos 1970. Então, a gente ia descobrir que, afinal, este aqui é o mundo… que não existe sozinho. Mas também todos bastante mais velhos, muito brancas, muito estran- geiras. Quase todas elas, 79, 80, 81… Franceses, ingleses, portugueses, italianos… Toda a mistura que, prontos, [?] e foi um pouco assim minhas referências, como digo, a primeira referência aberta que eu tive foi o Luis Perdiz, professor de inglês, que era abertamente gay, não escondia.25

Danilo, que é gay, negro e de uma geração posterior à de Miguel, revelou o mesmo sobre os marcadores de classe da pequena comunidade gay que frequentava em Maputo, após a independência:

– E voltei pra Maputo, porém eu já frequentava meios onde a questão da homossexualidade era bastante aberta, bastante discutida, sempre numa perspectiva de que era possível as pessoas poderem expressar e viver abertamente.

– E que meio era esse?

– Ah, o meio dos amigos. Maioria dos amigos formados por homens gays, muito mais jovens, quer dizer, muito mais velhos que eu! Muito mais velhos! (risos) Que eram muito mais experienciados e…

– Moçambicanos?

– Moçambicanos! Do meio acadêmico, alguns já formados. Pessoas de certo renome no país. A discussão sempre foi… Vivíamos, quer dizer, experimentávamos a vida abertamente gay. Em meios bem isolados, mas também quando a gente saía em conjunto, viagens de amigos para o exterior, começamos… eu comecei a questionar por que que não poderíamos viver assim. 26

Por essas e por outras razões que já expus em minha tese – que vão desde o relativo silêncio histórico em relação às práticas homoeróticas dos negros no território colonial da África austral portuguesa, passando pela mídia impressa moçambicana que deu ênfase à homossexualidade como algo que aconteceria externamente, até a instalação de uma moderna cultura gay em Maputo encabeçada por moçambicanos e estrangeiros em sua maioria brancos – é possível compreender a percepção corrente da população moçambicana mais ampla (especialmente da maioria heteros- sexual e negra) de que a homossexualidade, ou a identidade homossexual é algo “recente”, “novo”, “de fora”, “da cidade”, “do estrangeiro”, “do ocidente” e “dos brancos”, como é possível ver em outras etnografias e em vários depoimentos por mim coletados.27

Para demonstrar a atualidade do “problema” da exogenia da homos- sexualidade em África, cito a resposta de Danilo quando perguntado em uma entrevista recente para Boaventura Monjane, do site “Alternactiva”, qual resposta ele teria “à opinião segundo a qual o lgbtismo, a agenda das vossas lutas, não é necessariamente uma identidade, uma cultura africana, [mas] uma imposição, uma importação de valores ocidentais”:

Bem, talvez seja por um desconhecimento crasso [risos] daquilo que a gente advoga. Eu acho que não são valores africanos – quando nós falamos, por exemplo, de inclusão – não é um valor europeu; quando nós falamos de respeito pela dignidade humana, não é um valor europeu, é um valor universal; quando nós falamos de não violência, não é um valor europeu, é um valor universal; quando nós falamos de justiça social, há porções que são discriminadas, não é um valor europeu, é um valor universal. As siglas – assim como a língua em que estamos nós dois aqui a comunicar – foram-nos trazidas. As definições foram-nos trazidas, sei lá do eurocentrismo ou do ocidentalismo, mas os valores que são passados através delas são valores universais. A homossexualidade sempre existiu no continente africano. Embora não tenha “homossexualidade”, pode ter um outro nome, mas é uma questão universal. Não se pode dizer que o respeito pela dignidade humana seja uma coisa externa. Todo homem quer ter direito à dignidade, independente da sua cor de pele, da sua origem, da sua filiação política, quer ter felicidade. Felicidade é respeito e [esses] são valores universais.28

Assim, a resposta de Danilo se junta à de diversos ativistas africanos, que, ainda que críticos das imposições das agendas do norte global, permanecem acreditando na lógica dos direitos humanos universais e, entre eles, o dos LGBT.29 Outros intelectuais e ativistas africanos, no entanto, são mais enfáticos em demonstrar o caráter imperialista na exportação das lógicas sexuais ocidentais para o sul global, como Caroline Tushabe. Em um instigante artigo, a autora ugandense nos apresenta formas autóctones de conceber o desejo homoerótico em seu grupo étnico, que não passam pelo estabeleci- mento de uma identidade propriamente “homossexual” e, a partir desta constatação, faz uma severa crítica aos movimentos LGBT em África e à imposição deste acrônimo no continente.30

Obviamente o homoerotismo – ou as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo – não era um monopólio dos brancos. Obras como Boy-wives and Female Husbands (1998) já demonstraram convin- centemente a ocorrência de práticas sexuais em diversos contextos africanos, inclusive no período pré-colonial.31 Ocorre que uma subje- tividade que tem como marca central a sexualidade homoerótica – o sujeito homossexual, tal qual o conhecemos hoje – de fato, parece em grande medida ter sido costurada fora dos contextos negros moçambi- canos, pelo menos até o século XX.32

Importa aqui demonstrar que essa geração de homens gays e brancos foi substituída pelos negros e mestiços gays moçambicanos na institucionalização da LAMBDA como porta-voz do movimento LGBT nacional moçambicano. Alguns, como Guilherme de Melo, Eduardo Pitta e outros gays brancos que viviam na então Lourenço Marques, foram viver em Portugal no contexto da revolução de independência e, por lá, acabariam por influir mais tarde na construção do movimento LGBT português.33 Parte dos gays brancos que ficaram em Moçambique, depois da independência, de certa forma, invisibilizaram suas identi- dades homossexuais; outros aderiram ao emergente movimento LGBT, mas seriam paulatinamente substituídos nas estruturas de poder não só do governo, como das organizações civis, em um claro movimento de enegrecimento mais amplo do poder naquele país independente. Antes disso, todavia, essa segunda geração do movimento LGBT moçambicano lançaria o primeiro periódico gay do país, chamado As Cores do Amor , sobre o qual nos debruçaremos no próximo tópico.

As Cores do Amor , o jornal “clandestino”

As Cores do Amor foi um jornal amador produzido e distribuído pelo que estou chamando de segunda geração do movimento gay moçambicano, de que tivemos notícia ainda no tópico anterior. De acordo com o mesmo jornalista, Miguel de Brito, a publicação surgiu em 2000, no contexto ainda das aberturas democráticas dos países da África Austral;34 da conquista de direitos civis de homossexuais pelo mundo e da “populari- zação” das novas tecnologias de comunicação, que permitiram recursos de comunicação de massa a cidadãos comuns.35


Figura 1
: Fotocópia da primeira edição do jornal As Cores do amor
Fonte: Acervo pessoal do autor.

Como vimos no tópico anterior, ao regressar dos gay prides na vizinha Joanesburgo, alguns homossexuais moçambicanos pretenderam formar uma comunidade em Maputo. Nessa comunidade, surgiu a ideia de elaborar um jornal que não só congregasse ainda mais gente para a comunidade, como fizesse informar a gays, lésbicas, bissexuais e demais cidadãos sobre uma série de questões que diziam respeito a essas novas subjetividades e essa nova organização política que, com o jornal, de alguma forma se consolidaria.36 Os objetivos, de acordo com Miguel, eram os de fazer “avançar a [sua] sociedade”, mas antes de avançarmos nós mesmos para a análise do conteúdo das primeiras edições que me foram gentilmente cedidas por Miguel, deixo-o contar mais um pouco sobre as origens desta publicação, que coincidiu com a “popularização” das tecnologias do fax e da internet:

Uma das coisas que aconteceu muito nessa época foi o aparecimento dos jornais por fax. […] Sim, porque já tinha já alguém que tinha uma redação, talvez em casa, faziam um jornal e a distribuição praticamente não era impressa. As pessoas assinavam e se distribuía ou por telefax… para os escritórios ou por e-mail. Portanto eram jornais eletrônicos. Então foi um pouco nessa onda que surgiu a ideia “Por que que a gente não faz uma coisa que é de muito baixo custo e que podemos… primeiro, distribuir por e-mail e por fax? Aqueles que tiverem interes- sados… depois cada um pode imprimir e copiar e distribuir.37

Fica claro, então, que a opção pelo fax e e-mail se deu pela facilidade com que se poderia não só produzir o jornal, como distribuí-lo. Além disso, o formato de periódico era familiar àqueles percursores do movimento, alguns já jornalistas de profissão como Miguel, e outros professores, empresários, enfim, pertencentes a uma elite letrada, leitora de jornais. No entanto, a opção por esse modelo levanta uma questão: quem tinha acesso a fax, computador e internet na Maputo da virada do século? Uma insignificante minoria, supus. Para defender o caráter democrático da nova organização que se formava, Miguel então me respondeu que logo eles resolveram criar uma cultura de impressão e distriuição dos jornais, para expandir seu alcance:

– E era uma distribuição gratuita, para as pessoas só pegarem…

– Sim. Em cima do balcão… Então, começamos inicialmente por, penso que, 500 cópias, e já no fim íamos às 1500 cópias. E ao fim de quatro dias, não existia nenhuma… […] Ah, e prontos, nunca acompanhei muito bem quem eram as pessoas que iam buscar, como é que faziam, mas é isso. É engraçado, podes falar com o Danilo, ele vai te dizer, que ele era miúdo, entrava na livraria, pegava uma revista, metia aquilo por baixo, e prontos. E ia ver as coisas. Depois entregava aos amigos etc. Então, foi um pouco assim que a coisa foi funcionando. 38

