Paralelos
Recepción: 30 Mayo 2017
Aprobación: 03 Octubre 2017
DOI: https://doi.org/10.7440/antipoda30.2018.06
Resumen: la creación de la Asociación Nacional de las Hinchadas (Associação Nacional das Torcidas Organizadas, Anatorg) en el 2014 constituye un marco en la historia del asociativismo de hinchas en Brasil. Se trata de una experiencia inédita que simboliza el esfuerzo de líderes de hinchadas para abstraer diferencias y rivalidades que han caracterizado su relación; con ello, se da inicio a una movilización colectiva comprometida en la lucha por derechos. En el artículo, me propongo situar este acontecimiento en el contexto de la realización de los megaeventos (Mundial de Fútbol 2014 y Olimpiadas 2016), marcado por iniciativas del poder público para prevenir la violencia y por una creciente criminalización del hinchar. Igualmente pretendo abordar los dispositivos simbólicos, discursivos e institucionales utilizados por la asociación nacional para dialogar con distintos actores sociales en el espacio público en búsqueda del reconocimiento social. Entre los retos vividos por la entidad en los tres años de existencia están las disputas internas y las resistencias a la coalición nacional por parte de miembros de hinchadas comprometidos en episodios de violencia que rechazan la idea de aliarse a grupos considerados enemigos. Por otra parte, la ocurrencia de enfrentamientos violentos reafirma la visión diseminada de que las agremiaciones son peligrosas y deben ser eliminadas del fútbol profesional. Sin embargo, los protagonistas de este movimiento colectivo nacional le apuestan al capital simbólico acumulado a lo largo del proceso para afirmarse como sujetos de derechos y resistir a las controversias derivadas de sus acciones y a la actual crisis brasileña. El análisis tiene como fundamentos metodológicos la observación participante, el acompañamiento y el registro etnográfico de las acciones de la Anatorg en el espacio público.
Palabras clave: políticas públicas, violencia, Anatorg, hinchadas, megaeventos deportivos..
Resumo: a criação da Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg) em 2014 constitui um marco na história do associativismo torcedor no Brasil. Trata-se de uma experiência inédita que simboliza o esforço de lideranças de torcidas organizadas para abstraírem diferenças e rivalidades que têm caracterizado seu relacionamento; com isso, dá-se início a uma mobilização coletiva engajada na luta por direitos. Neste artigo, proponho-me a situar esse acontecimento no contexto da realização dos megaeventos (Copa do Mundo 2014 e Jogos Olímpicos 2016), marcado por iniciativas do poder público para prevenir a violência e por uma crescente criminalização do torcer. Pretendo abordar ainda os dispositivos simbólicos, discursivos e institucionais utilizados pela associação nacional para dialogar com diferentes atores sociais na arena pública em busca do reconhecimento social. Dentre os desafios vividos pela entidade nos três anos de existência, estão as disputas internas e as resistências à coalização nacional por parte de membros de torcidas organizadas engajados em episódios violentos que rejeitam a ideia de aliar-se a agrupamentos considerados inimigos. Por outro lado, a ocorrência de confrontos violentos reafirma a visão disseminada de que agremiações são perigosas e devem ser banidas do futebol profissional. Contudo, os protagonistas desse movimento coletivo nacional apostam no capital simbólico acumulado ao longo do processo para se afirmarem como sujeitos de direitos e resistir às controvérsias decorrentes de suas ações e à atual crise política vivida pelo Brasil. A presente análise tem como fundamentos metodológicos a observação participante, o acompanhamento e o registro etnográfico das ações da Anatorg no espaço público.
Palavras-chave: políticas públicas, violência, Anatorg, megaeventos esportivos, torcidas organizadas..
Abstract: The creation of the National Association of Organized Groups of Soccer Fans (Associação Nacional das Torcidas Organizadas, Anatorg) in 2014 was a landmark in the history of fans´ associations in Brazil. It was an unprecedented event which symbolized the efforts of the leaders of groups of soccer fans to put an end to the rivalries and hooliganism which had characterized them. It thus gave rise to a collective mobilization of fans who are committed to the defense of their rights. In this article, I aim to put this event into the context of the holding of mega-sports events (the World Cup of 2014 and the Olympics of 2016) marked by State initiatives to prevent violence and the growing criminalization of young fans. It likewise sets out to discuss the symbolic, discursive and institutional devices used by the National Association to negotiate with different social actors in the public arena in order to win a social recognition. Among the challenges which this entity has faced since it was founded three years ago, there are internal disputes and the rejection of the national coalition by members of the torcidas who have been involved in violent incidents and refuse to ally themselves with other groups of fans they regard as enemies. However, the leaders of this national collective movement are wagering on the symbolic capital it has built up in the course of its efforts to affirm themselves as the subjects of rights and stand up to the controversies of the current crisis in Brazil. The methodological foundations of this study include participant observation, an accompaniment of the fans and an ethnographic register of the actions the Anatorg has taken in the public arena.
Keywords: violence;, public policy., Organized supporters in Brazil;, Anatorg; mega events..
A criação da Associação Nacional das Torcidas Organizadas (Anatorg) em 2014, resultado de um pacto que envolve 103 agrupamentos, constitui um marco na história do associativismo torcedor no Brasil. Experiência inédita simboliza o esforço de lideranças de torcidas organizadas para abstraírem diferenças e rivalidades que têm caracterizado seu relacionamento e o início de um movimento coletivo engajado na luta por direitos.
