Resumo
Objetivo/contexto: Neste artigo, analisa-se a construção de representações juvenis através do repertório musical elaborado pela MTV Brasil em seu primeiro ano. O objetivo repousa em compreender os segmentos musicais mais explorados pela emissora no período, além de articular sua proeminência na transformação da categoria de “música jovem”, com impacto singular na cultura juvenil brasileira. A MTV era um canal televisivo voltado ao público jovem, com início nos Estados Unidos em 1981 e chegada ao Brasil em 1990 por intermédio do Grupo Abril, conglomerado de mídia nacional. A transmissão em solo brasileiro partia do formato estadunidense, com exibição de videoclipes de artistas e segmentos musicais específicos, com forte apelo ao consumo dessa camada da população.
Metodologia: Considerando a música como marcador social, neste trabalho, analisa-se o repertório específico de segmentos musicais e artistas elaborado pela emissora como viés de identificação. Assim, propõe-se um exame a partir dos primeiros videoclipes de artistas brasileiros produzidos pela emissora e veiculados no seu primeiro ano de exibição.
Originalidade: Destaca-se que ainda é pouco analisado o nível de importância de determinadas mídias ou programas midiáticos na constituição das identidades de agentes sociais, principalmente na elaboração de identidades juvenis no passado recente.
Conclusões: Conclui-se que a MTV operou uma autoridade musical para a juventude, atuando como curadora daquilo que deveriam consumir para performar sua condição juvenil, atuando como um artífice da juventude. A emissora baseou seu repertório inicial em um conjunto de artistas vinculados ao rock, com forte influência na indústria fonográfica dos anos 1990 e impacto decisivo nas juventudes brasileiras.
Palavras-chave: Brasil, identidade, juventudes, modernidade, música, televisão.
Resumen
Objetivo/contexto: Este artículo analiza la construcción de representaciones juveniles a través del repertorio musical producido por MTV Brasil en su primer año. El objetivo es comprender los segmentos musicales más explorados por la emisora en el período, así como articular su protagonismo en la transformación de la categoría de “música juvenil”, con un impacto singular en la cultura juvenil brasileña. MTV fue un canal de televisión dirigido al público joven, que comenzó en Estados Unidos en 1981 y llegó a Brasil en 1990 a través del Grupo Abril, un conglomerado nacional de medios de comunicación. La transmisión en suelo brasileño se basó en el formato estadounidense, mostrando videos musicales de artistas y segmentos musicales específicos, con un fuerte atractivo para el consumo de este sector de la población.
Metodología: Considerando la música como marcador social, este estudio analiza el repertorio específico de segmentos musicales y artistas producidos por la emisora como medio de identificación. Así, se propone un examen basado en los primeros vídeos musicales de artistas brasileños producidos por la emisora y emitidos en su primer año.
Originalidad: El nivel de importancia de determinados medios o programas mediáticos en la constitución de las identidades de los agentes sociales, especialmente en el desarrollo de las identidades juveniles en el pasado reciente, está aún poco analizado.
Conclusiones: Se puede concluir que MTV operó como una autoridad musical para los jóvenes, actuando como un curador de lo que ellos debían consumir para performar su condición juvenil, actuando como un artificiero de la juventud. La emisora basó su repertorio inicial en un grupo de artistas vinculados a la música rock, con una fuerte influencia en la industria fonográfica en la década de 1990 y un impacto decisivo en la juventud brasileña.
Palabras clave: Brasil, identidad, juventud, música, modernidad, televisión.
Abstract
Objective/context: This article analyzes the construction of youth representations through the musical repertoire produced by MTV Brasil in its first year. The objective is to understand the musical segments most explored by the broadcaster during this period, as well as how to articulate their protagonism in the transformation of the “youth music” category, with a singular impact on Brazilian youth culture. MTV was a television channel aimed at young audiences, which started in the United States in 1981 and arrived in Brazil in 1990 through Grupo Abril, a national media conglomerate. The broadcast on Brazilian soil is based on the American format, showing musical videos from artists and specific musical segments, with a strong attraction for consumption in this sector of the population.
Methodology: Considering music as a social marker, this study analyzes the specific repertoire of musical segments and artists produced by the broadcaster as a means of identification. Therefore, an examination based on the first musical videos by Brazilian artists produced by the broadcaster and broadcast in its first year is proposed.
Originality: The level of importance of certain media or media programs in the constitution of the identities of social agents, especially in the development of juvenile identities in the recent past, is only a little analyzed.
Conclusions: It can be concluded that MTV operated as a musical authority for young people, acting as a curator of what they should consume to perform their youthful condition, acting as an artificer of youth. The broadcaster was based on its initial repertoire among a group of artists linked to rock music, with a strong influence on the recording industry in the 1990s and a decisive impact on Brazilian youth.
Keywords: Brazil, identity, modernity, television, music, youth.
Tema abierto
MTV Brasil: repertório musical e construção de uma juventude televisionada (1990) *
MTV Brasil: repertorio musical y construcción de una juventud televisada (1990)
MTV Brazil: musical repertoire and construction of a televised youth (1990)
Recepção: 29 Fevereiro 2024
Aprovação: 21 Maio 2024
Em uma palestra em Salzburg, Áustria, sobre o futuro das artes, em 1996, Eric Hobsbawn destaca que atravessávamos uma realidade “saturada de música”1. Sua fala está impreterivelmente conectada às inúmeras formas de escuta e recepção musical experimentadas até aquele período. A música estaria em todos os lugares. Por isso, afirmou que “a sociedade de consumo parece achar que silêncio é crime”2. A indagação de Hobsbawn é um ponto de partida para pensar na centralidade que os sons ocupam na sociedade contemporânea. A música faz parte do mobiliário do cotidiano. Em uma sociedade que não tolera o silêncio, ela se apresenta como a harmonia necessária para inúmeros momentos.
O espaço ocupado pela música na sociedade se reforça drasticamente quando lançamos olhar para as juventudes. A intersecção entre esses campos tem sua historicidade marcada pela formação das identidades juvenis, contribuindo para a construção de outras noções sobre comunidade e pertencimento. Entende-se que a juventude é uma categoria construída historicamente, ou seja, a partir de “determinadas circunstâncias econômicas, sociais ou políticas”3 que se modificam no transcorrer do tempo. Nesse contexto, a música se constituiu como campo para os jovens expressarem e construírem suas identidades coletivas e subjetividades individuais, notadamente a partir da segunda metade do século 20, transformando-se em um campo de afirmação de identidades e posicionamento no mundo para diferentes juventudes4. Também houve largo investimento da indústria fonográfica em constituir a juventude como grupo social que expressava seu estilo de vida através da música, conforme Simon Frith5. Isso contribuiu para a construção de culturas juvenis apoiada em canções, elaborando discursos, representações e imaginários sociais. Com o “desenvolvimento de novas funções musicais nos média audiovisuais”6, principalmente a partir dos anos 1980, houve um incremento e transformação nessa relação. Para Frith7, isso foi exponenciado pelo relacionamento com a indústria televisiva ao redor do globo, principalmente naquilo que categoriza como “nova televisão” - capitaneada pela linguagem mobilizada pela MTV.
