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Elementos para uma teoria da criação literária: o caso de Franz Kafka
Bernard Lahire
Bernard Lahire
Elementos para uma teoria da criação literária: o caso de Franz Kafka
Elements for a theory of literary creation: the case of Franz Kafka
Sociologias, vol. 20, núm. 47, pp. 48-72, 2018
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFRGS
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Resumo: Neste artigo, Bernard Lahire pretende desvendar, em chave sociológica, o que chama de “mistérios da criação” a partir de Franz Kafka, o que exige, segundo ele, responder a questões que nada têm de óbvias, como: “Quem é Franz Kafka?” e por que Kafka “escreve o que escreve e como escreve”? Desvelar essa figura típica ideal do escritor de vocação exige alternar e combinar vários planos de análise, desde a produção social e histórica do escritor, passando por suas experiências em círculos sociais mais restritos, principalmente a família, até chegar à sua obra propriamente dita. Espécie de coroamento de toda uma trajetória de pesquisas, Bernard Lahire nos oferece, aqui, importantes lições de como proceder a uma rica e rigorosa sociologia da literatura que combina análise externa e interna, desafio instigante e mesmo inescapável de todo sociólogo que pretende se dedicar à investigação das formas literárias.

Palavras-chave: Franz KafkaFranz Kafka,Sociologia da literaturaSociologia da literatura,Criação literáriaCriação literária,Formas literáriasFormas literárias,Biografia social.Biografia social..

Abstract: In this article, Bernard Lahire tries to unveil, through a sociological viewpoint, what he calls “mysteries of creation” based on Franz Kafka’s social biography and literary works. This requires, according to him, answering questions that are absolutely not obvious, such as: “Who is Franz Kafka?” and why does Kafka “write what he writes the way he writes?” To uncover this typical ideal figure of the writer by vocation requires alternating and combining different plans of analysis, from the social and historical production of the writer, through his experiences in more restricted social circles, especially the family, finally getting to the work itself. Bernard Lahire offers us important lessons on how to proceed to a rich and rigorous sociology of literature that combines external and internal analysis, an instigating and even inescapable challenge of every sociologist who wishes to devote himself to study of literary forms.

Keywords: Franz Kafka, Sociology of literature, Literary creation, Literary forms, Social biography..

Carátula del artículo

DOSSIÊ

Elementos para uma teoria da criação literária: o caso de Franz Kafka

Elements for a theory of literary creation: the case of Franz Kafka

Bernard Lahire
École Normale Supérieure de Lyon, França
Sociologias, vol. 20, núm. 47, pp. 48-72, 2018
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFRGS

Recepção: 03 Agosto 2017

Aprovação: 10 Agosto 2017

É possível desvendar os mistérios da criação? E estaria a sociologia à altura de lançar-se sobre uma aventura como esta, em se tratando de uma criação individual como é o caso da criação literária? Poderia ela entrar no próprio cerne das obras, em vez de permanecer classicamente situada à sua margem e contentar-se em observar suas circunstâncias ou condições? Seria ela capaz de encarar obras particularmente difíceis, até mesmo estranhas, que desencorajam mais de um leitor e com frequência põem à prova o trabalho de intérpretes? A obra que publiquei recentemente sobre o caso de Franz Kafka1 não existiria se não estivesse convencido de que era possível trazer uma resposta positiva a cada uma dessas questões.

Por que Kafka escreve o que escreve e como escreve? Eis a pergunta central que procurei responder durante minha pesquisa. Mas poder-se-ia começar perguntando: por que estudar mais particularmente Franz Kafka? Uma série de motivos levou a essa escolha. Primeiramente, durante uma pesquisa precedente, Kafka surgiu para mim como a figura típica ideal do escritor de vocação, mas de “segunda profissão” (Lahire, 2006, p. 515-22). Ao tratar do caso de Franz Kafka, dão-se, então, os meios de compreender, sob diversos pontos, todos aqueles que compartilham das mesmas condições sociais, econômicas e literárias de exercício da atividade de escritor: escritores que vivem num regime de mercado literário, que submetem suas obras a editores em vez de responderem a uma determinada demanda; escritores economicamente desinteressados, que não escrevem com o objetivo de obter alguma vantagem financeira, mas o fazem por vocação, isto é, por uma necessidade interna percebida; escritores que, por esse motivo, na maioria das vezes, não podem viver da comercialização de sua obra e são forçados a passar pela experiência muito frustrante de uma vida dupla, entre a atividade de criação literária e uma profissão remunerada mais ou menos distante de sua arte.

Mas o principal motivo da escolha de estudar o caso de Kafka dizia respeito a um desafio científico direcionado ao sociólogo. De fato, considerado como um dos grandes representantes mundiais da literatura de vanguarda (junto com Gustave Flaubert, Marcel Proust, James Joyce, William Faulkner ou Samuel Beckett), ele deixou uma obra frequentemente considerada enigmática, estranha, que flerta com o fantástico, a metafísica ou o absurdo. “Fabulista realista”, sugeria Günther Anders a respeito do escritor de Praga (Anders, 1990, p. 28); “escritor metafísico”, declararam muitos outros. Seja qual for a qualificação literária da obra, Franz Kafka não é um autor cujo estudo se recomendaria espontaneamente a um sociólogo, pois parece óbvio que apenas a análise da forma (do gênero ao estilo) pode fazer jus a um escritor tão literariamente inventivo.

Tomar como objeto de estudo a obra de Franz Kafka, perguntando-se por que ele escreve como escreve, era, portanto, mostrar do que a sociologia é capaz num terreno que, a priori, não lhe é favorável. E para estar à altura de responder essa pergunta, era preciso, necessariamente, perguntar-se quem era Franz Kafka, nascido em 1883, em Praga, e morto quarenta e um anos depois, de tuberculose.