De maneira relativamente engenhosa, o movimento conseguiu se fazer ouvir (ou melhor, se fazer ler) por diversas pessoas, homo e heterossexuais e ser, inclusive, destaque em matérias de jornais tradi- cionais. De qualquer forma, distribuindo via internet ou nas prateleiras de lojas e bancas, fiquei interessado em saber quem era o público leitor. Miguel, então, me revelou os tipos sociais que liam os jornais, enfati- zando aqueles que não podiam ou não tinham coragem de “dar a cara”, ou seja, que não assumiam publicamente uma identidade homossexual. No entanto, algumas dessas pessoas escreviam para o jornal anonima- mente e os editores publicavam algumas dessas cartas:

As pessoas podiam mandar cartas… Muita gente escrevia com pseudônimo, só com as iniciais. Muitos deles diziam: “Olha, eu sou completamente no armário, só leio, não apareço nas festas nem nada, mas estou muito feliz…”. Então, quer dizer, também era tentar chegar a essas pessoas que não se expunham nem sequer nas festas fechadas, mas que a gente sabia que existia. Quase todos nós viemos [desse armário] [risos]. Provavelmente, tal como nós, sentiu a necessidade de alguma informação, de algum sentido mesmo que fosse virtual naquela altura ao conceito de comunidade, né? Que existia comunidade.39

Nada foi dito, porém, a respeito daqueles que não poderiam ler ou que não eram fluentes em língua portuguesa, algo particularmente relevante em uma sociedade de tradição oral, com diversas línguas nativas e cujo analfabetismo ainda se mostrava significativo no início do milênio.40 Gostaria de enfatizar, contudo, que a opção pela forma escrita no registro e divulgação das ideias que se tem e se pretendem compar- tilhadas condiz com o processo de modernização de que movimentos sociais de direitos humanos, como o LGBT, costumam fazer parte, e que costumam agenciar, mas também condiz com o processo de instituciona- lização na escrita pela qual a “homossexualidade”, enquanto categoria, vinha sendo domesticada desde, pelo menos, os processos policiais de 1940.41 É na escrita, e particularmente no português – para muitos moçambicanos, inclusive da capital, uma língua ainda estrangeira, dos brancos – que a homossexualidade será objeto de definição conceitual, de debate e de padronização,42 ou seja, a homossexualidade será por lá “institucionalizada”, nos termos de Mary Douglas.43

Se agora – diferente das notícias dos jornais tradicionais – eram os homossexuais eles mesmos que produziam e falavam diretamente com os leitores sobre as suas questões, parte do mundo “homossexual” perma- necia no registro da palavra escrita em português, permanecia ainda como categoria negociada e, no limite, controlada por uma elite letrada, que decidia – ou pretendia decidir – seu destino. Nesse sentido, investiguemos o que diziam as primeiras edições do jornal, que tinha como subtítulo “A voz da comunidade gay, lésbica e bissexual” de Moçambique.

O primeiro número, de 20 de julho de 2000, possui duas páginas, cada qual com duas colunas, e nelas existem seis textos inaugurais: 1) um editorial de apresentação do jornal; 2) um texto alertando para os riscos e responsabilidades sobre a AIDS na comunidade; 3) um de conclamação para a Parada Gay de Joanesburgo naquele mesmo ano; 4) o obituário de uma liderança do movimento de soropositivos de Moçambique; 5) um excerto de uma fala pró-homossexualidade de Mandela, adjetivada de “sabedoria do mais velho”; e, por último, 5) sugestões de sites da internet para a comunidade LGBT africana.

Já nas primeiras páginas do editorial, é possível perceber como os autoidentificados homossexuais, e agora organizados, se apresen- taram à sociedade moçambicana àquela época. Falando para si mesmos, seus objetivos eram o de “educar e informar a nossa comunidade sobre assuntos e acontecimentos que nos afetam”; falando para o exterior da comunidade, objetivavam:

educar e informar o público em geral sobre o que nós somos, pensamos e fazemos e como vivemos e, acima de tudo, contribuir para quebrar as barreiras do preconceito e promover o conhecimento, a compreensão, a tolerância, o respeito e a convivência dentro da comunidade e entre a comunidade e o resto da sociedade moçambicana.44

Assim, estávamos em pleno processo de “institucionalização” da homossexualidade. Como já analisei em outro caso, para Mary Douglas, institucionalizar demanda naturalizar certa categoria e “a naturalização diz respeito ao processo de legitimação e enraizamento cognitivo de uma instituição, a partir da sua analogia com o mundo não humano, portanto irredutível e supostamente inscrito na ordem do inquestionável na ontologia naturalista moderna”.45 Assim, a “homossexualidade”, para se institucionalizar no caso presente, é dita, em As Cores do Amor , existir “não por opção, mas por natureza”, ressalvando que alguns entre eles “escolheram manifestar essa orientação sexual através de uma opção de vida que em nada difere da de todos os outros membros da sociedade” e explicam: “que é amar, viver esse amor livremente, ser feliz e, em muitos casos, constituir família estável, carinhosa e saudável”. No mesmo parágrafo, ainda é defendido o direito à privacidade dos espaços pessoais, como “adultos conscientes e responsáveis”.46 Novamente aciona-se a defesa de que a homossexualidade pode ser vivida como um estilo de vida “saudável”, apontando para o direito à igualdade com os demais “concidadãos”.

Uma vez que a “homossexualidade” é alocada no âmbito da natureza, ela deixa de ser “opção” e, teoricamente, não é mais passível de ser moralmente contestada. Este movimento é uma atualização da categoria, é mais uma tentativa de domesticação da mesma, que segue os passos deixados por A sombra dos dias (1981), de Guilherme de Melo. Além disso, destaco a recorrência de duas outras categorias neste texto: “saudável” e “concidadãos”. A ênfase na categoria “saudável” poderia ser explicada por duas vias: 1) uma resposta à visão local da homosse- xualidade como doença espiritual; ou 2) uma resposta mais conservadora, temerária da epidemia de AIDS e, por isso, pró-uniões estáveis, dos anos 2000.47 Essa agenda, se opunha às pautas da geração anterior do movimento LGBT (e mesmo de movimentos sociais contemporâneos) que apregoava a promiscuidade sexual.48

Já a ênfase na categoria “concidadãos” parece apontar para uma frequente preocupação, em muitos movimentos LGBT nos novos Estados africanos, de que a subjetividade gay e o movimento LGBT não pretendem criar um antagonismo com a sociedade mais ampla, nem contra ela rebelar-se.49 Em outras palavras, nas emergentes nações africanas, a ênfase na defesa da nação parece ainda prevalecer – pelo menos no discurso – sobre os perigos socialmente compartilhados da fragmentação social e da guerra. Especialmente relevante em Moçambique, onde o “homem novo” foi uma retórica e uma ação governamental violentas de integração nacional, contra os mais diversos e eventuais segmentarismos de cor, de etnia, de ideologias políticas, de gênero (e, por que não, de orientação sexual?). Além disso, o fim da guerra civil não tinha completado ainda uma década, e o risco de dissolução nacional ainda assustava, daí a importância de fechar o texto do editorial com a ideia de que, apesar das diferenças, “acima de tudo somos Moçambicanos!”.

Além de nacionalizar o movimento a partir de Maputo, de certa forma, essa primeira edição dá o tom que seguirá nas demais, de aproximar a homossexualidade do contexto africano ou fazer do continente também um berço legítimo para ela. Seja nos dados que trazem a epidemia de HIV no continente, seja na divulgação da parada gay de Joanesburgo, na fala de respeitados líderes africanos pró-direitos LGBT, seja ainda na divulgação de textos, sites e livros sobre esta temática especificamente no continente africano.

Assim, já no segundo número do jornal, abaixo do novo editorial que felicitava a boa receptividade que o primeiro teria tido na comunidade, foi publicado o texto “Ser gay e ser africano”. Trata-se de um artigo traduzido e adaptado “de uma série de textos de pesquisa, com o título ‘Behind the mask’ publicados através da internet, por autores como Dumisani M. Dube e N. Janji, com contribuições do Editor das Cores do Amor”. No texto, os autores defendem que a homossexualidade não é um “comportamento importado do Ocidente”, e que haveria diversos indícios de sua existência desde muito antes da chegada dos coloniza- dores. Transcrevo algumas partes importantes do texto, que pretenderam já à época desmistificar a ideia da exogenia das práticas homossexuais em África, em um contexto de crescente perseguição a homossexuais em diversos países do continente, alguns vizinhos a Moçambique:

A conspiração do silêncio dos guardiões dos costumes e da maioria dos antropólogos, missionários e funcionários coloniais sobre as práticas homossexuais nas comunidades africanas não é indicativo da sua inexistência antes do colonialismo ou da sua introdução pelo homem branco. O seu silêncio era a maneira de expressarem o seu desagrado e reprovação por uma práctica que ofendia sobretudo a moral cristã, esta sim estranha às tradições e cultura africanas e trazida pelos brancos. Foi sobretudo a cultura cristã ocidental, extremamente conservadora e puritana, que ajudou a implantar em África a aversão pela homossexualidade.50

Alguns autores mais contemporâneos seguem a mesma tese da exogenia da homofobia e não da homossexualidade em África,51 mas a aversão pela homossexualidade parece já presente em alguns contextos africanos no período pré-colonial. Penwill, em um estudo de 1951 sobre as leis consuetudinárias dos Kamba, afirmou que “se um homem comete um crime antinatural com um jovem rapaz, ele deve pagar uma cabra e um touro. Se dois homens cometerem a ofensa juntos, cada um deve pagar uma cabra”. Tais casos seriam normalmente resolvidos em silêncio,52 mas esta parece uma exceção. O referido texto de As Cores do Amor continuava, desta vez historicizando a (suposta) maior liberdade que os homossexuais gozariam no Ocidente:

Os que afirmam que a homossexualidade é uma característica da cultura ocidental ignoram a opressão e perseguição que os homosse- xuais sofreram no Ocidente há até poucos anos atrás – e o preconceito de que ainda hoje são vítimas, em certa medida. Só através de muito esforço e luta e de muita luta é que os gays no Ocidente conseguiram as liberdades de que hoje gozam – e ainda não são suficientes.53

Por fim, o texto, baseado em certas premissas evolucionistas de “progresso” e essencializando categorias como “identidade sexual” (como se ela tivesse apenas que ser revelada e não socialmente construída), denuncia um quadro continental de perseguição de pessoas LGBT e conclui diagnosticando a atual situação dos homossexuais africanos:

Os homossexuais africanos, pelas características das sociedades em que vivem, ainda têm pouca consciência de seus direitos como seres humanos e por isso têm medo de revelar a sua identidade sexual e lutar pela sua afirmação. Isto faz de muitos de nós pessoas sós, isoladas e cheias de dúvidas sobre si próprias. São pessoas que precisam de comunicar com outras pessoas sobre seus sentimentos, emoções e desejos, mas sentem imensas dificuldades em fazê-lo. Quando os governos promovem campanhas contra os homossexuais, atentam contra os direitos destes seres humanos e contribuem ainda mais para a existência de tragédias pessoais, criando um ambiente na sociedade que é de perseguição em vez de tolerância e apoio. As sociedades africanas já fizeram muito progresso. Os albinos e os gêmeos já não são mortos à nascença e são aceites como parte da sociedade em geral. Também os gays já começaram a ser aceites por alguns grupos na sociedade. Mas ainda há um longo caminho a percorrer. O primeiro passo deve ser dado a nível das famílias – se uma família aceita a homossexualidade de um dos seus membros e lhe dá todo o apoio moral e carinho para enfrentar o resto da sociedade, já é meio caminho andado.54

A questão da conscientização das famílias para a tolerância como “primeiro passo a ser dado” é recorrente para a militância LGBT em Moçambique até hoje, mas importa enfatizar como a discussão sobre a exogenia da homossexualidade em África era corrente no início do milênio, tanto interna como externamente a Moçambique, e que o emergente movimento LGBT local se viu compelido a dar uma resposta. A resposta se deu baseada em algumas premissas importantes de serem listadas:

1) a homossexualidade não é exógena, pois é universal; 2) a cultura de tolerância não é exclusiva do Ocidente nem a-histórica; 3) de certa forma, o continente africano, por características culturais e históricas, ainda não teria despertado a “consciência” dos LGBT para seus “direitos”.

Como adiantado, um desses leitores de As Cores do Amor era Danilo Silva, um jovem técnico de construção civil e de informática, negro e gay, que seria atraído para a causa e acabaria por se tornar, nos anos 2000, diretor da LAMBDA, a maior organização LGBT de Moçambique. Ele conta, da sua perspectiva de integrante do que estou chamando de “terceira geração gay moçambicana”, não só como surgiu o movimento LGBT local, mas como ele mesmo fora atraído para tal através do jornal As Cores do Amor :

Eu fui uma das pessoas que também foi – graças a esse jornal – também comecei a questionar certas coisas. Não fui eu que comecei o jornal, né, foi uma outra geração. Porque a criação da LAMBDA não é propriamente dita a primeira, o primeiro intento de se fazer uma associação. Surgiu nos anos 1980, e depois 1990, bem antes do Acordo Geral de Paz,55 um grupo também formado por homens gays – majoritariamente de classe média alta, mestiços e brancos, com certo poder aquisitivo, que tinham um jornal clandestino que chama As Cores do Amor e que falavam sobre uma perspectiva gay. Eu, na altura que voltei pra Maputo, também apanhei esse jornal e foi a partir desse momento que ajudou a criar essa consciência de que é possível viver uma sexualidade aberta. 56

“Criada a consciência”, seria pelas mãos de Danilo e de alguns outros militantes mais jovens e negros, assessorados pela geração anterior mais experiente, que uma organização formal pelos direitos “das minorias sexuais” ganharia então vida institucional em Moçambique. Assim, as palavras escritas em As Cores do Amor tiveram ressonância, formaram uma terceira geração de ativistas que se viram convencidos não só da institucionalização da homossexualidade naqueles termos, como da necessidade de se engajar e aprofundar a luta.

A organização do movimento LGBT na LAMBDA

Dos gay prides em Joanesburgo para as festas em Maputo; das festas no Centro Hípico e alhures para o jornal As Cores do Amor ; e desta publicação finalmente para a institucionalização do movimento LGBT em uma organização que veio a se chamar LAMBDA e que hoje é, se não a única a existir sobre esse tema em Moçambique, certamente a que mais atua e mais tem recursos tanto simbólicos quanto materiais para tal.57 Esta é a sequência “virtualmente” linear em que o movimento LGBT se constituiu formalmente em Moçambique desde a segunda metade do século XX.58 O objetivo deste tópico é demonstrar, a partir de relatos de alguns dos agentes envolvidos diretamente na formação e formalização dessa organização, como a LAMBDA veio a existir, com quais objetivos, com quais discursos, com quais recursos e com quais agentes.

Em seu amplo escritório no segundo andar da casa que sedia a LAMBDA, entrevistei Danilo da Silva, o então diretor desta organização. Ao contar sobre a sua trajetória de vida, entre idas e vindas das províncias para capital, ele explicou como as suas inquietações sobre sua orientação sexual coincidiram com certo momento de sua vida profissional ligada à tecnologia. Dessa forma, não só o jornal As Cores do Amor seria fruto da popularização de certas tecnologias de comunicação, como já apontei, mas também assim seria com a organização da própria LAMBDA. Danilo contou que foi uma discussão sobre homossexualidade em um fórum de internet que o fez conhecer outros interessados pelo país no debate e na luta das causas LGBT. O momento também coincidia com o “boom” de associativismo pelo qual passava Moçambique:

Quer dizer, acho também a LAMBDA surgiu também do advento da tecnologia, né? E por achar que era um momento propício, quer dizer, reuníamos, de vez em quando, só para discutir questões relacionadas com… como seria esta organização. “Como é que seria isso?” Também um pouco aproveitando um pouco do contexto que o país estava a atravessar. Moçambique estava a atravessar um período de democra- tização acelerado, não é? Tivemos o Acordo Geral de Paz em 1992, temos uma constituição… A constituição depois de 1990, yá, de 1992, abriu a questão da mobilização comunitária… […]. O associativismo, a liberdade de associação. A Constituição de 2004 veio reforçar ainda mais esta questão do associativismo dos movimentos cívicos, e o país vivia isso, vivia esta… este boom do associativismo. Então, pronto, se este é um mecanismo de interação com o Estado, então por que não formalizar, né, para poder reclamar esses… começar a reclamar o espaço, depois começar a demandar os direitos que nós achamos que nos cabiam. 59

Apesar do relatado, como atesta a pesquisadora moçambicana Maria Judite Chipenembe,60 o mito de origem mais comum da LAMBDA remete a um seminário sobre direitos humanos voltado especificamente para questões LGBT, organizado em 2006 pela Liga dos Direitos Humanos de Moçambique (LDH), que reuniu pela primeira vez em Maputo diversos moçambicanos – e alguns estrangeiros – interessados no tema.61 Danilo contou como se deu esse primeiro contato com a Liga e como o seminário fez reunir pessoas LGBT do país inteiro, o que acabaria por dar uma abrangência nacional ao emergente movimento LGBT da capital:

Entramos em contato com a Liga Moçambicana de Direitos Humanos, que já era uma organização bem estruturada e que abordava a questão dos direitos humanos. E começou, por conta de uma das pessoas que trabalha lá naquela altura – o Custódio Duma –, acabava de voltar do Brasil e tinha essa ideia de que “eu vi, eu sei que os LGBT estão muito melhor organizados no Brasil. Percebo as vossas preocupações e vamos todos também nos organizar”. Apesar de ele não ser… nunca, pelo menos abertamente, [?] que seja um homem ou bissexual ou homossexual, mas ele foi uma pessoa também crucial neste processo de mobilização mais estruturado daquilo que são as nossas demandas. […] Então ele chamou aquele seminário e foi nessa altura que o Dário ouviu o seminário, teve conhecimento sobre o seminário. O Dário, a Carmem Malawene, ouviram esse seminário que o Custódio, que eu, com o apoio da Liga e o Custódio conseguimos montar. Foi um seminário que trouxe pessoas LGBT de algumas partes do país, como Manica, Niassa, Nampula, algumas pessoas de Gaza. E foi o primeiro seminário em que se discutiu sobre direitos LGBT. LAMBDA ainda não tinha nascido nessa altura. […] E esse seminário realizou-se a 13 de outubro, aliás, a 12, e depois prorrogou-se a 13 de outubro de 2006. E foi em 13 de outubro de 2006 que, com aquele grupo que tinha vindo das províncias, com o grupo que já cá estava, que nós dissemos que “É hoje que a nossa organização… 62

A segunda geração de ativistas, portanto, legaria à terceira não só um jornal, mas as experiências de vida e de organização política para a institucionalização e formalização futura de um movimento LGBT em Moçambique. De acordo com Danilo, esta segunda geração foi o embrião do que a LAMBDA é hoje:

Essas pessoas foram parte embrionária. Bem, bem, bem embrionária daquilo que nós somos hoje. Algumas dessas pessoas foram... não foram propriamente os membros fundadores escritos no papel, mas foram aquelas pessoas que deram o suporte para que a LAMBDA pudesse, nos primeiros anos, ser o que ela é. Hoje... Nos primeiros anos e agora. Foram os primeiro ideólogos que ajudaram a pensar sobre como estruturar, como se organizar, porque eram – e são, porque algumas delas ainda estão vivas – são pessoas formadas e com certo conhecimento sobre estruturas, sobre mecanismos de reivindicação nos espaços políticos. Então deu também esse suporte.63