A Music Television era um canal televisivo voltado ao público jovem, com programação pautada pela exibição de videoclipes. Iniciou suas operações nos Estados Unidos em 1981 e chegou ao Brasil em 1990 como parte da estratégia de expansão global da marca, licenciando-a para o Grupo Abril, conglomerado de mídia impressa que dava seus primeiros passos no mercado televisivo brasileiro. Estruturalmente, a emissora partia do formato da matriz: programas de curto formato, apresentados por um vídeo-jockey, com exibição variada de videoclipes8.
Nessa estrutura, a MTV atuou como um canal de difusão musical, que promovia a divulgação e proliferação de canções através do videoclipe. Por intermédio da emissora, a peça audiovisual (crucial para a indústria fonográfica do período) reverberava na tela e alcançava uma certa juventude, apresentando um conjunto específico de artistas conectados com os anseios e gostos dessa camada da população. Com isso, operou um padrão musical, voltado para segmentos específicos. Compreendendo o espaço da música como marcador social, é possível entender como a articulação de certos artistas engendra um saber juvenil.
Portanto, o trabalho procura analisar a construção do repertório musical elaborado pela MTV Brasil, pois entende que ele desvela uma ideia acerca da juventude, articulando signos construídos no transcorrer do tempo, além de operar diferentes passados musicais e juvenis em seu discurso. Nesse sentido, a MTV erigiu pontes entre música e juventude, atuando como um dos vetores de identificação juvenil em fins do século 20 no Brasil, além de ser um mediador da construção histórica e social da categoria de juventude.
Este artigo aponta que a MTV Brasil operou uma autoridade musical ante a juventude, atuando como curadora daquilo que deveriam consumir para performar sua condição juvenil. Houve um investimento em tecer seu discurso na ligação entre música e jovens, destacando que esta seria a categoria social “digna” de ter uma fruição musical. Seu ápice seria a estruturação de um repertório musical específico, com preferência por determinados segmentos, colocando na sua programação um extenso conjunto de artistas e bandas, nacionais e estrangeiros, conectados com uma noção de cultura juvenil. A operação foi uma de suas bases de atuação, com forte influência na indústria fonográfica dos anos 1990 e impacto decisivo nas juventudes brasileiras.
O artigo destaca a presença reduzida de análises sobre a importância de determinadas mídias ou programas midiáticos na construção das identidades de agentes sociais. No que tange à MTV Brasil, existem trabalhos nas áreas da comunicação e educação que versam sobre sua trajetória a partir de objetivos específicos. Estes abordam a pretensa democratização do mercado televisivo brasileiro com a entrada da emissora no país9, com a articulação e redefinição de gêneros televisivos nos seus programas10, e com as representações juvenis elaboradas por atrações específicas11. Entretanto, carecem estudos que abordem uma perspectiva histórica acerca de suas potencialidades, elencando-a como elemento historicamente representativo, localizado na vida social de indivíduos que formularam subjetividades no período no contato com a oferta e com o consumo cultural12, evidenciando seu papel nesse sentido.
Olhar a trajetória da MTV Brasil é importante para entender o papel dos meios de comunicação na elaboração de identidades juvenis no passado recente, assim como nos estudos históricos sobre o Brasil contemporâneo. Portanto, com este trabalho, procura-se avançar nas discussões sobre o campo da história da música e da juventude, através de um objeto de pesquisa renovado. Para isso, propõe-se um exame a partir dos primeiros videoclipes de artistas brasileiros produzidos pela emissora e veiculados no seu primeiro ano de exibição. O trabalho faz uma discussão historiográfica no primeiro ponto, abordando sua expansão global conectada à entrada no Brasil, em diálogo com o contexto histórico de redemocratização e abertura política. No segundo ponto, a discussão aprofunda para as escolhas de artistas e segmentos musicais feitas pela MTV Brasil, através da produção de seus primeiros videoclipes. Por fim, aprofunda a análise de Garota de Ipanema como imagem de modernidade e conexão a valores mundializados.
Antes do início de sua programação no Brasil, o Grupo Abril apresentou seu novo produto para veículos especializados, por meio de uma grande feira realizada no pavilhão do Projeto sp13, na capital paulista. Foi estruturado diferentes estantes que mostravam algumas facetas daquilo que seria a MTV Brasil, que entraria no ar dois meses após esse evento.
Entra nesta semana na reta final um projeto que vem sendo preparado há um ano e, a partir de 20 de outubro, irá mexer com os hábitos dos telespectadores jovens e dos que gostam de música. Através dele, o Brasil ingressa no grupo de 35 países onde é possível acionar o seletor de canais e sintonizar a MTV, a rede mundial de televisão consagrada com o que há de mais novo e arrojado no vídeo em matéria de música, permeada por informações dirigidas basicamente a um público cuja faixa etária aproximada já define o estilo da rede: vai dos 12 aos 34 anos14.
Seu objetivo era duplo: de um lado, angariar novos anunciantes para uma empreitada milionária do grupo midiático brasileiro; de outro, exibir seus planos para a imprensa nacional, ávida por informações sobre um empreendimento dessa estatura. O entusiasmo de jornais e revistas com a chegada da MTV no país era nítido em suas matérias, que cobriram exaustivamente os bastidores do início da emissora. Por conta disso, destacaram a feira como o início da “cantada” da MTV no jovem público brasileiro. Para eles, o canal televisivo buscaria se “transformar na cara do jovem brasileiro [...] que goste de música”15.
Na sua chegada ao país, a MTV já se consolidava como uma das principais emissoras voltadas para um público segmentado no mercado estadunidense. Criada nos Estados Unidos em 1981 (nove anos antes de sua chegada ao Brasil), era gerida pela Warner-Amex Satellite Entertainment, uma joint venture16 entre a Warner Comunications17 e a American Express18. Entretanto, seu crescimento e estabelecimento como rede nacional vêm após a venda da operação para a Viacom, em 1985, criando a MTV Networks, responsável pela gestão da emissora. Houve mudanças cruciais em sua estrutura, como a diversificação da programação, o aumento na atuação na indústria fonográfica e o enraizamento no mercado televisivo estadunidense. Seu crescimento se enquadra na expansão da tv a cabo nos Estados Unidos, com foco em transmissões direcionadas a públicos específicos.