Uma série de problemas teóricos para resolver

Para responder à pergunta: “Quem é Franz Kafka?”, com o objetivo específico de compreender sua obra, era preciso não se contentar em resumi-lo a algumas propriedades sociais básicas. Era indispensável examinar a produção social muito específica do escritor, desde as primeiras experiências familiares até as provações mais tardias. A biografia sociológica foi, portanto, o instrumento central deste projeto2, pois somente ela permitiria retraçar os diferentes meios de socialização do autor e as e as diferentes experiências que neles teve. Mas era preciso proceder metodicamente por etapas, alternando o foco sobre o objeto. Dessa forma, concebi e construí esta pesquisa pensando bastante nos movimentos de câmera que um diretor de cinema poderia realizar. Tratava-se, primeiramente, de partir de um plano panorâmico, para produzir a imagem da situação histórica objetiva - econômica, política, cultural, religiosa, linguística - que se apresenta a Franz Kafka e a todos que vivem em Praga na mesma época. Depois, era preciso fazer planos de conjunto e planos médios, que descrevessem os grupos ou círculos mais restritos (geração, grupo familiar, ambiente escolar, círculo de amigos, etc.) e situassem o protagonista da história em seus ambientes de vida, antes de proceder a tomadas de primeiro plano e de plano fechado, que concentrem a atenção em Kafka, isto é, nas lógicas mentais e comportamentais próprias dele e que o distinguem, inclusive dos escritores mais semelhantes.

Zoom após zoom, chega-se a planos de detalhe que focalizam a atenção sobre elementos ou dimensões particulares da vida do criador, e particularmente sobre seus textos literários. Alternar o ponto de observação e relacionar as diferentes imagens da realidade, reconstruídas a cada etapa, supunha também inserir tempos curtos (como o de uma trajetória individual breve), ou muito curtos (um período de escrita ou o tempo muito condensado de um ato de escrita), em temporalidades mais longas e em quadros coletivos mais ou menos amplos. A aposta que fiz em proceder dessa forma é a de que é possível compreender o que se torna visível no plano de detalhe sobre os textos se, e somente se, tem-se em conta aquilo que deixam à mostra, sucessivamente, os planos panorâmicos, médios, fechados, e também os planos de detalhe focados no autor. Partindo do estudo preciso da produção social de Kafka, eu desejava chegar à análise da produção literária - indissociavelmente formal e temática - que lhe é própria.

A necessidade da reconstrução das condições de produção social de um determinado indivíduo bem mostra que uma biografia sociológica não pode, jamais, ser reduzida a uma série de anedotas ou a um encadeamento cronológico de eventos ou fatos. Ela deve, ao contrário, evidenciar as estruturas recorrentes, que não são necessariamente coerentes, de uma existência individual socialmente trabalhada. Ela “problematiza uma vida, em vez de simplesmente descrevê-la como um encadeamento inevitável de eventos” (Gingras, 2000, p. 123-32). Procurar relacionar a biografia anedótica, factual ou eventual de um autor com elementos discordantes tirados de seus textos literários seria como tentar comparar a arquitetura de duas igrejas examinando separadamente os diferentes elementos ou as diferentes peças que serviram para construí-las. Reduzida a uma série díspar de um amontoado de pedras, tijolos, pedaços de madeira, peças de vidro ou de metal, uma igreja não é mais uma igreja, pois já não tem estrutura nem forma. Se não se questionar o que estruturou a existência de um indivíduo, de um lado, e o que estrutura os textos que ele escreveu, de outro, não há como estabelecer uma relação que não seja anedótica, pontual ou superficial entre “a vida” e “a obra”. Como escreveu Pierre Bourdieu, para resumir a principal contribuição de Erwin Panofsky em sua comparação da arquitetura gótica com o pensamento escolástico:

Os objetos que ele trata de comparar não são dados por uma pura apreensão empírica e intuitiva da realidade, mas devem ser conquistados contra as aparências imediatas e construídos através de uma análise metódica e um trabalho de abstração. É sob a condição de evitar deixar-se tomar por analogias superficiais, puramente formais e às vezes acidentais, que se pode desprender das realidades concretas, onde elas se expressam e se dissimulam, as estruturas entre as quais se pode estabelecer a comparação voltada a descobrir as propriedades em comum” (Bourdieu, 1967, p. 137).

Um empreendimento científico como esse implicava combinar aportes científicos dispersos provenientes de campos de pesquisa que muito frequentemente não se comunicam entre si. Mobilizar e combinar, num quadro teórico coerente, os trabalhos de historiadores sociais e culturais, de especialistas (historiadores, linguistas ou sociólogos) dos fatos literários e de sociólogos da socialização (familiar, escolar etc.) e da transmissão intergeracional das heranças materiais e simbólicas é dar-se meios de pensar coisas impensáveis ou mal pensadas. Certos estudos de história ou de sociologia da literatura só se interessam pela estruturação do mundo literário; outros, abrangendo a história social, cultural e religiosa, tratam apenas da população judaica do Leste Europeu, da Boêmia ou de Praga no fim do século. Outros ainda se ocupam somente de biografias literárias (mais ou menos anedotizantes), de biografias de inspiração psicanalítica ou, ainda, se concentram exclusivamente sobre a questão das fontes e influências literárias de Kafka ou do “Círculo de Praga”. E já é de se esperar que o demógrafo ou historiador que estuda as estruturas sociodemográficas da população de Praga no final do século XIX ou no começo do século XX ignore geralmente até os comentários mais incisivos feitos por “literatos” a respeito d’O veredito (Das Urteil) ou d’A toca (Der Bau).

