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De Parsons a Elias: contribuições de clássicos da sociología aos estudos CTS contemporâneos
De Parsons a Elias: contribuciones de clásicos de sociología a los estudios CTS contemporaneous
From Parsons to Elias: Contributions of Sociology Classics to Contemporary Science and Technology Studies
Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad - CTS, vol. 15, núm. 44, pp. 125-151, 2020
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas

Artículos



Recepção: 04 Outubro 2018

Aprovação: 18 Dezembro 2018

Resumo: O objetivo deste artigo consiste em analisar um objeto de pesquisa típico dos estudos em ciência, tecnologia e sociedade (CTS) à luz de sociólogos expoentes do século XX. Mais especificamente, desenvolvemos uma discussão sobre a avaliação algorítmica da produção científica brasileira a partir de contribuições provenientes de vertentes teóricas tão distintas quanto o estrutural-funcionalismo, o interacionismo simbólico, a etnometodologia, a teoria dos campos de Bourdieu e a chamada “sociologia processual” de Elias, pontuando suas potencialidades e limitações interpretativas ante o estado da arte da sociologia do conhecimento, da ciência e da tecnologia contemporânea. Nossa análise indica que, para além de substrato de teorias e métodos em voga, as próprias epistemologias e funcionamento intrínseco de clássicos da sociologia, em si, acionam diferentes dimensões de um mesmo objeto, podendo ser articuladas na forma de triangulação metodológica na investigação de fenômenos atuais concernentes às relações entre ciência, tecnologia e sociedade.

Palavras-chave: CTS, Sociologia do conhecimento, Parsons, Bordieu, Elias.

Resumen: Este artículo analiza un objeto de investigación típico de los estudios sobre ciencia, tecnología y sociedad (CTS) a la luz de los sociólogos más representativos del siglo XX. Más específicamente, desarrolla una discusión sobre la evaluación algorítmica de la producción científica brasileña a partir de aportes provenientes de vertientes teóricas tan distintas como el estructural-funcionalismo, el interaccionismo simbólico, la etnometodología, la teoría de los campos de Bourdieu y la llamada “sociología procesal” de Elias, señalando sus potencialidades y limitaciones interpretativas ante el estado del arte de la sociología del conocimiento, la ciencia y la tecnología contemporáneas. Nuestro análisis indica que, más allá del sustrato de teorías y métodos en boga, las epistemologías y el funcionamiento intrínseco de clásicos de la sociología activan diferentes dimensiones de un mismo objeto que pueden ser articuladas en forma de triangulación metodológica en la investigación de fenómenos actuales sobre las relaciones entre ciencia, tecnología y sociedad.

Palabras clave: CTS, Sociología del conocimiento, Parsons, Bordieu, Elias.

Abstract: This paper analyses a typical object of research for science, technology and society (STS) studies in light of 20th century sociology best-known exponents. More specifically, it develops a discussion on the algorithmic evaluation of Brazilian scientific system based on contributions from theoretical points of views as different as structural functionalism, symbolic interactionism, ethnomethodology, Bourdieu’s field theory and Elias’ so-called “process sociology”, highlighting their interpretative potential and limitations in relation to the state of the art of contemporary sociology of knowledge, science and technology. This analysis points towards the fact that, beyond the substrate of the in-vogue theories and methods, the intrinsic epistemology and functioning of the classics of sociology activate different dimensions of the same object that can be articulated in the way of a methodological triangulation in the research of current phenomena regarding the different relationships between science, technology and society.

Keywords: Sociology of knowledge.

Introdução

O objetivo deste artigo consiste em discutir um objeto de pesquisa típico dos estudos CTS à luz de sociólogos expoentes do século XX. Esforçamo-nos em identificar as possíveis contribuições que vertentes teóricas tão distintas quanto o estrutural-funcionalismo, a etnometodologia, e a chamada “sociologia processual”, por exemplo, poderiam conceder especialmente à sociologia do conhecimento, da ciência e da tecnologia contemporânea, sem deixar de apontar suas limitações ante o problema de pesquisa que propomos neste exercício.

O “projeto de pesquisa” que nos serve de base para este trabalho supõe uma investigação sobre a relação entre a gestão algorítmica de atividades científicas e as formas de conhecimento produzidas nos dias de hoje. Mais especificamente, esse projeto teria o intuito de levar a cabo uma análise da relação entre a avaliação imposta pela agência governamental brasileira intitulada Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a produção científica no Brasil.

No que se segue, apresentamos, primeiro, uma breve descrição da “matéria-prima” deste artigo, destacando pontos fundamentais do projeto de pesquisa para o exercício que nos colocamos: formulação do problema a ser tratado, objetivos e metodologia. Em segundo lugar, voltamo-nos para o cerne deste exercício, isto é, passar pelo crivo de uma série de teóricos clássicos da Sociologia o projeto que expomos. Para isso, trilharemos o seguinte percurso: iniciamos o debate por Talcott Parsons e o estrutural-funcionalismo; avançamos para Erving Goffman e o interacionismo simbólico, Harold Garfinkel e a etnometodologia; em seguida, discutimos as contribuições de Pierre Bourdieu e, então, encerramos esta seção com Norbert Elias. Por fim, em terceiro lugar, apresentamos comentários finais, à guisa de conclusão.

