Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


A ÉTICA DO AMOR NOS PRETOS-VELHOS UMBANDISTAS *
THE ETHIC OF LOVE IN UMBANDA’S PRETO-VELHOS
Afro-Ásia, núm. 66, pp. 451-505, 2022
Universidade Federal da Bahia

ARTIGOS


Recepção: 16 Janeiro 2022

Aprovação: 18 Maio 2022

DOI: https://doi.org/10.9771/aa.v0i66.47696

Resumo: O artigo tem como objetivo perscrutar as entrevistas de história de vida realizadas com médiuns em terreiros umbandistas de São João del-Rei, Brasil, e Montevidéu, Uruguai, durante os rituais em que se declaravam incorporados por pretos-velhos. A pesquisa pauta-se na metodologia da história oral e foi empreendida entre os anos de 2017 e 2021. Observou-se que os relatos colhidos nos terreiros mantinham uma estruturação comum, a despeito de sua enorme distância física, iniciando-se com narrativas de dor e sofrimento, procedidos por falas de resistência e, finalmente, concluídos com a apresentação de valores e conselhos potencialmente angariados com a experiência do cativeiro. Ao se debruçar sobre esses dois momentos finais das entrevistas, foi possível aproximar as falas dos médiuns durante os rituais em que se declaravam incorporados ao conceito de resistência não violenta – tão presente no ativismo de grandes líderes como Gandhi e Martin Luther King. Concluiu-se ainda que as memórias coletivas elaboradas atualmente nos terreiros, bem como muitos dos valores e cursos de ação sugeridos pelos pretos-velhos aproximam-se de maneira muito intensa de parte do movimento antirracista contemporâneo, ressoando as falas de bell hooks, Emicida e Paulina Chiziane, por exemplo.

Palavras chave: Pretos-velhos, memórias da escravidão, resistência não violenta, umbanda, história oral.

Abstract: This study examines interviews conducted with mediums in Umbanda terreiros in São João del-Rei and Montevideo during rituals in which they declared themselves to have incorporated spirits of pretos-velhos. This research is based on oral history methodology and was undertaken between 2017 and 2021. We found that the reports collected maintained a common structure despite the enormous physical distance between the terreiros in the study, starting with narratives of pain and suffering, followed by speeches of resistance, and, finally, concluding with a presentation of values and advice suggestive of the experience of captivity. The statements made by mediums during the two final moments of the interviews (in which they stated having channeled such entities) approximate the concept of non-violent resistance present in the activism of great leaders such as Gandhi and Dr. Martin Luther King, Jr. We also found that the collective memories currently developed in these temples and many of the values and courses of action of the pretos-velhos are extremely resonant with some aspects of the discourse of the contemporary anti-racist movement, echoing statements made by Bell Hooks, Emicida, and Paulina Chiziane, for example.

Keywords: Pretos-velhos, memories of slavery, non-violent resistance, umbanda, oral History.

Amor é decisão, atitude

Muito mais que sentimento

É alento, fogueira, amanhecer

O amor perdoa o imperdoável

Resgata dignidade do ser

É espiritual

Tão carnal quanto angelical

Não tá num dogma, ou preso numa religião

É tão antigo quanto a eternidade

Amor é espiritualidade

Latente, potente, preto, poesia

Um ombro na noite quieta

Um colo para começar o dia

Emicida e Nave 1

Comumente abrigados sob um mesmo “guarda-chuva” denominado pretos-velhos , o conjunto de entidades que atua diariamente nos terreiros umbandistas sob essa alcunha guarda inúmeras especificidades no que tange a suas posturas e narrativas que não podem ser ignoradas. Compreendidos como espíritos de antigos escravizados que atuariam em religiões de matriz afro-americana – notadamente a umbanda – oferecendo consultas, atendimentos e limpezas espirituais, conselhos e consolos, eles teriam a possiblidade de prestar a caridade por meio de médiuns pessoas que teriam a capacidade de “dar passagem” para que esses e outros espíritos falem e atuem por seus corpos. Associados a imagens já muito arraigadas na memória coletiva popular brasileira, esses personagens normalmente são representados – tanto no caso das imagens quanto na própria paramentação dos médiuns nos terreiros – com roupas claras; bengalas; cachimbos; lenços ou turbantes nos cabelos no caso das mulheres; e chapéus de palha no caso dos homens. São comuns os ramos de arruda ou alecrim sobre as orelhas e os pés descalços. Em termos de alimentos e bebidas, a associação mais direta é com o café, a feijoada e o fubá em suas diversas formas, como broa, biscoito, entre outras.

Embora nosso objeto principal de análise sejam os pretos-velhos, como veremos a seguir, é importante apresentarmos brevemente a religião em que normalmente essas figuras se ancoram: a umbanda. 2 As histórias acerca da umbanda, sobretudo nos meios eletrônicos e acadêmicos, remetem invariavelmente à figura de um jovem adoentado no princípio do século XX, tendo como cenário um Rio de Janeiro aprendendo a caminhar no contexto de pós-abolição. Zélio Fernandino de Moraes teria sido acometido por uma repentina paralisia que a medicina tradicional foi incapaz de tratar. Orientado pelo pai, um agente imobiliário seguidor da doutrina espírita kardecista, o rapaz foi buscar auxílio na Federação Espírita Brasileira em Niterói. Durante a sessão, Zélio teria incorporado o espírito de um padre jesuíta , responsável por lhe revelar que as causas de sua doença eram espirituais e indicativas de uma missão: ele seria o fundador de uma nova religião, em que a manifestação de espíritos muitas vezes considerados inferiores pelo kardecismo seria bem-vinda:

Uma religião verdadeiramente brasileira dedicada à adoração e propiciação de espíritos brasileiros: Caboclos (espíritos de indígenas brasileiros) e Pretos-velhos (espíritos de africanos escravizados no Brasil). Essa nova religião restauraria a esses espíritos a posição de respeito e veneração que lhes fora negada pelos Kardecistas. 3

Curado de sua paralisia, o jovem Zélio de Moraes teria passado a incorporar os espíritos do Caboclo das Sete Encruzilhadas (um indígena brasileiro) e de Pai Antônio (um ex-escravizado), fundando e iniciando os trabalhos na Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade. 4 A despeito de se tratar, em última instância, de uma espécie de mito fundador da religião – que nem sempre encontra ressonância nos próprios terreiros umbandistas –, toda essa narrativa associada a Zélio Fernandino de Moraes nos oferece excelente material para reflexão acerca das identidades e grupos sociais que foram e seguem sendo legitimados por meio da umbanda.

Nesse ponto de nossa análise é interessante seguir uma trilha analítica, já adotada por outros pesquisadores, que nos remete à própria dinâmica da umbanda ao longo das décadas. Embora a narrativa associada a Zélio de Moraes remeta de maneira mais direta à religião espírita kardecista, há na umbanda aportes claros de outras tradições religiosas, como o candomblé, o catolicismo, o espiritismo-kardecista e algumas práticas que remetem à África, como o calundu e a macumba , além da pajelança indígena. Essa é a percepção de autores como Pierre Sanchis, que salienta sobretudo o caráter processual e dinâmico desses aportes – sincretismo – no caso das religiões afro-brasileiras no geral e mais especificamente da umbanda. 5

A noção de sincretismo permeia muitas das análises empreendidas acerca da umbanda, principalmente no que diz respeito a uma aproximação ou distanciamento com relação a suas raízes africanas. Ortiz defende que a umbanda teria se deslocado de um “sincretismo espontâneo a um sincretismo refletivo”, num movimento deliberado com vistas à maior legitimação no contexto social brasileiro. 6 Ao longo das décadas teria havido um movimento capitaneado sobretudo pelos chefes das casas (segundo o autor, pessoas de classes médias e escolarizadas) no sentido de adequar suas práticas ao contexto do momento. Desse modo os terreiros umbandistas se enquadrariam numa espécie de continuum mais ou menos ocidentalizado, no sentido de níveis de aproximação ou afastamento de elementos africanos.

Essa visão encontra ressonância, ainda que de forma distinta, nos trabalhos de autores como Capone, que trata especificamente da divisão entre as Federações Umbandistas Brasileiras na década de 1950. 7 Nesse contexto, das seis principais federações, três teriam optado por maior afastamento das práticas associadas à África (deixando de lado, por exemplo, o uso dos atabaques e o sacrifício de animais), enquanto as outras três defendiam mais abertamente esses elementos. Magnani e Lísias Negrão também abordam esse tema. 8 O primeiro autor reforça o fato de a umbanda ignorar suas raízes africanas e remeter suas origens aos povos hindus e a tradições orientais. Negrão, por sua vez, busca demonstrar os movimentos de reinterpretação da umbanda a partir de aportes católicos e espírito-kardecistas.

Giumbelli trata essa oscilação com relação às raízes africanas a partir de um prisma sutilmente distinto, mas não menos interessante. 9 O autor parte de uma contextualização do Sudeste brasileiro em fins do século XIX e princípios do XX, principalmente do Rio de Janeiro. Ele enfatiza a ausência de intelectuais acadêmicos junto aos praticantes e às lideranças religiosas (em contraposição ao que ocorria no Nordeste, com a presença de Gilberto Freyre e Edson Carneiro, por exemplo); bem como a força do espiritismo kardecista em terras cariocas, com uma estruturação institucional, hierárquica e uma projeção pública na política e na imprensa. Esses dois fatores foram essenciais para a categorização no Rio de Janeiro em princípios do século XX do que seria considerado como “baixo espiritismo”. Sem a legitimidade conferida pela presença dos intelectuais e com a necessidade por parte dos grupos kardecistas organizados de se diferenciar de religiões consideradas “inferiores”, muitas práticas passaram a ser taxadas dessa forma. Diante desse contexto, o autor defende que nas primeiras décadas de sua institucionalização os praticantes e defensores da umbanda teriam, de fato, se distanciado da África, buscando esteios mais seguros nos âmbitos do catolicismo e do kardecismo. Esse movimento pode ser percebido pela presença do padre jesuíta no mito fundador, da centralidade da figura de Jesus e da opção, por boa parte dos umbandistas, de seguirem se apresentando como espíritas, ainda que inseridos na variante de “espiritismo de umbanda”. Todos esses elementos, entretanto, não implicaram no desaparecimento das raízes africanas. Pelo contrário, o continente se faria presente nas práticas rituais, nos termos utilizados – pemba, orixás, cambono , dentre outros – e, sobretudo, na proeminência da figura dos pretos-velhos na religião:

Em suma, a umbanda desses pioneiros é talvez um dos primeiros discursos a reconhecer o papel da África – sobretudo na figura dos pretos-velhos – para a construção de uma modernidade nacional. Uma modernidade, enfim, para a qual não eram suficientes as forças e as personagens de uma civilização de inspiração europeia ou ocidental. 10

A relevância da África também pode ser percebida em alguns trabalhos que interpretam a umbanda à luz sobretudo da cosmovisão bantu , como é o caso de Karasch, Malandrino e Trindade. 11 Para essas autoras, a flexibilidade; a capacidade de reinterpretar símbolos e significados, e incorporar novos elementos às práticas preexistentes, sem sobrepujá-las; e a semelhança entre uma série de aspectos práticos e simbólicos, leva a uma aproximação entre as duas visões. Nas palavras de Malandrino:

Mais do que algo que se encontra circunscrito ao ritual propriamente dito, terminamo nossa história bantú, afirmando que o cotidiano dos umbandistas também partilha de um entendimento de mundo e de significação das vivências muito semelhante ao que ocorre dentro da tradição bantú, estando este cotidiano permeado por uma vivência mágica de mundo. 12

Feita essa pequena digressão e retomando nossa caracterização inicial acerca da apresentação dos espíritos dos pretos-velhos na umbanda, temos que todos os elementos memorialísticos que os constituem trazem reminiscências do que compreendemos como um período escravista comum a boa parte dos países americanos. Sua replicação nos terreiros de umbanda tem muito a nos dizer sobre o que compreendemos sobre escravidão e, acima de tudo, quais seus significados e impactos atualmente. Há, sob as generalidades associadas aos pretos-velhos – como, por exemplo, as bengalas, os chapéus ou as próprias narrativas – particularidades diversas: uma bengala decorada com fitas rosa, azul e branca, enquanto outra tem um chocalho de cobra amarrado e um entalhe no topo; o chapéu pintado em diversos tons ou neutro. Para além das questões mais facilmente observáveis, há ainda uma particularidade que merece nossa atenção e estudo: as narrativas elaboradas pelos médiuns durante os rituais em que se declaram incorporados. Entre 2017 e 2020 efetuamos uma série de entrevistas em seis terreiros de umbanda, sendo três localizados em São João del-Rei, Minas Gerais, e três em Montevidéu, capital do Uruguai. Ao longo dessas conversas solicitamos aos médiuns – que se declaravam incorporados por espíritos de pretos-velhos – que nos narrassem um pouco acerca de suas vivências enquanto escravizados.

As narrativas seguiram uma estruturação impressionantemente homogênea, a despeito das distâncias físicas entre os terreiros. Todas as dez entrevistas que usamos como base para redação deste artigo seguiram uma elaboração discursiva iniciada em relatos de dor e sofrimento – físico e emocional, com as torturas, rotinas de trabalho extenuantes e desenraizamento familiar –, migrando para momentos de resistência e oposição ao regime escravista: fugas, intermediação de benefícios junto aos senhores, cuidados com os companheiros de cativeiro, entre outros, finalizando com uma mensagem mais profunda, associada a aprendizados e valores que o período teria trazido – sem diminuir, em nenhuma circunstância, o caráter opressivo e absurdo da escravidão.