Mas tal aventura intelectual tampouco poderia ser realizada sem antes solucionar uma série de problemas que minhas pesquisas anteriores me levaram a levantar e a tentar resolver. Era preciso, em primeiro lugar, deslindar um conjunto de questões concernentes de diferentes modos a uma teoria disposicionalista e contextualista do ator, da ação e da socialização, ao estudo dos fenômenos complexos das heranças materiais e imateriais heterogêneas no âmbito da família, à apreensão pela sociologia das singularidades individuais (e especialmente das variações interindividuais e intraindividuais), ou ainda, aos debates sobre as oposições clássicas entre o singular (ou o individual) e o geral, entre o particular e o universal. Se não estivesse convencido de que o social reside tanto nos detalhes e no singular como nas instituições, nos grupos ou nos movimentos coletivos, um trabalho como este não teria sido imaginável3. Este estudo que trata do caso de Kafka é, portanto, uma espécie de conclusão lógica de tudo o que tentei realizar anteriormente em relação a entrevistados anônimos (Lahire, 1995; 2002; 2004), a saber, um registro da complexidade do patrimônio individual de disposições a ver, sentir e agir, de competências e de apetências, assim como suas articulações em contextos determinados, nas conjunturas ou circunstâncias mais efêmeras, nos quadros socio-históricos mais amplos e cristalizados. A diferença principal reside no fato de que querer entender em detalhe determinadas práticas e, neste caso, de obras literárias, impõe, de início, o uso ou a elaboração de ferramentas de análise adaptadas à escala de análise, à natureza do objeto analisado (literário) e ao objetivo de leitura rigorosa dos textos em questão.

Era preciso, também, ter uma visão clara da diferenciação social das atividades em subuniversos de práticas específicas, da autonomia do fazer literário, das situações de vida dupla vivenciadas pela grande maioria dos escritores (incluindo Franz Kafka) que alternavam entre trabalho literário e trabalho remunerado, ou ainda, dos processos de recepção literária, a fim de entender as lógicas em funcionamento nas práticas do Franz Kafka-leitor4. Mas também se tratava de estar à altura de entender certos aspectos característicos da situação familiar de Kafka e certos problemas apresentados em seus textos literários. Por exemplo, teria sido impossível realizar esta pesquisa sem ter uma ideia minimamente precisa do que é a família como universo de socialização ao mesmo tempo total e contraditório (composto de heranças heterogêneas), do que é a “transmissão” de um patrimônio cultural, material e imaterial, e de quais são as condições de sua não transmissão ou de sua deformação-reapropriação. Da mesma forma, a compreensão da vida do autor, assim como de suas obras, teria sido muito fraca sem um conhecimento das formas de exercício do poder e das características do que se pode chamar de dominação consentida ou de servidão involuntária5. Portanto, bem se pode ver que trabalhar com um caso singular não simplifica de forma alguma a tarefa do pesquisador e em nada impede de pôr em prática grandes problemas teóricos.

Diálogos e controvérsias

Este trabalho foi elaborado em diálogo com uma série de obras provenientes da história, da filosofia ou dos estudos literários, bem como da sociologia. Para começar pela sociologia, o modelo que mais proporcionou inspiração, sem sombra de dúvida, foi o estudo consagrado por Norbert Elias a Wolfgang Amadeus Mozart (Elias, 1991). Nesta obra inacabada, Norbert Elias traça bem o caminho do que pode ser o estudo preciso de um caso singular, fazendo variar as escalas de análise, das macroestruturas que estabelecem as relações entre os artistas-músicos e a aristocracia da corte, às microestruturas familiares que regem a natureza das relações entre um pai e seus filhos. Inspiradores, embora de outra maneira, foram os estudos consagrados por Pierre Bourdieu a Martin Heidegger (Bourdieu, 1988) e a Gustave Flaubert (Bourdieu, 1992). De fato, foi essencialmente ao resistir aos efeitos problemáticos de uma espécie de confinamento progressivo do raciocínio e da interpretação dentro dos limites do “campo” (filosófico ou literário), e ao mostrar o esquecimento ou o apagamento daquilo que uma teoria do habitus - retrabalhada e profundamente modificada - poderia (e mesmo deveria) ter levado a examinar, que pude construir minha própria problemática e ver com mais clareza meus propósitos de pesquisa. Essa leitura crítica dos trabalhos de Pierre Bourdieu levou-me, ao mesmo tempo, a considerar a maneira como Jean-Paul Sartre havia, ele próprio, tentado compreender o caso de Gustave Flaubert e a descobrir as reflexões de um filósofo que, apesar de sua reputação como inimigo por excelência da sociologia, revela uma grande sagacidade para a análise sociológica.6

Mas foi também com os historiadores da arte Erwin Panofsky (1967) e Michael Baxandall (1985) que aprendi muito em matéria de método de interpretação das obras ou sobre a forma com que se podia legitimamente investigar os hábitos mentais ou esquemas de percepção dos autores através do estudo de suas obras. Por outro lado, lendo a obra magistral de Carl E. Schorske sobre Viena fin-de-siècle (Schorske, 1983), tomei consciência do que tinha vontade de fazer e do que não queria fazer em questão de estudo de textos literários. O que não queria fazer em absoluto era reduzir as obras a algumas fórmulas ou algumas citações dispersas, o que um historiador como Carl E. Schorske é logicamente obrigado a fazer, dada a extensão dos autores e domínios considerados em seu estudo7. Em vez de concentrar-se em algumas obras, o historiador reclama o direito de estabelecer relações entre uma obra e outras do passado (é a primeira “linha de força”, que ele qualifica como “vertical” e “diacrônica”) e entre a obra e outros tipos de obras, pertencentes a domínios diferentes (a segunda linha de força, “horizontal, sincrônica, que ajuda o historiador a determinar o conteúdo da produção cultural à luz do que se faz em outros domínios na mesma época”) (Schorske, 1983, p. 13). Em ambos os casos, seja ligando uma obra ao passado do domínio a que ela pertence ou às obras coexistentes de outros domínios, tomam-se as obras por produtos, em parte, destacáveis de seus autores, pelos quais os fluxos ou as correntes políticas, éticas ou estéticas de uma época parecem apenas passar. Ao ler Carl E. Schorske, percebi, portanto, que queria compreender os textos literários e fazer uma leitura destes muito mais minuciosa que a dele, e que isso supunha tecer uma rede de relações muito densa entre os textos e as relações sociais do autor.