1. “Os cientistas sob o algoritmo”: um projeto de investigação sobre a relação da avaliação da Capes e a produção científica brasileira

Apresentamos, nesta seção, a) um objeto e um problema de pesquisa característicos do campo dos CTS; b) os objetivos que uma pesquisa desta natureza necessariamente se impõe; e c) os procedimentos metodológicos requeridos para a satisfação destes objetivos e, por conseguinte, do problema formulado. Esses três pontos, expostos a seguir, constituirão o eixo em torno do qual se desenvolvem nossos argumentos.

1.1. Formulação do problema

Sabe-se que, ao longo do século XX, os investimentos em ciência e tecnologia (C&T) cresceram vertiginosamente. Argumenta-se que, por um lado, houve a percepção, por parte de governos, de que a indústria bélica deveria lançar mão de avanços em C&T, fator visto como condicionante dos possíveis rumos da Guerra Fria. Por outro lado, o desenvolvimento científico e tecnológico passou a ser encarado como elemento fundamental ao crescimento econômico (Galison et al., 1992; Castelfranchi, 2008). Com isso, o número de universidades, fortemente associadas à pesquisa, e não só ao ensino, cresceu significativamente, tanto em países ditos “desenvolvidos” quanto “subdesenvolvidos”. Naturalmente, em tal cenário, a expansão acadêmica foi acompanhada por políticas científicas e tecnológicas específicas, em certa adequação aos interesses e demandas dos atores envolvidos — cientistas, suas respectivas instituições, governos, “público leigo” e, mais recentemente, mercado (Jasanoff, 1995; Shinn e Lami, 2006; Callon et al., 2009).

Nesse sentido, processos lógicos e mais ou menos automatizados de processamento de dados — o que chamamos algoritmos — têm sido desenvolvidos e aprimorados, a fim de dar conta das tarefas de avaliação dos produtores e produtos da ciência e tecnologia, bem como da distribuição de recursos entre os agora bastante numerosos projetos .1. Ainda, conforme argumentam alguns trabalhos, o advento e a popularização de tecnologias de informação e comunicação nas últimas décadas, entre outros fatores, contribuíram para um rearranjo institucional entre universidades, governos e indústria (Diakopoulos, 2015; Medeiros, 2016). Este rearranjo teria conferido força a procedimentos algorítmicos de comunicação e avaliação da produção de conhecimento e tecnologia, tornando mais dinâmica a distribuição de recursos. Esses processos automatizados de avaliação científica são hoje indispensáveis em vista da intensidade e volume dos fluxos comunicacionais da ciência. E, embora não prescindam de métodos avaliativos qualitativos, como o peer review, há indícios que os algoritmos exercem influência sobre o que, e de que forma, produz-se em C&T.

Assim, não obstante as análises dos efeitos decorrentes de políticas científicas e tecnológicas, e seus respectivos sistemas avaliativos, sobre a produção de conhecimento e tecnologia em outros países, faltam estudos que se dediquem a investigar o efeito dos critérios avaliativos da Capes sobre a produção tecnocientífica brasileira.

É para a produção de conhecimento, sob os atuais critérios de avaliação dos Programas de Pós-Graduação da Capes, que este projeto se volta. A pergunta orientadora é: quais são os efeitos da atual avaliação da Capes sobre a produção científica brasileira?

Peça fundamental ao fomento da atividade científica no Brasil, a Capes foi criada em 1951, na esteira da fundação da National Science Foundation, nos Estados Unidos, tendo como objetivo central promover a formação de especialistas que pudessem contribuir com o desenvolvimento econômico e social do país. Até meados da década de 1970, quando consolidou sua autonomia, a instituição esteve incumbida, sobretudo, do aperfeiçoamento do pessoal docente. Ao longo dos anos 1970 e 1980 foi responsável, primeiro, pela efetivação e, posteriormente, também pela elaboração dos Planos Nacionais de Pós-Graduação (PNPG). Desde então, a Capes acompanha o desenvolvimento dos processos avaliativos do Ensino Superior no Brasil. Em meados da década de 1980, as avaliações da Capes e a correspondente distribuição de recursos aos programas passou a ser feita por meio de um algoritmo. Este algoritmo, ainda hoje, serve de base para os procedimentos avaliativos, tendo passado por reajustes maiores ou menores ao longo dos últimos anos.

Dentre outras linhas de atividade, a Capes continua a avaliar os programas de pós-graduação brasileiros e a provê-los com recursos de fomento à pesquisa, com o objetivo de assegurar a qualidade dos cursos ofertados. Atualmente, o Sistema de Avaliação é aplicado a quarenta e oito áreas de conhecimento. A avaliação de todas essas áreas segue uma mesma sistemática, respondendo a um conjunto de critérios básicos estabelecido pelo Conselho Técnico Científico da Educação Superior (CTC). Dentre esses critérios, podemos citar, por exemplo, o corpo docente (titulação, ensino, orientações de dissertações e teses), produção intelectual (publicações em periódicos, registro de patentes, entre outros) e a inserção social (impacto regional ou nacional do programa, integração com outros programas e centros de pesquisa, dentre mais quesitos). A esses critérios são vinculados pesos específicos. Os pesos variam por área de conhecimento e podem ser atualizados a cada ciclo avaliativo, em função de análises sobre o estado da arte de determinada área desenvolvidas por comissões de pares bem reputados.