Neste artigo pretendemos destrinchar um pouco mais os dois momentos finais das entrevistas, observando mais detidamente as estratégias de resistência e os valores que são comumente atribuídos aos pretos-velhos: a humildade , a sabedoria , a paciência e, acima de tudo, o amor . Analisaremos um pouco mais detidamente suas falas e posturas com relação a esses elementos, propondo uma reflexão que dialoga com os relatos dos próprios médiuns e frequentadores dos terreiros umbandistas. Buscaremos observar, na prática, os constrangimentos que esses valores geram nas atitudes e visões de mundo daqueles que se envolvem de certa forma com os pretos-velhos. É interessante notar que as similitudes entre as falas dos médiuns montevideanos e são-joanenses se intensificam no que diz respeito a esses valores, sobretudo do amor e da humildade. O percurso narrativo apresentado culminava, invariavelmente, na defesa e no ensinamento desses princípios, de modo profundamente semelhante. Todas as nuances anteriormente apresentadas com relação aos rituais, aos objetos e às próprias narrativas são mitigadas, atingindo um nível de proximidade impressionante.

Iniciemos nosso mergulho nesses relatos e valores a partir de uma breve ponderação acerca dos termos usualmente associados aos pretos-velhos. Ao longo de muitos anos de pesquisa sobre o tema, nos deparamos com análises que oscilavam, em distintos graus, entre a construção dessa figura associada à resignação incondicional ao sistema escravista, e sua elaboração como a maneira mais eficaz de resistência a esse mesmo sistema. Faz-se necessário, pois, elucidar esses termos em si, ponderando acerca de sua aplicabilidade ao contexto estudado.

Entre a resignação e a revolta

As pesquisas históricas e sobretudo antropológicas ou sociológicas em terreiros de religiões afro-americanas remonta ao princípio do século XX, com os aportes de pesquisadores como Nina Rodrigues e Arthur Ramos. 13 Desde o início de nossos trânsitos em terreiros umbandistas na condição de historiadores, no começo da década de 2010, entretanto, notamos uma antinomia significativa entre o posicionamento apresentado nos livros e o olhar lançado pelos frequentadores dos terreiros às figuras dos pretos-velhos. Parcela considerável da produção acadêmica sobre o tema, sobretudo até o princípio da década de 1990, caracterizava os pretos-velhos a partir do binômio resignação/ submissão. 14 Somente para citar alguns exemplos, temos a passagem de Capone: “Nos estereótipos presentes no universo umbandista, o negro ‘fundamentalmente bom’ é encarnado pelo preto-velho, o escravo que aceita com resignação sua condição”. 15 Na mesma linha, Montero afirma que os pretos-velhos representariam:

o “negro fundamentalmente bom”, que trabalha na umbanda, divinizado em razão dos sofrimentos a que foi submetido em seu passado escravo; negro que tira sua sabedoria das injustiças sofridas, que tira sua força da capacidade de compreensão humana e de aceitação da adversidade. […] representa o escravo conformado, submisso, ou, como se diz nos Estados Unidos, o negro que, em vez de reivindicar, conhece o seu lugar, como um animal doméstico. 16

Descrições semelhantes ainda podem ser encontradas em Ortiz 17 e Magnani. 18 A literatura mais recente sobre o tema já se distancia dessa abordagem, compreendendo os pretos-velhos a partir de uma ótica mais complexa e elaborada.

Essa visão se contrapõe àquela que emerge, comumente, das falas dos médiuns e frequentadores de terreiros, principalmente daqueles que se declaram negros, como o estudante de teatro, músico e ator Zilvan Lima:

E até nos conselhos que eles dão assim, de encarar as coisas com mais leveza, de ter humildade, sabedoria, e saber fazer silêncio, tem sempre uma coisa da espera que é a resistência. A espera da hora certa de agir . O nego-velho pra mim tem a ver com essa energia que acolhe, que acolhe e por isso que transforma. […] Quando eu penso numa figura assim de resistência, pra mim é o nego-velho, se for pra falar numa palavra, é resistência. 19

Essas distintas interpretações a respeito dos pretos-velhos nos levam a revisitar os conceitos em sua forma mais elementar, para, a partir daí, repensar a construção desse personagem nas práticas dos terreiros. Iniciemos pela noção de resignação . Em sua acepção literal, segundo o dicionário Aurélio, o termo significa ter “paciência com os sofrimentos”. 20 Segundo o dicionário do Google seria “submeter-se sem revolta, acatar, conformar-se” 21 . Já revolta , também segundo o Aurélio, seria uma “manifestação (armada ou não) contra autoridade estabelecida, […], indignação”, 22 sendo considerada revoltada aquela pessoa “que se rebelou, […] amarga, inconformada, que se sente alvo de injustiça”. 23 Inserimos ainda outro verbete, resiliência , ou a “capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças”. 24 Do original em inglês resilience , esse termo remete à elasticidade e se aplica na física à capacidade que alguns corpos possuem de readquirir sua forma original após serem submetidos a deformações elásticas. Por fim, resistência seria a “força que se opõe a outra”, associada ao verbo resistir, “não ceder, fazer frente (a ataque, cusação etc.) […], não sucumbir” – também segundo o Aurélio. 25

A primeira percepção que tivemos após essa rápida busca pelos verbetes mencionados é que se assume um enorme risco de simplificação ao resumir os cursos de ação associados aos pretos-velhos a categorias engessadas como revoltado ou resignado . Conforme veremos a seguir, a construção narrativa dos médiuns quando se declaram incorporados oscila entre todos esses conceitos, variando não somente entre distintos relatos, mas no interior de uma mesma construção discursiva, demonstrando a imensa complexidade na elaboração memorialística em curso.

Observemos algumas falas específicas. São trechos que usualmente emergem na primeira metade das entrevistas – em sua maioria capitaneada pelos relatos de dor e sofrimento –, essenciais para nossa pesquisa principalmente por serem relativizados no trecho final das conversas, conforme veremos mais adiante. Atemo-nos, por enquanto, a esse primeiro momento, por meio das falas de Pai João das Matas/Lucas Arias; Alexander/Africano; Rachel Melo/Pai Benjamim; Rachel Melo/Pai Cipriano:

Nasci escravo, cresci escravo, fui escravo. […] cresci como um escravo muito rebelioso, rebelde, de não aceitar de ser escravo . Porque nós era pessoa boa, minha família era boa, minha mãe era boa mas nós era escravo e mal tratado e sofria sem por que. Então era revoltado que só . Tinha muito como dizia assim hoje na terra, ódio, tinha bronca, tinha raiva de ser escravo. 26

Eu era aquele que lutou muito com as armas , com a pelea [o termo pelear em espanhol está associado à briga no sentido mais físico, agressivo], né, que fala aqui? Ferramentas que nós tínhamos para nos defender e pra atacar nos momentos que nós precisávamos de os alimentos e precisávamos das ferramentas para poder combatir [termo em espanhol para combater]. Eu nasci na quilombola que fala aqui. Eu fui criado um quilombola. Eu vivi nessas comunidades, mas como eu falei muito tempo pra vocês nessa luta que nós tínhamos íamos nas terras do homem branco pra procurar e convencer aos nossos irmãos pra volta com nós. 27

Já fui quimbandeiro, já fui na magia negra . 28

Quando tava nessa terra eu usava a capa filha, mas era porque a gente era obrigado a fazer certas coisa escondida. E quando botava a capa os dono da fazenda tinha medo. E falava que eu era bruxo. 29

De todas as entrevistas analisadas – quinze no total –, tivemos a presença de relatos pautados nesse sentimento de revolta em seis casos. Dentre os trechos transcritos, dois foram de pretos-velhos definidos como “cruzados”: Pai Benjamim/Rachel Melo e Pai Cipriano/Rachel Melo, entendidos como aqueles que atuariam, concomitantemente, nas linhas da esquerda e da direita. 30 Conforme mencionamos anteriormente, a atuação desse grupo específico de pretos-velhos congregaria formas de ação e valores a eles muito associadas, como sabedoria, ponderação e humildade, com aqueles mais próximos aos exus – discurso e ações mais incisivos e menos pacientes e acolhedores, com maior relativização dos conceitos de bem e mal. Na definição dada por Carlos Nieto, do Centro Umbandista de Caridade Nossa Senhora Aparecida em Montevidéu, os pretos-velhos cruzados ou de “tronqueira” – como também são chamados no Uruguai –, são aqueles que estão desenvolvendo a compreensão acerca do equívoco moral presente no ato de se causar danos ou fazer mal ao próximo, e nutririam sentimentos de rancor e mágoa. Ainda nesse grupo de seis entrevistados, temos o caso de um médium uruguaio cuja entidade estaria mais próxima ao grupo dos africanos (Pai Alexander/Africano). 31 E o último é um preto-velho (Pai João das Matas/Lucas Arias) também de Montevidéu, cuja narrativa será central para nossa análise neste artigo e à qual retornaremos inúmeras vezes. Afloram, em todos os relatos, elementos de violência física (como pelear ou combater) ou simbólica (associações à magia negra e à bruxaria), além de um comentário explícito sobre a noção de revolta. Esse mesmo médium/preto-velho que se definiu como “revoltado” narrou que teria sido responsável por colocar muita pimenta na comida dos proprietários da fazenda e servir carne estragada durante o período em que trabalhou na casa grande. Ele menciona ainda inúmeras tentativas de fuga e o auxílio na de diversos escravizados. Os outros dois pretos-velhos que se apresentaram de maneira mais “revoltada” e cujos relatos não transcrevemos possuem suas narrativas associadas basicamente a fugas.

Acompanhando as histórias relatadas durante essas entrevistas, entretanto, alcançamos um ponto comum que pode ser caracterizado como algo entre o arrependimento por essa ação mais revoltada e um reconhecimento da ineficácia mais ampla desse tipo de atitude frente a outras estratégias de resistência. Transcrevemos a seguir esses relatos, seguindo exatamente a mesma ordem já apresentada: Pai João das Matas/Lucas Arias; Alexander/Africano; Rachel Melo/Pai Benjamim; Rachel Melo/Pai Cipriano:

E que tudo, tudo que nós faça por mais injustiçado que nós seja, pra prejudica o outro, sempre vai se cobrado, sempre vai se cobrado . Eu fui cobrado de todas pimenta que botei demais num prato, eu fui cobrado de tudo que eu fiz de errado, mesmo sendo escravo, mesmo sofrendo. Porque essa é a grandeza do espírito. Essa grandeza duma alma.

É pode mesmo sofrendo, mesmo sendo machucado, não desejar o mal pro outro . Não querer ferir o outro. 32

Nós gritávamos. Nas armas, na luta. Porque entendíamos que era nesse momento que se tinha que lograr isso, pero o preto-velho entendeu que a guerra era muito mais… era muito mais com o tempo. Não era agora que se va a lucrar, sino que vai levar muito mais tempo. E ele logrou conseguir muito mais coisa assim que nós, nas nossas quilombolas que hoje ficam muito poucas das nossas terras. 33

Já fui quimbandeiro, já fui na magia negra, queira nem prende isso não, fia. Num tem nada contra, fia. Mas cada um precisa caminha e sabe que o outro é irmão, né fia. Tudo que é feito contra um, vai contra as leis de Deus . Porque o primeiro mandamento que Deus deu não é ama o outro como ama a gente mesmo? 34

Cada um tem um degrau, fia, quando a gente vai embora. Vosmece presta conta e vosmece vai fica no seu degrau. Tem que vir nessa terra mesmo, pra pode faze ajudador pra subi, se não quise vorta. Eu num quero vorta, lá eu sô livre. Tenho muita labuta. Labuto muito pro bem, porem fia, é necessário que eu venha nessa terra. Pra pode, pruque eu também errei. Num vo joga pedra no outro sendo que eu também tenho meus erro. Também errei muito nessa terra, nessa terra, nessa vida em que vim. Por isso hoje preciso tar aqui . 35

Depreende-se dessas transcrições dois elementos que são essenciais para nossa análise: o primeiro diz respeito à defesa recorrente da prática de não responder a atitudes injustas e violentas da mesma forma, não revidar o mal com o mal; a segunda se refere à adoção de outros cursos de ação, não pautados no embate agressivo, cuja efetividade seria mais alta. Esses dois aspectos dialogam de maneira muito intensa entre si e encontram ressonância em muitas falas recolhidas em praticamente todas as entrevistas. Analisando-se essas passagens e retomando os conceitos elaborados no início deste tópico, podemos perceber que a noção de resistência congrega distintos meios de ação. O ato ou o sentimento de se opor a determinada situação (conceito base de resistência) pode ser instigado por um sentimento de rebeldia e de inconformidade – normalmente associado à adoção de um curso de ação mais agressivo; mas também pode ser erigido a partir de uma adequação de atitudes à situação, sem uma oposição explícita e violenta (resiliência), mas tampouco consistindo numa submissão ou conformação absolutas (resignação). O que encontramos na construção discursiva desses médiuns durante os rituais em que se declaravam incorporados foi, sobretudo, uma defesa de posturas que nós interpretamos como resilientes, não resignadas ou tampouco revoltadas. E essa percepção encontra eco nas visões elaboradas pelos próprios médiuns, como veremos adiante. Vejamos mais dois trechos, referentes às entrevistas com Pai Casildo Silvera/Pai Joaquim de Angola e Cíntia Lima/ Vovó Cambinda de Aruanda, respectivamente:

Tínhamos conversa com eles, e eu sabendo porque estava mejor privilegiado com os senhores podia fazer algo […] Eu conhecia tudo o que os senhores tinham , no só pensado, se não estratégias que eles tinham que os escravos não conheciam e eu sim. Então, eu dormia com eles, e adiantava todos os esses conhecimentos para que eles tivessem mais cuidado com as coisas […]. Eu tirava informação e dava pra eles pra que eles pudessem fugir e se instalar em lugares que eu também sabia pelos senhores, que já tinha descoberto lá naquele montanha quilombola. Lá naquela outra estabelecimento de preto, o índio. […]

Então, quando eles fugiam podiam prever no cair em essas trampas que os senhores construíram, pra que eles não fugissem. 36

Então fia, era respeitada e de um certo modo também era porpada, né fia. Porque os patrão za precisava dessa mão de obra de nega . Que nega vai fala procê, não é que queriam não fia, mas não dava tempo de chega za quem eles queria, então aí buscava nega cá e quem zi fazia o serviço era nega . 37