A partir de meados da década de 1980, a emissora cresceu sua presença no número de residências nos Estados Unidos, passando de 1,5 milhão em 1981 para 29,2 milhões em 1986, conforme James Walker19. Os números colocavam a emissora no sexto lugar de amplitude entre as redes a cabo, com taxa de crescimento de assinantes ultrapassando 7% a cada ano. Os números são representativos, uma vez que as empresas localizadas nesse mercado apresentavam perdas de dividendos no período. No que tange aos lucros, a MTV Networks ultrapassou a marca de 109 milhões de dólares até 1986 - valor relacionado diretamente com seu sucesso de audiência, já alcançando o segundo lugar naquele país em 1986.
No momento de crescimento interno, a MTV inicia sua expansão global, buscando outros mercados para espraiar suas atividades e explorar comercialmente a marca. Para Banks20, a expansão global da MTV Network se aproximava das atividades de outros conglomerados de mídia, que buscavam uma afirmação mundial em um contexto específico do capitalismo, em que empresas multinacionais (que ainda reservava elementos nacionais e corporação global) dão espaço a operações transnacionais - que representavam um desenraizamento dos produtos, acompanhada pela irrelevância da nacionalidade das corporações, conforme Renato Ortiz21. A guinada global da MTV encontrou maior força na década de 1990 - momento de sua chegada no Brasil.
Além de dialogar com a dimensão econômica, as estratégias da emissora com suas operações fora dos Estados Unidos se alinhavam na promoção e exploração de uma cultura juvenil internacional, conforme Banks22. Houve investimento em uma audiência global de jovens, através da programação segmentada baseada na música, com impacto nas construções culturais realizadas nos diferentes países. Ortiz23 aponta que empresas transnacionais (como a MTV Networks) são instâncias culturais com agência nos padrões de legitimidade social. Segundo o autor, elas articulam “uma ética específica, valores, conceitos de espaço e de tempo” que são compartilhados por diferentes grupos. Nessa chave, a MTV pode ser analisada como uma “instância de socialização de determinada cultura”, na qual Ortiz24 elenca como cultura internacional-popular. Portanto, a emissora aliou sua expansão global com um conjunto de símbolos que seriam inteligíveis em quaisquer partes do mundo, impactando nas identidades juvenis do período.
Também é destacável a centralidade dos circuitos de comunicação e de mercado na configuração de identidades juvenis, operando sentidos difusos sobre a categoria de juventude. A relação foi aprofundada no pós-guerra, no desenvolvimento de tecnologias de informação com impactos decisivos na sociedade. Nesse período, as formulações em telas sobre a juventude ganhavam espaço, articulando elementos centrais na configuração das representações juvenis reconhecidas no presente. Portanto, os circuitos comunicacionais e visuais forneceram imagens sobre os jovens, a partir de representações acerca de sua vida. A juventude transviada, jovens engajados em lutas políticas ou na contracultura: todas foram objetos de diferentes obras audiovisuais que influenciaram as identidades juvenis no transcorrer do tempo.
A indústria cultural se estabeleceu como uma das principais interlocutoras desse processo, colocando jovens como sujeitos de consumo a partir de bens exclusivos. Com isso, as produções simbólicas da sociedade, ancoradas na oferta e consumo de produtos culturais, dão “sentido e especificidade ao mundo juvenil”25, em que as diferentes imagens participam ativamente da construção de identidades.
Uma das vias dessa afirmação viria pelo consumo do rock, justamente por reconhecer seu valor cultural distintivo, relacionado com os produtos disponíveis no mercado, seus usos e apropriações26. A principal foi a construção histórica desse estilo/gênero musical como segmento “genuinamente” juvenil, que se estabeleceu como elemento de distinção geracional, através de práticas sociais específicas que forjaram sentidos singulares, e articulado como insígnia de afirmação da identidade de um grupo social. Dialogando com a amplitude do consumo musical nesse cenário, Garson27 destaca o papel ativo da música na fabricação de valores, com significados atribuídos no ato da produção e ressignificados pela audiência. A emergência do rock é emblemática desse processo, no qual a “produção de uma música jovem não é o simples efeito de jogos de mercado”28, mas uma mediação para afirmação da identidade juvenil.
Até o final dos anos de 1950, existiam diversos novos artistas e produções conectadas ao rock, em conjunto a um crescimento exponencial da indústria fonográfica mundial. A emergência de um mercado jovem influenciou nesse cenário, tornando-se o “espaço privilegiado do consumo musical”29.
Também deve-se apontar a influência dos aspectos materiais nesse cenário. A indústria fonográfica estadunidense passava por um ciclo de intensa competição no final dos anos de 1950. As maiores empresas do mercado trabalhavam na “integração vertical” da produção da música gravada, com controle das áreas de distribuição e divulgação. Esse ciclo de produção durou até meados daquela década, alterando-se por conta do aumento da competitividade e esvaziamento do domínio dessas grandes empresas (principalmente na área da divulgação), além da entrada de empresas independentes que conquistaram espaço competitivo no mercado30.
A perda de domínio na divulgação se relaciona com a diversificação do consumo de rádio, fruto do aumento de seu uso entre 1955 e 1960, impulsionado pelas inovações tecnológicas que o tornaram portátil31. Com isso, também houve uma profunda mudança na programação radiofônica estadunidense, direcionando-a a partir de pequenos grupos de gostos específicos (ao invés de um largo público) e de um enfoque das estações de acordo com segmentos. Os jovens foram os principais beneficiados por essa alteração, com uma guinada de emissoras voltadas a esse público, mas não só eles: o rock também se beneficiou desse contexto.
A conjuntura das rádios no período alçou artistas à categoria de astros juvenis, com contribuição decisiva da expansão da televisão e das transmissões via satélite. Em conjunto, fenômenos como a beatlemania conferiram uma dimensão mundializada para esse crescimento, moldando padrões de consumo em diversos espaços do mundo32. Esses aspectos posicionaram a juventude como principal face do consumo musical, marcada por símbolos mundializados, impactando decisivamente nas identidades.