Neste artigo, proponho-me, em um primeiro momento, a situar esse acontecimento no contexto da realização dos megaeventos (Copa do Mundo 2014 e Jogos Olímpicos 2016), marcado por iniciativas do poder público para prevenir a violência e pela legislação centrada no monitoramento, controle e punição das torcidas. Em seguida, pretendo abordar os dispositivos simbólicos, discursivos e institucionais utilizados pela associação nacional para dialogar com diferentes atores sociais na arena pública em busca do reconhecimento social. Por fim, serão apresentados alguns dos desafios vividos pela entidade nesses três anos de existência. O presente estudo tem como fundamentos metodológicos dados obtidos durante a viagem de intercâmbio à Alemanha em março de 2014 (realizada pela autora no contexto do projeto Futebol para o Desenvolvimento), a observação participante, o acompanhamento e o registro etnográfico das ações da Anatorg no espaço público, além da análise do material disponível na sua página na internet e de conversas informais e entrevistas com lideranças do movimento.
Entre 2015 e 20161, participei dos seminários promovidos pelo Ministério do Esporte, de uma audiência pública da Comissão de Segurança Pública da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e do primeiro seminário organizado pela Anatorg. O registro de situações concretas como parte da análise dos processos sociais foi defendido por Van Velsen (1987) ao sugerir que se privilegie casos que incluam disputas por se constituírem em oportunidades para desvendar a dinâmica das interações em um dado contexto social e cultural. Focalizar gente, lugar e tempo possibilita apresentar ações e sequências em cenários específicos, fornecendo ao leitor melhores condições para comparar os dados apresentados com as conclusões que foram extraídas deles. Esses dados foram fundamentais na elaboração da terceira e quarta seção deste texto.
A fundação da Anatorg coloca em perspectiva tensões e dramas diversos. O primeiro e importante desafio foi reunir membros das torcidas adversárias para construir uma pauta comum de reivindicações. A segunda etapa do processo tem sido marcada pela tentativa de persuadir as bases das torcidas organizadas a aderirem ao movimento coletivo nacional, dando trégua nos confrontos físicos.
As torcidas organizadas de futebol constituem um fenômeno do final dos anos 1960 e início da década de 1970 (Hollanda 2009; Teixeira 2003; Toledo 1996). Reunindo jovens do sexo masculino, entre 14 e 25 anos de idade, com origens e trajetórias socioculturais e econômicas diversas, esses grupos se tornaram importantes espaços de pertencimento e interação social. Essas estruturas hierarquizadas inauguraram um novo padrão de relacionamento entre si e com os dirigentes dos clubes, assumindo, ao longo da década de 1980, um aspecto cada vez mais profissional. Pouco a pouco, ganharam visibilidade devido ao seu caráter contestatório e às festas produzidas nas arquibancadas para incentivar seus clubes. No entanto, entre o final dos anos 1980 e o início da década de 1990, uma série de embates entre integrantes de torcidas rivais e destas com as forças policiais colocou esses grupos na mira dos meios de comunicação e das autoridades, e passaram a ser considerados “um problema social”. O caso mais emblemático foi a chamada “Batalha campal”, confronto que envolveu integrantes da torcida Mancha Verde, do Palmeiras, e da Tricolor Independente, do São Paulo, ocorrido no gramado do estádio do Pacaembu, em São Paulo, em 1995. A partir de então, observou-se um crescente processo de criminalização do torcer, e os torcedores organizados passaram “a ser classificados como ‘delinquentes’ e ‘vândalos’ (por se ferirem fisicamente, incluindo o uso de armas de fogo), sendo responsabilizados por disseminar a insegurança e o medo” (Teixeira e Hollanda 2016, 12).
A Anatorg vem se dedicando, na arena pública, a modificar as representações sociais predominantes e a provar a autenticidade de seus objetivos. Nessa direção, tem estimulado as lideranças de torcidas organizadas a conquistarem o apoio dos seus membros procurando conscientizá-los de que o futuro dos agrupamentos está em jogo. A despeito desses esforços, confrontos e mortes têm ocorrido com certa regularidade, o que reforça argumentos, especialmente nos meios de comunicação, favoráveis à exclusão desses atores sociais dos estádios e ao recrudescimento da repressão como única via para o controle dos episódios de violência por parte das autoridades. Desse modo, tais confrontos colocam à prova a legitimidade desse movimento coletivo; além disso, a Anatorg também sofre as consequências da mudança política vivida pelo país com a destituição da presidenta Dilma Rousseff em 2016.
A seguir, apresento a “estrutura da conjuntura” (Sahlins 1994), ou seja, o conjunto de relações históricas e o encadeamento de fatos que levaram à formação da Anatorg. Segundo Sahlins (1994, 191), um evento não é apenas um acontecimento, “mas a relação entre um acontecimento e um dado sistema simbólico”. Nesse sentido, é possível afirmar que, a despeito de seus objetivos e razões, a significância histórica da Anatorg relaciona-se diretamente ao modo como esse evento tem sido interpretado e culturalmente significado no espaço público.
A experiência dessa coalização nacional contribui com o campo de reflexões que se desenvolve sobre a nova face do associativismo juvenil em torno do futebol profissional, em diversos países (Busset, Basson e Jaccoud 2014), possibilitando colocar em perspectiva diferentes facetas do fenômeno assim como seus aspectos comuns.
