Documentos
Talvez a coisa mais importante das Olimpíadas seja o esporte, talvez seja o público ou, ainda, o negócio ali envolvido: os ingressos, as marcas, as cotas de patrocínio, a licença para transmissão. Talvez em 2016, aqui no Brasil, a coisa mais importante era vista por aquelas pessoas apinhadas ali na grade: Isaquias Queiroz, um completo anônimo para a maioria das pessoas, acabava de se tornar o maior medalhista brasileiro em uma Olimpíada. O esporte era desconhecido como o atleta: a canoagem.
A foto de capa mostra o verso de uma cena importante: uma fileira de pessoas de costas e suas respectivas cabeças procurando uma fresta para torcer pelo canoísta. É mais uma imagem para encher a vasta coleção de fotografias que pretendem “ver o outro lado das coisas”. Desde que Jacob Riis publicou How the Other Half Lives em 1890 -um ensaio que contém imagens daqueles nova-iorquinos esquecidos na pobreza-, a fotografia frequentemente busca olhar para onde ninguém está olhando. É um de seus “poderes”. Precisamente, aquele que mais se aproxima da antropologia e das ciências sociais de forma geral.
Este ensaio fotográfico foi feito por alguém que não tinha direitos para fotografar dentro dos estádios. Em geral, os que aparecem torcendo nas fotos não tinham ingresso. Estavam torcendo pelas provas de rua, nas suas casas ou amontoados nas grades. Os que foram fotografados fazendo comércio permeavam aquela zona cinza, meio desregulamentada, com produtos chineses e estilo ambulante, sem licenciamento de produtos. Estávamos todos procurando as frestas no rígido controle do evento olímpico.
Antes dos Jogos, a passagem da tocha olímpica já mostrava como seria árdua a tarefa de procurar o “outro lado” ou vários lados das Olimpíadas. A cidade estava abarrotada de turistas e fotógrafos de todas as partes do mundo, apontando suas câmeras para todos os lados. O telefone celular e as câmeras digitais se tornaram lugar comum em grandes eventos e há uma competição por “likes” e visualizações nas redes sociais. Todo indivíduo batalha por pontos na sua audiência diária. Participar como observador não basta mais. Somos todos pequenos transmissores de dados na disputa de espaço. A tocha lá no fundo da fotografia, desfocada e distante, está ali em cada um dos aparelhos celulares, aguardando o envio para o mundo digital.
Os anéis olímpicos, outro símbolo dos jogos muito procurado e uma marca muito bem guardada pela lei, foram erguidos nas areias da praia de Copacabana -o cartão-postal mais visitado da cidade. Ali, durante alguns segundos em que a vigilância vacilou, todos correram para se pendurar nos anéis e serem fotografados. Aquela recordação batida e “sem graça”- parar em frente a um monumento turístico e fazer um retrato -havia se tornado um instante de contravenção, felicidade e novidade. A possibilidade de estar dentro dos anéis e, ao mesmo tempo, fazer uma inocente desobediência civil estava aberta. Era uma pequena fresta na grande vigilância sobre a marca olímpica, seus direitos de uso e o protocolo que envolve essa utilização. A disputa para se pendurar no monumento transformava todos em crianças durante alguns minutos, antes de a segurança aparecer e acabar com a pequena festa.
A poucos metros dos anéis, um grupo organizava um protesto. Em um evento comercial que vende felicidade, comunhão e competição saudável, algumas pessoas queriam apontar seu lado trágico: a corrupção por trás das obras, a gentrificação, a demolição de casas de famílias, a higienização dos locais de passagem, a cegueira da grande mídia para a vida das pessoas mais afetadas. Não havia lugar melhor para tentar uma brecha: o cartão-postal da cidade e a marca dos jogos. Procuravam uma forma de aparecer, de fazer sua causa ser vista, em meio a um controle gigantesco exercido pelas autoridades e pelos empresários locais. Confeccionavam cartazes e bandeiras com dizeres de protesto a tudo que estava ocorrendo e sobre o que ninguém queria falar. Durante os Jogos, o Presidente da República, que havia chegado ao poder de forma controversa, tentou impedir cartazes contra ele.
Parece que, durante um período tão policiado e vigiado, pequenas desobediências precisam ser aceitas como válvula de escape. Ainda nas areias de Copacabana, foi possível encontrar fileiras de vendedores ambulantes que tentavam conquistar a clientela com seus pregões. Preço barato e simpatia podem ajudar nas vendas e melhorar o orçamento familiar em época de crise. Dizem que seus produtos estão chegando em navios diretamente da China. Esses navios aportam com produtos quase idênticos aos que são vendidos na loja oficial dos Jogos, quase sempre sem consumidores. Medalhas, bandeiras, viseiras, chaveiros, bonecos e todo tipo de lembranças chegam rapidamente à porta dos estádios, locais de passagem, protestos, competições de rua. Os mais afetados pela gentrificação dos Jogos e pela crise não têm sequer tempo de protestar. É preciso ganhar qualquer dinheiro para pagar as contas do dia. Os guardas-municipais fingem não estar vendo o comércio pirata até que alguma ordem superior chegue, o que costuma resultar na expulsão dos vendedores e na apreensão dos produtos não licenciados.
No comércio formal da cidade, há também os que não têm acesso aos produtos licenciados. A criatividade é o que pode fazer com que aumentem suas vendas, tirando algum proveito dos Jogos. Aquela loja de lingerie, uma loja tão comum nos centros comerciais brasileiros, se vira como pode e coloca placas para dirigir os olhares para as infinitas possibilidades de “fantasias” que envolvem as cores das bandeiras dos países. É especialmente criativo que a lingerie inspirada no conto “Branca de Neve” possa ser vendida como torcida colombiana.
Fantasia é algo que permeia o evento. Aproveitar a brecha na correria do dia a dia para vestir algo inusitado. Há uma certa carnavalização dentro dos Jogos Olímpicos. Colocar uma fantasia parece aproximar algumas pessoas do evento. Paramentar-se para torcer. Pintar a cara. Costurar roupas elaboradas. Ao mesmo tempo que coloca em evidência e chama atenção, a fantasia esconde. Esconde a identidade, a pessoa que somos no cotidiano. Assim, podemos gritar, discutir, chorar e amar com mais intensidade. Caem as máscaras que nos mantêm dóceis e surgem as que nos libertam por alguns instantes. Fantasiar-se é mais uma forma de quebrar o controle. Fantasiar é imaginar que poderia ser diferente.
Uma pausa na correria do espetáculo: um menino aproveita que as ruas estão completamente vazias durante um jogo de vôlei de praia (uma paixão brasileira) e simula nadar nas esteiras do metrô. Praticamente sozinho.
Dentre todas as fantasias e todas as olímpiadas possíveis, havia também aquela torcedora paraguaia. Com viseira, bandeira e camisa de seu país, ela está ali “dando tudo de si”. Acredita que pode empurrar aos berros um parente que está competindo em uma prova de rua. Enquanto outros braços apontam celulares, os dela estão com os pelos completamente arrepiados tremulando sua bandeira. Deve ser uma olímpiada completamente diferente a vivida pelos parentes dos atletas. Pelo menos ali, naquele instante, naqueles poucos segundos em que seu parente passa exausto numa prova de rua quilométrica. Se existe algo que se parece com tudo o que os organizadores do evento dizem -toda a propaganda sobre superação, paixão e espírito- essa coisa está ali, naquela torcedora paraguaia com pelos arrepiados.
Notas