1.2. Objetivos

Objetivo Principal: investigar de que modo o algoritmo de avaliação dos programas de pós-graduação utilizado pela Capes faz surtir efeitos nas atividades da ciência brasileira e na concomitante produção de conhecimento, seja fomentando ou desestimulando práticas, pesquisas e projetos.

Objetivos específicos: a) examinar a percepção de pesquisadores sobre o sistema avaliativo da Capes em relação a seu próprio desempenho e o desempenho de seus pares; b) analisar o desempenho de grupos de pesquisadores, bem como as atividades a que se dedicam na academia; c) identificar áreas de excelência, temas emergentes e lacunas na produção do conhecimento científico; e d) investigar o algoritmo utilizado pela Capes para avaliação, os tipos de dados que ele inclui e exclui, por quais critérios, e os produtos que dele derivam.

1.3. Metodologia

Os objetivos que este projeto se impõe podem ser alcançados por meio de procedimentos metodológicos de natureza distinta. Aqui, valeria a pena integrar métodos qualitativos e quantitativos, aproveitando-nos das perspectivas que nos são providas por cada um deles sobre nosso objeto de estudo. A análise do algoritmo de nosso interesse poderia ser feita por meio de documentos normalizadores da produção científica produzidos e divulgados pela Capes. Tais documentos contêm, com detalhes, os critérios e cálculos utilizados para avaliar a produção científica brasileira. Desta forma, será possível identificar possíveis óbices a determinadas práticas e atividades acadêmicas, elementos que sirvam de propulsores da ciência a níveis considerados de excelência internacional e sua relação com o PNPG.

Por outro lado, poder-se-ia lançar mão de entrevistas semiestruturadas. Uma das vantagens de utilizarmos da forma semiestruturada da entrevista advém da possibilidade de aprendermos com nossos entrevistados sobre nosso domínio de interesse através da alternância entre procedimentos formais e conversações informais (Crabtree e Miller, 1999). Com isso, conforme argumenta Robert Weiss (1994), a entrevista nos possibilita entender as vivências de outras pessoas, bem como o significado atribuído a essas experiências, articulando pontos de vista distintos. Deste modo, tonar-se possível averiguar a percepção de pesquisadores sobre o sistema avaliativo da Capes e como eles interpretam essa percepção. Isso importa na medida em que as narrativas obtidas revelem as reações dos pesquisadores às normas da Capes e de que forma os pesquisadores entendem que essas normas afetam seu trabalho e o de seus pares.

O tratamento dos dados obtidos através das entrevistas seria realizado por meio de técnicas de análise de conteúdo, marcadas por “uma grande disparidade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações” (Bardin, 2011: 34). Segundo Klaus Krippendorff, a análise de conteúdo consiste em “um conjunto de técnicas de pesquisa para tornar válidas e replicáveis inferências de textos (ou outro material significativo) aos contextos de seu uso” (2004: 18).

Cabe, ainda, mencionar outra vantagem em relação aos recursos oferecidos pelas entrevistas semiestruturadas: a de subsidiar a interpretação de resultados obtidos por meio de pesquisa quantitativa (Weiss, 1994; Kelle, 2001).

Os objetivos de observar o desempenho de grupos de pesquisadores e suas atividades acadêmicas, por um lado, e de identificar áreas de excelência, temas emergentes e lacunas na produção científica, por outro, poderiam ser atingidos por meio do uso de métodos cientométricos de pesquisa. Em seu livro The Challenges of Scientometrics: The Development, Measurement, and Self-Organization of Scientific Communications, Loet Leydesdorff argumenta que a força do “programa cientométrico” advém de sua definição positiva da ciência como uma área de investigação (Leydesdorff, 2001). A cientometria, nesse sentido, constrói indicadores capazes de medir o desempenho de grupos de pesquisadores e o desenvolvimento de áreas da ciência, sobrepondo-se à bibliometria. Em geral, a fim de analisar campos científicos emergentes e a performance de grupos de cientistas, estudos cientométricos têm recorrido a técnicas de análise multivariada (por exemplo, em Leydesdorff et al., 1994) e de análise de redes, combinadas a métodos qualitativos (Leydesdorff, 1989 e 2001). No presente projeto, o recorte da investigação seria definido a partir das escolhas metodológicas mais adequadas e em vista do estado da arte dos estudos no campo de interesse. Todavia, para os fins que nos propomos neste artigo, o apresentado até este ponto nos bastará.

Eis, portanto, em poucas palavras, um projeto de pesquisa típico do campo dos CTS. Ele nos servirá de base para a discussão das possíveis contribuições de clássicos da Sociologia do século XX para a sociologia do conhecimento, da ciência e da tecnologia contemporânea, que apresentamos na seção seguinte.

2. A análise do projeto, de Parsons a Elias

2.1. Parsons e o estrutural-funcionalismo

O estrutural-funcionalismo consiste em uma corrente de teoria sociológica cujo precursor foi o estadunidense Talcott Parsons. Parsons, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, buscou uma reposta para o problema da relação entre indivíduo e coletivo, agência e estrutura, recorrendo à recombinação de elementos fundamentais da sociologia clássica do fim do século XIX e início do século XX e pagando tributos em especial a Max Weber e Émile Durkheim (Alexander, 1987). A força motriz e motivacional do trabalho de Parsons pode ser dividida em duas partes — dimensões política e propriamente sociológica, na medida em que se pode separá-las com fins analíticos — e, para sintetizar seu pensamento e sobrepô-lo ao projeto que apresentamos, dedicaremos algumas linhas a cada uma dessas dimensões.