I. Associativismo torcedor em tempos de crise: megaeventos e políticas públicas de segurança
A realização da Copa do Mundo 2014 e dos Jogos Olímpicos 2016 exigiu mudanças de infraestrutura e a elaboração de um plano de segurança para a gestão do público (Hollanda e Reis 2014). As praças esportivas sofreram alterações significativas: antigos estádios foram reformados e novos foram construídos para atender às exigências da Federação Internacional de Futebol (FIFA). O processo de elitização em curso, tendo como modelo as arenas europeias, com capacidade reduzida, preços elevados dos ingressos e a adoção da política do all-seated (fim dos setores em pé nos estádios) resultou no cerceamento de práticas torcedoras, em nome do controle e da segurança (Teixeira e Hollanda 2016).
Segundo a lógica vigente do futebol mercantilizado, orientada para atender ao perfil do espectador-consumidor, as torcidas organizadas se tornaram atores sociais indesejáveis. As transformações arquitetônicas afetaram práticas culturais inventadas pelo público das arquibancadas e consagradas nelas. O estádio, lugar de memória individual e coletiva, tornou-se, especialmente entre os anos 1970 e 1990, palco privilegiado para os personagens-torcedores manifestarem sua paixão pelo time de futebol e pela torcida, através das festas catárticas produzidas. Contudo, esses espaços foram transformados em arenas controladas e vigiadas, nas quais o ato de torcer é disciplinado em nome da segurança do espetáculo.
O processo de modernização dos estádios, a intensificação dos confrontos entre torcedores organizados, com o consequente endurecimento das ações do Grupamento Especial de Policiamento dos Estádios (Gepe) no Rio de Janeiro, serviram de estímulo para o surgimento da Federação das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro (FTORJ) em 2008. A Federação, iniciativa de lideranças das Torcidas Jovens de quatro clubes cariocas (Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco da Gama), contou com a adesão de dez agrupamentos. O mote inicial para o empreendimento foi assim sintetizado por José Maria, ex-presidente da Torcida Jovem do Flamengo e primeiro presidente da Federação: “Todo mundo cresceu se odiando, mas não adianta continuarmos e amanhã ou depois vermos as organizadas todas fechadas” (José Maria citado por Hollanda, Medeiros e Teixeira 2015, 93).
Como consequência, um movimento reivindicatório começou a se constituir para defender os interesses desses grupos, estabelecer um canal de comunicação com as autoridades e definir uma pauta de ações coletivas (Hollanda, Medeiros e Teixeira 2015).
A oportunidade de apresentar publicamente a Federação ocorreu no seminário de prevenção da violência realizado pelo Ministério do Esporte, em São Paulo, em julho de 2009. Apesar da receptividade inicial, a FTORJ se deparou com um cenário adverso. Em 2010, o Governo Federal sancionou a Lei 12.2992, que marcou o endurecimento do Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei 10.671/2003)3. Os dispositivos inseridos (1-A, 2-A, 39-A e 39-B) trataram especificamente das torcidas organizadas, responsabilizando-as juridicamente pelos danos causados por seus integrantes dentro e/ou fora dos estádios.
Por outro lado, o Ministério do Esporte avançou na realização de seminários regionais e nacionais com os representantes dessas agremiações. Tal iniciativa se inseriu no quadro de ações definidas pela Comissão Nacional de Prevenção da Violência e Segurança nos Espetáculos Esportivos (Consegue) com o objetivo de trazê-las para a sua esfera de controle, temendo possíveis conflitos ou manifestações durante os megaeventos a serem realizados no país. Essa instância governamental foi criada em 2004, através de decreto, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com a missão de elaborar uma política pública nacional propícia à instauração de uma cultura pacífica nos estádios de futebol (Reis 2006).
Todavia, um acontecimento alterou a correlação de forças entre torcidas organizadas e poder público. A mobilização iniciada pela FTORJ se fortaleceu e ganhou novo patamar após a viagem de intercâmbio à Alemanha, em março de 2014. O convite foi feito pelo Programa Setorial Esporte para o Desenvolvimento (Sport Für Entwicklung), da Agência Alemã de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento Sustentável (GIZ), por encargo do Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento (BMZ). O intercâmbio se inseriu em uma agenda de atividades no contexto do projeto Futebol para o Desenvolvimento (FpD), sendo resultado da parceria entre os governos do Brasil e da Alemanha, no período de 2012 a 2014. Integraram a delegação brasileira funcionários do Ministério do Esporte, da Secretaria da Juventude, dos governos dos estados de Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo4, assim como os membros da FTORJ e líderes de torcidas de Fortaleza, Santos e São Paulo. A viagem incluiu a visita a estádios e às sedes dos Fanprojekte das cidades Augsburg, Berlim, Dortmund e Dusseldorf. O grupo teve a oportunidade de se reunir com representantes do governo alemão, pesquisadores da Universidade de Bielefeld, com Michael Gabriel, diretor do Koordinationsstelle Fanprojekte (Centro de Coordenação dos Projetos de Torcidas, KOS), com educadores sociais, assistentes sociais dos Fanprojekte e com torcedores ultras (Lopes e Teixeira, s.d.). Os Fanprojekte, desenvolvidos desde o final da década de 1980, são instituições independentes dos clubes de futebol, das associações de torcedores e das forças de segurança, e se estruturam em torno do trabalho sociopedagógico com jovens. Partem da premissa de que é importante apoiá-los e, em contrapartida, esperam que se comprometam na resolução dos problemas atuando como interlocutores nas associações de torcedores (Lopes e Teixeira, s.d.). O contato com a experiência desenvolvida na Alemanha estimulou as torcidas organizadas participantes da viagem a reelaborarem suas estratégias de luta. Uma mudança significativa foi a incorporação em seus discursos do desenvolvimento de ações sociopedagógicas articuladas às medidas de cunho repressivo que têm pautado as políticas públicas de prevenção adotadas pelo governo brasileiro.