Para aferir melhor a participação estrangeira nas origens do movimento LGBT moçambicano e obter mais evidências para o nosso argumento de uma certa lógica do senso comum que associa homossexua- lidade ao exterior e à branquitude em Moçambique, perguntei a Danilo sobre a questão. Ele respondeu que, à época, não houvera nenhum tipo de financiamento para a causa LGBT em Moçambique: nem para o jornal As Cores do Amor nem tampouco para a abertura da LAMBDA. Danilo arriscou ainda uma explicação para isso, atribuindo esse fato ao isola- mento linguístico e político de Moçambique dentro da África Austral, graças à herança colonial portuguesa:

Moçambique sempre foi um pouco isolado do mundo que é extrema- mente… a questão das organizações, a questão dos direitos humanos é muito dominada pela anglofonia. E Moçambique, por ser um país falante de língua portuguesa, apesar de que… apesar da influência dos países aqui à volta, nesta questão sempre foi muito isolado. E se for a reparar, mesmo o movimento LGBT aqui em Moçambique, movimento, quer dizer, a LAMBDA e suas ações, de alguma forma são insuladas do maior dos movimentos que nós temos a nível regional. A questão da língua, da evolução… da mobilização cívica, historial da mobilização cívica. Enquanto em Moçambique, a mobilização cívica no período do partido único, né, era muito reprimida… Esses direitos políticos eram muito reprimidos. E os outros países – apesar de estarem sob influência do apartheid ou influência do regime de Ian Smith – a mobilização cívica era uma coisa que já vinha… é muito mais antiga que a nossa. Moçambique, mesmo em termos da luta de independência de Moçambique, enquanto Uganda, anos 1950 ou 1940, já começava a fazer a discussão pelas independências, Moçambique nem estava aí. A questão da formação, a questão da intelectualidade contou muito. O regime português foi um dos piores regimes que já teve. Não que exista um bom regime, mas pior de todos eles. Porque não formou pessoas com consciência cívica.64

A dita falta de “consciência cívica” será retomada adiante, mas dando a entender uma organização completamente autóctone, insisti com o jornalista Miguel de Brito sobre se houvera parcerias internacionais – para além da presença de figuras como a do antropólogo e ativista brasileiro Luiz Mott no seminário já citado – que tivessem dado subsídio técnico ou financeiro para estas iniciativas.

Na época do jornal? Não… Na criação da LAMBDA, a LAMBDA não teria existido se não houvesse apoio, apoio, vamos dizer, como explicar? Solidariedade, mas também apoio financeiro. Alguém tinha que vir de fora. […] começou exatamente da embaixada da Holanda, coincidiu […] de ter um embaixador gay, que, prontos, terá conseguido [?] da parte holandesa, alguma política nesse sentido. Os primeiros fundos para a LAMBDA existiram, vinham da embaixada da Holanda […] via uma organização não governamental holandesa chamada Hivos. Depois, mais tarde, claro, […] foi mais das Nações Unidas para lidar com a população [soropositiva]. Depois vem UNAIDS, vão aparecer outras embaixadas etc. Porque penso que este apoio inicial da embaixada da Holanda foi fundamental.65

Apesar de confirmar que não houve um incentivo externo prévio nem para a publicação do jornal As Cores do Amor nem tampouco para a fundação da LAMBDA, como já adiantara Danilo, Miguel revelou que, uma vez fundada, a organização obteve recursos externos. A presença holandesa inauguraria uma dinâmica de trocas internacionais, finan- ciamentos e programas que existem até hoje.66 Como já tratei em outro texto, as demandas externas dos patrocinadores da LAMBDA acabaram por pautar certos valores e certas agendas, que por sua vez acabaram moldando, no limite, o que é ou deve ser o homossexual e para que (ou a quem) deve servir um movimento LGBT.67

Quando perguntei sobre qual era a pauta mais importante à época da formação do movimento, Danilo me respondeu que era a “visibi- lidade”, mas enfatizou que era a visibilidade sobre o tema e não sobre as pessoas: “E a única pauta era aumentar a visibilidade do tema. Não das pessoas. Mas aumentar a visibilidade do tema”. Essa ressalva foi explicada posteriormente por Miguel, que revelou que a ideia da busca pela visibilidade não era um consenso dentro da emergente comunidade que se formava, principalmente pela cultura de silêncio e discrição que parece imperar em Moçambique quando o assunto é a sexualidade, e mais ainda quando se trata de práticas homossexuais.

Ainda sobre o assunto, Miguel confirmou o dissenso que havia em sua geração de amigos gays e exprimiu, muito franca e generosamente, sua opinião em relação a este dissenso, particularmente em relação a estes amigos gays, muitos casados e com filhos, vivendo um modelo hetero- normativo, que – até hoje – não se assumiram publicamente. Para ele, a “resposta racional” é a de que cada um tem o direito de abrir ou não a sua sexualidade publicamente; a resposta “emocional” é que quem não a abre é um “filho da puta hipócrita”.

Se esse parece um dilema contemporâneo da militância LGBT mais ou menos presente nos regimes liberais, cujo relativismo, ou não autorita- rismo, são valores cultivados pelos militantes, como outras pautas globais desse movimento se assentam, ou não, propriamente em Moçambique?

Pautas LGBT globais fazem sentido em Moçambique?

O recorrente tema do silêncio retorna o fato de que, em Moçambique, não haveria manifestações públicas de rua por parte do movimento LGBT, como uma Parada Gay. Eu, tendo vindo de uma experiência de pesquisa pregressa em Cabo Verde, onde, desde 2013, há anualmente este tipo de manifestação;68 conhecendo já sobre a fervilhante vida gay em Joanesburgo, que desde 1990 realiza paradas gays;69 e, tendo ouvido tanto a respeito da “tolerância” moçambicana, não compreendia por que não havia parada gay também em Moçambique, mas a falta de gramaticalidade deste tipo de manifestação política no país logo ficaria clara para mim.

As causas para a inexistência até então de manifestações como a parada gay em Moçambique são várias e foram enumeradas a mim, em momentos distintos, por diferentes pessoas, resumidas a seguir: 1) o Estado moçambicano não é demasiado repressivo em relação à homossexualidade, no sentido de gerar um colapso suficiente nas pessoas LGBT a ponto de irem à rua contestá-lo; 2) em razão disso, a luta não seria contra o Estado, mas seria no sentido de educar as famílias à aceitação, razão pela qual não parece necessário ir às ruas, mas agir nos lares; 3) o histórico das manifestações públicas de contestação político-social em Moçambique, principalmente aquelas em vias públicas, é marcada por traumas não só do período colonial, mas também do período já pós-colonial, pelo uso de extrema violência repressiva por parte das forças policiais, o que geraria medo;70 4) poucas pessoas – e principal- mente entre a minoria LGBT – teriam uma educação política, ou “cívica”, que formasse uma consciência de classe e um interesse em contestar as autoridades e mesmo a sociedade mais geral;71 5) que por ser minoria e pela alegada falta de consciência cívica, seria contraproducente colocar nas ruas tão poucas pessoas, porque isso daria a impressão de irrelevância social da causa; 6) as paradas gays hoje seriam celebrações pouco contes- tatórias e mais festivas, o que as teria esvaziado de conteúdo político e de capacidade de transformação; 7) a sociedade moçambicana é conser- vadora nos costumes, não está habituada tanto a manifestações públicas de afetos eróticos (hétero ou homossexuais), típicos desse tipo de evento, tampouco a celebrações como o carnaval brasileiro ou cabo-verdiano, em que desfilam corpos seminus, e que reproduzir a parada gay tal qual ocorre em outros países seria ofender, de forma perigosa, o conjunto dessa sociedade; e, finalmente, 8) para muitas pessoas que têm práticas homoeróticas ou homoafetivas, não é interessante a luta política pela possibilidade de bem viver uma identidade homossexual pública. Muitos homossexuais moçambicanos, de distintas gerações (mas principalmente os mais velhos), querem manter a privacidade e o silêncio sobre suas vidas íntimas.

Outros métodos ou pautas globais do movimento LGBT também parecem ter assentamento igualmente precário no contexto moçambicano e algumas lideranças locais demonstram ter plena noção disso. Uma das pautas seria a legalização do casamento gay, que, diferente do que ocorre na vizinha África do Sul, não é permitido pelo Estado moçambicano.72 Ainda interessado no surgimento do movimento LGBT moçambicano e as pautas que ele traria, insisto na questão com um dos percursores desse movimento, que me responde que, ainda que entenda que o casamento gay esteja atualmente fora das pautas da LAMBDA, pensa que a luta por esse direito não pode ser abandonada:

Eu entendo a parte pragmática do discurso não é sobre casamento. É sobre visibilidade, direitos básicos. Falar de casamento é um pouco como dar um tiro no próprio pé, porque a reação da sociedade vai ser muito forte. Entendo, digamos, essa posição pragmática de uma organização que tem de encontrar o espaço seguro e confortável, né? Pra não ter uma reação contra forte. Ok? Mas do ponto de vista, vamos dizer assim, intelectual, teórico, pra mim é inaceitável tirar o assunto do casamento da mesa, porque faz parte.73