Resumidamente, o trabalho de Parsons, segundo Jeffrey Alexander, tem motivações políticas porque se constitui num esforço de superar categorias de pensamento que, supostamente, teriam dado ensejo à emergência do totalitarismo (Alexander, 1987: 24-25).

Por um lado, a teoria liberal clássica, altamente individualista e racionalista, tenderia a ignorar fatores “ambientais”, ou condições sociais estruturais sob as quais a ação social toma lugar. Aqui, a ordem social seria estabelecida automaticamente através da busca, pelos indivíduos, de seus objetivos auto interessados. Por outro lado, o desenvolvimento de teorias de tradição “coletivista” ou estruturalista estaria inclinado à supressão das liberdades individuais em nome de um fenômeno emergente que impor-se-ia de cima para baixo — traduzido, por exemplo, no bolchevismo e no stalinismo.

Era preciso, pois, para Parsons, revigorar o liberalismo através da correção de seus desequilíbrios, garantindo, a um só tempo, a integridade e a autonomia do indivíduo, bem como a razão, e reconhecendo fatores de ordem social ou “natural” que servem de base, ambiente, constrangimento e estímulo à ação.

Mas como conciliar, digamos, “voluntarismo puro” e “coerção social”?

A solução encontrada por Parsons é composta pelo aproveitamento de sugestões nas obras de Durkheim e Weber que iam no sentido de compor, num só corpo teórico, voluntarismo e orientação normativa da ação (Alexander, 1987: 37). O autor eventualmente formula uma teoria geral da ação que concebe (sub)sistemas integrados e funcionais da ação:

“Consideramos os sistemas sociais como os constituintes do sistema mais geral de ação; os outros constituintes primários são os sistemas culturais, os sistemas de personalidade e os organismos comportamentais. Os quatro são abstratamente definidos com relação ao comportamento concreto de interação social. Tratamos os três subsistemas de ação, além do sistema social, como constituintes de seu ambiente” (Parsons, 1974: 15).

A função primordial do sistema social é a integração e coordenação de suas unidades constituintes, sejam elas indivíduos ou coletividades. Ao sistema cultural cabe a função de manutenção e “mudança criativa” de padrão, isto é, do conjunto de “códigos através dos quais são estruturados feixes específicos de símbolos [...], as condições de sua utilização, manutenção e mudança” (Parsons, 1974: 15-16). O sistema de personalidade, por sua vez, tem por função a busca e realização de objetivos tendo por base princípios e exigências culturais. Por fim, o “organismo comportamental” funciona como “subsistema adaptativo”: “o local dos recursos humanos primários que estão subjacentes aos outros sistemas (Parsons, 1974: 16).


Tabela 1
Esquema simplificado dos subsistemas primários e suas funções elaborado por Parsons

Segundo Parsons, os subsistemas de ação interpenetram uns aos outros, tendendo a uma relação de equilíbrio. A título de exemplo, podemos citar a internalização de normas culturais e valores pela personalidade individual, ou a institucionalização de estruturas normativas típicas de sistemas culturais. Nas palavras do autor,

“[...] pensamos sistemas sociais como “abertos”, participando de um intercâmbio contínuo de recepções e apresentações com seus ambientes. Além disso, pensamos que sejam internamente diferenciados em várias ordens de subcomponentes que também participam continuamente dos processos de intercâmbio” (Parsons, 1974: 17-18).

A análise dos sistemas sociais, então, dar-se-ia ao voltarmos nossas lentes para quatro tipos de elementos que os compõem: valores, normas, coletividades e papeis. Os valores consistem em concepções que regulam os compromissos de unidades sociais, indivíduos, e funcionam na manutenção do padrão de sistemas sociais. As normas são integradoras dos sistemas sociais, e podem ser específicas para determinadas situações sociais. Por situação, entende-se que os constrangimentos materiais e normativos que, estando fora do controle do ator, condicionam a agência (Alexander, 1987: 24). Já as coletividades consistem num “tipo de componente estrutural que tem primazia para a realização de objetivo” (Parsons, 1974: 18).

Enfim, o papel constitui um componente estrutural de função adaptativa que define classes de indivíduos a partir de um conjunto de expectativas recíprocas.