As experiências acumuladas pela FTORJ no espaço público e o diálogo estabelecido com representantes das torcidas de Fortaleza, Santos e São Paulo (que integraram a excursão à Alemanha) contribuíram para a articulação de uma entidade nacional. Os encontros organizados pelo Ministério do Esporte favoreceram trocas mais intensas e constantes entre representantes de agrupamentos dos diferentes estados e destes com as autoridades. A criação de grupos no aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp também contribuiu para que os torcedores discutissem propostas, identificassem diferenças de posicionamento e as dificuldades a serem superadas.
A produção, circulação e troca de argumentos tornaram o ambiente do III Seminário Nacional, promovido pelo Ministério do Esporte em dezembro de 2014, favorável ao lançamento da Anatorg. Na ocasião, representantes de 103 torcidas do país afirmaram o propósito de participar das políticas públicas destinadas às torcidas organizadas. E, em contrapartida, assumiram o compromisso de promover atividades e campanhas junto aos seus associados, com vistas a reduzir a incidência de conflitos (Teixeira e Trejo 2016).
Ainda em dezembro de 2014, a Anatorg divulgou um primeiro comunicado no qual justificou o surgimento da entidade como uma resposta à marginalização vivida por esse segmento: “seguindo um conceito do movimento ultra que vem da Alemanha, fica aqui o nosso recado: ‘Fale conosco e não sobre nós!’”5.
Uma vez criada, a associação se engajou em um processo de entendimentos e negociações para definir ações coletivas e defender o estilo de torcer das torcidas organizadas.
II. Da hostilidade à solidariedade: dádiva e associativismo
Como foi possível criar o vínculo social em um universo marcado por antagonismos e conflitos interorganizacionais intensos? Considerando o histórico de inimizades e vinganças entre as torcidas organizadas, que bens simbólicos e materiais circularam entre os atores sociais que permitiram ultrapassar desavenças e fizeram emergir um interesse partilhado e uma aliança nacional (Hollanda e Teixeira 2017)? De acordo com o antropólogo Marcel Mauss (2003), a vida social organiza-se em torno de prestações e contraprestações feitas, sobretudo, de forma voluntária, embora sejam, no fundo, rigorosamente obrigatória. A esse sistema de reciprocidades, considerado básico para a criação do vínculo social, respaldado na universalidade da tríplice obrigação coletiva de doação, recebimento e devolução de bens simbólicos e materiais, Mauss denominou “teoria da dádiva”.
Segundo Martins (2005, 55), uma das contribuições do antropólogo francês foi demonstrar que a sociedade -fenômeno total- constitui “um todo integrado por significações circulantes (gestos, risos, palavras, presentes, sacrifícios, etc.)” que articulam atores e instituições sociais de modo complexo. Allan Caillé (2002), um dos difusores do pensamento maussiano, vem assinalando as contribuições da teoria da dádiva como um modelo interpretativo para se pensar os fundamentos da solidariedade e da aliança nas sociedades contemporâneas. Entrar em associação implica disponibilizar seu tempo e sua pessoa, o que demonstra, na sua acepção, o vínculo entre a significação da dádiva e o estatuto da vida associativa. Isso quer dizer que as motivações envolvidas na constituição das alianças são complexas e não podem ser reduzidas à lógica mercantil moderna, ao simples interesse utilitário ou mesmo aos contratos jurídicos e formais. A existência de qualquer associação se alimenta subjetivamente das crenças compartilhadas pelas pessoas envolvidas, na expectativa de reciprocidade da confiança depositada no projeto.
O surgimento de uma associação nacional de torcedores, em um meio marcado por hostilidades recíprocas, deve ser compreendido no contexto mais amplo de uma crise que atingiu as torcidas organizadas. Essa crise resultou de três fatores articulados: o processo de modernização dos estádios para a realização dos megaeventos no país, a legislação repressora e a criminalização das torcidas organizadas pelos meios de comunicação. A avaliação consensual de que se encontravam em um momento dramático da sua existência e a incerteza em relação ao futuro favoreceram a construção do diálogo. Na visão dos líderes, a crise colocou as torcidas diante de um problema: ou se unem ou acabam. Em nome dessas instituições, deviam provar publicamente a capacidade de superar o passado de ódio, suspender o ciclo de vinganças e o eterno revanchismo.
Do mesmo modo que o observado na constituição da FTORJ (Hollanda e Teixeira 2017), antes de se materializar juridicamente, o pacto nacional sustentou-se na palavra dada, no compromisso assumido pelos membros fundadores, muitos deles inimigos de longa data, com a causa comum e na expectativa de que todos retribuíssem a confiança depositada no empreendimento. Somente a partir desse acordo moral, a formalização jurídica da entidade se concretizou.
Uma mobilização coletiva emerge, portanto, quando os membros de uma coletividade se sentem afetados direta ou indiretamente por uma situação problemática, a qual são confrontados e organizam meios para enfrentá-la, engajando-se em vários tipos de cooperação e competição (Cefai 2015, 3). O sucesso da iniciativa dependeu, em grande parte, da habilidade desses mediadores, familiarizados com interesses e problemas vividos pelas torcidas, em reconciliar partes em conflitos em nome da sobrevivência desses grupos.