Percebi, além disso, que para um sociólogo o desafio científico maior era justamente entrar no próprio cerne do texto e não se contentar com observá-lo de longe ou reduzi-lo a alguns elementos, a fim de resumir suas propriedades semânticas e formais. De fato, na grande maioria dos casos, o pesquisador concentra seus esforços sobre o estudo dos atores e das instituições e chega exausto às portas de um “palácio textual” cuja arquitetura ele só descreve em traços gerais. Tudo - das considerações aos tabus disciplinares e às verdadeiras incompetências metodológicas - é feito para incitar o pesquisador a manter-se fora da obra. E é na periferia do gesto de escrita e do texto que o especialista em estudos literários, frequentemente, limita e tolera a sua presença. Assim, quando Roland Barthes se pergunta, em 1960, o que a sociologia pode fazer em matéria de estudo dos fatos literários, ele contesta toda tentativa de explicação de um ato literário que parece, ao mesmo tempo, manter-se suspenso e fora de toda determinação:

Você pode, certamente, tentar uma sociologia da instituição literária, mas, o ato da escritura, você não pode limitar nem a um ‘por quê’, nem a um ‘para quê’. O escritor é como um artesão que produziria seriamente um objeto complicado sem saber segundo qual modelo nem para que uso, análogo ao homeostato de Ashby. Perguntar-se por que se escreve já é um avanço sobre a feliz inconsciência dos “inspirados”; mas é um avanço sem esperança, pois não há resposta. Além da demanda e do sucesso, que são muito mais álibis empíricos do que verdadeiros motivos, o ato de escrever não tem causa nem fim”8 (Barthes, 1964, p. 144-5).

Era, portanto, intelectualmente muito estimulante tentar responder, efetivamente, a Roland Barthes e, através dele, a todos que, ainda hoje, tentam restringir os limites dos terrenos sociologicamente acessíveis.

Da mesma forma, a leitura do historiador literário Gustave Lanson foi proveitosa, uma vez que ele discutia, munido das ferramentas intelectuais e categorias do seu tempo, a dupla necessidade de pensar ao mesmo tempo a singularidade da obra literária e sua natureza profundamente social. Foi ele quem afirmou vigorosamente que “é de fato impossível ignorar que toda obra literária é um fenômeno social”, acrescentando que “é um ato individual, mas um ato social do indivíduo” (Lanson, 1965, p. 65-6). É evidente que qualquer pesquisador que busca traçar as relações entre as propriedades dos criadores e as de suas criações não pode deixar de passar, em seu trajeto, por Charles-Augustin Sainte-Beuve, Hippolyte Taine, Ferdinand Brunetière ou Gustave Lanson, e tudo que surge desde então como suas “fraquezas” metodológicas ou de raciocínio aos olhos do leitor atual. Mas, em vez de agitar os nomes desses autores como espantalhos, desestimulando assim qualquer trabalho e impedindo qualquer progresso da pesquisa, é preferível considerar precisamente os problemas lógicos que suas pesquisas os levaram a levantar e as soluções que eles formulavam9, e então ver em que medida é possível hoje reformulá-los e resolvê-los apoiando-se nos conhecimento mais recentes das ciências humanas e sociais.

O fracasso das explicações da literatura pelo “contexto social”, pelo “meio social” ou mesmo pela “biografia do autor” significa essencialmente um “fracasso de abordagens muito generalizadas, muito caricaturais, muito aproximativas” e não “fracasso geral da abordagem sociológica dos fatos literários”. Esse fracasso mal compreendido, principalmente por diversos pesquisadores em ciências sociais, que parecem ainda estar convencidos da existência de um “livre arbítrio”, leva à crítica do “todo sociológico” e do pretenso “encerramento” dos indivíduos nos determinismos sociais de origem ou pertencimento. Aqui, como é muitas vezes o caso em outros lugares, o problema pode se resumir numa fórmula simples que consistiria em dizer que não se pega mosquitos com uma rede para borboletas. Saber adaptar sua escala de observação e suas ferramentas em função do tamanho e do nível de complexidade do objeto estudado: foi isso que muitos pesquisadores do passado não puderam fazer, seja por desconhecimento de suas relações ou por falta de elaboração ou de conhecimento das ferramentas pertinentes.

O estado das problemáticas num espaço intelectual nacional constitui ao mesmo tempo uma base normal para as pesquisas e um temível obstáculo. Uma base, pois o estado da arte deve ser perfeitamente conhecido para não (re)produzir ingenuidades e erros cometidos no passado. Um obstáculo, pois constitui um labirinto com impasses que foram constituídos por gerações de pesquisadores como limites quase naturais da reflexão. Estar ciente do estado da arte de um domínio é estar munido intelectualmente, mas é também deter-se sobre e ante os mesmos problemas, estar impedido de trabalhar pelos mesmos raciocínios, as mesmas apreensões, todos vivendo no mesmo labirinto argumentativo sem que ninguém seja suficientemente ingênuo (ou louco) para pensar que existam soluções para certos problemas. Os dois únicos meios, pelo que sei, de sair do labirinto, consistem em frequentar, pela leitura, disciplinas conexas (história, teorias da arte e da literatura, filosofia) ou trabalhos oriundos de espaços científicos nacionais diferentes. Foi isso que procurei fazer.