Como já apontamos em outro trabalho sobre pesquisa semelhante em Cabo Verde, “a demanda pelo casamento gay atende a diversas dinâmicas internas e externas [ao país] que ultrapassam em grande medida um simples desejo de formalização de novos tipos de conjugalidade” pelas pessoas, tais como o desejo de autoinserção em um contexto global moderno e que “demandas e valores globais são limitados pela ordem social local”.74 Em Moçambique não é diferente, uma série de pressupostos são necessários para que pautas como o casamento gay sejam uma reivindicação orgânica da própria comunidade. No país, percebem-se os seguintes fatores como impeditivos ou complicadores de pautas como o casamento gay: 1) a recusa por muitos de uma identidade gay, entre outros motivos, pelo valor que a descendência tem localmente;75 2) a recusa a dar visibilidade a um aspecto não central de suas subjetividades, como a vida sexual; 3) a não reprodução de modelos ocidentais de homoconjugalidade dos quais o “casamento gay” é efeito;76 4) a escassa existência de patri- mônio e renda de alguns que justifique a necessidade de formalização de contratos conjugais; 5) questões anteriores e mais profundas como a baixa infiltração de valores individualistas; a noção de ser sujeito de direitos etc.77 Por fim, vários interlocutores ligados ao movimento LGBT de Moçambique, por diversas vezes e sempre em comparação com a realidade da África do Sul (dita por muitos como um exemplo de como atitudes tomadas de cima para baixo, impostas à sociedade, podem dar errado, causar mais violências etc.), narraram-me o que seria a estra- tégia alternativa de Moçambique de resolver seus conflitos “de baixo para cima”, ou seja, primeiro fazendo trabalho de “base”, convencendo a própria comunidade e a sociedade mais ampla, para somente depois, ou com menos ênfase, pleitear mudanças legislativas e políticas públicas.78 Quando disse a Miguel que o diretor nacional de Direitos Humanos e Cidadania (da secretaria ligada ao Ministério da Justiça moçambicano) certa vez afirmou que era melhor não tocar no assunto LGBT para que Moçambique não corresse o risco de “virar Uganda” (ou seja, ele supunha que a interrupção do silêncio quanto ao tema pudesse acarretar a transfor- mação de um suposto atual cenário pacífico para com a homossexualidade no país em um de perseguição estatal e social, e violência generali- zada),79 Miguel não negou tal possibilidade aventada por aquele político, mas comparou a política do movimento social a uma dança:

E é interessante essa nossa maneira de ser aqui em Moçambique. Há a noção de que nós vivemos numa sociedade que é bastante relaxada e permissiva, mas que também é muito conservadora, porque é uma sociedade que, quando confrontada com uma certa agressividade, pode reagir com agressividade. E o que nós somos hoje, podemos deixar de ser e ser Uganda amanhã. Um pouco como nós deste lado [do movimento LGBT] também puxamos o assunto. Não é que Uganda seja como é porque haja um… o movimento lá é forte porque a repressão é forte. Inicialmente. Mas há um pouco esta noção de que se puxarmos forte demais, a reação também vai ser muito forte. Então é… […] Não é um tango, é uma valsa. Não tem agressividade… É uma dança, né? Que não tem a agressividade do tango, é mais… “Tu deixas vir até aqui, eu vou”, “Se experimentar um bocadinho, se deixares, pronto.” “Se eu sentir um pouco de resistência, ok, também vou parar”. Mas a verdade é que a linha está cada vez… […] Tá avançando. É uma maneira de fazer as coisas. Funciona em Moçambique.80

A ambígua relação do movimento LGBT com o Estado Moçambicano

Se retrocedermos aos primórdios do protomovimento LGBT em Moçambique, ainda no período colonial, levado a cabo pelos primeiros atos de contestação de Guilherme de Melo e outros homossexuais brancos da década de 1960, percebemos como a questão LGBT nesse país já nasce imersa em uma relação ambígua com as forças governamentais, mesmo antes da independência. O próprio jornalista Guilherme de Melo, “natural de Moçambique”, ao mesmo tempo em que era defensor do Estado colonial, era o sujeito que contestava esse mesmo Estado português pelo conservadorismo dos costumes e pela repressão política que por vezes viveu na própria pele. Após a independência, em 1975, mas ainda no período socialista, que perdurou de 1975 a 1990, dirigentes da FRELIMO obrigavam seus pares homossexuais a realizarem casamentos heterossexuais de fachada.81 Em 2015, já no contexto multipartidário e neoliberal, duas drags queens , La Santa e La Biba, ficaram famosas no país atuando em um reality show da televisão estatal, e uma delas participaria como dançarina nas comemorações oficiais dos 40 anos da independência no Estádio da Machava.82 Nesta última sessão, pretendo me contrapor às costumeiras abordagens africanistas que enfatizam em suas análises apenas a “homofobia de Estado” dos Estados africanos. Para isso, irei mostrar como se configura o atual regime de ambiguidade entre o movimento LGBT moçambicano e o Estado de Moçambique, dando especial ênfase à relação da LAMBDA com esse Estado.

A LAMBDA teve desde seus primórdios uma relação ambígua com o Estado moçambicano, que, na maioria das vezes, se confunde com o partido que está no poder desde o período da independência, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Um dado dessa relação ambígua tem a ver com o status legal da LAMBDA e a forma de sua atuação,que desse status se vê refém. Basicamente, desde que a LAMBDA foi fundada e começou a trabalhar, em 2006, ela aguarda o Estado legalizar a sua situação de organização da sociedade civil. Nesse intervalo, porém, o Estado moçambicano não tem reclamado dos recursos financeiros externos que a LAMBDA atrai para Moçambique, tampouco tem abdicado de sua expertise para diversas ações, seja de saúde pública, seja com consultas sobre assuntos de direitos humanos. Assim nos confirma Danilo:

– A questão do registro é uma questão de princípio para nós. Eu digo às pessoas que nós poderíamos ter registrado como qualquer outra: poderíamos ter registrado como “clube das bolinhas”, podíamos ter registrado como, sei lá, “associação dos plantadores do coco” ou qualquer coisa. Mas nós registrarmos como organização LGBT, para nós, é extremamente importante porque nós acreditamos que as pessoas LGBT, como cidadãos e cidadãs deste país, têm o direito de usufruir daquilo que são os direitos fundamentais. Os direitos fundamentais é a liberdade de associação. A liberdade de participar… E o outro direito é participar na vida política de uma forma organizada. Se o Estado não reconhece que nós, que esse direito é um direito fundamental, independente da nossa orientação sexual, esse Estado não vai reconhecer nenhum outro direito. Este é, do ponto de vista da nossa ideologia… Uma criança quando nasce dentro de uma comunidade, ela tem um nome, ela é registrada e é reconhecida como membro daquela comunidade. Um grupo de pessoas que se junta para ações que visam promover aquilo que é os seus direitos, sua arte, sua identidade, ela tem que ser reconhecida pela sociedade que ela existe. Doze anos depois, a LAMBDA existe de fato. Aos olhos de toda a comunidade, a LAMBDA existe de fato…

– Inclusive trabalhando com o governo…

– Inclusive trabalhando com o próprio governo. Do ponto de vista legal, a LAMBDA não existe, porque ela não é uma instituição.83

A falta do registro faz com que a LAMBDA não possa colocar nenhum letreiro com seu nome e logotipo na fachada do imóvel que ocupa como sede.84 Quando perguntei a Danilo a razão para que o Estado Moçambicano resista em reconhecê-los como organização da sociedade civil com plenos direitos, ele explicou que “Moçambique tem instituições bastante fracas. Não é um país legalista. Não é um país que segue leis, é um país de conveniência. As leis são aplicadas de acordo com a conve- niência de quem detém o poder naquela altura”. Interessado em entender a inconveniência dos LGBT perante o Estado moçambicano, perguntei a Danilo sobre a questão. Ele respondeu que os LGBT questionam e colocam em xeque diversas estruturas de poder de sua sociedade:

Os LGBT não são convenientes porque eles, de alguma forma, põem em causa várias estruturas de poder da nossa sociedade. Questionam, por exemplo, a questão da necessidade da procriação, para você ser um elemento ativo dentro de uma sociedade; questionam a questão do casamento… a validade, a sacralidade, sei lá, do casamento heterossexual; questionam a questão da liberdade sexual; questionam a questão do exercício dessa sexualidade; e põem muita gente em desconforto, né? Porque, do ponto de vista cultural, o nosso país tem todos os mecanismos de reforço para a heterossexualidade, né? Tem a cultura, né, de que as pessoas só existem depois de elas… Nas nossas comunidades, no interior, o indivíduo só existe depois de ele casar e ter filhos.85

Das falas anteriores, destaco a defesa de Danilo do registro, antes de mais nada, como princípio de afirmação e reconhecimento dos homossexuais associados diante da sociedade mais ampla. Além disso, o registro também seria importante para viabilizar uma atividade mais autônoma da organização para a busca de recursos que financiem suas atividades. Hoje, por não ter registro, a LAMBDA depende de instituições que eles chamam de “umbrella” ou “guarda-chuva”, ou seja, instituições que podem legalmente receber os recursos dos doadores e repassar para a LAMBDA. Funcionando – como certa vez me disseram – de “bancos”. Essa situação mesma demonstra a ambiguidade do Estado moçambicano que, ao mesmo tempo que não permite que a LAMBDA seja legalizada, permite que outras instituições financiem suas atividades.

Ainda sobre essa ambiguidade na relação com o Estado, Danilo trouxe um exemplo que parece definitivo:

É desafiador porque, enquanto nós temos um Ministério da Justiça que não reconhece legalmente a organização, nós também temos o próprio Ministério da Justiça que, quando precisa de alguma infor- mação relativamente à questão dos direitos humanos, quando precisa da nossa opinião relativamente à questão da revisão de legislação, contata-nos. Eu tenho cartas do Ministério da Justiça endereçadas à LAMBDA. Então, se o Ministério dos Assuntos Constitucionais e Religiosos, quando enviam uma comunicação e a enviam à LAMBDA, então [para] esse Ministério “isto é uma instituição”. […] É um pouco psicótica a forma como o governo em Moçambique lida com esta questão.86

Em meus últimos dias da segunda viagem a Maputo, pude presenciar a movimentação de integrantes do Ministério da Saúde com a LAMBDA para definirem pontos sobre uma nova fase do programa nacional de combate à AIDS, em que uma das populações-chave descritas era a de homens que fazem sexo com homens (os chamados “HSH”.87 Nas últimas eleições presidenciais, o então candidato e atual presidente Filipe Nyusi conclamava, através de sua página no Facebook, um projeto de governo que incluísse todos os moçambicanos, inclusive aqueles de distintas “orientações sexuais”. Este mesmo presidente deu continuidade à política de não legalização da LAMBDA.