À medida que o movimento cresce, a Anatorg procura se afirmar como “porta-voz” das arquibancadas. Em sua caminhada, assumiu como bandeira o combate à mercantilização do futebol e passou a divulgar notas de repúdio ao horário dos jogos às 22 horas durante a semana, ao valor exorbitante dos ingressos, à proibição das torcidas se manifestarem criticamente nos estádios através de faixas e cartazes. Vem se posicionando também contra a decisão tomada pelo Ministério Público, em diversos estados, de permitir a presença de apenas a torcida de um clube de futebol para prevenir conflitos. A Anatorg vem alertando ainda as autoridades para jogos que oferecem risco de confrontos e lançando campanhas que estimulam a rivalidade positiva (“Somos rivais, não inimigos”). Além disso, tem apoiado reuniões entre diretorias e lideranças de bairros das torcidas de diferentes estados com o objetivo de obter apoio. Reafirmam nas redes sociais a ideia defendida no IV Seminário Nacional de Torcidas Organizadas ocorrido em São Paulo, em 2015, de que, no movimento “torcidas unidas”, a camisa é uma só, e, por isso, a marca da associação foi disponibilizada em várias cores para que a representatividade de todas seja respeitada.
Do ponto de vista jurídico, vem se empenhando na crítica aos dispositivos 39-A e 39-B inseridos pela Lei 12.299/2010 ao Estatuto do Torcedor (2003), que punem as entidades pelas ações isoladas dos seus membros, reivindicando sua alteração e a individualização das penas (Lopes 2014).
Em 2016, a associação promoveu um seminário nacional, no Rio de Janeiro, para definir e integrar as ações dos grupos filiados. Diferentemente dos anteriores encontros, nesta edição, a ação do Ministério do Esporte se limitou ao auxílio financeiro e logístico, cedendo funcionários para apoiar as atividades. A organização ficou sob a responsabilidade da associação que, ao longo de dois dias, se dedicou a fazer um balanço dos dois anos de existência e a debater os rumos a seguir. O presidente, André Azevedo, no discurso de abertura, ressaltou que o evento foi idealizado para ser um espaço de trocas: “são as torcidas falando, criticando e dando sugestões para avançar como torcida e movimento organizado”.
A seguir, serão apresentadas algumas das estratégias utilizadas pela associação em seu trânsito pela esfera pública com o propósito de consolidar seu papel como representante das torcidas organizadas.
III. A Anatorg na arena pública: demandas e negociações
As análises que se seguem foram desenvolvidas, especialmente, a partir dos dados produzidos ao longo do acompanhamento de eventos nos quais representantes da associação nacional defenderam seus pontos de vista e suas propostas. Nessas situações sociais (Van Velsen 1987), foi possível também observar discordâncias e contradições vividas pelo movimento e os esforços de conciliação ou superação de controvérsias colocados em cena.
Conforme demonstrado, a emergência da associação nacional resultou de um amplo e complexo processo de negociações e pactos concretos efetivados por membros das torcidas organizadas nas redes de pertencimento das quais fazem parte. A partir do acordo inicial, os grupos passaram a definir termos e estratégias de ação para dialogar com as autoridades (Busset 2014). Dispositivos discursivos, simbólicos, jurídicos e institucionais foram colocados em cena com vistas a conquistar o reconhecimento social na arena pública. No entanto, é preciso considerar que “uma arena pública não é um espaço-tempo uniforme e homogêneo, mas se apoia em uma multiplicidade de cenas e seus bastidores” (Cefai, Veiga e Mota 2011, 40).
Desde a sua criação, a Anatorg vem participando de reuniões com torcidas organizadas de vários estados do país, de programas de televisão e rádio, de audiências com o Ministério Público em São Paulo e no Rio de Janeiro. Esteve presente em uma sessão na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, em eventos acadêmicos e nos fóruns promovidos pelo Governo Federal para tornar públicas suas ideias e programa. Com o intuito de obter visibilidade junto à opinião pública e adesão das bases torcedoras, passou a divulgar seus objetivos e sua atuação nos diferentes contextos institucionais, na página na internet6, na tevê Anatorg7 (YouTube) e na rede social Facebook8.
Desse modo, o nascimento da Anatorg simboliza o empenho das lideranças de torcidas na construção de pontes e conexões entre pessoas, instituições e saberes pelos universos nos quais transitaram (Velho 2001) com o objetivo de gerar novos valores e condutas.
Nessa jornada, estabeleceram contatos com pesquisadores e estreitaram relações com representantes do Ministério do Esporte. Um deles, em particular, constituiu-se em um aliado estratégico. Helvécio Araújo, um dos coordenadores dos seminários, tornou-se um mediador entre os interesses dos agrupamentos e os projetos desenvolvidos pelo Governo Federal. Em virtude do diálogo consolidado com torcidas organizadas e com pesquisadores9, contribuiu para a alteração da configuração dos seminários de modo que as torcidas tivessem voz e espaço para apresentar suas visões. Além disso, participou da constituição da Câmara Técnica de Organização e Associação de Torcedores junto à Consegue, em 2014, reunindo torcedores, pesquisadores e integrantes do Governo. No início do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, em 2015, também acompanhou a criação da Câmara Temática de Acadêmicos e Estudiosos, algo inédito no âmbito governamental e para a qual foram convidados quatro especialistas10. A aprovação dos nomes desses especialistas pela Anatorg sinaliza o seu reconhecimento como mediadores nesse campo de lutas. Oferecendo instrumentos de reflexão, apresentando conhecimentos sobre outras experiências relacionadas ao fenômeno do associativismo torcedor, mas igualmente descrevendo e analisando as especificidades do caso brasileiro, eles têm contribuído para a legitimidade do diálogo e das negociações entre torcedores e poder público (Teixeira e Trejo 2016). Assim, diagnósticos e interpretações formulados no âmbito acadêmico pautaram algumas discussões.