Diante disso, é possível içarmos a teoria de sistemas de Parsons a um nível mais elevado de complexidade, representado e articulado pelo chamado modelo “AGIL”, onde: “A” corresponde às funções de adaptação a processos físico-químicos, esquemas simbólicos e cognitivos estruturados de tipo estímulo-resposta, como processos econômicos. “G” corresponde às funções relacionadas à consecução de objetivos a partir da racionalidade de ação meios-fins modulada pela internalização de normas e significados. “I” consiste nas funções de integração por meio de ações controladas sobretudo normativamente no sentido da manutenção da solidariedade. “L” desempenha funções de manutenção de padrões ou de latência, orientados por valores. Um esquema final da teoria de sistemas parsoniana poderia ser o seguinte:


Figura 1
Articulação de subsistemas e o modelo AGIL

Para Richard Münch, estudioso renomado da obra de Parsons,

“Todos os subsistemas são funcionalmente especializados, exigindo estruturas adequadas ao desempenho de suas funções; além disso, não são autossuficientes, mas dependem do desempenho de funções complementares por parte de outros subsistemas. Para tanto, é necessário que o desempenho das funções seja intercambiado com o auxílio de meios generalizados e que os subsistemas mediadores se desenvolvam em zonas de interpenetração dos sistemas. Uma sociedade é um sistema social concreto e relativamente auto-suficiente. Para que sua unidade se preserve, deve haver interpenetração interna entre seus subsistemas” (Münch, 1999: 188).

A obra de Münch (1988) demonstra que os esforços teóricos de Parsons não foram em vão, fornecendo subsídios para estudos empíricos em sociologia ao longo de todo o século XX. Contudo, alguns exercícios do próprio Parsons a partir de dados empíricos se nos mostra relativamente frágil, ocasionalmente lançando mão de argumentos ad hoc e recorrendo à premência da estrutura sobre a agência (Parsons, 1974: cap. V), que o leva a conclusões como a seguinte:

“Na diferenciação do sistema europeu como um todo, podemos atribuir primazia nas funções de realização de objetivos à região noroeste, pois aí surgiram a diferenciação estrutural e os mais importantes desenvolvimentos novos. Tais processos aumentaram a capacidade adaptativa do sistema” (Parsons, 1974: 94).

Em vista da discussão elaborada até este ponto, podemos considerar algumas contribuições da teoria dos sistemas de Parsons para com o projeto de pesquisa que apresentamos.

No âmbito do sistema político (“G”), podemos investigar de que modo a eficiência política — à qual pode ser possível atribuir valor simbólico, eventualmente internalizado — se expressa nas formulações avaliativas da Capes. Este subsistema, evidentemente, encontra-se em estreita interdependência do subsistema econômico.

Ao voltarmos nossas lentes para o sistema econômico (“A”), condicionado pela concorrência de mercado, é possível analisar de que maneira os critérios de eficiência política encontram-se co-determinados pela aplicação de recursos escassos em empreendimentos acadêmicos distintos.

Na medida em que o sistema comunitário (“I”) funda-se na solidariedade associada à observância das normas, é possível observar de que maneira a ação de cientistas confere legitimidade ao funcionamento de outros subsistemas, construindo certo consenso social em torno deles.

Parece-nos, portanto, que as contribuições de Parsons para o projeto de pesquisa em questão são tangenciais. Ainda que não tenhamos perpassado neste trabalho todas as dimensões dos complicados esquemas conceituais elaborados pelo autor, é possível argumentar que o aporte teórico de alta abstração apresentado por Parsons é capaz de chamar atenção para aspectos cruciais do funcionamento de sistemas de inovação e sua relação com as atividades de produção científica e tecnológica: instituições políticas e econômicas e sua interpenetração com a academia. Fosse esse o foco da análise, as contribuições da teoria parsoniana seriam de especial interesse para a investigação de modelos Tripla Hélice de relações entre indústria, governo e universidade (Leydesdorff, 2018).

2.2. Goffman e o interacionismo-simbólico

Tributário de Dewey, Mead e Blumer, entre outros, Erving Goffman é um dos autores expoentes do que veio a ser conhecido como “interacionismo simbólico” (Joas, 1999). Em contraste com a teoria, com traços de metateoria, de Parsons, Goffman se dedica à investigação e análise sistemática das interações sociais, tendo por enfoque, nesse sentido, a microssociologia das relações cotidianas.

Os apontamentos de Goffman, bem como seu trabalho empírico, parece-nos fundamental para a satisfação de um de nossos objetivos específicos: o de examinar a percepção de pesquisadores sobre o sistema avaliativo da Capes em relação a seu próprio desempenho e o desempenho de seus pares. Sugerimos, na seção de metodologia do projeto, a realização de entrevistas semiestruturadas como modo de obter os dados necessários para isso. É importante notar, contudo, que as pessoas com quem temos contato não são como bancos de dados eletrônicos, dos quais demandamos informações que nos são prontamente fornecidas. Ao contrário, indica Goffman (1995), há uma dimensão dramatúrgica intrínseca às interações sociais que devem ser levadas em conta pelo pesquisador.

Por que? Em primeiro lugar, porque sujeitos entrevistados podem tender a fornecer respostas ao pesquisador em função daquilo que imaginam ser socialmente aceitável, esteticamente agradável, eticamente louvável e assim por diante, de modo a supostamente atender o que é percebido como sendo as expectativas do entrevistador. Como afirma Goffman, um indivíduo geralmente procura obter informações sobre as pessoas com quem ele se encontra, e não o fazem por uma razão fortuita: “a informação a respeito do indivíduo serve para definir a situação [interacional], tornando os outros capazes de conhecer antecipadamente o que ele esperará deles e o que dele podem esperar” (Goffman, 1995: 11). Nesse sentido, o sociólogo deve estar atento à regulação da conduta dos seus entrevistados e esforçar-se para influenciar a definição da situação interacional, com o fim de obter as informações que lhe interessam.