Conversei com Danilo sobre o histórico da FRELIMO, que até então tem governado Moçambique, em relação à pauta da sexualidade e aos agentes que dela participam para construir esse contexto de ambiguidade. Chamava a atenção que, no período pós-revolucionário, o homossexual não tivesse surgido como um inimigo do Estado (socialista) moçam- bicano, como ocorrera em outros países vizinhos.88 Podemos ver isso em alguns discursos públicos de Samora Machel, o primeiro presidente do Moçambique independente, em que ele lista diversos arquétipos que corromperiam a sociedade moçambicana (prostitutas, ladrões, corruptores de menores etc.).89 Para demonstrar, mais uma vez, essa ambiguidade – e considerando uma certa mitificação contemporânea da figura de Samora Machel por diferentes correntes políticas em Moçambique – Danilo argumentou por uma certa “tolerância” de Samora, comentando a relação de confiança que o presidente tinha com seu principal adido de imprensa, sabidamente homossexual.

Como me alertara o escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa e agora Danilo, no entanto, o Estado não é monolítico e nem poderia ser reduzido à figura de Samora Machel, apesar de sua evidente importância na guerra e na política. O Estado é constituído de “pessoas”, no plural – enfatizam –, e essas diferentes pessoas formavam diferentes alas dentro do partido: alas mais conservadoras, que, segundo Danilo, estariam “ligadas à tradição e às religiões”, e alas mais progressistas, com quem a LAMBDA consegue ter algum diálogo e trabalhar cooperativamente.

No sentido de perceber como essa ambiguidade da FRELIMO ou de seus dirigentes se deu em um caso concreto, trago um último caso etnográfico a este tópico. Em abril de 2018, estive em um seminário acadêmico internacional sobre masculinidades que ocorreu na Universidade Eduardo Mondlane, e do qual o movimento LGBT – na figura da LAMBDA – fora convidado a participar.90 Nele, houve um fórum específico sobre a questão LGBT, em que uma autoridade daquela universidade, que é estatal, estaria presente. A ideia da LAMBDA era de apresentar um show de drags , entre algumas das comunicações progra- madas para o dia. Ao saber do tal show, a autoridade da universidade teria mandado avisar aos organizadores que não seria conveniente tal apresen- tação em uma universidade pública. Para que a censura não tivesse êxito, uma série de negociações nos bastidores entre a universidade, a organização promotora do evento e a LAMBDA foram estabelecidas. No fim das contas, a apresentação acabou acontecendo, mas Danilo revelou alguns detalhes a mais da história, demonstrando como nem sempre se trata de uma demanda da direção do partido FRELIMO, mas de decisões autocráticas de seus filiados:

Eles não queriam o show. Eles não queriam o show, porque acharam… vem a questão do preconceito, acharam que nós fossemos fazer um show de strip-tease . “Sim, porque homossexuais, homossexuais são viciados em sexo, viciados em sexo, então, vem aqui pra uma faculdade e vão conspurcar tudo isto aqui”. É a mentalidade das pessoas. Nós estivemos lá, demos o nosso show. A pessoa [que queria barrar a apresentação] esteve lá sentada todo o dia, ouviu todas as discussões, não houve nada de obsceno. Inclusive ele, depois, congratulou. Mas isto é para mostrar que muitas dessas decisões – mesmo a questão do registro da LAMBDA – são pessoas. Não é o Estado! São pessoas! São pessoas que estão no poder. Pessoas que não sabem estar no poder, separado aquilo que são suas funções como funcionário do Estado e aquilo que são as suas convicções.91

A conversa com Danilo, todavia, ao demonstrar tanto a relativa “abertura” da FRELIMO para personagens gays importantes de seu quadro quanto a sua intransigência em legalizar a LAMBDA, mais uma vez prova a tensão em Moçambique entre duas categorias chaves que tenho trabalhado nos últimos anos, quando o assunto é homossexualidade no país: a “tolerância” e o “silêncio”.

Considerações finais

Neste artigo, busquei demonstrar uma genealogia possível do movimento LGBT moderno no sul de Moçambique. Dos argumentos centrais, destaco a evidência histórica de seu aparecimento como movimento majoritariamente branco em uma sociedade ainda apartada, no regime colonial, por uma legislação racista e segregacionista. Tal dado é importante para explicar a ideia de que, mesmo na atualidade, é compreensível que setores sociais moçambicanos – especialmente entre a população mais velha e que não partilha dos afetos homoeróticos – compreendam a questão da homossexualidade como algo exógeno, das cidades e, no limite, dos brancos.

O artigo buscou demonstrar também não apenas a origem desse movimento e suas principais pautas (e outras, que por questões culturais e históricas, não foram privilegiadas localmente), mas também a sua relação ambígua com o próprio Estado moçambicano ou sobre algumas das pessoas que o ocupam. Se, por um lado, o Estado moçambicano não reconhece a LAMBDA como organização legítima da sociedade civil, digna do reconhecimento formal e público, com ela o Estado trabalha em algumas frentes para, principalmente, erradicar a epidemia de AIDS no país. Tal dado desestabiliza certas perspectivas analíticas que enfatizam demasiadamente a homofobia como categoria central em contextos africanos, mesmo quando as realidades empíricas são bem mais complexas.

Agradecimento

* Agradeço as leituras atentas das pareceristas e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por ter apoiado financeiramente esta pesquisa, desenvolvida na Universidade de Brasília.