Em virtude da mudança no comando da Secretaria Nacional de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor, em 2015, Helvécio Araújo foi afastado do cargo. No IV Seminário Nacional de Prevenção da Violência em São Paulo, em dezembro do mesmo ano, Araújo, que participou na qualidade de convidado, fez uma análise da gestão anterior. Em sua perspectiva, foi um avanço “a inclusão na Consegue dos torcedores com direito a voz e voto e de pesquisadores para acompanhar a construção das políticas públicas. Fez a diferença a criação de uma câmara de especialistas indicados pela Anatorg”.
Reconheceu, contudo, que se avançou pouco na resolução do problema da violência. Entre os maiores obstáculos enfrentados, identificou a falta de coordenação entre os diferentes atores públicos (Ministério Público, Ministério do Esporte, Ministério da Justiça, forças policiais e dirigentes de clubes de futebol) e de sistematização das informações. Defendeu a padronização de procedimentos de segurança em todos os estados brasileiros11 e criticou a falta de compromisso com os resultados que levam, de forma recorrente, à interrupção de projetos: “[o] governo não dá continuidade ao que sabe que é bom. Não há continuidade das ações do poder público, cada mudança de governo, representa uma mudança política, na forma de tratar o problema”. Por fim, Helvécio Araújo avaliou que as torcidas são pouco organizadas, que devem cuidar da parte jurídica e providenciar o cadastramento social dos seus membros: “[p]recisam se convencer da força da união e da necessidade de transparência das ações. Precisam ganhar a opinião pública”.
Ganhar a opinião pública talvez seja um dos maiores desafios do movimento associativo. Afinal, como superar a desconfiança e o sentimento de reprovação dominante? Vejamos agora alguns argumentos que estão no centro da controvérsia.
IV. A Associação Nacional como projeto de risco e os desafios do movimento coletivo
A ocorrência de confrontos violentos está no centro da polêmica e reafirma a visão disseminada de que as torcidas organizadas são agrupamentos perigosos que devem ser banidos do futebol profissional. Segundo estudos do sociólogo Mauricio Murad (2013), entre 1999 e 2008, o Brasil foi o campeão mundial no número de mortes de torcedores. Foram contabilizadas 42 mortes, ou seja, uma média de 4,2 por ano. Em 2012, houve 23 assassinatos de torcedores em razão de conflitos entre torcidas. No ano de 2014, foram computadas 18 mortes. Já em 2015, no Rio de Janeiro, inúmeras brigas que envolveram integrantes das Torcidas Jovens ocasionaram prisões, proibições de frequentar os estádios ou de se fazer representar portando faixas, bandeiras e instrumentos musicais. Em 2017, foram registradas as mortes de dois torcedores, um no Rio de Janeiro e outro em São Paulo.
De modo geral, as medidas adotadas pelo Ministério Público dos governos estaduais para o enfrentamento da questão têm sido quase que exclusivamente repressivas. Na contramão, portanto, das discussões e dos encaminhamentos promovidos pelo Ministério do Esporte nos últimos anos que, apostando no diálogo com as torcidas, acabou favorecendo a articulação entre elas. O movimento de torcidas sofre, assim, com o descompasso entre as ações em âmbito federal e estadual (Teixeira e Hollanda 2016).
Por outro lado, a Anatorg vem encontrando resistências por parte de membros de torcidas organizadas engajados em episódios violentos que rejeitam a ideia de aliar-se a agrupamentos considerados inimigos. A rivalidade entre torcidas de um mesmo clube e, cada vez mais recorrentes, contendas no interior de uma mesma torcida preocupam a associação. Esta é, sem dúvida, uma das dimensões mais delicadas e complicadas na trajetória da entidade em busca de legitimidade.
Se, perante a opinião pública, deve se justificar e provar a autenticidade de seus propósitos, internamente, trava uma batalha para superar egos, vaidades e desconfianças. À medida que a associação avança nas teias burocráticas, seus líderes sofrem acusações de terem se afastado das bases, de não “serem mais da arquibancada”. Desse modo, “a relação com o Estado, longe de ser ‘neutra’ afeta o conjunto das relações no interior do próprio movimento” (Leite Lopes e Heredia 2014, 22).
Toda a diretoria da Anatorg é de arquibancada, toda a diretoria já brigou algum dia -e não foi pouco! Mas escolhemos o nosso caminho e ele é diferente. [...]. Não cobramos mensalidade das torcidas, não recebemos verba pública, não temos parcerias financeiras e nosso engajamento sai de pessoas que acreditam na causa. Simples assim. [...]. Nossa luta é muito maior que qualquer vaidade de qualquer torcida, lutamos por um espaço onde possamos manifestar nossa festa na arquibancada respeitando cada cultura regional. Nossa luta é por um setor popular onde o preço dos ingressos seja acessível às classes sociais mais baixas. Nossa luta é pela mudança no estatuto do torcedor onde pune as torcidas por delito provocado por um único indivíduo12.
O texto acima reúne alguns dos argumentos utilizados pela entidade para se afirmar e se justificar diante das críticas e desconfianças, insistindo sobre a necessidade das torcidas se politizarem, de se perceberem como “movimento social”, cujo papel não é apenas organizar a festa na arquibancada, mas também representar o coletivo de torcedores13.