Com isso, não queremos versar sobre a possibilidade de os entrevistados formularem enunciados essencialmente verdadeiros ou falsos; tal discussão, evidentemente, é inócua e não interessa ao sociólogo. Em contrapartida, é importante que o pesquisador se atente para a expressividade do entrevistado, registrando momentos em que há dissonância entre expressões emitidas . transmitidas.

“A primeira [expressão transmitida] abrange os símbolos verbais, ou substitutos, que ele usa propositadamente e tão-só para veicular a informação que ele e os outros sabem estar ligada a esses símbolos. Esta é a comunicação no sentido tradicional e estrito. A segunda [expressão emitida] inclui uma ampla gama de ações, que os outros podem considerar sintomáticas do ator, deduzindo-se que a ação foi levada a efeito por outras razões diferentes da informação assim transmitida” (Goffman, 1995: 12).

Deste modo, para além dos dados obtidos pelo ato da entrevista propriamente dito, o pesquisador pode acessar aspectos característicos do entrevistado, em vista da situação construída — isto é, a da entrevista sobre a avaliação da Capes e a percepção do entrevistado sobre seu próprio desempenho profissional — ao captar as maneiras pelas quais o sujeito de pesquisa se expressa. Isso inclui, para Goffman, a “fachada” do interlocutor. Por fachada, o autor entende “o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua representação” (Goffman, 1995: 29).

Para além dessa definição primeira, cabe distinguir entre tipos de fachada. Todos eles, a nosso ver, são importantes para avaliar de (e com) que tipo de cientistas estamos falando, como eles se veem e como tudo isso pode estar relacionado com as respostas concedidas.

Um dos tipos de fachada, talvez o mais intuitivo a partir da definição inicial que trouxemos à tona, é a fachada pessoal: itens do equipamento expressivo que identificamos com o próprio ator e que o seguem aonde quer que vá.

“Entre as partes da fachada pessoal podemos incluir os distintivos da função ou da categoria, vestuário, sexo, idade e características raciais, altura e aparência, atitude, padrões de linguagem, expressões faciais, gestos corporais e coisas semelhantes” (Goffman, 1995: 29).

Goffman intitula, ainda, cenário um outro tipo de fachada. Trata-se das partes cênicas de equipamento expressivo, isto é, elementos ambientais que compõem a fachada de uma pessoa.

Há mais. Ao longo da interação entre entrevistador e entrevistado, cabe ao primeiro dedicar-se à identificação de comportamentos, maneirismos e ações mais ou menos involuntárias do sujeito de pesquisa — ou, nos termos de Goffman (2010), no autoenvolvimento do sujeito. Trata-se de fatores que podem indicar o desconforto, excitação, tédio e outras reações do interlocutor ao assunto sendo abordado pelo pesquisador. Bocejos e um “olhar perdido”, por exemplo, podem sinalizar a falta de interesse ou atenção do entrevistado para com o entrevistador, que, neste caso, encontrar-se-á na obrigação de adotar táticas específicas para recuperar seu sujeito de pesquisa.

Em suma, o que podemos aproveitar das investigações e quadro conceitual desenvolvidos por Erving Goffman se traduz num rico conjunto de estratégias etnográficas, capazes de nos prover com informações de campo que vão para além das possibilidades circunscritas à realização de entrevistas relativamente formais. Dessa forma, é interessante seguir de perto a sugestão feita por Goffman, a de que as pessoas façam uso do A Representação do Eu na Vida Cotidiana como “uma espécie de manual que descreve detalhadamente uma perspectiva sociológica a partir da qual é possível estudar a vida social, principalmente aquela que é organizada dentro dos limites físicos de um prédio” (Goffman, 1995: 9). Nesse sentido, uma das grandes vantagens provenientes da obra de Goffman para o pesquisador em CTS, em vista do projeto que nos serve de base, é a de possibilitar a captação de orientações políticas e valorativas dos sujeitos de pesquisa, mesmo que, a princípio, esses sujeitos se furtem ao posicionamento explícito.

Por outro lado, em face daquilo que propomos, a princípio não há razão para lançarmos mão de elementos provenientes de obras outras de Goffman, como Estigma e Manicômios, Prisões e Conventos. Expliquemos.

Estigma consiste numa obra que tem por objetivo analisar a interação entre pessoas “normais” e “estigmatizadas”, ou seja, entre indivíduos habilitados a lançar mão de todos os recursos dramatúrgicos de manipulação de identidade e apresentação de si numa determinada situação social e aqueles que estão inabilitados para a “aceitação social plena” (Goffman, 2004: 4).

Encontramos a justificativa para não utilizarmos do Manicômios, Prisões e Conventos, por sua vez, e nas palavras do próprio Goffman, no primeiro parágrafo da introdução de seu livro:

“Urna instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam urna vida fechada e formalmente administrada. As prisões servem como exemplo claro disso, desde que consideremos que o aspecto característico de prisões pode ser encontrado em instituições cujos participantes não se comportaram de forma ilegal. Este livro trata de instituições totais de modo geral e, especificamente, de um exemplo, o de hospitais para doentes mentais. O principal foco refere-se ao mundo do internado, e não ao mundo do pessoal dirigente. O seu interesse fundamental é chegar a urna versão sociológica da estrutura do eu” (Goffman, 1974: 11).