Nessa linha, destaca-se o consumo como sistema de significação, com um conjunto de práticas e valores coletivamente construído - afastando a compreensão mercadológica de um ato individualizado, operado pela necessidade ou pelo desejo. Nessa linha de raciocínio, o consumo produz sentidos para aqueles que o exercem, além de estruturar representações identitárias potencializadas pelos meios de comunicação, que consolidam uma ideia de comunidade afetiva por essa via33. Como Mike Featherstone34 destaca, existe uma cultura do consumo que aponta para a relação entre seus bens e atos como demarcadores de relações sociais, agindo na promoção de novos sentidos sobre os sujeitos, compondo táticas de “expressão, inserção e engajamento”35.
Abordar o consumo como demarcador social e cultural abre a possibilidade de análise do impacto nas subjetividades juvenis36, com o consumo musical sendo uma de suas principais operações. Por meio dele, promove-se o reconhecimento de jovens sob uma coletividade, com impacto decisivo na construção de identidades37. O ato de consumir artistas e segmentos musicais influencia gostos e identificações, possibilitando o acesso de diferente sujeitos a um conjunto de signos que formam suas visões de mundo, conectando-se à juventude através do sentimento de pertencimento coletivo.
A MTV se localiza nesse contexto, em que um produto de divulgação musical se torna vetor de uma ideia de juventude. Portanto, a amplitude do videoclipe, a partir do consumo musical, possibilita a análise de culturas juvenis germinadas nos anos 1990, período que formatou identidades juvenis a partir da televisão.
Dessa forma, a emissora estabelecida no mercado estadunidense desembarcava em solo brasileiro, com linguagem visual e formato televisivo consolidado. Sua estratégia de desdobramento global envolvia acordos com emissoras e grupos midiáticos de outros locais, dispostos a encampar uma estruturação rígida. Uma delas era através de joint ventures com empresas locais; outra, por meio do licenciamento da marca. A MTV inicia por meio deste último acordo, em que a Viacom licenciou seu uso em território brasileiro para o Grupo Abril, autorizado a explorar a marca com uma programação feita em solo brasileiro, mas pautada pelo formato da rede.
Para o grupo brasileiro, o acordo selado veio em momento oportuno, uma vez que sua concessão de televisão aberta expiraria em 199038. Apesar de ser um conglomerado de mídia impressa criada nos anos 1950, o Grupo Abril iniciou suas operações televisivas na década de 1980, com a criação da Abril Vídeo - responsável pela distribuição de filmes de grandes estúdios estrangeiros (como Walt Disney e 20th Century Fox), além de produzir atrações voltadas para o público jovem39. O acordo com a Viacom foi assinado entre 1989 e 1990, com duração de cinco anos, acordando-se pagamento de royalties pelo uso da marca no país e condições contratuais específicas para sua utilização. Ainda que a MTV Networks não participasse do faturamento da MTV Brasil, ela recebia os valores devidos à venda do formato. Porém, o contrato firmado permitia sua participação em certas decisões, como a veiculação de comerciais40.
Entretanto, residem algumas particularidades da atuação na MTV Brasil que a diferem da experiência estadunidense. Uma delas era sua exibição em rede aberta, algo inédito para a marca até aquele momento, além de dialogar com um espaço de transmissão televisivo singular no Brasil. A televisão faz parte da vida de milhões de brasileiros, firmando-se como uma das mídias de maior impacto na sociedade41. O processo histórico que a estabeleceu como veículo de importância singular remete ao final dos anos 1960 e ao início dos 1970. Sua popularização e modernização se desenvolveram através de políticas acionadas no período ditatorial brasileiro, que tinha na mídia um de seus principais veículos de integração nacional de um projeto autoritário, fundamental para o estabelecimento e fortalecimento do regime. Para tanto, criou-se a Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel), em 1965, e o Código Brasileiro de Telecomunicações em 1967, que basearam essa expansão42. Se, no início da década de 1970, o número de televisores em uso no Brasil ultrapassava os quatro milhões, em 1990 já se aproximava de 30 milhões43. Assim, ela ocupa lugar central na sociedade, sendo uma das principais fontes de informação e entretenimento de grande parcela da população. Portanto, a entrada da MTV no Brasil dialoga com o contexto de afirmação da televisão como espaço central na realidade brasileira, intensificada pela sua transmissão em rede aberta.
A partir da concessão do Grupo Abril, era possível receber os sinais da emissora através de uma antena. Seu acesso estava livre para um vasto público em todo o território nacional, pois a televisão aberta permitia que o sinal se espalhasse por diversas regiões. Aqui, abre-se outra particularidade da emissora em solo brasileiro: foco na segmentação. Geralmente, aquelas veiculadas em sinal aberto são dispostas como generalistas, ou seja, focadas no grande público e com maior amplitude. Já a segmentada se comunicaria com um nicho específico desse público, com foco em “atender os requisitos, preferências e gostos de segmentos específicos do público espectador”44.
Além de alterar alguns aspectos televisivos, a chegada da MTV no Brasil representava a entrada do país em um circuito imagético mundializado. Para Renato Ortiz45, existem aspectos hegemônicos mundializados que se estabelecem em bases locais. O processo pode ser analisado no cotidiano, tomando como exemplo produtos culturais (como a MTV), com traços que “invadem nossas vidas, nos constrangem, ou nos libertam, e fazem parte da mobília do nosso dia-a-dia”46. Nesse viés, a emissora operava e potencializava signos mundialmente inteligíveis, atuando como uma mediadora de jovens brasileiros com um arcabouço imagético e consumo musical global. Como reforça Ortiz, essa relação ocorre por intermédio de uma cultura de consumo, que adquire centralidade, transformada em uma “das principais instâncias mundiais de definição de legitimidade dos comportamentos e dos valores”47.
A emergência de um mercado voltado à juventude, além do incremento do consumo dessa camada da população, remete a um processo iniciado na década de 1960, com a jovem guarda representando um de seus principais movimentos. Para Marcelo Garson48, ela personificou um esforço inédito na construção de uma cultura juvenil ao redor do consumo da música e na construção de ídolos juvenis. Em diálogo, ocorrem mudanças na estrutura social e dos valores dominantes no país entre 1950 e 1960, em que a figura do trabalhador como ímpeto civilizador dava lugar ao consumidor49. Nesse contexto, o jovem foi alçado como imagem própria do consumo, representando um estilo de vida personificado nesse momento.