No seminário nacional realizado pela Anatorg em dezembro de 2016, na Federação de Futebol do Rio de Janeiro, de modo geral, as lideranças concordaram que o controle dos membros envolvidos em episódios violentos constitui um dos maiores desafios do movimento. A esse respeito, André Azevedo, presidente da associação, assim se pronunciou: “[a] gente precisa se reeducar. Se conscientizar, buscar nossos interesses. Ganhar a opinião pública. Ou a gente se reinventa ou acaba”.
Na ausência de autoridades governamentais e policiais, os torcedores se sentiram mais à vontade para abordar com franqueza as dificuldades vividas no cotidiano. Alguns líderes sintetizaram as angústias da maioria dos presentes.
É muito difícil conscientizar a massa. Primeiro a gente tem que se organizar internamente. Deixar de ser filho para ser pai. O maior problema está nos bairros. Eles se veem acima da instituição. Estou indo de bairro em bairro. A informação vem da liderança. Você tem que analisar como está passando a informação. Todo bairro tem um líder. Tem que saber mais. Chegar na célula, no representante do bairro. É um trabalho árduo. O problema é acabar com a cultura da briga.
Vamos acabar com a hipocrisia. Não sou amigo de ninguém. A briga não vai acabar nunca. Tem que acabar é com a covardia. Três anos e não resolvemos nada. Bonito as torcidas unidas, mas até que ponto?
O líder não repassa pros seus membros porque tem medo. Ou muda a mentalidade ou vai perder espaço. Tem que ir para a base. Tem que fazer como no movimento estudantil. Temos que amadurecer.
O líder tem que ter ação. Botar a cara pra bater. Vamos nos manter vivos. Vou implantar a ideologia correta.
Como se pode observar, as falas evidenciam que “a cultura da briga” constitui o maior adversário do movimento coletivo nacional para se afirmar e conquistar o reconhecimento social. E os bairros são citados como territórios problemáticos, difíceis de serem cooptados, seja porque seus líderes têm uma “ideologia” diferente e se veem “acima da instituição”, seja porque têm medo de repassar as ideias da associação para os seus integrantes, temendo represálias.
Na avaliação de muitos torcedores, atualmente, as brigas não seguem qualquer código de honra. No passado, diferentemente, as condutas eram regidas por um código de masculinidade que valorizava a luta, o corpo a corpo, em que o objetivo era humilhar e derrotar o oponente (Teixeira 2003). Na interpretação desses atores, hoje prevalece a intolerância radical cujo objetivo é eliminar o rival, sendo comum o uso de facas, barras de ferro e, sobretudo, armas de fogo. As categorias nativas “covardia” e “judaria”14 expressam a face mais dramática do processo, em que não é dado ao adversário qualquer chance de defesa, conforme o relato de um torcedor no seminário, em 2016:
[n]o Rio a gangue do bonde fala mais alto que a camisa. As torcidas sentem a guerra de quadrilhas. Tem a questão da afirmação. Ninguém quer conversar com a gente. Alguma coisa tem que ser feita. Tanto tempo e não tem resultado. Morte aqui acontece fácil.
Além disso, a exposição deliberada ao risco, cujos resultados são imprevisíveis, fascina muitos torcedores que dizem sentir prazer na adrenalina provocada pelos embates violentos. A tal ponto que muitos não temem os esquemas de segurança definidos pelas forças policiais, e tentar burlá-los é um ingrediente a mais nessa busca pela excitação (Elias 1992).
O papel dos líderes junto às torcidas organizadas vem sendo objeto de intensos debates. No III Seminário Nacional, em 2014, quando foi fundada a Anatorg, as discussões transcorreram, em grande parte, em torno do consenso de que a liderança é uma referência para os outros integrantes e da necessidade de uma mudança de comportamento, na gestão dos agrupamentos. Falou-se ainda em uma “heroicização da violência” que estimula um círculo vicioso (arma, represália, retaliação, vingança) e produz inúmeras vítimas: “o moleque que chega pode morrer porque vestiu uma camisa e devido a um problema que aconteceu, muitas vezes, quando ele ainda nem tinha nascido”. Outro torcedor ponderou sobre a discriminação sofrida e suas consequências: “somos um grupo discriminado. As pessoas têm medo de você, é o peso do estigma. As lideranças querem ganhar no terror, tem que mudar a postura, conquistar a credibilidade, respeito, mostrar compromisso, postura, o cara não quer aprender, escutar”.
Tendo em vista esses posicionamentos, nos comunicados publicados na internet, os membros da Anatorg sustentam que, na sua concepção, hombridade é ter coragem para mudar. Honrado e viril é aquele torcedor que diz não à violência.
Trata-se de uma associação que pede às suas torcidas mais hombridade, até mesmo quando se tem problemas, que diz NÃO à arma de fogo, que diz NÃO à covardia, que diz NÃO aos “esquemas”. O que falta é isso: coragem para mudar. O que o futebol moderno quer é o fim das torcidas, querem trocar o torcedor organizado pelo consumidor “domesticado”15.
Por outro lado, nos meios de comunicação, nas redes sociais e nos fóruns públicos, a Anatorg reconhece a gravidade do problema, mas contra-argumenta que, se o fenômeno da violência atinge a sociedade como um todo, não seria diferente com essas agremiações. E apelam que as autoridades considerem medidas preventivas e o desenvolvimento de projetos sociopedagógicos com esses jovens, a exemplo do que acontece na Alemanha, através dos Fanprojekte. Para defender-se, alegam que um movimento torcedor que reúne cerca de 2 milhões de jovens em todo o país não pode ser penalizado pela ação de uma pequena parcela que adere à violência. E ressaltam, entre os aspectos positivos das torcidas organizadas, o fato de se constituírem em espaços de lazer para seus membros e de realizarem campanhas e projetos sociais. Em nome das instituições, prometem cooperar na resolução dos problemas, contudo alertam que o Estado deve fazer a sua parte, “já que segurança pública e educação são coisas raras e que afetam o nosso segmento”16.