2.3. Garfinkel e a etnometodologia

A exemplo de Goffman, Harold Garfinkel foi um dos sociólogos que rompeu com a tradição estrutural-funcionalista e com o corpus teórico parsoniano, deixando-nos um forte programa de investigação empírica da natureza do raciocínio práticos e das ações práticas do cotidiano. Embora Parsons tenha se esforçado por conciliar estrutura e agência, seu trabalho se caracteriza pela atribuição de uma racionalidade de tipo instrumental ou “científica” aos agentes, que se veem ante uma série de obstáculos condicionais à ação (Parsons, 1991): sua teoria da ação, em certo sentido, poderia ser considerada, antes, como uma teoria das disposições para agir (Heritage, 1999). Esse ponto é explorado extensivamente pela etnometodologia. Quais são as propriedades do conhecimento que as pessoas têm do mundo, como elas empregam esse conhecimento, e como essas propriedades podem ser integradas analiticamente numa teoria da ação mais ampla?

O trabalho de Garfinkel, com efeito, é central para o entendimento de como as pessoas “reconhecem, produzem e reproduzem ações sociais e estruturas sociais” (Heritage, 1999: 323). Servindo-se do trabalho em fenomenologia social de Alfred Schütz, Garfinkel se volta para a investigação empírica das categorias de senso comum que tornam possível a interpretação, pelos agentes, de situações sociais interacionais, bem como o engajamento em relações intersubjetivas compreensíveis em formas “fluidas” e “naturais” e a coordenação de ações, sem perder de vista o caráter processual da ação — ou, em outras palavras, a dureé, este “vir a ser contínuo de qualidades heterogêneas” (Schütz, 1979: 60), fluxo contínuo de experiências no qual estamos todos nós imersos. Garfinkel condensa em um parágrafo o propósito da etnometodologia:

“Os estudos a seguir buscam tratar atividades práticas, circunstâncias práticas e raciocínio sociológico prático como tópicos de estudo empírico e, ao dedicarem às atividades mais comuns do cotidiano a atenção usualmente dispensada a eventos extraordinários, procuram estudá-las como fenômenos em si. A recomendação central desses estudos é a de que as atividades pelas quais os membros produzem e gerenciam situações de afazeres cotidianos organizados são idênticas aos procedimentos empregados pelos membros para tornar essas situações relatáveis. O caráter –reflexivo ou –encarnado de práticas de relato e dos próprios relatos forma o cerne da recomendação. Quando falo de relatável, meus interesses direcionam-se para questões como as seguintes: eu quero dizer observável-e-relatável, ou seja, disponível para os membros como práticas situadas de olhar-e-dizer. Quero dizer, também, que tais práticas consistem em uma realização sem fim, contínua, contingente; que elas são conduzidas e feitas acontecer sob os auspícios dos mesmos afazeres ordinários que, ao organizá-las, as descrevem; que as práticas são realizadas pelas partes daquelas situações, de cuja habilidade, conhecimento e direito ao funcionamento detalhado daquela realização (sua competência) elas obstinadamente dependem, reconhecem, usam e tomam como dados; e o fato de que aceitam sua competência sem questionar em si fornece às partes as características distintivas e específicas de uma situação e, é claro, fornece também recursos, problemas, projetos e todo o resto” (Garfinkel, 2015: 1, grifo nosso).

Subjacente a essas considerações de Garfinkel deita a suposição de que a ordem social não está sujeita à negociação e disputa, dotadas de liberdade constante, como é na obra de Goffman. Para o primeiro, as ações devem ser analisadas não exatamente por meio da interpelação acerca de suas motivações, mas em relação às suas estruturas normativas constitutivas e orientadoras. A necessidade de voltar as lentes de análise a essas estruturas foi constatada pelo autor em diversos experimentos de ruptura da ordem normativa esperada e pressuposta em determinada situação, como, por exemplo, quando pede-se a uma pessoa para explicar o que ela quer dizer com “oi, tudo bem?” (Garfinkel, 2015: 39).

Foram realizados, ainda, experimentos nos quais o processo de construção de concordância compartilhada em relação a determinada situação era truncado e dele subtraído elementos contextuais, que permitiriam definir uma questão substantiva. Um desses experimentos contou com a participação dos próprios alunos do autor. Neste experimento específico, os estudantes foram incumbidos da tarefa de explicar um diálogo entre uma esposa e seu marido. Contudo, a cada vez que entregavam o resultado a Garfinkel, este os acusava de terem sido imprecisos e ambíguos, o que eventualmente os levou reconhecer a tarefa como impossível em função do pedantismo do professor (“o pior cego é o que não quer ver” [Garfinkel, 2015: 30]). Esse conjunto de experimentos levou Garfinkel à conclusão de que:

“Para a conduta de seus afazeres cotidianos, as pessoas tomam como dado que o que é dito será compreendido de acordo com métodos que as partes usam para compreender o que elas estão dizendo em razão do seu caráter claro, consistente, coerente, compreensível ou engenhoso, ou seja, como sujeito a alguma jurisdição de regras – em uma palavra, como racional. “Ver o sentido” do que é dito é estar de acordo com o caráter “de regra” do que foi dito. “Acordo compartilhado” refere-se aos vários métodos sociais para lograr o reconhecimento do membro de que algo foi dito-de-acordo-com-uma-regra, e não conforme um acordo demonstrável sobre questões substantivas. A imagem apropriada de um entendimento comum é, assim, uma operação, mais que a interseção comum de conjuntos que se sobrepõem” (Garfinkel, 2015: 31).