Em ambas as falas se nota claramente a instrumentalização de uma posição minimamente privilegiada – que teria sido alcançada junto aos senhores – para o benefício do grupo. No primeiro caso, a narrativa defende que a proximidade com os donos da fazenda teria facilitado e garantido a fuga de outros escravizados; enquanto no segundo, o fato de deter um conhecimento específico (com relação à realização de partos e à cura de algumas doenças), teria permitido uma atuação direta tanto entre os senhores quanto entre os demais escravizados, ampliando o poder de barganha com os primeiros. Conforme apresentado por Sweet, já nas primeiras décadas do século XVII há registros nos arquivos inquisitoriais de senhores portugueses buscando os conhecimentos de negros de origem centro-africana para tratar seus escravizados. 38 O autor menciona, inclusive, o caso de um padre carmelita baiano, Padre Luís de Nazaret, que direcionava pessoas a tratamentos com certos escravizados que, segundo ele, seriam os únicos capazes de remediar determinadas doenças. 39 Outra narrativa interessante é a de um negro chamado Francisco Dembo, que teria recebido uma quantia considerável para diagnosticar a doença de uma escravizada, Catarina. O responsável pelo pagamento foi o próprio senhor da cativa. Alegando que a moça sofreria de feitiços, ele teria realizado alguns rituais e solicitado que ela ficasse afastada dos serviços braçais por alguns dias. Posteriormente, descobriu-se que Catarina na verdade estava grávida. De qualquer maneira, o conhecimento de Francisco garantiu um duplo benefício: a ele, que recebeu pelo serviço; e a Catarina, que foi poupada do trabalho por algum tempo. 40 Ainda no século XVII, mas também em princípios do XVIII, encontram-se registros do uso dos conhecimentos medicinais e religiosos de escravizados para tratar senhores. Sweet menciona, inclusive, casos em que os proprietários de cativos que detinham fama como curadores ofereciam seus serviços em troca de ganhos materiais consideráveis. 41

Essa possibilidade de barganha e da aquisição de uma situação menos degradante graças ao domínio de algum tipo de conhecimento presente nas entrevistas que efetuamos nos terreiros e nos arquivos pesquisados por Sweet condiz com boa parte da bibliografia acerca da escravidão. Impossível furtar-se à menção do clássico texto de Eduardo Silva, denominado “Entre Zumbi e Pai João, o escravo que negocia”. 42 O que encontramos em diversos momentos nos discursos ao longo das entrevistas foi exatamente o que o pesquisador expôs em seu artigo: a manipulação e a transgressão por parte de escravizados e senhores no sentido de obter a colaboração da outra parte. Como descrito por Silva, a prática da negociação, a busca pela solução não violenta de conflitos e a elaboração de estratégias para mitigar as agruras do cativeiro foram a regra no contexto do momento, muito mais que os enfrentamentos diretos, assassinatos de senhores ou rebeliões escancaradas. O autor menciona, dentre os cursos de ação muitas vezes empregados, a chamada “brecha camponesa”; a constituição de laços afetivos estáveis por meio das famílias (em diálogo com o trabalho de Robert Slenes); a atuação direta para a aquisição da própria alforria (com base nas pesquisas de Kátia Mattoso e Stuart Schwartz); a prática de recorrer pelos meios disponíveis – irmandades e clubes abolicionistas, por exemplo –, contra as arbitrariedades ou desonestidades dos senhores; e a especialização do trabalho. Embora os relatos obtidos nos terreiros não elaborem memórias tão específicas com relação a esses tópicos, essas estratégias permeiam de certa maneira todas as entrevistas.

Exemplifiquemos com a já mencionada transcrição de Vovó Cambina/Cíntia Lima. A construção mnemônica aqui estabelecida se pauta na ideia de que a escravizada seria “poupada” de maiores sofrimentos e sua opinião respeitada pelos senhores em função dos conhecimentos medicinais que detinha e que os beneficiavam tanto quanto os escravizados. Trata-se, claramente, do estabelecimento de um espaço de negociação que permitiria uma melhoria das condições de vida (sem perder de vista que “não sucumbir” também significa “resistir”). Conforme defendido por Silva, a adoção dessas estratégias não tinha qualquer relação com uma abordagem atenuada do sistema escravista ou da defesa da vigência de relações idílicas e harmoniosas. 43 Encontramos nessas construções discursivas a prática recorrente da barganha e da negociação com vistas à melhoria das condições de vida em sentidos bastante próximos àqueles apresentados nas pesquisas de Lara, ainda que a partir de caminhos metodológicos completamente distintos. 44 A noção de resistência não se resume, necessariamente, à adoção de estratégias violentas.

Inegavelmente, estas [ fidelidade ao senhor para obter alforria ou o cumprimento de tratos sobre vestuário e alimentação; recusa a certos trabalhos; aproveitamento de brechas criadas pelas tensões entre senhores… ] são formas de resistência. Não estão abarcadas, porém, nem pelo binômio ação-reação, nem por uma classificação baseada na “violência”. Mais ainda: muitas delas constituem ações de resistência e ao mesmo tempo de acomodação, recursos e estratégias variados de homens e mulheres que, em situações adversas, procuravam salvar suas vidas, criar alternativas, defender seus interesses. 45

A memória da escravidão associada à figura dos pretos-velhos que se constrói atualmente nos terreiros reforça, ainda, a percepção da relevância que o uso dos espaços de “privilégio” conquistados no sistema teve no sentido de perpetuar e transmitir um pouco da cultura e dos valores que remeteriam a uma ancestralidade africana. Há uma reminiscência da noção de que esses idosos foram os grandes responsáveis por essa transmissão de conhecimentos ancestrais. A revolta levava invariavelmente à morte, a um fim trágico e precoce dos escravizados, o que inviabilizaria essa disseminação do conhecimento. Mesmo seu estabelecimento em comunidades isoladas, como os quilombos, restringiria essa sabedoria ao grupo que ali se encontrava. A fala do Pai Alexander Silvera/Africano é emblemática nesse sentido:

Por isso eu disse faz muito tempo que o preto-velho que ficou lá na civilização que ficou lá na sociedade imposta por um branco tinha más como que se diz, mais, logro muito mais coisas na realidade de que nós. Na nossa revolução. Porque ele ficou lá e com essa tranquilidade, com essa pacença que ele tem logro continuar transmitir a nossa cultura. E logro que hoje a sociedade reconheça em cada um de eles o aporte da nossa comunidade . 46

A relevância dessa figura do ancestral e do idoso nas comunidades escravizadas no que se refere à transmissão de uma sabedoria é ponto inquestionável e já foi trabalhada por Rezende 47 e em ampla bibliografia na historiografia. É impossível reler essas falas e não as associar ao trabalho de Slenes. 48 O estabelecimento de laços de solidariedade no interior das senzalas, segundo o pesquisador, essencial no processo de formação e estabilização das famílias escravas, mantinha relação direta com uma herança africana. A figura poética da flor na senzala se sustenta na encruzilhada de tempos – passado, presente e futuro – elaborada no encontro entre recordações e esperanças. Slenes demonstra claramente que esses dois elementos eram cotidianamente trabalhados nos cenários das senzalas por meio da figura do velho e da transmissão de suas memórias, entre diversos outros aspectos. É ele o responsável, por exemplo, por transmitir os conhecimentos acerca da caça que auxiliaria na subsistência, ou da própria manutenção do fogo – elemento fulcral na argumentação do autor. 49

Gostaríamos, entretanto, de dar um passo além dessa relevância dos idosos na preservação e propagação da cultura e dos conhecimentos, muito mais bem trabalhada por outros autores. Tendo como base as entrevistas que realizamos, torna-se imprescindível destacar a associação explícita que se faz entre esse fato e a adoção de uma estratégia pacífica, de resistência mais ampla ao sistema a partir de um enfrentamento não agressivo . A profundidade dessa fala é pujante. A opção pela violência teria como consequência direta a não transmissão de uma memória. O impacto dessa opção pela negociação e pela atuação nos espaços conquistados no sistema garantiu a sobrevivência física até uma idade mais avançada, o que proporcionaria, por sua vez, a perpetuação de uma sabedoria ancestral, que pôde ser repassada e difundida. Conforme demonstrado nas falas de Pai Alexander Silvera/Africano e de Pai Lucas Arias/Pai João das Matas, a construção mnemônica que se tem é a de que a opção por cursos de ação mais violentos levou ou à morte prematura ou ao estabelecimento de limites à difusão de uma cultura ancestral, o que implicava em barreiras claras e intransponíveis à transmissão do conhecimento. Toda essa percepção se resume na fala anteriormente transcrita de Pai Alexander Silvera/Africano: “ele ficou lá e com essa tranquilidade, com essa pacença que ele tem logrou continuar transmitir a nossa cultura”. Em sua opinião, as conquistas alcançadas pelo preto-velho só puderam/ poderão ser sentidas no longo prazo.

Retomando os outros trechos supramencionados, notamos que o impacto desse conhecimento ancestral pode ser percebido não somente entre os escravizados, mas também entre os senhores. Em diversas entrevistas aparecem relatos referentes à aplicação desses saberes também pelos proprietários dos escravizados. O uso de chás e emplastos à base de ervas, o auxílio na realização de partos e mesmo a prestação de serviços de caráter mais mágico, como revelar segredos do passado ou prever o futuro são alguns exemplos. Narrativas desse tipo também encontram ressonância nas pesquisas pautadas em processos criminais do período inquisitorial no Brasil. Um caso bastante representativo pode ser encontrado nos trabalhos de Marcussi sobre a africana liberta Luzia Pinta, cujos pretensos poderes sobrenaturais teriam servido a brancos e negros. 50 Outros relatos também figuram no trabalho de Sweet. 51

Retomando a questão das formas mais sutis de oposição ao sistema escravista, nos deparamos com a seguinte fala de Pai João das Matas/Pai Lucas Arias:

Discobri a mata, a erva, a pranta, discobri que ela podia e via que curava, que tirava a dor, que aliviava sofrimento, então eu disse, pra mim mesmo: se eu não posso derruba toda essas parede, eu posso ir curando meus irmão, eu posso ir defendendo eles do perigo , eu posso ir de golinho em golinho, me embrenhando na mata, não eu entrando na mata, trazendo pra a mata pra mim. E fui aprendendo, de golinho em golinho, que era cada pranta, o que era cada árvore, de que se tratava, de que servia cada raíz, pa que se usava. E fui aprendendo, e fui fazendo.

Até que fui me dedicando somente a isso. […] Tinha gente do meu povo que vinha acudi comigo pra cura a ferida para curar o lastigazo, pra alivia a dor de quem tava no tronco, pra alivia a fome de quem tava lá em baixo não tinha com o que era comida . Uma erva que saciasse a fome, uma erva que fizesse com que não sentisse sede! E tudo isso ia eu, lá ia eu. E fazia porque eu entendi que com essa mínimo coisinha eu também me tava emprenhando na mata, e também tava contribuindo que meu povo fosse livre, livre da fome, livre da sede, livre da dor, livre do sofrimento52

Ao mencionar que não seria capaz de “derrubar essas paredes”, mas que poderia atuar numa escala menor, de maneira a cuidar e defender seus irmãos, aliviando suas dores e seus martírios, a narrativa transcrita deixa entrever uma nova possibilidade de liberdade e de estratégia para não ceder ao sistema – de resistência em última instância. E é extremamente poético o momento em que ele se refere ao fato de essa estratégia permitir que a “mata viesse até ele”. Em outro momento dessa entrevista, Pai João das Matas/Pae Lucas Arias havia comentado que a mata era, para ele, sinônimo de África. O continente estaria, em sua interpretação, “oculto” nas florestas que circundavam a fazenda. Impossibilitado de adentrá-la (suas diversas tentativas de fuga haviam sido frustradas e implicaram em torturas e mortes), ele percebe a possibilidade de adoção de um curso de ação distinto: trazê-la para si. Esse movimento o levava a instrumentalizar conhecimentos e saberes com o intuito de acalentar e aliviar as dores físicas e emocionais dos seus. Serena-se, de alguma forma, aquele sentimento de revolta que levava ao embate com o capataz, à agressão aos funcionários da fazenda e à fuga; e percebe-se que era possível alcançar outras formas de liberdade. A ação aqui deixa de ser pautada pela inconformidade revoltada e passa a ser capitaneada por um sentimento mais profundo de amor e zelo pelos irmãos de condição.

Uma vez mais recordamo-nos, durante a análise dessa fala, das pesquisas de Slenes. 53 Entendemos, tal como postulado pelo autor, que a tessitura da flor nas senzalas só pode ser compreendida a partir dos encontros entre as heranças da África e as experiências no cativeiro. Há alguns parágrafos mencionamos a elaboração dessa flor a partir das recordações dos mais velhos. Aqui nos deparamos também com a noção de esperança . O discurso de resistência às condições adversas do cativeiro se erige a partir de um retorno à África, com vistas ao alívio do sofrimento físico, entendido, ainda, como uma forma de libertação: “tava contribuindo para que meu povo fosse livre”. De certa forma, é como se as flores percebidas por Slenes encontrassem ressonância nas formas como as ideias sobre a escravidão são construídas hoje, mesmo em lugares tão distantes como um bairro afastado de Montevidéu ou nas periferias de São João del-Rei. Essa construção mnemônica associada às formas “disponíveis” de liberdade remete, ainda, ao que Chalhoub menciona como uma busca pela “liberdade dentro do campo de possibilidades existentes na própria instituição da escravidão”, sem grandes arroubos de violência. 54

Seguimos com o depoimento de Rachel Melo/Pai Firmino:

Era uma moça formosa, não que esse nego tivesse alguma coisa com essa moça. Mas como já falei pra vosmecê eu era muito teimoso. Eles falaram não vai, não vai. O nego falo: vô. Vô. Vô faze ajudador da moça . E eu trazia [ a ideia de trazer aqui é no sentido da incorporação de um espírito africano ] um povo lá da minha terra que era um povo de muita luz, quando tava nessa terra. E a moça tava em sofrimento. Quando segurei nos braço dela ela oio pra esse nego e falo me socorre que eu vô embora. Esse nego não podia deixa de ajuda, né fia. 55

Nesse trecho nos deparamos com uma elaboração em que o escravizado se opõe de maneira explícita às orientações do senhor da fazenda no sentido de fazer o que seria moralmente correto em sua visão: auxiliar uma irmã em sofrimento. Há vários outros relatos que seguem esse mesmo caminho. Temos ações como a preparação de chás abortivos, no intuito de evitar a gravidez das escravizadas; o roubo de comida nas cozinhas da casa grande para alimentar um companheiro doente; e o próprio compartilhamento de informações privilegiadas, obtidas junto aos senhores. Nesse último caso, tivemos relatos que mencionaram a divulgação nas senzalas sobre as melhores rotas de fugas, sobre os locais vigiados pelos feitores e acerca das negociações para venda de crianças da fazenda. Todas essas narrativas apresentam de maneira muito clara atos de desobediência civil e de resistência. Em busca de elementos de correspondência entre esse tipo de construções mnemônicas e as produções baseadas na metodologia da história oral com descendentes de escravizados, encontramos um relato bastante significativo na pesquisa desenvolvida por Assunção no Maranhão. 56 Segundo a narrativa de D. Raimunda Pio, de Santa Quitéria, certa vez um garoto chamado Benedito, que pertencia a determinado senhor, teria roubado um pouco de comida para auxiliar um amigo faminto. Flagrado pouco depois da ação, o objeto do furto teria se transformado em flores, impedindo que o senhor o culpasse. Ao ser procurado no dia seguinte o rapaz teria se transformado em uma imagem em tamanho real. A leitura que a comunidade faz é que ele seria, na verdade, o famoso São Benedito.