Notas

1 “O termo assimilado aplicava-se aos africanos negros e mestiços que, segundo critérios das autoridades coloniais, eram considerados como tendo absorvido com sucesso (assimilado) a língua e a cultura portuguesas. Em princípio, aos indivíduos com este estatuto legal eram concedidos privilégios e obrigações dos cidadãos portugueses, o que lhes permitia escapar aos fardos impostos à maioria dos africanos (os indígenas). O estatuto de assimilado foi formalmente abolido em 1961”. Sofia Aboim, “Masculinidades na encruzilhada: hegemonia, dominação e hibridismo em Maputo”, Análise Social , v. 43, n. 187 (2008), pp. 273-295.
2 Guilherme de Melo, A sombra dos dias , Lisboa: Livraria Bertrand, 1991.
3 O antropólogo Omar Ribeiro Thomaz afirma que, de acordo com os relatos de Guilherme de Melo e de Eduardo Pitta, “a quase totalidade de homens que gostavam de homens e mulheres que gostavam de mulheres deixam Moçambique. Uns poucos aderem à revolução da mesma forma que entram no armário”. Omar Ribeiro Thomaz, “O tempo e o medo: ensaios sobre Moçambique”, Tese (Livre-Docência), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019. O autor não menciona alguns jovens rapazes que ficaram e que, em vez de entrarem no armário, fundaram décadas mais tarde o movimento LGBT em Moçambique.
4 Francisco Paolo Vieira Miguel, “Maríyarapáxjis: silêncio, exogenia e tolerância nos processos de institucionalização das homossexualidades masculinas no sul de Moçambique”, Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade de Brasília, Brasília, 2019.
5 Charles Tilly, “Movimentos sociais como política”, Revista Brasileira de Ciência Política , n. 3 (2010), pp. 133-160.
6 Tilly, “Movimentos sociais como política”, pp. 136-137.
7 Tilly, “Movimentos sociais como política”, p. 136.
8 Tilly, “Movimentos sociais como política”, p. 137.
9 Tilly, “Movimentos sociais como política”, pp. 136-137.
10 Tilly, “Movimentos sociais como política”, p. 138, grifos no original.
11 Digo “possível” por três limitações usuais aos trabalhos historiográficos: 1) o interesse que conduz o pesquisador para temas ou perguntas que lhe despertam a curiosidade; 2) a limitação dada pela documentação disponível; 3) os vieses possíveis não apenas dessas documentações como dos depoimentos sempre pessoais na reconstrução de uma história oral. De qualquer forma, busquei, se não a tarefa impossível de eliminar os vieses, contextualizar documentos e depoimentos sempre que eles aparecem no texto.
12 Tomo de empréstimo o conceito de “instituição” tal qual formulado por Mary Douglas, Como as instituições pensam , São Paulo: EDUSP, 2017.
13 Miguel, “Maríyarapáxjis”.
14 Gustavo Gomes da Costa Santos, “Cidadania e direitos sexuais na África do Sul: reflexões sobre o reconhecimento legal das uniões entre pessoas do mesmo sexo”, Sociedade e Cultura , v. 15, (2013), pp. 319-329 .
15 Uma subcultura e um mercado gay podem ser observados na África do Sul desde 1960. Assim como em Moçambique, na África do Sul, as primeiras movimentações homossexuais eram formadas “majoritariamente por gays, brancos e de classe média”. Santos, “Cidadania e direitos sexuais na África do Sul”, p. 321.
16 A título de comparação com outra realidade pós-colonial, na Indonésia, Boellstorff também aponta para o fato de que, na década de 1990, as organizações gays daquele país não buscavam visibilidade, mas estavam mais interessadas em promover eventos sociais.
17 Entrevista com Miguel de Brito, Maputo, 7 ago. 2018.
18 Maria Chipenembe, “Sexual Rights Activism in Mozambique: A Qualitative Case Study of Civil Society Organisations and Experiences of Lesbian, Bisexual and Transgender Persons”, Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade de Gent, Gent, 2018; Fabiana Souza, “Discretos e declarados: uma etnografia da vida dos homossexuais em Maputo”, Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015; Miguel, “Maríyarapáxjis”.
19 No entanto, outras festas gays já vinham acontecendo desde pelo menos a década de 1960 em Moçambique. O escritor Eduardo Pitta, na oportunidade da inauguração da ponte que atualmente liga o centro de Maputo a Katembe, relembra em uma postagem em sua página no Facebook de outras festas gays que havia desde os anos 1960 em Katembe: “A praia da Katembe não valia nada, mas havia restaurantes de marisco, uma escola de remo e vela, residências de férias de talvez vinte famílias, e festas gay aos sábados à noite, como as que eram organizadas por Gerry Wilmot, o director da secção de língua inglesa do Rádio Clube de Moçambique. Festas lendárias. Toda a noite, dois gasolinas privados asseguravam, a partir do cais da Praça 7 de Março, a ligação entre as duas margens. Fui habitué a partir de 1967... A actual ponte fica no outro extremo da Katembe”. Eduardo Pitta, Facebook , 12 nov. 2018 .
20 Entrevista com Miguel de Brito, Maputo, 7 ago. 2018.
21 Hoje, um homossexual negro sexagenário, conhecido como Paulino, é o anfitrião de convívios gays, majoritariamente negros, que acontecem atualmente em sua casa na periferia da cidade de Maputo. Um amigo seu, habitué desses encontros, diz a respeito deles: “Cheguei lá e apanhei o padre João da paróquia não sei o quê, da catedral… Não sei o quê… Porque vão muitas figuras. Vão muitas figuras… Então, pessoas adultas. Cinquenta [anos] para cima. São jornalistas, da rádio, são não sei o quê… Porque ele é da [Livraria X]. O próprio dono da [Livraria X] é! Parece que todos que trabalham ali são”. Entrevista com Paula, Maputo, 30 abr. 2018.
22 Entrevista com Miguel de Brito, Maputo, 7 set. 2018.
23 No contexto sul-africano, a Associação Gay da África do Sul (GASA), fundada em 1982, possuía, segundo Santos, “presença predominante de gays brancos de classe média e uma postura claramente conservadora e apolítica, o grupo evitou vincular suas atividades ao movimento de liberação da maioria negra”. Tal quadro só mudaria a partir de 1987, quando duas novas organizações gays e antiapartheid surgiriam no país, a GLOW e a OLGA. Santos, “Cidadania e direitos sexuais na África do Sul”, p. 322.
24 Não à toa, como veremos na próxima seção, o jornal que surgirá escrito por esses mesmos homens brancos moçambicanos buscará “africanizar” a homossexualidade.
25 Entrevista com Miguel de Brito, Maputo, 7 set. 2018.
26 Entrevista com Danilo da Silva, Maputo, 26 jul. 2018.
27 Miguel, “Maríyarapáxjis”.
28 Danilo da Silva, “A luta pela cidadania e pelos direitos das minorias sexuais em Moçambique”, Alternactiva .
29 Rose, uma das cofundadoras de uma organização de mulheres lésbicas no Quênia e interlocutora de pesquisa da antropóloga Kaitlin Dearham diz: “Direitos humanos, a palavra em si, é ocidental. Mas... isso significa que não existiram nunca preocu- pações sobre direitos humanos na África antes do colonialismo? Honestamente, eu não acredito nisso... talvez a palavra usada hoje em dia ou outros aspectos superfi- ciais sejam ocidentais, mas o conceito de direitos humanos, dignidade humana, tratar pessoas com dignidade, senso de justiça, estavam lá”. Kaitlin Dearham, “NGOs and queer women’s activism in Nairobi” in Hakimas Abbas e Sokari Ekine (orgs.), Queer African Reader (Dakar: Pambazuka Press, 2013), pp. 186-202.
30 Caroline Tushabe, “Decolonizing homosexuality in Uganda as a human right’s process” in Toyin Falola e Nana Akua Amponsah (orgs.), Women, Gender, and Sexualities in Africa (Durham: Carolina Academic Press, 2013), pp. 147-154. Para uma excelente síntese de uma teoria queer não branca e sua crítica ao imperialismo LGBT, ver Caterina Rea e Izzie Amancio, “Descolonizar a sexualidade: Teoria Queer of Colour e trânsitos para o Sul”, Cadernos Pagu , n. 53, e185315 .
31 Stephen O. Murray e Will Roscoe, Boy-Wives and Female Husbands: Studies of African Homosexualities, Nova York: Palgrave, 1998.
32 O mesmo parece ter ocorrido em outros lugares fora do Ocidente, ainda que em décadas distintas: Tom Boellstorff, The Gay Archipelago: Sexuality and Nation in Indonesia , Princeton, Princeton University Press, 2005. Para o caso moçambicano, ver: Francisco Miguel, “Séculos de silêncio: contribuições de um antropólogo para uma história da ‘homossexualidade’ no sul de Moçambique (séc. XVI-XX)”, Revista Brasileira de História , v. 41, n. 86 (2021), pp. 111-134 .
33 Bruno Horta, “Guilherme de Melo detestava ser tolerado”, Persona Grata , 29 jun. 2016 .
34 Um dos argumentos de Tilly é de que a democratização seria uma das promotoras da formação de movimentos sociais. Tilly, “Movimentos sociais como política”, p. 150.
35 Coloco a palavra entre aspas para indicar que a dita “popularização” da tecnologia mencionada, como os microcomputadores, fax e fotocopiadoras, assim como o acesso à internet, não atinge grande massa, mas já começa a circular com certa facilidade na classe média urbana maputense.
36 A sigla “LGBT” ainda não era corrente nesse período, assim como a questão trans – como se pode ver no cabeçalho da própria publicação.
37 Entrevista com Miguel de Brito, Maputo, 7 set. 2018.
38 Entrevista com Miguel de Brito, Maputo, 7 set. 2018.
39 Entrevista com Miguel de Brito, Maputo, 7 set. 2018.
40 Miguel, “Maríyarapáxjis”, p. 98.
41 Miguel, “Séculos de silêncio”.
42 Em uma etnografia realizada em um bairro da capital moçambicana na década de 1990, Loforte encontrou 32% de pessoas que julgava “sem um conhecimento profundo da língua portuguesa”. Ana Maria Loforte, Género e poder: entre os tsonga de Moçambique , Maputo: Promédia, 2000, p. 133.
43 Douglas, Como as instituições pensam . Algo semelhante produziu o “Lampião da Esquina”, publicação voltada às questões homossexuais, análoga tanto pelo conteúdo quanto pelo pioneirismo no Brasil, que produziu novas subjetividades e um campo de reivindicação política. Renan Quinalha, “Uma ditadura hetero-militar: notas sobre a política sexual do regime autoritário brasileiro” in James N. Green, Renan Quinalha, Marcio Caetano e Marisa Fernandes (orgs.), História do Movimento LGBT no Brasil (São Paulo: Alameda, 2018), pp. 17-35.
44 As Cores do Amor , n. 1, 20 jul. 2000, p. 1.
45 Francisco Miguel, “‘Sexy Nature’: a naturalização da (homo)sexualidade em uma exposição museográfica”, Anuário Antropológico , v. 39, n. 1 (2014), pp. 99-123 .
46 Junod afirma que as relações sexuais entre os tsonga não eram, pelo menos na virada do século XIX para o XX, uma questão individual, mas ligadas à vida coletiva. Segundo ele, esta é a razão de tantos tabus sexuais referentes aos acontecimentos da vida coletiva. Henri Junod, Usos e costumes dos Bantu , Campinas, IFCH/Unicamp, 2009, p. 170. Conscientemente ou não, o que o movimento LGBT está instituindo ou colaborando para instituir é o projeto moderno de individuação da sociedade, objetivando com isso maior autonomia dos sujeitos e de suas sexualidades perante seus grupos sociais.
47 Algo semelhante já foi verificado na vizinha África do Sul. Ver Santos, “Cidadania e direitos sexuais na África do Sul”, p. 320.