O que tentei mostrar neste estudo do caso de Franz Kafka é como suas condições de existência e de coexistência presentes e passadas (vivendo no estado incorporado) não apenas o levam a sentir-se atraído pela literatura (como outros o são pelos domínios da pintura ou da música), mas engendram questões, problemas ou obsessões que se transpõem de maneira mais ou menos sutil e complexa sob uma forma literária. Ao optar por esse percurso, sobre um escritor cuja obra não apresenta nenhuma transposição evidente de sua situação existencial (elementos de sua problemática existencial), e que traz, assim, muitos problemas interpretativos, conscientizei-me, também, do fato de que tentava implicitamente mostrar que as obras literárias não são simplesmente soluções estéticas para problemas formais e que elas não são redutíveis a maneiras de dar golpes num espaço, estruturado e hierarquizado, de posições literárias. Tratava-se, para mim, de marcar uma dupla rejeição, a do encerramento textualista nas obras10e a do encerramento no “campo” de conflitos entre os autores, para destacar o fato de que as obras literárias são também pontos de vista singulares do mundo, modos específicos (i.e. especificamente literários) de falar do mundo usados por criadores com experiências, em situações e com horizontes sociais singulares.

Esse modo de pensar a literatura encontra apoio importante em reflexões filosóficas contemporâneas, nos Estados Unidos (Martha Nussbaum, Cora Diamond) e também na França (Jacques Bouveresse, Sandra Laugier, Tzvetan Todorov). Mas o movimento que me conduz a essa concepção da literatura não deixa de ecoar as interrogações em curso na comunidade dos “Literatos” que se questionam sobre os limites das abordagens internas, tanto do ponto de vista da apreensão científica das obras, como do ensino da literatura na escola e na universidade.11 Comentando as décadas dominadas pelo formalismo, Dominique Viart escreveu:

Mas, justamente, o que essas operações, tão bem descritas por gerações de críticos formalistas, acabam por evidenciar é que o escritor não escreve para não dizer nada, limitando sua prática à produção de alguns agregados sonoros ou gráficos. E as coisas de que ele nos fala são coisas pelas quais ele mesmo está passando, ou com que se preocupa, que tratam de seu próprio universo, de sua história ou da de outros, do seu lugar no mundo ou do mundo tal e qual ele observa do seu lugar (Viart, 2007, p. 11).

Essa maneira de formular os problemas é, no fundo, muito congruente com o que motivou a pesquisa que deu origem ao meu livro. Subentendido em todo esse trabalho sobre a criação literária de Franz Kafka, há, portanto, a ideia de que a língua e, particularmente, as formas literárias de discurso não são realidades encerradas em si próprias, sem ser, todavia, “reflexos” diretos ou simples superfícies de registro do real.

Problemática existencial, problemática literária

A quantidade de “situações-problema” de que Franz Kafka trata, ou que ele apresenta em seus escritos, é enfim bastante reduzida ao longo dos cerca de vinte anos que passam entre o início dos anos 1900 e o início dos anos 1920. Desse ponto de vista, pode-se dizer que as obras de Kafka são como variações incansáveis em torno dos mesmos temas, ou dos mesmos problemas. Isso não significa, todavia, que estes permaneçam totalmente imutáveis ao longo do tempo, mas sim que eles constituem os pontos nevrálgicos de uma problemática existencial cujos fundamentos se apresentam bastante cedo.

Entre esses problemas estão as relações pai-e-filho, os tormentos do celibato ou os perigos do casamento, os impulsos contraditórios que se manifestam com relação à literatura e à “vida”, à solidão e à vida em comunidade, à contemplação e à ação etc. A oposição ou a concorrência entre a literatura (e tudo que ela envolve: a solidão e seus lugares, como o quarto, a toca, a cela, o espaço fechado e isolado ou a prisão, a contemplação ou a observação, o celibato etc.) e “a vida” (a vida coletiva, a sexualidade, o casamento, o emprego, o sucesso econômico, social etc.) é uma oposição muito estruturadora no conjunto da obra. Se ela toma, às vezes, a forma explícita de uma relação entre o filho e o pai, que em si é simplesmente uma forma singularizada da relação entre o artista e o comerciante (ou o burguês), o enfrentamento entre pai e filho é frequentemente transfigurado, deslocado, e pode se apresentar até mesmo sob a forma de um combate de si contra si. O que Kafka busca objetivar de sua experiência, é, enfim, sua estrutura psíquica partida em duas, o conflito ou o enfrentamento interior entre pontos de vista ou tendências contraditórias.

Ao longo de toda sua trajetória de escrita, Franz Kafka se pergunta, também, sobre o processo, o status e a função da criação literária. Enquanto escritor por vocação, que faz da literatura uma prioridade existencial (“Não sou nada além de literatura”), contrariada às vezes pela “segunda profissão” ou pelos projetos de casamento e pela percepção paterna negativa dessa atividade, Kafka se pergunta, em suas obras, sobre o próprio processo da criação literária e sobre os tormentos do criador, sobre o sentido de tal atividade, sobre as origens e as razões de um interesse pela literatura, sobre o lugar social do escritor, sua função, ou mesmo sua missão. De onde vem a inspiração literária? Quais lutas se deve lutar para conseguir tirar de si algumas verdades? Por que praticar uma atividade tão solitária e incompreensível aos olhos de muitos? Vale a pena deixar passar todos os prazeres da existência e sacrificar a vida sob o risco de sequer conhecer as alegrias do reconhecimento literário? Qual o lugar da literatura e do escritor no mundo? Para que servem?

Enfim, Kafka interpreta e decifra continuamente as relações de dominação, dentre as quais encontram-se, evidentemente, as relações pai/filho, mas também as relações superior hierárquico/subordinado, patrão/empregado, mestre/servente, rico/pobre, pessoa célebre/desconhecida, forte/fraco, extrovertido/introvertido. Essas relações de dominação são quase sempre vistas pelos olhos do dominado, mostrando a contribuição que este - com seu sentimento de culpa, sua propensão à autodepreciação, sua tendência à autopunição como antecipação pela aprovação esperada, sua disposição à espera ilimitada etc. - leva à persistência de sua condição.