Ainda no que refere ao furto de alimentos, encontramos um relato na tese de Souza durante uma entrevista que realizou com a médium Jandira, na Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, no Rio de Janeiro, durante o ritual em que se declarava incorporada. 57 D. Jandira era, no momento da conversa, a médium mais velha da casa, tendo atuado durante décadas ao lado de Zélio Fernandino de Morais. No relato a seguir a pesquisadora retoma sua fala a respeito dos dois pretos-velhos com quem trabalhava: Vó Palmira e Pai Ricardo.

[ D. Jandira ] contou que seus dois pretos-velhos foram companheiros numa mesma fazenda. Não bastava estarem juntos no mesmo lugar, tinham ainda uma relação de amizade. Ricardo era muito fominha e Palmira sempre dava um jeitinho especial de levar algo para ele comer. Era uma gentileza misturada com a picardia de darem juntos um certo prejuízo aos seus senhores. Algumas vezes retirava uma parte de sua própria comida, para aplacar a fome dele. 58

Cabe ressaltar que esse tipo de relato não é muito comum na historiografia, sobretudo por seu caráter muito peculiar e “invisível” em termos documentais – seria muito difícil esperar que atitudes assim figurasse em documentos oficiais, pinturas ou diários de viajantes, ou mesmo que permanecessem na memória coletiva. Elas emergem de maneira muito intensa e recorrente, entretanto, no universo literário. Deparamo-nos com essas ações em obras abolicionistas como A Cabana do Pai Tomás e, principalmente, em romances espíritas. Abnegação e devotamento são os motes de escravizados idosos que em diversos momentos se submetem a castigos com o intuito de proteger e auxiliar seus companheiros. Tais atitudes, assim como no caso dos relatos desses médiuns/pretos-velhos, são usualmente norteadas por uma ética religiosa muito profunda, à qual retornaremos mais detidamente em breve, mas que já se apresenta como elemento estruturador de nosso próximo tópico.

Gostaríamos de convidar o leitor a compreender um pouco melhor um conceito que foi ganhando corpo com o decorrer das interpretações e análises que empreendemos até aqui: resistência não violenta . As semelhanças entre as narrativas dos médiuns durante os rituais em que se declaravam incorporados e a noção de resistência não violenta apresentada inicialmente por Mahatma Gandhi no tempo de sua atuação na África do Sul e na Índia e, posteriormente, por Martin Luther King no movimento de luta pelos direitos civis nos Estados Unidos é premente. Compreendê-la permitirá aprofundar nosso entendimento no que fundamenta boa parte das construções mnemônicas associadas aos pretos-velhos, bem como suas consequências. E é justamente esse o fio norteador do item a seguir.

Resistência não violenta 59

Então acho que esse tipo de reação nasceu do fato de me descreverem como um educado Pai Tomás . Sempre achei que eles nunca entenderam o que eu dizia. Não perceberam que há uma grande diferença entre não resistir ao mal e resistir a ele de forma não violenta . É claro que não estou dizendo para vocês se sentarem e aceitarem pacientemente a injustiça. Estou falando de uma força muito poderosa que o faz levantar-se com todo o vigor contra um sistema perverso e não ser um covarde. Você resiste, mas acaba percebendo que tática e moralmente é melhor ser não violento. 60

O trecho transcrito acima foi extraído das memórias de Martin Luther King e se refere à forma como grupos nacionalistas negros defensores da adoção de estratégias mais violentas interpretavam e repudiavam sua atuação naquele momento. King havia sofrido, recentemente, um ataque com ovos perpetrado por esses grupos, aparentemente após terem sido incitados por Malcolm X. 61 Tanto a passagem como o contexto em que foi proferida são extremamente simbólicos para pensarmos a noção da resistência não violenta. O primeiro elemento que nos chama atenção é o uso do epíteto “Pai Tomás”, do romance de Harriet Beecher Stowe, para descrever King. Essa associação entre King e o uncle Tom é realizada de maneira explícita por Malcolm X em entrevista concedida a Kenneth Clark em 1963. A justificativa para a alcunha, seguindo o ativista, estaria alicerçada na semelhança de respostas dadas a um sistema segregacionista opressivo e violento, vedando aos negros a possibilidade de defesa assentada em um discurso religioso de amor ao próximo.

Seguindo as palavras de King, a interpretação dada por Malcolm X e diversos integrantes do movimento ignoravam a real dimensão, e consequentemente o impacto, daquilo que ele propunha. A essência do fundamento da sua estratégia de resistência pacífica estava em resistir ao mal de maneira não violenta e não em não resistir ao mal , havendo, verdadeiramente, um “mundo de diferenças” entre essas duas posições. 62 A elaboração/adoção dessa estratégia por Martin Luther King levou alguns anos e pode ser acompanhada com clareza em seus discursos e cartas. Suas raízes remontam no tempo e no espaço, encontrando afluentes em terras tão distantes quanto a Índia e a Rússia. Criado em uma família profundamente cristã da Igreja Batista, King teria empreendido ao longo de toda sua juventude uma busca intelectual por métodos que permitissem eliminar as injustiças sociais a que ele e toda a comunidade negra eram submetidas na realidade norte-americana. Leitor voraz de todo tipo de literatura social e filosófica, o jovem pastor e ativista encontraria a chave de seus anseios em uma palestra proferida pelo reitor da Universidade Howard, Mordecai Johnson, em 1950. O tema central era o Mahatma Gandhi:

O dr. Johnson tinha acabado de voltar de uma viagem à Índia e, para meu grande interesse, falou sobre a vida e os ensinamentos de Mahatma Gandhi. Sua mensagem foi tão profunda e eletrizante que saí da reunião e comprei meia dúzia de livros sobre a vida e a obra de Gandhi. […] Enquanto lia fui ficando profundamente fascinado por suas campanhas de resistência não violenta. 63

King encontrara em Gandhi o método que estivera buscando para transformação social a partir de meios moralmente justos e aceitáveis, em consonância com suas crenças cristãs de amor ao próximo. Segundo seu relato, até aquele momento, era-lhe inconcebível transferir a ética pregada nos Evangelhos para a esfera pública, coletiva. Ele a compreendia como um instrumento viável e eficaz para pautar as interações entre os indivíduos em pequenos grupos ou comunidades, tornando-se impraticável no âmbito de nações ou grupos raciais. Essa leitura se transformou a partir dos aportes de Gandhi, conforme sua afirmação:

Gandhi foi provavelmente a primeira pessoa na história a elevar a ética do amor de Jesus acima da mera interação entre indivíduos como uma força social amplamente poderosa e eficaz. Para Gandhi, o amor era um forte instrumento de transformação social e coletivo. Foi nessa ênfase de Gandhi no amor e na não violência que descobri o método de reforma social que estava procurando . A satisfação intelectual e moral que não conseguira obter do utilitarismo de Bentham e Mill, dos métodos revolucionários de Marx e Lênin, da teoria do contrato social de Hobbes, do otimismo da “volta à natureza” de Rousseau, da filosofia do super-homem de Nietzsche, encontrei na filosofia da resistência não violenta de Gandhi. 64

Almejando um melhor entendimento acerca dessas noções de amor e resistência não violenta, voltemo-nos aos escritos do próprio Mahatma Gandhi. Enquanto Martin Luther King se depara com os efeitos perversos do racismo e da segregação desde a mais tenra infância em Atlanta, no sul dos Estados Unidos, Gandhi deixa entrever em sua autobiografia que suas percepções sobre as discriminações vão sendo elaboradas ao longo de sua vida, principalmente a partir de suas vivências na África do Sul. 65 É sobretudo nas situações cotidianas a que se vê submetido enquanto um estrangeiro não branco numa realidade fortemente preconceituosa que Gandhi vai estudando, trabalhando, elaborando e praticando suas teses de resistência não violenta. 66 O Mahatma denominou esse método como ahimsa , ou a abdicação do uso da violência em qualquer esfera da ação humana: atos, palavras e pensamentos. O ahimsa seria a chave ou o caminho imprescindível para aquilo que se tornaria a grande missão e o objetivo maior de vida proposto por Gandhi a ele mesmo e àqueles que desejassem acompanhá-lo: a satyagraha , ou a força do amor . Tal como King faria algumas décadas depois, Gandhi acreditava devotadamente na potência do amor, conforme podemos verificar neste trecho de uma carta endereçada ao Vice-rei britânico na Índia poucos anos antes de sua independência: “se pudesse popularizar o uso da força da alma – que é apenas outro nome para a força do amor – no lugar da força bruta, sei que poderia apresentar-lhes uma Índia capaz de desafiar o mundo inteiro”. 67

Para finalizar essa digressão um pouco extensa, mas necessária, retornemos mais um passo na história, buscando, por fim, as origens dessa noção da resistência não violenta em Gandhi. Embora oriundo de uma casta de comerciantes hindus, o ativista indiano sempre se interessou pelas leituras e contatos com pessoas e temas diversos. Um dos assuntos a que mais se dedicou foi a religião, contando com a ajuda de muitos amigos muçulmanos, hindus, budistas e cristãos. No caso desse último grupo, recebeu como presente de um amigo inglês, na década de 1890, o livro O reino de Deus está em vós , de Leon Tolstói. Reproduzimos a seguir as impressões que o livro causou em Gandhi:

Perturbou-me e deixou em mim uma impressão permanente. Diante do pensamento independente, da profunda moralidade e da honestidade desse livro, todos os outros que o Sr. Coates me havia dado pareciam pálidos e insignificantes [ referindo-se às várias obras cristãs que recebera até então ]. 68

Ele ainda menciona:

Também estudei com atenção os livros de Tolstói: The Gospels in Brief [ Um resumo do Evangelho ] e What to do? [ O que fazer? ], e outras obras, que me marcaram profundamente. Comecei a compreender mais e mais as infinitas possibilidades do amor universal. 69

Embora a relevância da obra de Tolstói sobre Gandhi apareça tanto em suas biografias quanto na autobiografia, sua análise se restringe a não mais que alguns parágrafos. Entendemos que ela ainda não tenha recebido a devida atenção por parte da historiografia. Obviamente não se trata de algo a que nos dedicaremos aqui, mas gostaríamos de retomar rapidamente o primeiro livro mencionado, pela clareza e objetividade com que define a noção de resistência não violenta: O reino de Deus está em vós . 70 Mundialmente conhecido pelos romances realistas Guerra e Paz e Anna Karenina , o filósofo russo teria vivenciado ainda durante a escrita dessas obras uma profunda crise moral, questionando especialmente as interpretações apresentadas pela Igreja Ortodoxa Russa aos Evangelhos de Jesus. Suas críticas a essa instituição passam a ser cada vez mais mordazes, levando à sua excomunhão em 1901. É nesse período que ele escreve os livros que influenciaram de maneira mais intensa o pensamento e as ações de Gandhi.