Essa configuração ganha novos contornos nos anos 1980, com um grande crescimento e proeminência do mercado juvenil. A década é marcada pelo crescimento populacional da faixa etária juvenil, aliado ao direcionamento e aprofundamento da indústria cultural na construção da juventude como estilo de vida. Identifica-se uma explosão demográfica desse recorte entre 1970 e 1980, caracterizado como onda jovem, marcando um alargamento dessa faixa na população brasileira50. Simultaneamente, houve um forte fluxo migratório para grandes centros urbanos, complexificando a urbanização e o êxodo rural, contribuindo para a complexificação da classe média urbana no país. A população urbana volta a crescer entre 1980 e 1990, com aumento de mais de 40% (em torno de 30 milhões de pessoas)51.
A imagem sobre a juventude também ganha novos contornos quando olhamos para o cenário de abertura política atravessado no período. Em um momento de reorganização da sociedade, a imagem do jovem seria um artífice de novos tempos, como a força motriz para a construção do país em um momento pós-ditatorial52. Junto a isso, temos a consolidação do mercado de bens simbólicos, da indústria cultural e o adensamento da cultura de consumo no país. O contexto intensifica modificações no conjunto de valores e crenças relacionados a essa camada da população, com alterações nas bases das experiências compartilhadas. Os signos de distinção juvenil são alterados, com influência central dos meios de comunicação, articulando noções modernas de juventude e fornecendo quadros de referência53. Assim, a década de 1980 traz uma “nova representação de juventude”54, ancorada em um conjunto imagético que ganhavam as telas da televisão, assim como roubavam os ouvidos de jovens pelo país. Esse mobiliário cultural operou um sentimento comum juvenil, indicando um novo tempo juvenil, com papel central do consumo musical e televisivo.
Na década de 1990, há um aprofundamento da onda jovem, com um novo crescimento demográfico destacável de pessoas entre 15 e 29 anos. Além disso, intensificam-se as formas juvenis construídas na década anterior, adensando sua relação entre consumo, música e identidade. Assim, a MTV dialogava com um destacável número de pessoas em franco crescimento no Brasil, além de tomar um espaço de grande influência diante dessas construções. Analisar a construção do repertório musical da emissora é compreender um contexto histórico específico do país, principalmente no que concerne à juventude e ao aprofundamento da onda jovem.
A importância de um canal televisivo segmentado, exibido em rede aberta e em contato com signos mundializados, também se alinhava aos anseios de renovação que pairavam na sociedade brasileira. A entrada da MTV no Brasil pode ser analisada pela chave das mudanças ocorridas no país recém-democrático da década de 1990, com uma série de acontecimentos que estruturaram a narrativa de abertura política, social e cultural, consolidando um clima de “novos tempos” no horizonte brasileiro. As expectativas sobre o futuro estavam na ordem do dia. Nisso, uma nova emissora, dedicada à música e a juventude, personificava uma modernidade pretendida para essa camada da população.
Dessa forma, a MTV agiu como um artífice da modernidade, considerando-a como um discurso no qual se toma consciência das mudanças que ocorriam no país, conforme Renato Ortiz55. Nesse sentido, ela é uma “concepção de mundo que se articula à presença real ou idealizada de elementos diversos”56 (urbanização, tecnologia, ciência, entre outros), que se transforma no transcorrer dos tempos. Assim, a expectativa pela sua chegada ao país se ancorava na esperança do encontro com o “moderno”; naquilo que abriria as portas do Brasil democrático para o mundo. As promessas de modernização eram envoltas pelos discursos de abertura de mercado e diálogo (econômico e cultural) com outros países. Isso passava pelo adensamento de práticas e políticas liberais, focadas na abertura do mercado brasileiro, junto a profundas transformações no papel do Estado, em diálogo com um modelo de desenvolvimento econômico e social liberal que se espraiou nas sociedades latino-americanas do período57.
Aliando a ideia de novidade com o sentimento de euforia do período, a MTV iniciou sua “conquista” juvenil em solo brasileiro. Sua proposta também era uma promessa de futuro: através dos videoclipes e do consumo musical, os jovens poderiam acessar um mobiliário mundializado, ou seja, conseguiriam se aproximar de jovens em outros espaços do mundo, através dos artistas na tela. Portanto, a construção de seu repertório confere uma noção sobre a juventude brasileira do período.
A marca dos primeiros dias de transmissão da MTV Brasil foram a alta rotação de videoclipes estrangeiros. A revista Veja, de outubro de 1990, salientou a veiculação de 150 peças audiovisuais por dia na programação, com proeminência de artistas estadunidenses e europeus, com menor presença de clipes nacionais. O descompasso foi justificado por Victor Civita Neto, diretor de programação: “a qualidade dos poucos clipes produzidos no Brasil é ainda muito ruim. Por isso decidimos partir para a produção própria”58. Desde o início das transmissões, a emissora procurou se destacar a partir de seu caráter técnico, através da busca por um “padrão de qualidade” dos videoclipes que impeliam uma produção de ponta. A justificativa de Civita Neto reforçava essa discrepância ao apontar que as produções veiculadas na MTV seriam diferentes dos produtos disponíveis naquele momento.
Essa também foi a justificativa para a partida da MTV em produzir seus próprios videoclipes, ancorada na necessidade em exibir material nacional em sua programação. Por um lado, por conta da legislação sobre concessão de televisão aberta no país, com exigência de exibir certa fatia de produções feitas no Brasil. Tanto que, no momento de sua estreia, a MTV trazia em tela cerca de 30% de programação local, que correspondia a videoclipes de artistas nacionais, além de programas conduzidos pelos vjs da casa59. Por outro lado, também era preciso contar com um repertório musical com reverberação entre os jovens urbanos, para afirmar seu espaço de autoridade sobre o tema. Assim, a emissora produziu seus primeiros clipes de artistas nacionais.

Os videoclipes elencados na Tabela 1 foram exibidos durante os primeiros meses da MTV Brasil. Todos eles foram produzidos pela emissora, ou seja, responsável pelas etapas de concepção, filmagem, edição e exibição. Por mais que outros tivessem sido transmitidos no mesmo período, priorizou-se a análise de peças que foram produzidas pela MTV. Neste ponto, cabe destacar o caminho metodológico percorrido para chegar à amostragem, por meio de critérios que assegurarem sua confiabilidade e relevância.
A partir do conjunto de fontes pesquisado, abriu-se a possibilidade de que a emissora efetivamente tivesse produzido videoclipes de artistas nacionais para a veiculação em seus primeiros meses, ao invés de (apenas) reproduzir peças já existentes. A Folha de S. Paulo destacava, em maio de 1990, a existência de uma “linha de produção da emissora” com “clips produzidos no Brasil”60. Nos meses que antecederam à estreia, também foram noticiadas as gravações de outras peças audiovisuais de artistas nacionais. Simultaneamente, cruzaram-se dados com teses acadêmicas, que ajudariam a confirmar esses nomes.