Questões de forma

O estudo dos aspectos formais, e sobretudo do estilo, da obra de Kafka não foi, todavia, ignorado. Evidentemente eles são importantes, ainda que inseparáveis do que nos conta o autor (o que chamamos comumente de “conteúdo”) e, embora não tão essenciais quanto afirmam os estudiosos da literatura, mais preocupados em tornar indispensáveis seus métodos formais de abordagem dos textos do que em registrar as realidades da criação e da recepção dos mesmos. Aqui, poder-se-ia pensar, de maneira bastante relativista, que o argumento poderia muito bem ser invertido e aplicado ao sociólogo que defende igualmente os métodos de sua disciplina. Mas isso seria ignorar o fato de que, na disputa pela imposição do método legítimo de estudo da literatura, nem tudo tem peso igual, e o que nos permite decidir entre os participantes que competem é a sua capacidade de dar conta dos fatos reais. Ora, seja olhando para o lado dos trabalhos - já numerosos - que tratam da recepção dos textos, seja levando em consideração as palavras de autores, hoje entre os mais consagrados (de Émile Zola a Marcel Proust, passando por Franz Kafka), sobre sua criação, evidentemente constata-se que a “literariedade” (o que define propriamente o texto literário) não se confunde com a “textualidade” nem com a “forma”.

Dito isso, as dimensões formais da obra literária são perfeitamente estudáveis de um ponto de vista sociológico e não constituem um ponto de discórdia para os pesquisadores das ciências sociais. Demonstrei, assim, no caso de Franz Kafka, que as “escolhas” formais poderiam ser entendidas pelo cruzamento de diversas normas sociais (disposições ascéticas constituídas na família, formação jurídica, a natureza da segunda profissão, restrições temporais, etc.) que o sociólogo ou o historiador é perfeitamente capaz de revelar. Por exemplo, expus o peso da formação jurídica de Kafka sobre seu estilo de escrita (simples, despojado, preciso)12; sobre sua tendência à reflexão sob a forma de argumentos e contra-argumentos; sobre a maneira com que seus personagens podiam refletir constantemente, tal qual juristas frente a certa quantidade de casos a tratar e de textos legais a interpretar; sobre sua prática de uma espécie de narrativa teorizante (ou de teoria narrada) e da modelização de suas intrigas, que o leva a pensar suas histórias à maneira de casos jurídicos, dos quais só se devem reter os traços pertinentes para poder julgá-los (chegando mesmo a reduzir suas personagens a letras - A., B., C. -, como num jogo de lógica matemática); ou ainda sobre seu uso do léxico jurídico (processo, tribunal, advogado, juiz, julgamento, veredito, lei, culpabilidade, culpa, condenação, sanção, punição, requerimento etc.) para formular literariamente uma parte de seus problemas existenciais. Mas o estilo literário de Kafka também tem ligação com as disposições ascéticas herdadas de seu meio social de origem ou formadas a partir dele próprio, e que se manifestam em setores extremamente diferentes de sua existência, jamais levadas em consideração pelos literatos (práticas alimentares, atividades físicas, gostos estéticos em se tratando de arquitetura, de mobiliário ou de decoração interna, relação com o dinheiro etc.).

Também os sistemas de personagens ou as configurações que se formam entre os mesmos em suas histórias - com suas proximidades surpreendentes e muito pouco realistas - não são bem compreendidos sem que se tenha um conhecimento minimamente preciso do caráter dividido e agonístico de sua estrutura psíquica, assim como das configurações sociais (principalmente familiares) que foram mais marcantes em sua existência. Kafka utiliza personagens distintos para distribuir neles suas diferentes tendências, inclinações ou disposições contraditórias e representar combates de si contra si. Ele se serve deles também para objetivar os diferentes papéis interpretados ou as funções exercidas por pessoas importantes de seu entorno familiar: figura tirânica do pai, figura materna reconfortante, mas ambígua, figura da irmã cúmplice, figuras de mulheres sexualmente desejáveis, figuras de mulheres resistentes, fortes etc. E ele não está apenas na figura do estrangeiro, recorrente em grande parte da obra, que pode ser lido em relação ao sentimento vivido por Franz Kafka de ser estrangeiro em todos os setores da vida social, e com as discrepâncias e defasagens muito reais que ele vivia na sociedade enquanto judeu germanófono, mas também no cerne da família, de seu universo profissional ou mesmo de sua atividade literária.

Mas o vasto campo “daquilo de que nos falam” os autores está longe de ser secundário, como alegam diversos especialistas literários, seja do ponto de vista das intenções criativas, seja pelo ângulo da recepção pelos leitores, que não são todos professores de literatura. Num diálogo contraditório com Ronald Shusterman, Jean-Jacques Lecercle escreveu, também, que “num texto literário, a ‘mensagem’ comunicada envolve sempre e em primeiro lugar a língua” e que “qualquer outro elemento informativo é apenas um elemento secundário” (Lecercle; Shusterman, 2002, p. 36). Ao formular uma proposição como esta, é como se o pesquisador considerasse como uma propriedade objetiva, intrínseca, do texto literário algo que é apenas um aspecto ou uma dimensão que seu ponto de vista disciplinar o leva a privilegiar. Ao mesmo tempo, todas as outras leituras, leigas ou eruditas, são depreciadas pelo simples fato de que se supõe que elas tratam apenas das dimensões secundárias do texto. Ronald Shusterman responde, com muita razão, a este argumento, dizendo que “Não se pode afirmar que o conteúdo sociomoral de textos como A Divina Comédia, Germinal ou A peste seja secundário em relação à sua mensagem metalinguística” (Ibid., p. 60).