Segundo o antropólogo José Garriga Zucal (2010), as práticas violentas no contexto das torcidas de futebol não devem ser concebidas como irracionais, porque são significativas para os torcedores. Para alguns deles, essas práticas estão associadas à conquista territorial, a certas concepções de corpo e a um modelo de masculinidade, que diz que “homem de verdade” deve aguentar as adversidades e a dor. Nesse universo, a participação em embates corporais torna-se importante instrumento de posicionamento identitário e uma forma privilegiada de obtenção de capital social (Lopes e Teixeira s.d.).
Desse modo, o aumento da repressão por parte dos órgãos de segurança dos governos estaduais como estratégia isolada de enfrentamento da questão “tem gerado impasses e inviabilizado a constituição legítima de um diálogo entre Estado e sociedade” (Teixeira e Hollanda 2016). Ao invés de simplesmente reprimir, é preciso antes compreender os sentidos e significados que a briga e a rivalidade assumem para esses atores sociais (Teixeira 2016). Afinal, se esse tipo de violência respalda-se na realidade social, é preciso investigar por que o futebol se transformou em um contexto privilegiado para expressar o prazer de brigar por parte desses jovens (Dunning, Murphy e Williams 1992). Assim:
[o]s confrontos violentos entre torcidas de futebol, longe de ser produto do mero acaso, ou promovidos por indivíduos naturalmente desajustados, obedecem a certos arranjos que explicitam padrões de masculinidade, disputas por poder econômico, prestígio, reciprocidade e territorialidade no interior desses subgrupos (Teixeira e Hollanda 2016, 18).
Para sensibilizar esses subgrupos sobre os benefícios da coalizão, a Anatorg vem insistindo que tais condutas levarão ao aumento das proibições, punições, banimentos, que atingem toda a torcida (e não somente os indivíduos envolvidos), acentuando o processo de estigmatização e colocando em risco a própria existência desses grupos.
Conclusão
Neste artigo, através da análise do material etnográfico, buscou-se compreender os significados que os atores sociais dão aos seus engajamentos, os repertórios de ação utilizados e as táticas empregadas para reduzirem suas diferenças e apaziguarem disputas em prol da definição de um projeto comum de luta. A emergência de crises ou controvérsias ao longo do processo de negociações na arena pública possibilitou, pois, mostrar de que modo consensos e oposições se delinearam. Assim, as associações, meios de sociabilidade e de socialização, constituem-se em um observatório estratégico das interações sociais.
A experiência da Anatorg demonstra que as associações são produtos instáveis, sempre em transformação nas situações de interação e no desenrolar das ações (Cefai, Veigae Mota 2011). Trata-se de arenas de trocas e de conflito nas quais, ao mesmo tempo que são vividos impasses em certos momentos, podem ser observadas a invenção de soluções e a superação de crises. Indecisões, contradições, desacordo sobre certos procedimentos, ambiguidade das motivações e disputas internas estão no centro da sua dinâmica. A unidade e a continuidade são problemas práticos que elas devem enfrentar de modo a estabilizar suas relações para que o movimento coletivo se fortaleça e se mantenha como um grupo de pressão política, a despeito das divergências e rixas presentes.
Na medida em que as associações constituem também um espaço de interações baseado no risco e na liberdade, nada impede que o desacordo e os impasses vividos possam levá-las da paz para a guerra (Mauss 2003). Em uma linguagem maussiana, as torcidas organizadas se encontram diante do desafio de substituir pela dádiva as trocas agonísticas e o ciclo de vinganças que têm pautado a sua história. Em prol de interesses comuns, precisam aprender a se opor sem se massacrar. Somente o futuro dirá se a Associação Nacional, que conta hoje com 127 torcidas filiadas e vem canalizando energias, intenções, trocas para avançar em suas reivindicações, será capaz de resistir às ambiguidades e contradições características das relações entre torcidas organizadas e entre estas e o poder público.
Há que se considerar, ainda, que o novo cenário político no Brasil gera muita apreensão. Com a deposição de Dilma Rousseff em 2016 e a posse de Michel Temer na presidência, não se sabe que rumos tomarão as iniciativas que vinham se desenrolando no tocante à prevenção da violência. A despeito das críticas a alguns dos procedimentos do governo anterior (2011-2016), as entidades representativas de torcidas organizadas tiveram a oportunidade histórica de participar de fóruns, de apresentar e de defender suas visões da gestão do futebol (Teixeira e Hollanda, 2016). Ademais, puderam expor sua discordância em relação ao Estatuto do Torcedor (2003), pleiteando mudanças. Participaram das mudanças na reconfiguração da Consegue, com a criação das câmaras temáticas. Os diálogos estabelecidos junto ao Ministério do Esporte foram fundamentais para a constituição da Anatorg, cujos princípios foram tecidos, em grande parte, nos bastidores desses fóruns. Muito embora haja o temor de que as conquistas obtidas na arena pública estejam ameaçadas na atual conjuntura político-institucional do país, os protagonistas desse movimento coletivo apostam na sua capacidade de articulação e no capital simbólico acumulado no percurso para se afirmarem como sujeitos de direitos e para resistir às controvérsias, às disputas internas e à atual crise política vivida pelo Brasil.
Referências
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