O reino de Deus está em vós começa com uma compilação de diversos autores que já teriam trabalhado com o entendimento de resistência não violenta cujas obras não teriam recebido o destaque e o reconhecimento que mereciam. Tolstói afirma enfaticamente que haveria uma conspiração silenciosa no sentido de barrar a divulgação da noção de resistência não violenta e, consequentemente, da força do amor, uma vez que ela não interessaria às instituições política e religiosamente poderosas, como as Igrejas e os governos. Coincidência ou não, O reino de Deus está em vós ficou “perdido” por quase cem anos, tendo sido republicado somente em 1988 a partir dos esforços empreendidos pela neta do escritor, Tania Tolstói. Dentre os autores mencionados estão os norte-americanos Adin Ballou e William Lloyd Garrison. Este último foi editor de um jornal abolicionista e um dos fundadores da Sociedade Antiescravagista Americana no século XIX. Ambos eram defensores ferrenhos da resistência ao mal por meio da não violência. Ao ser questionado sobre a amplitude dessa percepção, Ballou teria dito: “Ela deveria ser compreendida no sentido exato do mandamento de Cristo, isto é, não pagar o mal com o mal. É preciso resistir ao mal com todos os meios justos, mas não por meio do mal.” 71

Antes de concluir essa nossa digressão, gostaríamos de retomar, brevemente, uma citação de cada um deles, que nos oferece uma nova possibilidade de análise e apresenta estreita sintonia com os valores que iremos abordar a seguir, conquanto nos convide a regressar um pouco mais no tempo:

O Sermão da Montanha ou o Credo: não se pode crer em ambos; e os partidários da Igreja escolheram o último. […] O homem que crê Deus-Cristo que julga e pune rigorosamente os vivos e os mortos não pode crer num Cristo que ordena dar a face ao ofensor, não julgar, perdoar e amar os próprios inimigos. 72

No entanto tive uma impressão bem diferente do Novo Testamento, principalmente o Sermão da Montanha , que me falou diretamente ao coração. 73

Foi o Sermão da Montanha , mais que a doutrina da resistência passiva, que inspirou inicialmente os negros de Montgomery a uma ação social grandiosa. Foi Jesus de Nazaré que estimulou os negros a protestarem com a arma criativa do amor. 74

Conforme fica claro nas passagens transcritas, os ecos da resistência pacífica que encontramos nos pretos-velhos e que seguiremos analisando remetem a um passado mais distante e comum: o Sermão da Montanha do Novo Testamento, relatado de maneira mais organizada e cronológica no evangelho segundo Mateus (capítulos de cinco a sete) e fragmentado no evangelho de Lucas. O desenrolar desse novelo teórico levou algum tempo, mas nesse momento já acreditamos ter indícios suficientes para afirmar que a construção da figura “preto-velho” na seara umbandista guarda relação consideravelmente próxima ao que é pregado nesse trecho do Novo Testamento. Vários dos conselhos oferecidos, das posturas apresentadas e defendidas e das interpretações sobre a realidade e o mundo guardam uma relação muito estreita com o que é exposto nesse texto evangélico. Interessante notar que ao longo de todos esses anos realizando pesquisas em terreiros de umbanda, as únicas menções diretas ao evangelho que encontramos foram justamente aquelas que se referiam ao Sermão. Transcrevemos um caso específico a seguir, proferido por Rachel Melo/Pai Firmino e que remete a Mateus 5:38-42: “vosmecês deve, todos nessa terra, inclusive eu, né filha, que tô do lado de cá, pedir proteção ao Pai Oxalá e seguir os ensinamentos que ele deixou. Se eu te bater dum lado, dê a outra face ”. 75

Desde que localizamos essa base comum entre Tolstói, Gandhi e King alteramos sutilmente nosso olhar sobre as falas encontradas nos terreiros, salientando que o diálogo que estabeleceremos a seguir entre esses autores e os discursos dos pretos-velhos consiste numa proposta de análise elaborada com base em nossa pesquisa de campo e nossas leituras, uma vez que até então não encontramos nenhuma menção a esses autores nos terreiros umbandistas, tampouco na literatura sobre o tema. A partir de então evidenciaram-se as correspondências entre as entrevistas com os médiuns no momento em que se declaravam incorporados e o Sermão da Montanha. É interessante notar que a despeito dos claros aportes que o catolicismo trouxe (e traz) à umbanda, é complicado estabelecer essa ponte no que se refere às interpretações sobre o Sermão. As passagens que se referem especificamente a esse texto evangélico se diluem em meio à ritualística católica, emaranhado em inúmeros outros textos.

Essa apropriação adquire uma centralidade e uma proeminência bastante distinta no olhar de outra religião que também exerceu e segue exercendo enorme influência na cosmovisão umbandista: o espiritismo kardecista. É em sua obra fundamental – O evangelho segundo o espiritismo – que encontraremos sistematizada boa parte das bússolas morais que norteiam as falas dos pretos-velhos umbandistas. Publicado pela primeira vez em Paris, em 1864, o livro consiste numa análise dos princípios ético-morais contidos no Novo Testamento, efetuada por Allan Kardec (considerado o codificador da doutrina espírita) e pelos espíritos que o teriam orientado. 76 A obra é centrada, tal como citado em sua introdução,nos ensinamentos morais de Jesus e na sua aplicabilidade às diversas circunstâncias da vida. 77 Dos 28 capítulos que o constituem, catorze se arquitetam a partir de passagens contidas no Sermão da Montanha. É justamente nesses trechos que se encontram as máximas do “Amai ao próximo como a si mesmo”, “Amai os vossos inimigos”, as referências aos valores que trariam as bem-aventuranças da vida, além de explanações diversas acerca da caridade, da oração, da indulgência com os erros alheios e do perdão.

Analisando as falas e posturas dos pretos-velhos que entrevistamos encontramos, contudo, uma reverberação muito intensa das passagens e comentários do Evangelho segundo o espiritismo . Há, de certa maneira, um duplo movimento de apropriação (e aqui dialogamos com o conceito de apropriação enquanto processo ativo e dinâmico proposto por Chartier). 78 Concomitantemente ao diálogo que se estabelece de maneira muito clara com as interpretações do Sermão da Montanha à luz da doutrina espírita kardecista, há um segundo processo de apropriação (que se desdobra do primeiro), uma vez que as leituras são orientadas pela chave de interpretação oferecida pelas memórias da escravidão. E talvez aqui se encontre a originalidade e a relevância/impacto desse processo de interpretação, uma vez que ele é exposto e reiterado cotidianamente nos terreiros, apresentando-se por meio dos conselhos e posturas dos médiuns durante os rituais de incorporação aos inúmeros consulentes que buscam os pretos-velhos, gerando novas rodadas de apropriação.

Ao portar as lentes do cativeiro para interpretar e exemplificar as diretrizes morais tratadas no Evangelho, os pretos-velhos umbandistas deslocam os significados originais do texto, aproximando-os da realidade dos consulentes/leitores. Esse processo é facilitado pelo compartilhamento dessa “lente” de leitura. Se consideramos que as memórias coletivas da escravidão são compartilhadas por todos, temos um cenário em que os ensinamentos cristãos transmitidos por meio da linguagem memorialística do cativeiro se tornam muito mais inteligíveis. Didáticos em última instância. Conforme apresentado no livro Fala, preto-velho : “nego fala de Jesus, contando história da escravidão . Os fio chora e nego os abraça”. 79

Considerando esse histórico retemos, em comum, duas noções que serão essenciais para nosso estudo: o embasamento ético/religioso de parte relevante dos cursos de ação sugeridos pelos pretos-velhos e a crença no poder do amor enquanto instrumento efetivo e eficaz de ação. Embora tenhamos retomado anteriormente algumas falas de autores importantíssimos da historiografia acerca das possibilidades de resistência por meios não agressivos, 80 nossa proposta de análise vai muito além. Nosso entendimento é de que a elaboração memorialística empreendida a partir dos pretos-velhos apresenta uma interpretação do passado escravista pautada numa estratégia de cunho religioso-cristão de amor ao próximo, percebida como um instrumento racionalmente mais eficaz de interromper círculos de ódio e violência. E, como toda elaboração de memória, implicaria em mudanças lentas, ainda que profundas, na interpretação do presente, encontrando ressonância nas produções intelectuais e artísticas de parte pequena, porém relevante, do movimento antirracista mundial, conforme analisaremos a seguir.

Deixe que o amor tenha a última palavra 81

Quando conhecemos o amor, quando amamos,

é possível enxergar o passado com outros olhos;

é possível transformar o presente e sonhar o futuro.

Esse é o poder do amor. O amor cura.

bell hooks 82

Uma série de questionamentos acerca dos discursos apresentados pelos médiuns durante os momentos em que se declaravam incorporados foi emergindo ao longo da nossa pesquisa. Em diversos instantes chegamos a crer que essa postura mais pacificadora e propagadora de atitudes amorosas e acolhedoras estivesse absolutamente descolada da realidade atual. É impossível, entretanto, ignorar que a lógica dos terreiros está inserida numa elaboração social muito maior, e de certa forma ecoa os movimentos da sociedade como um todo. Aos poucos, voltando-nos à temática do racismo, das disparidades sociais e dos mecanismos de combate a eles fomos nos deparando com uma vasta literatura que dialoga de maneira muito próxima às elaborações discursivas apresentadas nos terreiros umbandistas.

No prefácio de Ponciá Vivencio , romance de Conceição Evaristo, Maria José Somerlate Barbosa nos afirma que seria a ternura a forma de redenção de quase todos os personagens. 83 A canção Jesus Chorou , o grupo Racionais MC’s menciona: “Se só de pensar em matar, já matou. Eu prefiro ouvir o pastor: ‘Filho meu, não inveje o homem violento. E nem siga nenhum dos seus caminhos’ ”. Ao ser inquirida em uma entrevista acerca da importância do amor e do perdão, a poeta e romancista moçambicana Paulina Chiziane responde que: “É preciso perdoar para limpar o coração. O ódio é um peso , faz mal à cabeça e destrói o relacionamento com o outro. É preciso perdoar, esquecer é que não”. 84 Autora de Caderno de memórias coloniais , a também moçambicana Isabela Figueiredo assevera: “Pondero a hipótese de o problema estar na própria linguagem da violência, que é a que conhecemos. A resposta à violência tem sido violenta. […] Creio que responder à violência com violência não tem mudado o paradigma civilizacional ”. 85 Em Principia , o músico e empreendedor Emicida afirma categoricamente: “crer que o ódio é solução, é ser sommelier de anzol ”. 86

Embora fosse possível seguir com citações desse tipo por várias páginas, acreditamos que as transcritas no parágrafo anterior, todas extremamente recentes, são suficientes para que tenhamos uma noção mais clara acerca da arquitetura de uma percepção pautada na prevalência do amor enquanto estratégia de ação. A postura que este artigo indicou ser defendida pela figura dos pretos-velhos nos terreiros encontra ressonância sobretudo nas últimas obras da pesquisadora e escritora bell hooks. Pensar esse amor defendido por meio da figura dos pretos-velhos, nas letras de AmarElo de Emicida ou nos poemas de Chiziane é compreendê-lo enquanto atitude. É descontruir a noção romântica que o associa diretamente a uma fragilidade e a um sentimento etéreo, a ser almejado a partir de bases oníricas, sem desdobramentos práticos ou reflexões críticas.

Essa definição de um amor romântico é interpretada por Tony Morrison como “uma das mais destrutivas ideias na história do pensamento humano”. 87 Comumente associado a uma posição de ingenuidade, fraqueza e desesperança, que hooks justifica principalmente pela predominância de visões masculinas nas discussões sobre o tema, 88 a visão romantizada teria, ao longo das décadas, provocado reações de cinismo, desilusão e resistência com relação ao amor. Apreender o amor enquanto termo polissêmico é o primeiro passo no sentido de desconstruir esse olhar enviesado que tem contribuído para perpetuar pré-conceitos extremamente danosos para a sociedade como um todo. A potência apregoada nos escritos de hooks é a mesma que ecoa em Gandhi e King (este um dos autores que claramente mais influenciaram a filósofa). Conforme defendido por King, seria elevar a ética do amor “acima da mera interação entre indivíduos, como uma força social amplamente poderosa e eficaz”, compreendendo-o enquanto “instrumento de transformação social e coletivo”. 89

Quando os médiuns/pretos-velhos instrumentalizam o amor enquanto forma de atuação e essa posição encontra eco nas mais distintas vertentes culturais, filosóficas e religiosas, concluíamos que há um movimento em nível internacional de se retrabalhar as memórias traumáticas que todos carregamos, influenciando de maneira muito direta na forma como nos inserimos no presente e como nos relacionamos enquanto sociedade. O processo de elaboração mnemônica do cativeiro como meio para a transmissão e difusão de uma mensagem de transformação social mais profunda é algo que pode ser sentido e percebido sobretudo ao longo das consultas que ocorrem nas giras de pretos-velhos nos terreiros umbandistas. As orientações e sugestões passadas pelos médiuns durante os rituais em que se declaram incorporados seguem uma lógica mais ou menos estável, que dialoga de maneira muito íntima com boa parte da literatura que mencionamos nesse tópico (Emicida, Chiziane, hooks, Common, entre outros), além, é claro, de uma leitura espírito-kardecista dos evangelhos. Trata-se, em última instância, da prática desse “amor” em termos diretos e objetivos, em pequenas atitudes do cotidiano , quais sejam: o desenvolvimento do amor-próprio ; o ato de servir ao próximo ; a persistência na adversidade ; e o perdão . Exemplificaremos essas ações com algumas situações que acompanhamos ao longo das pesquisas, de modo a ilustrá-las.

Iniciemos com o conselho a seguir, de Samuel Resende/Pai Bastião:

Aqui nessa terra tá todo mundo num estágio parecido. Aquele estágio que não sabe ainda o que que é o amor. O que que é amar, o que que é caminha junto, o que que é cuida do outro como cuida de si próprio. Porque que é suncê gosta de suncê? Trabaio que nego procura sempre fazê aqui é primeiro das pessoa aprende a amar zi próprio, né? Porque quem não ama nem a se zi próprio vai ama quem, né zi fia ? 90

Passagem que aborda algo semelhante pode ser encontrado em Amada , de Toni Morrison, em que a figura idosa de Baby Suggs – “sagrada” nas palavras da autora –, conclama o grupo que a acompanhava a se amar, sem esperar o amor dos brancos que muitas vezes os feriam e odiavam: “você tem de amar, vocês !” 91 Ressoa também em Lordequando,ao expressar-se de maneira muito sincera acerca das emoções ao lidar com um câncer, teria mencionado a relevância dos cuidados consigo própria enquanto forma de autopreservação. 92 E é instigada ainda pelo rapper Rael, como medicamento em casos de depressão e “ bad vibes ”: “E independente do que acontecer / Diariamente experimente dizer que hoje / Bem mais do que ontem / Não mais do que amanhã / Eu me amo hoje bem mais do que ontem”. 93

Todos esses convites ao amor-próprio foram proferidos em contextos associados à busca de uma cura, de um tratamento mais profundo, “espiritual” no sentido apresentado por hooks, que extrapola uma religião. 94 Em inúmeros momentos pudemos acompanhar os médiuns/pretos-velhos nos terreiros abraçando e acolhendo consulentes profundamente tristes, sem muitas perspectivas de vida, simplesmente lembrando-os de que são lindos, cada qual do seu jeito. Uma metáfora muito usada por eles é a das flores, lembrando àqueles que os procuram que sua beleza precisa de cuidado para desabrochar e encantar, uma beleza num sentido muito sublime. Lembramo-nos de um caso específico de uma jovem que procurou um terreiro em São João del-Rei pouco depois de uma segunda tentativa frustrada de suicídio, absolutamente destroçada. Após mais de hora de atendimento com uma preta-velha que estava cambonávamos no dia, ela, que adentrara o ambiente encolhida e com o olhar perdido, saiu decidida a buscar um acompanhamento médico, aliando-o às consultas no terreiro. 95 Amor-próprio, na visão dos pretos-velhos, seria essencial para o desenvolvimento de sentimentos de segurança, que permitem transitar pela vida de maneira mais serena e estável. O amor a si mesmo é o parâmetro para definir o amor ao próximo, seguindo o mandamento máximo dos evangelhos (“amai ao próximo como a si mesmo”). Caso esse parâmetro não esteja plenamente estabelecido, o amor que transmitiremos tampouco estará.