Leitura criativa e leitura histórica

Um dos grandes lugares comuns sobre Kafka, que é repetido abundantemente por comentaristas, mesmo os mais experientes e eruditos, é a ideia de que a interpretação de seus textos, e até mesmo de sua vida, seria infinita, e que o significado de sua obra seria inesgotável. Falsa modéstia interpretativa? Uma forma de proteger o intérprete no momento em que ele propõe sua própria interpretação aos leitores? Uma forma, também, de homenagear o mito do mistério do texto como tão mais fecundo quanto o autor é grande e consagrado? Esse postulado ou essa constatação de inacessibilidade das grandes obras ou da abertura infinita das interpretações, no entanto, contribui para a falta de confiança no processo científico e ajuda a sustentar uma visão muito pouco exigente do trabalho interpretativo. De fato, se nada permitisse decidir entre todas as interpretações que circulam, estar-se-ia muito longe do processo científico que consiste, se não em dizer a verdade, ao menos em eliminar todas as hipóteses que são claramente inadequadas ou insustentáveis.

Muitas vezes, foge-se à ideia de que nenhuma interpretação é totalmente certa e definitiva (que nenhum exegeta pode sustentar seriamente), para aquela - mais complicada - segundo a qual todas as interpretações poderiam ser válidas13, ou ainda, para a ideia de que a obra literária resistiria, por natureza, a qualquer tentativa de interpretação. Ao repetir que o texto literário se presta a uma infinidade de interpretações, acaba-se confundindo dois tipos de pluralidade interpretativa: aquele que está ligado à diversidade dos mundos dos leitores passíveis de apropriar-se do texto, cada um capaz de dizer do texto o que a sua própria situação permite que ele compreenda; e aquele, muito mais reduzido e, pode-se pensar, que pode idealmente se reduzir ao passo dos avanços científicos e dos trabalhos de pesquisa, ligado à riqueza de fontes mobilizáveis e à diversidade de interesses de pesquisa parciais.

Para esclarecer uma situação confusa, é necessário fazer uma distinção rigorosa entre as leituras criativas e as leituras históricas. Uma leitura criativa tem todas as liberdades, mesmo a anacrônica, de ver em Kafka um profeta do regime nazista ou dos processos stalinistas, ou no mínimo uma formidável análise dos eventos mais trágicos do século XX, mas uma leitura histórica, não. Lembrar desse tipo de evidência é importante, quando se quer preservar a especificidade da leitura histórica enquanto leitura que tenta entender a obra em seu momento de criação, no movimento histórico singular que lhe deu origem. A leitura histórica faz um esforço de reconstruir a rede de restrições objetivas e subjetivas que guiou uma escrita em seu próprio movimento, algo que não se resume à questão da “intencionalidade do autor”.

Afirmar, como fez Yves Citton, que “toda leitura implica uma intensa atividade de projeção por parte do intérprete” (Citton, 2007, p. 66)14 só é verdade se se exclui de sua fala as leituras científicas fundamentadas justamente no controle dessas projeções e que consistem em buscar na realidade extratextual, e não em suas experiências próprias ou em sua biblioteca interior pessoal, os elementos de compreensão do texto. O ato de projetar, observável em muitos leitores, inclusive os “eruditos”, o horizonte insuperável de toda leitura, qualquer seja o objetivo do leitor, é aceitar submeter-se ao senso comum e aos hábitos de leitura comuns, em vez de romper com os mesmos, o que é peculiar à atitude científica. Constatar que, na maior parte do tempo, os leitores se projetam (projetam seus interesses próprios, os de sua época e os dos grupos a que pertencem) no texto, não deveria, entretanto, levar à conclusão obrigatória de que ninguém pode escapar disso, ou pior, que se deve aprender a gostar do que não se pode escapar.

Ao ceder à leitura criativa, o pesquisador efetua o que se pode chamar de uma transferência científica ilegal (Lahire, 2008, p. 59-67). Ele extrai um texto, sem dizê-lo ou, às vezes, sem mesmo dar-se conta, do contexto em que foi criado e em relação ao qual ele toma seu significado, para inseri-lo num outro contexto, isto é, o de um leitor contemporâneo mais ou menos erudito. É exatamente a isso que as leituras literárias estruturalistas submeteram os mitos desconectados de suas condições originais - orais - de criação e de recriação. Aplicando ao mito um tratamento diferente do que aquele a que ele inicialmente deu origem, o pesquisador se põe assim mais próximo do processo artístico ou do ato criador do que do processo científico: ele fala sobre um mito transcrito e estudado aquilo que pode dizer alguém que dispõe de certas técnicas intelectuais e um horizonte de expectativa determinado, mas ele não diz o que era o mito para aqueles que estavam dentro do mito. O caráter ilícito ou ilegal dessa operação vem do fato de que se transplanta um “texto” de um mundo para um outro, em vez de fornecer os meios de reconstruir o solo no qual ele cresceu. “O nascimento do leitor deve ser pago com a morte do autor”, escreveu Roland Barthes (1984, p. 67). É exatamente isso que implica a leitura criativa, mesmo em suas formas mais eruditas. Já a leitura histórica deve, inversamente, fazer renascer o autor - um autor socializado e não sacralizado - para fazer jus a seus textos.

A sociologia certamente não foi feita para satisfazer os amantes da acrobacia interpretativa ou das explorações hermenêuticas, mas para produzir um pouco de verdade sobre o mundo. Sob essa perspectiva, pode-se ver que compreender um autor (e sua obra), no sentido de entender as lógicas que ele seguiu tanto em sua vida como nos atos de escrita, não é repetir o que ele escreveu ou comentá-lo como se fosse possível entrar intuitivamente em comunhão com ele, que é de fato a melhor forma de projetar no caso seus interesses próprios e suas próprias categorias de percepção. Compreender supõe, muito pelo contrário, reconstruir os contextos sociais de sua criação, e especialmente os moldes indissociavelmente mentais e sociais de sua experiência.

Respeitar cientificamente uma obra é respeitar a realidade das condições em que ela foi criada. É, poder-se-ia dizer, “construir o ponto de vista do autor” (Pierre Bourdieu), especificando que essa construção científica não cobre o ponto de vista subjetivo, consciente, que o autor poderia ter das coisas, mas sem reduzir esse ponto a um lugar no universo literário. Trata-se de recompor o conjunto de pressões interiores (disposições e competências) e exteriores, passadas e presentes, que agem sobre o criador e determinam sua criação, tanto em suas dimensões formais quanto nos enredos que ele desenvolve.