48 James N. Green e Ronaldo Trindade (orgs.), Homossexualismo em São Paulo e outros escritos , São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 134.
49 Isso também ficou bastante claro em minha experiência anterior de pesquisa, quando militantes LGBT de Cabo Verde enfatizavam a questão, apontando que seu trabalho não se limitava ao público LGBT, mas que pretendia defender todas as minorias e demais pessoas necessitadas do país. Francisco Miguel, Levam má bô: (homo) sexualidades masculinas em um arquipélago africano , Curitiba: Editora Prismas, 2016. Na coletânea de Hakimas Abbas e Sokari Ekine, Queer African Reader , é possível ver uma série de textos que vão na mesma direção.
50 As Cores do Amor , n. 2, 4 ago. 2000, p. 2.
51 Kapya Kaoma, Globalizing the Culture Wars: U.S. Conservatives, African Churches, and Homophobia , Sommerville: Political Research Associates, 2009.
52 Gustavo Santos e Matthew Waites, “Comparative colonialisms for queer analysis: comparing British and Portuguese colonial legacies for same-sex sexualities and gender diversity in Africa – setting a transnational research agenda”, International Review of Sociology , v. 29, n. 2 (2019), pp. 297-326 .
53 As Cores do Amor , n. 2, 4 ago. 2000, p. 2.
54 As Cores do Amor, n. 2, 4 ago. 2000, p. 2.
55 Danilo se refere ao Acordo Geral de Paz (1992), que encerrou a guerra civil de dezesseis anos entre a FRELIMO – o partido que ascendeu ao poder após a guerra de independência – e a RENAMO – grupo que contestava o regime de partido único em Moçambique.
56 Entrevista com Danilo da Silva, Maputo, 26 jul. 2018, grifo meu.
57 Em campo, tive conhecimento de uma outra organização chamada MuHoGeDi – Associação Mulheres e Homens pelo Género e Diversidade, fundada em 2017 em Maputo e comandada por um ex-funcionário dissidente da LAMBDA. Em 2018, porém, a MuHoGeDi, apesar de legalizada, não possuía ainda qualquer rotina burocrática nem geria nenhum projeto específico.
58 Uso o termo “virtualmente” porque, apesar da coerência cronológica, sabemos que as idas aos gay prides de Joanesburgo coincidiram, em algum momento, com o jornal, que por sua vez tem sua história também revivida já no contexto de existência da LAMBDA, ao ser retomada a sua publicação.
59 Entrevista com Danilo da Silva, Maputo, 26 jul. 2018.
60 Chipenembe, “Sexual Rights Activism in Mozambique”.
61 A presença do antropólogo e ativista baiano branco Luiz Mott foi bastante impor- tante. Segundo Danilo da Silva, “o Mott vem para trazer a experiência da mobili- zação no Brasil. Para trazer o seu conhecimento com questões relacionadas com a homossexualidade, de gênero… vem como especialista […]. Para nos ajudar [risos] Daí por não ter, aquilo que eu estava a te dizer, todo esse historial acadêmico de pesquisa, de conhecimentos científicos sobre o fenômeno, questão da homossexua- lidade. Não só sobre a questão da homossexualidade, mas também como a questão da violência contra pessoas homossexuais. E fazer esta discussão sobre donde surgiu esta violência. E o Luiz Mott surge por conta também da sua pesquisa em homosse- xualidades na África lusófona. E foi por aí que nós contatamos o Luiz Mott”.
62 Entrevista com Danilo da Silva, Maputo, 26 jul. 2018.
63 Entrevista com Danilo da Silva, Maputo, 26 jul. 2018.
64 Entrevista com Danilo da Silva, Maputo, 26 jul. 2018.
65 Entrevista com Miguel de Brito, Maputo, 7 ago. 2018.
66 Chipenembe, “Sexual Rights Activism in Mozambique”, p. 93.
67 Francisco Miguel, “International Cooperation, Homosexuality and AIDS in Mozambique”, Contexto Internacional , v. 42, n. 3 (2020), pp. 647-664 .
68 Miguel, Levam má bô.
69 Santos, “Cidadania e direitos sexuais na África do Sul”, p. 322.
70 Os regimes autoritários em Moçambique criaram a figura do “agitador”, que algumas vezes vi como acusação a interlocutores meus que promoviam pequenos motins contra seus chefes por insatisfações trabalhistas, mas talvez não seja apenas medo, e seja também uma persistência histórico-cultural mais antiga. Junod, a respeito dos tsonga no início do século passado, enfatiza sempre a pacificidade do povo e chega a dizer que seriam raras as revoltas contra o chefe. Junod, Usos e costumes dos Bantu , p. 353.
71 A antropóloga Ana Costa demonstra também o papel de algumas igrejas que, para proporcionar conforto aos seus membros em difíceis condições econômicas, acabam estimulando neles uma postura de conformismo e aceitação face a essas dificuldades. Ana Bénard da Costa, A preço da sombra: sobrevivência e reprodução social entre famílias de Maputo , Lisboa: Livros Horizonte, 2007.
72 O casamento gay é uma demanda social em Moçambique que atravessa as classes sociais. Alguns interlocutores homossexuais não apenas manifestaram a mim o desejo de poderem se casar em Moçambique, como outros já o fizeram de maneira informal do ponto vista jurídico, mas formal do ponto de vista das tradições culturais – um deles contando inclusive com a prática do lobolo: Miguel, “Maríyarapáxjis”. Para o caso sul-africano, ver Santos, “Cidadania e direitos sexuais na África do Sul”.
73 Entrevista com Miguel de Brito, Maputo, 7 set. 2018.
74 Andréa Lobo e Francisco Miguel, “I Want to Marry in Cabo Verde: Reflections on Homosexual Conjugality in Contexts”, Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology , v. 12, n. 1(2014), pp. 37-66 .
75 Ainda que, em modelos homossexuais mais contemporâneos, uma coisa não neces- sariamente impeça a outra.
76 Para uma crítica sobre a imposição de modelos homoconjugais ocidentais no Sul Global, que, no entanto, nunca vi ser feita pelos meus interlocutores moçambicanos, ver Rea e Amancio, “Descolonizar a sexualidade”, p. 22.
77 No entanto, muitas relações e “contratos” em Moçambique prescindem de leis oficiais e, ainda que não haja legislação para o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou que a Lei da Família não contemple as famílias homoafetivas, os sujeitos acordam seus próprios arranjos e desarranjos. Nesse sentido, Chipenembe conta que, após a separação de um casal de lésbicas que viviam juntas há alguns anos, a família de uma delas obrigou a outra a dividir todos os bens que estavam em posse da nora (ou genro, já que se tratava do sujeito ativo da relação e com uma identidade de gênero ambígua), no que ela (ou ele) contrariada(o), aceitou o acordo. Chipenembe, “Sexual Rights Activism in Mozambique”, pp. 157-158.
78 Miguel, “Maríyarapáxjis”.
79 Registro em meu diário de campo: em Maputo, fui à casa de uma ativista europeia, interessada nas questões dos direitos humanos em Moçambique e em outros lugares de África. Minha curiosidade era a respeito de uma fala anterior dela de que uma autoridade moçambicana havia dito que era melhor continuar mantendo o silêncio em relação à homossexualidade para que Moçambique não “virasse uma Uganda”. De acordo com ela, quem teria dito que a sociedade moçambicana não estava preparada para discutir homossexualidade e que não queria as consequências políticas de perse- guição como ocorre nos países vizinhos foi Ali Bachir, diretor nacional dos direitos humanos e cidadania, em uma reunião ocorrida em 31 de março de 2017. Apesar de entender que mesmo fazendo parte do Estado – e que o Estado não é monolítico – essa voz vem, ao que parece, resumir uma posição das cabeças do atual governo, e ela se casa com as ideias de alguns intelectuais africanos – como Caroline Tushabe – de que a homofobia em África só apareceria depois da instalação de movimentos LGBT, que pretenderam visibilizar a questão. Tushabe, “Decolonizing Homosexuality in Uganda”.
80 Entrevista com Miguel de Brito, Maputo, 7 set. 2018. Tal movimento como “valsa”, ou seja, como cálculos políticos de avanços e recuos, sem confrontação violenta seja com a sociedade seja com o Estado, é o tema do meu atual projeto de pós-doutorado.
81 Miguel, “Maríyarapáxjis”, p. 104.
82 Miguel, “Maríyarapáxjis”, p. 187.
83 Entrevista com Danilo da Silva, Maputo, 26 jul. 2018.
84 A LAMBDA abriga-se dentro de duas grandes casas vizinhas alugadas no Bairro Central de Maputo, certamente construídas originalmente para fins residenciais, mas que hoje estão completamente adaptadas ao uso “institucional”. No entanto, ao avistar da rua a casa principal, onde se localizam todos os escritórios, cozinha coletiva e salas de reunião, não é possível ver qualquer referência de que aquele imóvel sirva a uma organização não governamental, pois, diferente de outras ONG locais, não há qualquer sinalização externa que indique “LAMBDA” ou qualquer outra coisa. Quem vê de fora e não conhece pensa que se trata de mais uma residência da elite de Maputo.
85 Entrevista com Danilo da Silva, Maputo, 26 jul. 2018. Boellstorff demonstra como o casamento heterossexual e a descendência são valores tão fortes na Indonésia, que mesmos os sujeitos gays e lesbis os defendem veementemente: Boellstorff, “The Gay Archipelago”, p. 202.
86 Entrevista com Danilo da Silva, Maputo, 26 jul. 2018 .
87 Ao falar sobre uma “tolerância” que haveria em Moçambique a respeito das questões LGBT, e baseada no dado de 42 participações da LAMBDA em reuniões públicas apenas em 2015, inclusive com o Ministério da Saúde, Chipenembe afirma que ela se tornou uma “parceira essencial” do Ministério da Saúde em programas de HIV voltados para esta população: Chipenembe, “Sexual Rights Activism in Mozambique”, p. 92. A inclusão dos “HSH” em políticas públicas contra a epidemia de AIDS em Moçambique data de 2010. Augusto Guambe, “Dispositivos em Saúde: um olhar sobre equidade e direitos com homens que fazem sexo com homens em Moçambique”, Tese (Doutorado em Psicologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017, p. 4.
88 Nem mesmo Guilherme de Melo, que, como vimos, era um famoso jornalista branco, homossexual, “burguês” e, segundo seu amigo Pitta “irremediavelmente conotado com o Estado Novo” – quer dizer, aparentemente “perfeito” para ser tido como inimigo típico-ideal da revolução, da nova nação africana, heterossexual, socialista e independente – o foi assim tido pelas novas autoridades. Pelo contrário, na segunda vez em que voltou à Moçambique depois de autoexilado, foi a convite do Presidente Samora Machel. Eduardo Pitta, Um rapaz a arder: memórias 1975-2001 , Lisboa: Quetzal Editores, 2013, p. 37-38.
89 Encontrei apenas um discurso de Machel, em outubro de 1979, em que ele menciona a homossexualidade como sendo “abençoada” pela Igreja Católica, esta sim, “agente do colonialismo”. Samora Machel, Fazer do Niassa uma base sólida na construção do socialismo , Maputo: Edição do Partido da Frelimo, 1979, pp. 9-10.
90 Quem organizou o evento foi uma associação não-governamental moçambicana, formada primordialmente por homens, voltada para combater, entre outros, as “masculinidades tóxicas” e que é simpática ao movimento LGBT local.
91 Entrevista com Danilo da Silva, 26 jul. 2018.


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