Um segundo elemento que acompanha boa parte das consultas nos terreiros tem a ver com o trabalho, com o ato de servir e se fazer/sentir útil . Nas palavras de hooks, haveria um “poder curativo no serviço”. 96 Ao tratar sobre suas experiências após os “desencarnes” como escravizados, os pretos-velhos costumam mencionar que seguiram trabalhando, e que este seria um dos elementos essenciais no processo de aprendizado e desenvolvimento do amor. Acompanhamos sugestões de médiuns/pretos-velhos para que as pessoas buscassem um trabalho voluntário, uma instituição de caridade ou o próprio terreiro para contribuírem de alguma forma com o próximo. Rachel Melo/ Pai Cipriano mencionam que sempre haveria: “um de cá que precisa dá a mão, e existe um de cá que precisa da minha mão”. 97

Em última instância, esse ato de ocupar-se servindo ao próximo auxiliaria no sentido de desenvolver laços de empatia e redimensionar seus próprios problemas e dificuldades. Ao servir a alguém em hospitais, prisões ou mesmo nos terreiros, somos confrontados com realidades muito mais atrozes que as nossas, desarmando-nos de julgamentos precipitados e enternecendo nossas opiniões e emoções. Nos caminhos do servir ao próximo aprenderíamos, segundo hooks, a nos esvaziar de nós mesmos, de nossos egos, abrindo espaço para sermos preenchidos pelas necessidades dos outros, desenvolvendo sentimentos de compaixão, empatia e amor. 98 Ademais, o ato de servir consistiria numa instrumentalização dos saberes que adquirimos, implicando em colocar na prática uma habilidade ou um conhecimento, o que não deixa de ser uma forma de gratidão. Cíntia Lima/ Vovó Cambinda defende que: “acá não é só pra aprender não. É pra usar também. Então aquilo que os espíritos, as almas vão aprendendo ao longo da caminhada, precisa ser utilizado, senão num é aprendizado, viu fia?” 99

Em suas palavras, qualquer aprendizado só é de fato concluído quando colocado a serviço de alguém. Nessa mesma toada, um médium/ preto-velho da Choupana do Chico Baiano e Pai Elias sempre reforçava a importância da oração, mas conclamava a “labutar junto, senão não resolve”. Houve um caso específico, de uma senhora já idosa, na casa dos oitenta anos, que procurou atendimento na Choupana do Chico Baiano e Pai Elias, bastante depressiva e mencionando que fora aconselhada a não mais trabalhar, por já estar muito velha. Durante suas consultas a médium/ preta-velha teria sugerido que ela modificasse essa ideia, e atuasse naquilo que fazia com primor e lhe dava prazer: costurar. Fosse para familiares, amigos ou associado a algum projeto. Atrelado ao tratamento médico tradicional contra a depressão, ela se aproximou de um grupo que se dedicava à confecção de enxovais para gestantes carentes. Desde então ela afirma, não obstante os altos e baixos inerentes à doença, se sentir melhor. De certa forma vinculada a essa ideia do trabalho temos um terceiro elemento que traz o amor para um nível prático, de ação: a persistência na adversidade , conforme transcrição de Samuel Resende/Pai Bastião a seguir:

Tudo aqui pelo progresso, infelizmente, nesses estágio de evolução tem que se pela dor. Uns passa por mais dor que otros porque é o momento que tão passando, e não é porque estão num estágio mais pra trás o mais pra frente não. 100

Ao buscar os terreiros umbandistas, muitas pessoas já se encontram nos estágios finais da esperança. Buscaram soluções na medicina, no Estado, na família – dependendo da dificuldade que estão vivenciando –, e não encontraram um caminho. Ao romper muitas vezes as barreiras do preconceito e do medo e sentar-se perante um médium que se declara incorporado, essas pessoas acreditam estar diante de uma solução final (e radical) para as adversidades que a assolam. Na prática o que elas encontram é, muitas vezes, uma orientação e uma instrução para que aprendam a lidar com aquilo que as machuca ou para que redescubram a força que possuem e modifiquem a forma como tratam os problemas. Embora a noção de “magia” e “encantamento” ainda persista no imaginário popular sobre os terreiros, o que encontramos na prática, no papel de pesquisadores, foi um cenário que se assemelha a um processo terapêutico de autoconhecimento e de aquisição de confiança (o que também dialoga com a questão do amor-próprio). Conselhos como “sinta as energias que estão ao seu redor”, “observe os sentimentos que afloram em você”, “aprenda a controlar as emoções” – ainda que acompanhados pelo uso de uma guia, um terço, uma pedra ou um banho de descarrego são potentes formas de transformação pessoal.

Lembramo-nos de uma mulher que ficava extremamente ansiosa durante as entrevistas de emprego que fazia, o que a impedia de ser aprovada. Na segunda ou terceira consulta que acompanhamos, ela recebeu de presente do médium/preto-velho um terço de contas-de-lágrimas. 101 A instrução seria de que antes da entrevista ela respirasse fundo e fizesse uma oração, apertando o terço contra o peito, mantendo-o ao alcance das mãos ao longo do processo seletivo. Poucas semanas depois ela retornou ao terreiro, muito agradecida, mencionado que havia sido aprovada. Não cabe a nós afirmar se teria sido resultado de um auxílio espiritual maior. Fato é que a simples sugestão parece ter auxiliado no processo de autocontrole da moça.

Acerca dessa persistência na adversidade e dessa transformação interior, citando passagem da obra Alimento para a alma: histórias para nutrir o espírito e o coração , em tradução livre, de Jack Kornfield e Christina Feldman, bell hooks menciona que:

a paz não é o oposto de desafio e adversidade. Entendemos que a presença de luz não é resultado do fim das trevas. A paz não é encontrada na ausência de desafio, mas em nossa própria capacidade de enfrentar as adversidades sem julgamento, preconceito e resistência. Descobrimos que temos a energia e a fé para curar a nós mesmos e ao mundo, por meio de uma franqueza neste movimento. 102

Seguindo a lógica que também emerge na citação anterior de Samuel Resende/Pai Bastião, os autores reafirmam que a dor, o sofrimento e a dificuldade não vão desaparecer repentinamente. Estaria, contudo, ao alcance de todos a possibilidade de modificar o olhar com relação a essas adversidades, o que aliviaria a travessia. Quando alcançamos – ou ao menos nos esforçamos para alcançar – a brandura e pacificidade (não passividade!) em nosso comportamento, aceitando de maneira menos agressiva as aflições, e adotando a humildade e o amor como lemas de vida; seríamos confrontados com inúmeras dificuldades, mas as atravessaríamos com muito mais plenitude e segurança. E são justamente esses os elementos tão amplamente apresentados pelos médiuns/pretos-velhos. Conforme ouvimos certa vez de um deles, ao longo de uma consulta na Choupana do Pai Elias e Chico Baiano: este seria o caminho para compreender e sentir a passagem em que Jesus afirmaria ser leve seu jugo e suave seu fardo. 103 O que se altera não é o fardo, mas a maneira como o estou carregando.

Por fim, embora não menos importante, temos um quarto caminho para o exercício do amor: o perdão . Muito provavelmente o mais difícil de ser abordado (e praticado). Iniciemos com o auxílio de Paulina Chiziane no intuito de demarcar uma distinção clara entre dois conceitos essenciais:

Acredita: não existe humanidade diferente da tua

E a liberdade veio morar para sempre na tua alma

Perdoa sim a escravatura, o colonialismo, as mágoas

Mas não esquece nunca : quem esquece também adormece 104

Comumente compreendidos como sinônimos, perdão e esquecimento são duas atitudes distintas. Conforme defendido por King, o perdão não seria um ato ocasional, mas uma atitude permanente. 105 Trata-se de um processo em que se aprende a olhar um sofrimento, adversidade ou tragédia passadas sem nutrir sentimentos de mágoa ou ressentimento. Ouvimos mais de uma vez, ainda durante o período em que cambonávamos os médiuns/ pretos-velhos na Choupana do Pai Elias e Chico Baiano em São João del-Rei, uma metáfora muito bonita nesse sentido do perdão. A médium/ preta-velha costuma dizer que as adversidades geravam feridas na alma das pessoas, mais profundas ou superficiais, dependendo dos impactos que tiveram. Caberia a cada um tratar esses machucados, sendo o perdão o caminho mais seguro e inevitável nesse processo de cura. Ele seria o catalizador da cicatrização, salientando que a cicatriz permaneceria ali, presente e potente, como prova de que a dificuldade foi vencida e de que aquele que a superou teria sido forte o suficiente para tanto. A cicatriz permitiria essa rememoração dos aprendizados adquiridos, além de se constituir enquanto alerta contra eventuais repetições e um lembrete contra o esquecimento. Perdoar implica em olhar essa cicatriz e ser arrebatado por sentimentos de potência e superação, não de dor e sofrimento. O perdão impulsionaria adiante, lançando as bases de uma reparação e real libertação. Toda essa ideia pode ser resumida mais uma vez nos versos de Chiziane:

Afasta os espinhos da dor , canta e dança

Ensina o antigo opressor a dar uns passos de dança

Dá-lhe um abraço de perdão como verdadeiro irmão

Rodopiem juntos ao som do batuque da libertação 106

A metáfora com a cicatriz também é acionada por hooks quando ela menciona que

Ao contrário do que podemos ter sido ensinados a pensar, o sofrimento desnecessário e não escolhido nos fere, mas não precisa deixar uma cicatriz para o resto da vida. Isso nos marca. O que permitimos que a marca do nosso sofrimento se torne está em nossas próprias mãos. 107

A filósofa trabalha com a noção de que o perdão equivaleria a deixar de carregar uma bagagem extremamente pesada, que inviabilizaria uma cura mais profunda, do espírito. É exatamente a fala de King quando nos diz que o “ódio é um fardo pesado demais para suportar”. 108 Uma vez mais nos deparamos com um diálogo de pensamentos muito próximo ao que é pregado nos terreiros. Lembramo-nos de diversas vezes ouvir os médiuns/pretos-velhos convidando delicadamente os consulentes a deixarem a “mala” de ódios, ressentimentos e mágoas que estavam carregando no terreiro, para que lograssem caminhar adiante sem esses “pesos”. Pai Lucas Arias/Pai João das Matas narra o que teria sido o momento definidor de sua “emancipação”, a partir da decisão de se libertar das correntes “de ódio, de raiva, de rancor, de mágoa e de sofrimento”. Pensando na questão do sentimento, encontramos interpretação semelhante no documentário Eva Kor: o poder curador do perdão , produzido pela BBC. Nele, uma senhora que viveu os horrores do Holocausto, sendo vítima direta dos experimentos do médico nazista Joseph Mengele, menciona seu caminho até o perdão (a despeito de toda a crítica que recebeu por essa atitude). Com uma fala serena ela explica:

Descobri o que foi uma experiência transformadora: descobri que tinha o poder de perdoar. Ninguém poderia me dar esse poder. Ninguém poderia tirar esse poder de mim. Para me desafiar, decidi que podia perdoar Mengele, a pessoa que me fez passar pelo inferno. Não foi fácil, mas senti que um peso enorme havia sido tirado de mim. Finalmente me senti livre. Quem decidiu que eu, como vítima, ficaria pelo resto da vida triste, zangada, desesperada e desamparada? Me recuso.

Você nunca pode mudar o que aconteceu no passado. Tudo o que você pode fazer é mudar sua reação. 109

Nessa transcrição a potência do perdão fica patente. Trata-se de atitude, comportamento ativo e detentor de poderes balsamizantes dos sofrimentos daquela que foi a vítima, independentemente do algoz (lembremos que quando Eva Kor decide trabalhar esse perdão Mengele já se encontrava morto há alguns anos). E de que forma essa noção de perdão estaria vinculada ao amor? Conforme mencionado por King no sermão intitulado Loving your enemies (ou Amai os vossos inimigos , em tradução livre): “aquele que não perdoa, não pode amar”. 110 Ou nas palavras de Emicida: “o amor perdoa o imperdoável, resgata a dignidade do ser”. 111

Concluímos esta seção aprofundando o pensamento acerca dessa relação entre perdão e esquecimento por meio do exemplo do rapper, ator e escritor norte-americano Common, cuja autobiografia nos ofereceu o título deste tópico. Fortemente envolvido em questões políticas e sociais nos últimos anos, Common discorre longamente sobre as formas como o amor transformou sua visão de mundo, impulsionando-o a atuar de maneira ativa junto à juventude negra nos Estados Unidos. Ele fundou a Common Ground Foundation no final dos anos 2000, com o intuito de levar um senso de esperança, autoestima e amor que, em suas palavras, seriam os mecanismos para tornar o mundo um lugar melhor. Por meio da fundação ele auxilia estudantes do que corresponderia ao Ensino Médio no Brasil, preparando-os e auxiliando-os a ingressarem nas universidades. Interessante notar que common ground , em tradução livre, seria algo como base comum . A ideia do projeto é justamente oferecer instrumentos para que a comunidade jovem negra disponha de uma estruturação básica mais parecida com aquela sempre disponível aos brancos, de modo a competir de maneira mais igualitária, tendo as mesmas chances e possibilidades. O caminho encontrado por Common não perpassa o esquecimento, pelo contrário, todas as ações estão diretamente voltadas a mitigar as heranças que o processo escravista teria legado aos Estados Unidos. A bússola de toda essa estratégia de ação e impacto social, entretanto, é sempre o amor, desdobrado exatamente nos elementos “práticos” que mencionamos ao longo deste tópico: amor-próprio, serviço ao próximo, persistência e perdão.