Em sua tese de doutorado, Byran61 aponta que a MTV produziu 21 videoclipes no início de suas atividades no Brasil, além de produzir 16 videoclipes ao vivo de artistas ligados ao rap, como Rapin Hood, para serem exibidos no Yo! MTV Raps, programa voltado a esse segmento musical. Outro dado é colocado por Ariane Holzbach62, que destaca 128 videoclipes nacionais exibidos nos primeiros meses da emissora. Apesar de a pesquisa não conseguir aferir esses dados em sua totalidade, foi possível cruzar alguns de seus dados com aqueles coletados na análise das fontes. Além disso, foram escolhidas as peças audiovisuais disponíveis on-line, em plataformas de vídeo, para garantir que o material fosse acessado.
Por fim, preconizaram-se aqueles que levavam o selo “Exclusivo MTV Brasil” no canto superior direito da tela, marcando a emissora como produtora e detentora dos direitos de transmissão. A lógica era próxima ao que a Rede Globo fazia com as produções exibidas no Fantástico63 desde a década de 1970, para evitar sua reprodução em emissoras concorrentes. Inclusive, a fala de Civita Neto sobre a qualidade dos videoclipes brasileiros procurava ir de encontro a essa produção nacional existente antes da chegada da emissora.
O videoclipe se estabelece como um promissor formato televisivo no Brasil na passagem da década de 1970 para 1980, em diálogo com tendências globais64. O Fantástico foi um dos pioneiros na sua veiculação, além de atuar com um importante viés de produção e exibição. A cada domingo, eram exibidos quatro videoclipes, com linguagem visual inserida na proposta da atração (de mesclar entretenimento e informação), encaixados no padrão estético da emissora. Para isso, todas as peças audiovisuais eram produzidas pela própria emissora, que as financiava e detinha seus direitos autorais65, viabilizando a divulgação de artistas do quadro da gravadora do grupo (Som Livre). A Rede Globo também explorou esse nicho para comercializar suas canções temas de telenovelas, entendendo seu potencial de marketing, revertido em vendas de discos66. Com isso, a Rede Globo detinha hegemonia nesse nicho no período. Por conta desses objetivos, o quadro de artistas com videoclipe exibido no Fantástico era variado e extenso. De acordo com Daniel Saraiva67, ele se estendia por diversos segmentos musicais, assim como inúmeros artistas em momentos difusos da carreira, como Gal Costa, Raul Seixas, Ney Matogrosso, Maria Bethânia, entre outros68.
A MTV marcou uma diferença na exibição vista no Fantástico; trouxe apenas artistas vinculados ao rock e ao pop, deixando de lado outros segmentos que não encontravam fôlego em seu objetivo: a formação de um público jovem que consumisse sua programação. Para isso, aproximou-se da matriz estadunidense, que priorizava a exibição de artistas conectados à explosão do rock alternativo, do pop mundializado e do rap. A MTV intencionou dialogar com seu público através de segmentos musicais específicos, que encontravam amplitude de consumo entre jovens.
Dessa forma, a escolha dos artistas na listagem acima aponta para a construção da autoridade musical voltada para a juventude. Na lista, temos oito artistas ligados ao rock, algo que dialogava com a intencionalidade da emissora na forja de seu repertório. Além disso, eram referências musicais de uma geração juvenil anterior à chegada da MTV no Brasil. A explosão do que se convencionou a chamar “Brock” (Brazilian Rock)69, nos anos de 1980, consolidou esse segmento no mainstream da indústria fonográfica, ecoando positivamente entre a camada juvenil. São artistas que impactaram uma geração de jovens urbanos, de classe média e alta - foco de público da MTV. Articular esse conjunto de artistas em sua tela, com videoclipes exclusivos, reforçou a imagem de emissora autorizada a falar sobre música para a juventude brasileira.
Civita Neto sublinhou, em entrevista à Veja de outubro de 1990, que o plano da emissora era “dentro de 5 anos, ter 70% de clipes protagonizados por astros nacionais”70. A ideia de “astro nacional” também se vincula aos artistas da listagem: Barão vermelho, Capital inicial, Fernanda Abreu, Kid abelha, Lobão, Marina, Paralamas do sucesso, Taffoe Titãs eram alguns artistas que se cristalizaram como expoentes do rock brasileiro dos anos 1980. Porém, eles entrariam na MTV pelo videoclipe, construído como um dos principais produtos musicais voltados para a juventude. Por conta de suas particularidades históricas, o videoclipe se estabeleceu como vetor audiovisual das identidades juvenis. A conexão entre os dois campos está na própria consolidação da MTV e da formação de uma cultura juvenil ancorada nessa peça audiovisual. Nesse contexto, a emissora contribuiu decisivamente para que esse tipo de produção se conectasse à ideia de juventude, estabelecendo uma das mais importantes formas de consumo musical nas últimas décadas do século 20.
A própria constituição do videoclipe traz aspectos que intensificam essa relação. Aufderheide71 assemelha esse produto a uma experiência compartilhada, parte de um mundo de lazer pronto para ser consumido. Ainda, aponta que ele nunca entrega uma “venda fácil”, ou seja, não são apenas os mensageiros de uma potencial venda - como podemos ver nos videoclipes veiculados no Fantástico, por exemplo. Os videoclipes se localizariam em outra paisagem do consumidor, como parte fundamental de sua vida, articulando com “a busca de uma identidade e uma comunidade improvisada”72. Isso tem impacto primordial na formação de identidades juvenis, principalmente quando analisamos o papel da MTV nesse contexto. Para Aufderheide73, a emissora baseou seu sucesso na criação de um ambiente próprio para o consumo dessa peça audiovisual, consolidando um elaborado sentimento de pertencimento, e não apenas como um mero consumo de videoclipes. Assim, o consumo de videoclipes traz a sensação de estabilidade, de pertencimento e de reconhecimento social.
Entretanto, para alcançar essa proeminência, a MTV atuou como um artífice da autoridade musical juvenil. Coube à emissora construir um sentimento de pertencimento através da construção de uma voz autorizada no campo, tendo o videoclipe como seu “produto final” e caminho para um mundo de experimentações modernas. Para alcançar seus objetivos no Brasil, a emissora estabeleceu pontes com o mercado fonográfico, principalmente com as majors que atuavam no país. A listagem dos primeiros videoclipes traz aspectos dessa aproximação.