Uma teoria da criação literária como essa, cujos princípios teóricos metodológicos formulei e que apliquei em Franz Kafka, pode buscar uma certa generalidade. A análise do caso de Franz Kafka comprova que, em todo caso, ela não é, de forma alguma, limitada à apreensão das obras mais realistas e das menos formalmente inovadoras. É aconselhável, portanto, concebê-la como um modelo, adaptável em função dos novos casos estudados, mas que abre caminho para que se possa tecer, da maneira mais satisfatória possível, os fios sociais e literários que os pesquisadores geralmente têm dificuldade de juntar. Contudo, é preciso pensá-la também como uma variação particular, que diz respeito a um determinado tipo de expressão (isto é, o domínio da expressão literária), de uma teoria geral das produções simbólicas que envolve também, potencialmente, o direito, a religião, a política, as ciências ou as artes.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
Traduzido por Liana Fernandes (UFRGS).
Artigo publicado originalmente em francês em SociologieS [En ligne], Grands résumés, Franz Kafka. Eléments pour une théorie de la création littéraire, mis en ligne le 11 avril 2011, URL : http://sociologies.revues.org/3429
1 Este texto foi escrito a partir da introdução e de alguns elementos da conclusão da obra.
2 O conforto sociológico é grande quando se estuda um caso como o de Franz Kafka. É preciso imaginar o que seria a sociologia das trajetórias individuais se, em lugar de trabalhar com entrevistas biográficas longas, detalhadas e reiteradas, os pesquisadores dispusessem, para cada caso estudado, de textos autobiográficos (como a Carta a seu pai), de um diário pessoal mantido regularmente por muitos anos (entre 1910 e 1923 no caso do Diário de Franz Kafka), de abundantes correspondências com pessoas diferentes (cobrindo, aqui, o período de 1900-1924), de dados de arquivos sobre sua família, de um inventário póstumo do conteúdo de sua biblioteca, vestígios escritos de sua atividade profissional ou, ainda, depoimentos diversos de pessoas que conheceram o indivíduo pesquisado, relatando as palavras ditas por ele em conversas ou descrevendo seu comportamento em uma ou outra ocasião. Se acrescentarmos a isso, no que diz respeito ao caso de um escritor, a existência de uma obra literária consequente (estendendo-se por mais de vinte anos, entre 1902 e 1924) e de dados sobre suas relações com seus editores, entende-se que a situação é perfeitamente propícia ao estudo preciso e aguçado deste caso.
3 Ou ele teria sido realizado com o sentimento de ilegitimidade e de saída do território da sociologia, o que teria levado a negligenciar, ao mesmo tempo, a tarefa de argumentação teórica necessária para sua plena compreensão científica.
4 Pontos esses que procurei esclarecer nos textos La littérature comme un jeu (Lahire, 2006, p. 37-81) e De l’expérience littéraire : lecture, rêverie et actes manqués (Lahire, 1998, p. 107-18).
5 Questões essas que geralmente são mal administradas por aqueles cuja cultura disciplinar não prepara para apreender esse tipo de realidade.
6 Ver especialmente Sartre, 1986.
7 Carl E. Schorske escreveu, por exemplo, de uma forma que me parece, a partir do meu próprio objetivo de conhecimento, excessivamente condensada, que: “Hofmannsthal e Schnitzler precisaram lidar com o mesmo problema: a dissolução do ideal clássico do homem no cadinho da vida política moderna na Áustria. Ambos testemunharam o surgimento do homem psicológico sobre as ruínas da cultura antiga” (Schorske, 1983, p. 37).
8 Observar-se-á, nesse trecho, que Roland Barthes parece ligar duas questões que de fato nada têm a ver uma com a outra: a das causas do ato de criação literária e a do caráter não consciente do ato do criador que nunca tem uma visão clara do que faz, dos motivos pelos quais ele o faz, de qual o seu objetivo e do resultado de seu trabalho de criação.
9 O que foi feito por Antoine Compagnon (1983).
10 A grande maioria das interpretações literárias alegam buscar as chaves da interpretação no próprio texto (versão restrita) ou no conjunto dos textos literários (versão extensa).
11 Assim, quando Philippe Baudorre e Dominique Rabaté apresentam a publicação tirada de um colóquio da Sociedade de Estudos da Literatura Francesa do Século XX, realizado em novembro de 2004, eles lembram que o primeiro colóquio “destacou o foco demasiado dos estudos literários atuais sobre a poética do texto” e “a necessidade urgente de aprofundar a reflexão sobre as relações que nossa disciplina tem com as ciências humanas” (Baudorre; Rabaté, 2007, p. 7).
12 De formação matemática, Stendhal dizia, numa carta destinada a Honoré de Balzac e datada de 1840, que havia lido, de tempos em tempos, algumas páginas do Código Civil ao escrever A cartuxa de Parma. Se devemos ver aqui, em Stendhal, apenas uma forma de falar para evocar certa propensão estilística, essa evocação de um estilo de escrita jurídica tem igualmente sentido.
13 E assim serem todas, uma mais fraca que a outra: “O conto de Kafka”, escreveu Barthes, “permite milhares de chaves igualmente plausíveis, o que quer dizer que ele não valida nenhuma delas” (Barthes, 1964, p. 146).
14 Em outro ponto, ele escreve que se trata de “entender que a projeção interpretativa, longe de ter que ser erigida como anátema, constitui a base de toda leitura” (Citton, 2007, p. 44).
Autor notes
Bernard Lahire é Professor de Sociologia na École Normale Supérieure de Lyon ✉ bernard.lahire@ens-lyon.fr.
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