Superando o trauma: atuação dos “ doutores da vida112

Mãe Leila Rodrigues foi uma das entrevistadas para nossa pesquisa de mestrado. 113 Responsável pela Tenda Espírita Pai José do Congo em São João del-Rei há quase três décadas, ela é um exemplo vivo do que representa a umbanda: negra de olhos claros, sempre alegre e amorosa, com um olhar muito vivo que parece ler seus pensamentos, descendente por um lado de ex-escravizados fugidos do cativeiro na região de Ritápolis, Minas Gerais, e resgatados por grupos indígenas; e de senhores brancos, por outro, ela se apresenta como católica e espírita. Durante uma das várias conversas que tivemos ela lançou, despretensiosamente, essa descrição dos pretos-velhos: “eu vejo, imagino eles, bem velhinhos, bem sofridos, calmo, tranquilos, e imagino eles uns doutores da vida ”. 114 Na época não compreendemos a amplitude dessa fala e descrição. Recentemente, entretanto, deparamo-nos com uma passagem do livro Lázaro Redivivo psicografado por Francisco Xavier, pelo espírito de Humberto de Campo. Num trecho específico, o autor aborda os preconceitos no meio kardecista frente às figuras de espíritos de antigos escravizados que se apresentam como “mães” ou “pais”, sobretudo por não congregarem vasto conhecimento científico ou acadêmico. 115 Transcrevendo o que teria sido a fala de um abolicionista brasileiro, sem citar nomes, Humberto de Campos/Francisco Xavier menciona:

Diga-lhes [aos companheiros do espiritismo cristão] que também nós [espíritos que estiveram envolvidos na luta abolicionista] estamos empenhados na mesma luta pela iluminação espiritual, mas que ao ensinarmos a Pai Mateus e Mãe Ambrósia as lições acerca das leis de Kepler, dos movimentos de Brown e das ondas de Marconi, aprendemos com eles, por nossa vez, as lições de humildade, devotamento e renúncia, nas quais já se diplomaram, desde muito, negando a si mesmos, tomando a sua cruz e seguindo a Nosso Senhor Jesus Cristo. 116

Temos nessa passagem, quiçá, uma descrição daquilo que Mãe Leila teria denominado doutores da vida. O conhecimento formal pode não fazer parte das considerações e sugestões dos médiuns/pretos-velhos, mas o aprendizado moral e evangélico num sentido mais amplo e amoroso do termo tem sido internalizado e praticado cotidianamente nos terreiros. Trata-se de um outro tipo de educação, tão importante, senão mais, que aquela a que estamos acostumados.

Conforme notamos ao longo de todo este artigo, as memórias da escravidão vão sendo elaboradas por meio dessas figuras dos pretos-velhos, como um instrumento de ensino e difusão de uma série de valores mais profundos, em que sentimentos e perspectivas vão se emaranhando a uma potente mensagem de transformação individual e social atualmente. Esse processo de elaboração mnemônica, vinculado a uma ética do amor com bases cristãs-kardecistas atua no processo – lento e gradual – de superação de diversos traumas, inclusive do cativeiro. Ao propor posturas que instigam a adoção de comportamentos não violentos, a repensar as formas de se lidar com a dor e o sofrimento, a agir em prol do próximo independentemente de quem seja, a cultivar e nutrir o amor-próprio e a perdoar sem esquecer, essas humildes e simpáticas figuras dos terreiros vão promovendo uma mudança social muito difícil de ser quantitativamente mensurada, mas que se faz sentir por meio das leituras empreendidas por aqueles que as buscam, conforme as transcrições a seguir. São falas de consulentes de terreiros em São João del-Rei, Soraia Santos, mãe Leila Rodrigues e Marilaine Rodrigues, respectivamente:

Alívio da minha cura espiritual mesmo e foi assim pra mim [contato com os pretos-velhos]. Porque eu não conhecia nada, mas tudo que tava interno dentro de mim foi curando, não conhecia mas fazia tudo que era pra ser feito. Então eu fui sendo curada espiritualmente isso daí foi abrindo os meus canais. 117

Eu acho que eles [ os pretos-velhos ] são um braço direito de Cristo aqui embaixo , porque acho que Jesus pôs eles pra ajudar, porque a missão pra Deus e Jesus é meio pesadinha sim, eu acho que Deus comanda tudo, é o rei do universo, mas eles deixam as entidades boas para ajudar, porque tá bem pesado. 118

Confiança de entregar os meus filhos na mão dele [preto-velho – Pai José do Congo], né? Dos pretos-velhos, do Pai José principalmente. Meu filho, o pequeno, todos três, primeiro contato deles pra lavar a cabeça, no caso assim, que aqui a gente tem a lavação de cabeça que é o Pai José que faz, que é no dia 8 de dezembro. Então assim, primeiro contato da cabeça com meus filhos foi com o Pai José. Eu entreguei os meus filhos na mão dele. Tem a confiança, então assim, ele passa confiança, ele te passa paz, ele passa tranquilidade. É aquele carinho mesmo . 119

Para finalizar, gostaríamos de pensar mais detidamente acerca das possibilidades de superação dos traumas do cativeiro por meio das elaborações empreendidas pelos pretos-velhos. Aleida Assmann menciona as possibilidades de “superação literária de um trauma”. 120 O ato de escrever sobre uma situação que tenha gerado, porventura, uma fissura pessoal ou social abriria, eventualmente, o caminho para a cura. Ela menciona ainda como determinadas feridas do passado, quer por sua extensão ou potencial de dano, demandam terapias coletivas, mais que individuais. Há feridas que se inscrevem nas pessoas, na sociedade, nos espaços físicos e nas identidades coletivas e individuais. E elas exigem um tratamento também em nível coletivo. Pensando nisso, nos lembramos de uma fala específica que transcrevemos a seguir. Ela foi proferida por Gabriel Rufo, ogã da Associação Afro-Brasileira Casa do Tesouro, um terreiro de umbanda, candomblé e jurema sagrada em São João del-Rei: “Eu acho que o preto-velho ele é uma figura que possibilita os contatos, quando ele fala com o dono da fazenda e fala com o escravo. Ele junta os dois. E o preto-velho nasce dessa junção, dessa mistura”. 121

Essa fala nos dá uma pista e reforça o que trabalhamos ao longo deste artigo. Um dos caminhos para a superação coletiva de um trauma como a escravidão parte de práticas também coletivas e, acima de tudo, agregadoras e amorosas. E essas ações demandam uma mudança de atitude extremamente profunda de ambos os lados, relembrando que o racismo, a discriminação e mesmo a infame injustiça social atualmente vigente e atrelada a uma perpetuação e reconstrução dessa visão preconceituosa são absolutamente inaceitáveis perante o conceito apresentado nos terreiros; e que a vingança e nutrição de sentimentos como ódio e mágoa não resolverão a realidade absurdamente injusta que vivenciamos hoje. A força que essa figura de um preto-velho possui, bem como a sabedoria que carrega emergem nos mais distintos contextos, refletindo e ecoando as percepções que também encontramos nos terreiros. É a eles que Emicida credita a inspiração para o tom que adotou em seu último álbum, AmarElo:

Quando começo a criar as histórias desse disco minha preocupação fundamental é construir paz e a serenidade sem ser ingênuo, sem se desconectar da realidade, o que soaria até como deboche no tempo que estamos vivendo. Quero manter meus pés no chão, mas o coração das pessoas precisa ser acalentado. Como fazer isso? Recorro à visão de mundo dos nego véio . 122

A fala de hooks acerca do avô também é emblemática:

Com ele todos os pedaços quebrados do meu coração são consertados, reconstruídos aos poucos. O pai da minha mãe, Daddy Gus , era um ser humano incrivelmente gentil e amável. Um homem quieto e sem palavras duras, um diácono respeitado de sua igreja, ele me concedeu o amor incondicional que me deu uma base psicológica para confiar na bondade dos homens. 123

A presença dessa base amorosa e serena é claramente destacada. Nossa pesquisa de mestrado demonstrou que as apropriações elaboradas especificamente acerca dos pretos-velhos umbandistas variam sutilmente entre quem se reconhece enquanto negro ou branco, sem perder esse caráter acolhedor. 124 O primeiro grupo os enxerga como sábios ancestrais, muitas vezes vinculados à África, reforçando o sentido do preto , enquanto o segundo privilegia as leituras do velho , associando-o mais à figura do avô/ avó. Independentemente dos caminhos, temos uma identificação de ambas as partes com essa figura, o que facilita a internalização das mensagens que são passadas por ela. Associam-se as potências das memórias pessoais e coletivas aos conselhos passados pelos médiuns/pretos-velhos, lançando as bases para uma singela, mas potente modificação de interpretações da realidade atualmente. É nessa identificação comum, cada qual a seu modo, que temos o ponto de contato entre visões de mundo distintas. Há a possibilidade de soerguimento de uma base comum, necessária à consecução de políticas afirmativas e de correção das injustiças ainda em vigor. Sem esse olhar comum, mais amoroso e comprometido com um aprendizado conjunto, os caminhos para a reestruturação de uma coletividade seriam bem mais tortuosos, complicados e doloridos.

Encerramos nosso artigo com uma passagem que descreve o impacto que esse contato com a umbanda e principalmente com os pretos-velhos teria provocado na vida de Pai Casildo Silvera, responsável pela Tenda Espírita Reino da Mata em Montevidéu e ativista do movimento negro. A despeito de não citar nominalmente os elementos que enumeramos acima como exemplos do amor na prática, ela congrega todos eles em um único depoimento, resumindo-os de uma maneira profunda, poética e revolucionária:

Umbanda dá sentido à minha vida. Até conhecer a umbanda eu vivia a discriminação de outra maneira. Sofrida. E com muita rebeldia, e até com agressividade. Porque era a forma que tinha para me defender. Depois que conheci a umbanda, conheci a mim. Então me aceitei como sou, me valorizei como sou e, além disso, valorizei também tudo que são meus pais, meus avós, meus antepassados, meus ancestrais e, bom,

o racismo continua, mas aquele que mudou fui eu. Já não é temerária a vida em sociedade porque através da nossa religião cada um tem uma forma de se fortalecer internamente que de leva a resolver essas questões, responder a essas agressões de forma pacífica e com conhecimento, e até com sabedoria. 125

Nessa narrativa temos a demonstração clara do que seria esse amor potente de Emicida, um amor que é “decisão, atitude, muito mais que sentimento. É alento”. 126 E é nesse processo de modificação individual e coletiva instigado pelos pretos-velhos que erigimos as bases para que a força curativa desse amor atue sobre as feridas do cativeiro, lançando as sementes para uma “paz sustentável”, nas palavras de hooks, 127 e atendendo ao clamor pela tão sonhada liberdade que ainda ecoa desde os emblemáticos discursos de Martin Luther King que transcrevemos a seguir. Lembrando ainda as palavras da poetisa associada ao slam poetry e atriz Roberta Estrela D’Alva de que: “se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”. 128 Em nossa opinião, o mesmo raciocínio vale para a liberdade. Encerremos com King:

Esse é o significado do amor. Em última análise, o amor não é essa coisa sentimental de que falamos sobre. Não é apenas algo emocional. O amor é criativo e compreende a boa vontade para todos os homens. É a recusa em derrotar qualquer indivíduo. Quando você se eleva ao nível do amor, de sua grande beleza e poder, você busca apenas derrotar os sistemas malignos. 129

Eu tenho um sonho de que um dia […] os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos senhores poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade. […] Com essa fé poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, ser presos juntos, defender a liberdade juntos, sabendo que um dia estaremos livres. […] E quando isso acontecer, quando permitirmos que soe a liberdade, quando deixarmos que ela soe em todas as vilas e aldeias, em todos os estados e cidades, poderemos acelerar a chegada desse dia em que todos os filhos de Deus, homens negros e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar as palavras do velho spiritual: “ Free at last, free at last. Thank God Almighty, we are free at last .” [ Livre afinal, livres afinal. Graças a Deus Todo-Poderoso, estamos livres afinal ]. 130