A Folha de S. Paulo, de maio de 1990, noticiava que David Byrne, vocalista da banda de rock estadunidense Talking Heads, aceitou convite da MTV Brasil para dirigir um de seus clipes produzidos. A matéria destacava que a “atração a ser dirigida por Byrne será escolhida entre os lançamentos previstos pelas gravadoras para o segundo semestre”74. Portanto, a escolha dos artistas (evidenciada na listagem) também parte de contato direto com as gravadoras. Apesar de ser uma relação óbvia ante os caminhos da indústria fonográfica, ela é importante para destacar as particularidades das escolhas e das intencionalidades descortinadas pela lista. Dentre o (possível) conjunto de artistas disponibilizados pela gravadora, a MTV selecionaria aqueles que se alinhavam à sua concepção de repertório. Todavia, a relação com as gravadoras e a produção de videoclipes também se desenvolveram por outras vias.
Na semana de estreia da programação, em outubro de 1990, a Folha de S. Paulo destacou que as majors passariam a cobrar pela exibição de videoclipes de seus artistas contratados, ao invés de ceder as peças aos programas em troca de divulgação. O acordo, costurado em conjunto com a MTV, inviabilizaria a exibição de clipes por programas independentes ou com recursos escassos, por não contarem com o capital necessário para adquirir os direitos ou produzi-los por conta própria. Já para a MTV, firmou-se um contrato de permuta: para cada 12 videoclipes veiculados na programação, a emissora era obrigada a produzir uma peça de artistas das gravadoras.
Por um lado, o acordo entre as majors75 e a MTV conferiu uma reserva de mercado para a emissora, que conseguiria exibir diversos videoclipes, ao mesmo tempo que afastava potenciais concorrentes, firmando seu espaço como principal canal de exibição. Por outro, assentou dois pontos fundamentais para seu discurso musical: a exibição de artistas estrangeiros e a entrada de músicos brasileiros. Por isso, viu-se na tela da MTV nomes com alcance global e com grande aceitação entre o público jovem e consumidor de música, como Madonna e Michael Jackson, o que contribuiu para construir sua autoridade musical e se firmar como uma das principais vozes sobre o videoclipe no Brasil76.
O acordo seria benéfico para ambas as partes: de um lado, poderiam comercializar seus artistas através de videoclipes; por outro, consolidariam seu repertório musical com diversos artistas. Um dos exemplos foi com o lançamento do Cidade negra, uma das primeiras bandas em solo brasileiro da Sony Music. A estratégia foi lançá-la exclusivamente na MTV, tendo como resultado a venda de mais de 35 mil cópias do seu disco de estreia77, muito por conta do videoclipe de Falar a verdade, produzido pela emissora em acordo de permuta e sendo seu primeiro grande sucesso comercial.
No que toca às produções, a emissora se esforçou em realizar gravações ao vivo de apresentações para transformar em videoclipes78, formato explorado pela matriz estadunidense como forma rápida e barata de gravação e veiculação dessas peças audiovisuais79. Foi o caso de videoclipe Pólvora, dos Paralamas do sucesso, gravado em julho de 1990 e noticiado como a primeira produção da MTV Brasil80. As demais produções da listagem partem da linguagem reconhecida do videoclipe, forjada pela MTV estadunidense e largamente utilizada durante a década de 1990. Entre elas, Garota de Ipanema, composição de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, interpretada por Marina, traz aspectos caros à discussão.
Na voz de Marina, Garota de Ipanema faz parte do álbum Próxima parada, lançado em 1989 via gravadora Polygram. A cantora dá uma nova versão à canção, aproximando-a dos segmentos musicais que explorava, como rock e disco. A produção do videoclipe, realizada em 1990, foi assinada por Jon Klein, diretor do programa Buzz na MTV estadunidense e um dos responsáveis pela implementação da MTV Europa, em 1987. Sua direção buscava aproximar a emissora brasileira dos parâmetros buscados pela matriz, com uma linguagem visual específica, em diálogo com uma pretensa ideia de “cultura nacional”.
Ademais, a versão de Marina reatualiza um clássico da música brasileira, com uma nova roupagem para uma canção cristalizada como imagem da Bossa Nova, fixada socialmente como segmento musical “genuinamente brasileiro”. A atualização viria por uma artista ligada ao rock, envolto por uma construção visual específica, através dos cortes, cores e narrativa não linear. O videoclipe tentou fundir elementos culturais para criar outros sentidos sobre uma obra seminal na memória musical brasileira, elaborando novos significados e transformando as formas de escuta da música popular81.
A peça articula uma série de elementos importante sobre a mundialização da cultura, uma dasbalizas da autoridade musical da MTV. Existem elementos que articulam a construção de uma “brasilidade”, exemplificadas a partir de referências que operam imagens sobre o país, em contato com noções de modernidade. Em certo momento, é possível ver um boneco inflável que remete à forma de Abaporu, obra de Tarsila do Amaral e uma das marcas do modernismo brasileiro. A articulação desse passado dialoga com uma longa tradição de expressão moderna para a cultura brasileira, no qual engendrou uma série de projetos de nação ao longo do século 20, como aponta Marcos Napolitano82. Entretanto, Napolitano destaca que a pauta “perdeu lastro histórico”, com o “fim de um ‘projeto nacional’, a tribalização cultural gerada pela indústria cultural avançada e a sacralização patrimonial do passado modernista”83.
Assim, a retomada de um dos símbolos “sacralizados” do modernismo brasileiro no videoclipe evocava um sentido difuso, em que a modernização da cultura (por consequente, a “brasilidade” posta em tela) viria por um novo produto cultural, fruto dessa “indústria cultural avançada” destacada por Napolitano, conectada ao mundo juvenil da década de 1990 e na sua relação com o consumo musical. Além da atualização das imagens vir por uma nova linguagem, tal redesenho veio pelo pincel de um diretor estrangeiro, reforçando a articulação e a atualização desse arcabouço imagético através de elementos da linguagem MTV.
O consumo e a veiculação dessas imagens “correspondem a um processo real, transformador do sentido das sociedades contemporâneas”84, que é a mundialização da cultura. No caso brasileiro e latino-americano, Renato Ortiz aponta para a existência de uma “modernidade mundo”. O arcabouço imagético, partilhado através dos videoclipes, permitiu a inclusão de sujeitos em um conjunto de sentidos que constituem esse conceito. Ou seja, as peças audiovisuais permitiram que jovens consumidores do canal reconhecessem signos que eram inteligíveis mundialmente, ao mesmo tempo que hierarquizavam um conjunto de valores e ocultavam as desigualdades envolvidas nesse movimento85. Ademais, forneceu tais símbolos para que os sujeitos se reconhecessem como jovens, no qual esse arcabouço imagético prometia uma inclusão na “modernidade-mundo”, com um rearranjo dessas relações sociais. Nesse sentido, o reconhecimento enquanto jovem viria através dos videoclipes exibidos pela emissora.
Os processos de reelaboração cultural se intensificaram a partir dos anos 1990, a partir das condições apresentadas nesse contexto, com relação à circulação, produção e consumo cultural86. No caso das identidades musicais, elas se constroem em circuitos globais, mas se abastecem de diferentes repertórios culturais. Para Ortiz87, existem aspectos hegemônicos mundializados que se cristalizam localmente, com a indústria cultural sendo campo fecundo para essas articulações. Eles se estabelecem em bases locais e revelam-se a partir do mobiliário do cotidiano, com exemplos tomados por diversos produtos culturais - como o videoclipe. Remetendo ao videoclipe de Garota de Ipanema, identificam-se elementos que corroboram com esse processo, com misturas interculturais geradas pelas indústrias culturais. As imagens estariam alinhadas com essa longa tradição modernista, mas acionadas através do repertório imagético da MTV.
As construções sobre a ideia da música popular brasileira são frutos de intensos processos históricos, que reverberaram, ao menos, desde o século 19. A MTV pode ser localizada como um dos atores dessa redefinição nos anos 1990. Sua ação influenciou na formação de um repertório musical específico, balizando o consumo juvenil e suas identificações através de signos de uma cultura internacional-popular.
Os encadeamentos observados no videoclipe de Marina também são analisados na lógica da construção sobre a ideia de música popular brasileira, fruto de intensos processos históricos que remetem desde o século 19. Com Garota de Ipanema, a MTV dialogava com um passado musical brasileiro, a partir de uma produção audiovisual mundializada e reconhecível em outros espaços. Além disso, a entrada do videoclipe articula a autoridade musical da emissora, ao vincular um passado da música nacional para estabelecer suas balizas locais. Assim, a MTV pode ser encarada como um dos atores da redefinição do conceito de música popular nos anos 1990, através da formação de um repertório específico que balizou o consumo juvenil e identificada com signos de uma cultura internacional-popular.
Não obstante, Garota de Ipanema foi escolhida para abrir a programação da emissora em solo brasileiro. Aquele seria o “cartão de visitas” de uma emissora que se colocava como “moderna”, conectada com uma juventude mundializada, mas sem perder de vista seus aspectos locais. O videoclipe representa aquilo que a MTV gostaria de mostrar ao seu público jovem: uma janela para a cultura internacional-popular, através da apresentação de novas possibilidades de fruição e consumo musical. Tratava-se da exposição de um largo arcabouço imagético e de um repertório musical que ecoava como sinônimo de modernidade.
Após a exibição de Garota de Ipanema, outros dois videoclipes ganharam a tela da MTV. O primeiro foi Groove is in the heart88, um dos mais veiculados na matriz estadunidense89; em seguida, Suicide blonde90, com alta rodagem nos Estados Unidos. A sequência aponta para a objetividade da MTV em conectar essas imagens: de um lado, Garota de Ipanema carregaria a cristalização de um discurso “oficial” sobre a música brasileira, mas apresentada para um novo público pelo “moderno” videoclipe; de outro, dois que operavam sua linguagem e possibilidades descortinadas pela emissora, com relação ao conceito visual e segmentos musicais conectados a uma juventude mundializada, inserida no circuito de imagens e sons da “modernidade-mundo”. Conclusões
Os primeiros videoclipes produzidos pela MTV Brasil são retratos de um momento específico da história brasileira. A partir deles, podemos entender uma forma específica de experiência social e histórica, que leva em consideração a proeminência da música e do videoclipe na formação de identidades juvenis na década de 1990 - momento decisivo para a sociedade brasileira, após mais de 20 anos de governo ditatorial. Os ares de renovação e modernidade encontravam coro e frescor na renovada programação do canal televisivo, apresentando suas facetas rápidas e fugazes - como costumeiramente ratificam aos jovens seu papel na sociedade.
Para isso, a emissora procurou aprofundar o videoclipe na cultura musical brasileira, a partir da escolha de um conjunto de artistas vinculados ao rock e pop, como “porta-vozes” de uma realidade juvenil pautada na música. A escolha dos 10 artistas para terem suas peças audiovisuais produzidas pela emissora demonstra a operação de construção de seu repertório musical, com foco em segmentos específicos e voltados a um certo público. Aqui, repousou a análise sobre suas escolhas, traçando seus caminhos e encontrando algumas respostas para compreender facetas da música e da juventude do Brasil.
Assim, este trabalho buscou demonstrar como uma emissora televisiva tornou-se um importante mediador de discursos musicais e juvenis nos anos de 1990, articulando sua autoridade no campo, em conjunto a um saber específico sobre a juventude. Destaca-se, novamente, a importância deste trabalho para os estudos acerca dessas temáticas, em confluência com a história. A partir de uma renovada discussão teórico-metodológica, em conjunto a um extensivo trabalho de mapeamento de fontes primárias inéditas, foi possível analisar certos aspectos outrora relegados pela área. Por conta disso, acredita-se que o artigo constituiu um importante avanço nos estudos sobre juventude, música e identidade, exponenciando seus resultados analíticos e proporcionando novas ponderações acerca de suas correlações.
O videoclipe assume uma forma de reconhecimento, como referencial para experimentar e viver na “modernidade mundo”, a partir de referentes culturais que carregam significados e tornam o mundo inteligível91; fragmentos que formam um abstrato estado de pertencimento. O consumo de videoclipe conferiria ao jovem brasileiro a partilha de signos e experiências com quaisquer jovens em outros locais do mundo, apresentando as possibilidades de um “mundo moderno” e mundializado.
A autoridade musical da MTV se perfazia nessa apresentação, colocando-se como janela para uma modernidade cultural - somente alcançável através da sua exibição. O “ser moderno” passava pelo consumo musical e pelos videoclipes exibidos. Por conta disso, a MTV baseou seu repertório inicial em um conjunto de artistas vinculados ao rock, pois conferiria uma imagem de canal disruptivo e voltado para a juventude, consolidando sua autoridade e legitimidade por esses parâmetros.
Portanto, analisar uma faceta do repertório musical da MTV é encará-lo como um partícipe formulação histórica. A escolha de artistas traduz elementos fundantes para a noção de juventude construída na década de 1990. Nesse caso, a emissora atua como uma artífice da juventude, articulando uma série de referências e em uma operação particular sobre a música, com implicações diretas nas identidades juvenis.