Notas

1 Trecho da canção “Principia , do álbum AmarElo do rapper Emicida. Composição de Leandro Roque (Emicida) e Nave. Na gravação original essa parte é declamada como poesia, ao fim, pelo Pastor Henrique Vieira, da Igreja Batista do Caminho.
2 Importante salientar que os espíritos dos pretos-velhos também se apresentam em uma série de outras religiões, como muito bem trabalhado por Mônica Dias de Souza, Pretos-velhos: oráculos, crença e magia entre os cariocas , Tese (Doutorado em Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
3 Diana Brown, Umbanda: religion and politics in urban Brazil , Nova York: Columbia University, 1994, p. 45.
4 Mais detalhes acerca dessa narrativa podem ser encontrados nos trabalhos: Brown, Umbanda ; Stefania Capone, A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil , Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004; e Patrícia Birman, O que é umbanda , São Paulo: Brasiliense, 1985.
5 Pierre Sanchis, “Cultura brasileira e religião… Passado e atualidade…” Cadernos CERU , v. 19, n. 2 (2008), pp. 71-92 . https://doi.org/10.1590/S1413-45192008000200005
6 Renato Ortiz, A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade brasileira , São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 17.
7 Capone, A busca da África no candomblé .
8 José Guilherme Magnani, Umbanda , São Paulo: Ática, 1986; Lísias Nogueira Negrão, “Umbanda: entre a cruz e a encruzilhada”, Tempo Social , v. 5, n. 1/2 (1994), pp. 113-122 . https://doi.org/10.1590/ts.v5i1/2.84951
9 Emerson Giumbelli, “Presença na recusa: a África dos Pioneiros umbandistas”, Esboços , v. 17, n. 23 (2010), pp. 107-117 . https://doi.org/10.5007/2175-7976.2010v17n23p107
10 Giumbelli, ”Presença na recusa”, p. 115.
11 Mary Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro: 1808-1850 , São Paulo: Companhia das Letras, 1987; Brígida Carla Malandrino, “‘Há sempre confiança de se estar ligado a alguém’: dimensões utópicas das expressões da religiosidade bantú no Brasil”, Tese (Doutorado em Ciências da Religião), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010 ; Liana Trindade, Conflitos sociais e magia , São Paulo: Hucitec, 2000. https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/2148/1/Brigida%20Carla%20Malandrino.pdf
12 Malandrino, “Há sempre confiança de se estar ligado a alguém”, p. 409.
13 Raymundo Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010; Arthur Ramos, O negro brasileiro: ethographia religiosa e psychanalyse, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1934; Arthur Ramos, O folclore negro no Brasil: demopsicologia e psicanálise, Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1935.
14 Ver Ortiz, A morte branca do feiticeiro negro; Magnani, Umbanda.
15 Capone, A busca da África no candomblé .
16 Paula Montero, Da doença à desordem: a magia na umbanda , Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 185.
17 Ortiz, A morte branca do feiticeiro negro .
18 Magnani, Umbanda .
19 Entrevista concedida por Zilvan Lima, médium e frequentador de um terreiro em São João del-Rei, Minas Gerais, em 28 set. 2016, apud Lívia Lima Rezende, Força africana, força divina: a memória da escravidão recriada na figura umbandista dos pretos-velhos , Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, 2017 . http://www.sudeste2017.historiaoral.org.br/resources/anais/8/1505692799_ARQUIVO_EncontroHistoriaOralSudeste.pdf
20 “Resignação” in Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa , 6. ed. (São Paulo: Positivo, 1988), p. 258.
21 “Resignação” in Dicionário de língua portuguesa , (Oxford: Oxford Languages,2022), p. 296.
22 “Revolta” in Ferreira, Novo dicionário Aurélio , p. 278.
23 “Revoltado” in Ferreira, Novo dicionário Aurélio , p. 279.
24 “Resiliência” in Ferreira, Novo dicionário Aurélio , p. 264.
25 “Resistência” in Ferreira, Novo dicionário Aurélio , p. 269.
26 Entrevista concedida por Pai Lucas Arias, 14 fev. 2019, grifo nosso.
27 Entrevista concedida por Pai Alexander Silvera, 13 jun. 2019, grifo nosso.
28 Entrevista concedida por Rachel Melo, 23 jan. 2019, grifo nosso.
29 Entrevista concedida por Rachel Melo, 15 jan. 2019, grifo nosso.
30 Os pretos-velhos chamados de “cruzados” atuariam entre as linhas de pretos-velhos e exus, congregando características desses dois grupos de entidades.
31 Os africanos são um grupo de entidades muito presentes nos terreiros do Sul do Brasil, Argentina e Paraguai. Segundo os responsáveis pelos terreiros uruguaios, eles seriam um grupo de ex-escravizados que não se conformaram com a escravidão, rebelando-se de maneira violenta.
32 Entrevista concedida por Pai Lucas Arias, 14 fev. 2019, grifo nosso.
33 Entrevista concedida por Pai Alexander Silvera, 13 jun. 2019, grifo nosso.
34 Entrevista concedida por Rachel Melo, 23 jan. 2019, grifo nosso.
35 Entrevista concedida por Rachel Melo, 15 jan. 2019, grifo nosso.
36 Entrevista concedida por Pai Casildo Silvera, 13 jun. 2019, grifo nosso.
37 Entrevista concedida por Cíntia Lima, 14 ago. 2018, grifo nosso.
38 James Sweet, Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770) , Lisboa: Edições 70, 2007.
39 Sweet, Recriar África , p. 174.
40 Sweet, Recriar África , p. 182.
41 Sweet, Recriar África , pp. 176-180.
42 João José Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista , São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
43 Reis e Silva, Negociação e conflito .
44 Sílvia Hunold Lara, Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro 1750-1808 , Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
45 Lara, Campos da violência , p. 345.
46 Entrevista concedida por Pai Alexander Silvera, 13 jun. 2019, grifo nosso.
47 Rezende, Força africana, força divina .
48 Robert Slenes, Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil Sudeste, século XIX , Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
49 Slenes, Na senzala uma flor , pp. 280-284.
50 Alexandre Almeida Marcussi, “Estratégias de mediação simbólica em um calundu colonial”, Revista de História da USP , v. 155 (2006), pp. 97-124 . https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.v0i155p97-124
51 Sweet, Recriar África .
52 Entrevista concedida por Pai Lucas Arias, 14 fev. 2019, grifo nosso.
53 Slenes, Na senzala uma flor .
54 Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte , São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 318.
55 Entrevista concedida por Rachel Melo , 10 jun. 2018, grifo nosso.
56 Matthias Assunção, “A memória do tempo de cativeiro no Maranhão”, Tempo , v. 15, n. 29 (2011), pp. 29-110 . https://doi.org/10.1590/S1413-77042010000200004
57 Souza, Pretos-velhos .
58 Souza, Pretos-velhos , p. 161.
59 Há uma enorme variedade de termos passíveis de serem adotados aqui, como resistência pacífica ou resistência passiva. Optamos por adotar o termo que foi o mais utilizado pelos três personagens históricos em que baseamos a prática em si (Gandhi, King e Tolstói): resistência não violenta .
60 Martin Luther King, A autobiografia de Martin Luther King , Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 317, grifo nosso.
61 Cabe relembrar que, embora Malcolm X seja reconhecido por seu histórico de luta contra o racismo a partir de meios mais violentos, ele teria, nos anos que antecederam seu assassinato, se aproximado um pouco mais das ideias defendidas por King. O pastor batista relata, inclusive, que Malcolm X teria se reunido com Coretta King (sua esposa) em Selma, Alabama, duas semanas antes de ser morto (fevereiro de 1965). Na ocasião ele teria expressado seu interesse em trabalhar mais próximo ao movimento não violento (King, A autobiografia , p. 317).
62 King, A autobiografia , p. 42.
63 King, A autobiografia , p. 39.
64 King, A autobiografia , pp. 39-40, grifo nosso.
65 Gandhi viveu pouco mais de duas décadas no país africano. Ele se mudou no princípio da década de 1890, tendo permanecido até 1914, com pequenos intervalos na Índia.
66 Durante os anos em que Gandhi viveu na África do Sul, ainda não fora instituído o apartheid enquanto regime oficial de segregação, o que só viria a ocorrer em 1948.
67 Mohandas Gandhi, Autobiografia: minha vida e minhas experiências com a verdade , São Paulo: Palas Atenas, p. 384.
68 Gandhi, Autobiografia , p. 131.
69 Gandhi, Autobiografia , p. 139.
70 Liev Tolstói, O reino de Deus está em vós , Rio de Janeiro: Best Bolso, 2011.
71 Tolstói, O reino de Deus está em vós , p. 11.
72 Tolstói, O reino de Deus está em vós , p. 63, grifo nosso.
73 Gandhi, Autobiografia , p. 74, grifo nosso.
74 King, A autobiografia , p. 89, grifo nosso.
75 Entrevista concedida por Rachel Melo, 10 jun. 2018, grifo nosso.
76 Nascido em 1804 em Lyon, na França, Hipolyte Leon Denizard Rivail foi o pedagogo responsável pela publicação das obras básicas do espiritismo kardecista sob o pseudônimo de Allan Kardec (que teria sido seu nome em uma encarnação anterior). Durante muitas décadas ele teria acompanhado o trabalho de médiuns em distintas regiões da Europa, anotando e comparando suas falas, apreciando-as a partir das sugestões oferecidas pela ciência naquele momento. Por não se considerar o autor dessas obras (cuja autoria sempre atribui aos espíritos que teria entrevistado), ele sempre se apresentou como codificador da doutrina, ressaltando seu papel na simples organização e estruturação desse saber.
77 Allan Kardec, O Evangelho segundo o espiritismo , Brasília: FEB, 2009.
78 Roger Chartier, À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes , Porto Alegre: UFRGS, 2002, p. 92.
79 Pai João de Angola (Espírito), Fala, preto-velho , Psicografado por Wanderley de Oliveira, Belo Horizonte: Dufaux, 2016, p. 1, grifo nosso.
80 Lara, Campos da violência ; Chalhoub, Visões da liberdade .
81 Título inspirado no título do livro publicado pelo rapper, ator e ativista norte-americano Common, em que defende, a partir da sua própria experiência pessoal, que o amor seria o único método capaz de curar as dores do mundo.
82 bell hooks, “O amor como prática da liberdade”.
83 Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio , Belo Horizonte: Mazza, 2003, p. 9.
84 Ivair dos Santos, “Paulina Chiziane: ‘Somos independentes, mas os fantasmas do colonialismo ainda vivem conosco’”, Observatório da África , https://observatoriodaafrica.wordpress.com/2017/07/10/paulina-chiziane-somos-independentes-mas-os-fantasmas-do-colonialismo-ainda-vivem-conosco/ grifos nossos.
85 Fernanda Mena, “Escritores africanos veem queda de estátuas como uma reação violenta à violência”, Folha de São Paulohttps://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/08/escritores-africanos-veem-queda-de-estatuas-como-uma-reacao-violenta-a-violencia.shtml , grifos nossos.
86 Emicida e Nave, “Princípia”, grifo nosso.
87 Toni Morrison, The bluest eye , Nova York: Alfred A. Knopf, 1993, p. 135.
88 bell hooks, All about love: new visions , Nova York: William Morrow, 2001, p. xix-xxi.
89 King, A autobiografia , p. 40.
90 Entrevista concedida por Samuel Resende, 2 out. 2018, grifo nosso.
91 Toni Morrison, Amada , São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 6.
92 Audre Lorde, A burst of light and other essays , Nova York: Ixia, 2017, p. 97.
93 Rael, “Sempre”.
94 hooks, All about love .
95 O ato de cambonar nos terreiros umbandistas diz respeito ao auxílio prestado por um filho-de-santo que não está incorporado por nenhum espírito. Ele, usualmente, ajuda no sentido de buscar velas, ervas ou outros elementos necessários a um trabalho, ou, ainda, interpretando as mensagens passadas do médium incorporado para o consulente.
96 hooks, All about love , p. 216.
97 Entrevista concedida por Rachel Melo, 15 jan. 2019.
98 hooks, All about love , p. 217.
99 Entrevista concedida por Cíntia Lima, 14 ago. 2018.
100 Entrevista concedida por Samuel Resende, 2 out. 2018.
101 As contas de lágrimas de Nossa Senhora são sementes de uma planta que recebe o mesmo nome. Normalmente os terços e rosários de pretos-velhos são feitos com esse material.
102 hooks, All about love , p. 230.
103 Kardec, O evangelho , p. 73. Remete ao Evangelho de Mateus 11: 28-30.
104 Trecho da poesia “Na memória da África e do mundo”, do Livro VII, Canto de Esperança . Paulina Chiziane, O canto dos escravizados , Belo Horizonte: Nandyala, 2018, p. 165, grifo nosso.
105 Martin Luther King, As palavras de Martin Luther King , Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 31.
106 Chiziane, O canto dos escravizados , p. 133, grifo nosso.
107 hooks, All about love , p. 210.
108 King, As palavras de Martin Luther King , p. 76.
109 Por que uma gêmea que sofreu experimentos de Josef Mengele perdoou os nazistas. BBC News Brasil . https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51650996
110 Martin Luther King, A dádiva do amor , São Paulo: Planeta, 2020.
111 Trecho do poema final de “Principia”.
112 Esse foi o termo usado por Mãe Leila Rodrigues, mãe-de-santo da Tenda Espírita Pai José do Congo, em São João del-Rei – terreiro que pesquisamos para a pesquisa de mestrado (Rezende, Força africana, força divina ).
113 Rezende, Força africana, força divina .
114 Rezende, Força africana, força divina .
115 Esse tipo de visão ainda permanece em alguns centros espírito-kardecistas, embora não seja a regra. Há locais que privilegiam a manifestação de espíritos de médicos e professores, por exemplo.
116 Humberto de Campos (Espírito), Lázaro Redivivo, psicografado por Francisco Cândido Xavier, Brasília: FEB, 1945, p. 86.
117 Entrevista concedida por Soraia Santos, 27 set. 2016, apud Rezende, Força africana, força divina , grifo nosso.
118 Entrevista concedida por Leila Rodrigues, 29 jul. 2016, apud Rezende, Força africana, força divina , grifo nosso.
119 Entrevista concedida por Marilaine Rodrigues, 30 set. 2016, apud Rezende, Força africana, força divina , grifo nosso.
120 Assmann, Espaços de Recordação, Campinas: Universidade Federal de Campinas, 2011, p. 304.
121 Entrevista concedida por Gabriel Rufo, 15 set. 2016, apud Rezende, Força africana, força divina , grifo nosso.
122 Guilherme Henrique, “Emicida: ‘Minha leitura do país não vale porra nenhuma se eu não souber conversar com alguém desesperado’”, El Paíshttps://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/20/cultura/1574206386_369686.html , grifo nosso.
123 bell hooks, Salvation , Nova York: William Morrow, 2001, p. 128.
124 Rezende, Força africana, força divina .
125 Entrevista concedida por Pai Casildo Silvera, 9 fev. 2019.
126 Trecho da canção Principia .
127 hooks, All about love , p. 220.
128 Fala proferida durante debate realizado em 2015, no auditório do Itaú Cultural em São Paulo após o cancelamento por racismo da peça “A mulher do trem” da companhia de teatro “Os fofos encenam”.
129 King, A dádiva do amor , p. 58.
130 King, A autobiografia , pp. 271-272. A tradução do trecho final é nossa.
* Emprestamos essa expressão de bell hooks, “O amor como prática da liberdade”, Tradução para uso didático por Wanderson Flor do Nascimento, Medium . https://medium.com/enugbarijo/o-amor-como-a-pr%C3%A1tica-da-liberdade-bell-hooks-bb424f878f8c


Buscar:
Ir a la Página
IR
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por