Essas instâncias de aplicação de regras, por sua vez, não são impostas de cima para baixo e nem estão dadas no momento em que se estabelece a situação, mas são elaboradas pelos participantes a cada situação específica que se lhes apresenta e da qual tomam parte. Nesse sentido, não só as situações nas quais uma regra, ou conjunto de normas, podem variar como também o próprio sentido da aplicação de regras pode passar por alterações em função de contingências. Com esse movimento, Garfinkel se furta definitivamente ao determinismo normativo da ação social, identificando as convenções normativas como “recursos [cognitivos] para se estabelecer e manter a inteligibilidade de um campo de ação” (Heritage, 1999: 352). Assim, conforme argumenta John Heritage, em síntese a visão sociológica garfinkeliana:

1) Evita “engessar” a situação da interação social de forma determinante. Com efeito, a situação da ação é encarada como um contexto sujeito a transformações, que exige esforços concretos por parte dos agentes seja para mantê-lo ou alterá-lo;

2) Supõe que “as normas pelas quais as situações e suas ações componentes são reconhecidas devem ser entendidas [...] como recursos [...] ajustados e alterados no curso de sua aplicação a contextos concretos” (1999: 355);

3) Procura explicar as convenções normativas como uma fonte de recursos cognitivos, sem os quais a ação não seria nem inteligível. Nas palavras de Heritage: “A consciência cognitiva das estruturas normativas é presumida quando os participantes sociais tratam a conduta como inteligível e moralmente responsável, quer essa conduta esteja de acordo com as normas ou delas se desvie” (1999: 356).

4) A construção de estruturas e convenções normativas é, a um só tempo, pressuposto, processo e produto da interpretação da atividade social.

As observações a respeito do trabalho de Garfinkel e da etnometodologia são bastante pertinentes para o projeto de pesquisa de que tratamos.

Notamos, na primeira seção deste trabalho, que dois de nossos objetivos específicos consistiam em 1) examinar a percepção de pesquisadores sobre o sistema avaliativo da Capes em relação a seu próprio desempenho e o desempenho de seus pares; e 2) investigar o algoritmo utilizado pela Capes para avaliação, os tipos de dados que ele inclui e exclui, por quais critérios, e os produtos que dele derivam.

Conforme apontam Gibbons e colegas (1994), Ziman (2000), Castelfranchi (2008) e Sismondo (2010), entre outros, existe hoje mais de uma maneira de se entender a ciência, seu funcionamento e as atividades a ela relacionadas. Sem entrar em detalhes, pode-se dizer que a essas maneiras distintas sobre a constituição da atividade científica, via de regra, correspondem éthos também distintos, regentes da produção técnico-científica. Captar a percepção e o entendimento que os entrevistados — cientistas — têm sobre a academia e a Capes, seu papel e as formas em que elas devem funcionar, bem como sua relação com as instituições de que fazem parte, requer que não tomemos suas explicações como verdades dotadas de uma espécie de essência, mas como ações referidas a um contexto específico que só se fazem inteligíveis graças a construtos de senso comum. Nesse sentido, cabe-nos a tarefa de localizar as narrativas dos entrevistados em uma estrutura normativa tácita, ou tomada como dada, a ser exposta por via da linguagem, que permite a classificação da ciência e das atividades a ela relacionadas de uma determinada forma, não necessariamente óbvia ou inexorável. Tal exercício nos dá acesso à noção que nossos entrevistados têm da C&T, da Capes e de seu próprio desempenho profissional.

Por outro lado, a investigação dos produtos que derivam do estabelecimento de determinada configuração algorítmica para a avaliação das atividades científicas demanda, em certa medida, não só a análise documental, mas o exame das atividades científicas em si. Assim, a etnometodologia tem a contribuir em tal empreendimento na medida em que ela não se limita a escrutinar e relacionar aspectos institucionais e características sociais dos sujeitos de pesquisa (renda, raça/cor, classe). Ao contrário e para além disso, ela nos convida à investigação do que faz, ou o que deve fazer, um cientista brasileiro, nos dias de hoje, em áreas de conhecimento diferentes, ante estruturas normativas formais e informais.

2.4. Bourdieu

A sociologia de Pierre Bourdieu, tomada de forma geral, é marcante por apresentar esforços analíticos de base empírica que culminam numa teoria geral das classes sociais. Seu trabalho, a um só tempo, inclina-se à superação do determinismo estrutural e furta-se ao chamado “reducionismo econômico”, conferindo importância analítica a dinâmicas culturais por meio da construção de um modelo de práticas de consumo inscritas numa estrutura relacional (Bourdieu, 2006). Remetendo-se a contribuições de Marx, Weber e Durkheim (Miceli, 2011), o autor dinamiza a relação do agente com outrem, consigo mesmo e com a estrutura social que se lhe apresenta, bem como o sentido que o agente atribui à ação social num espaço social organizado material e culturalmente, atravessado por relações de poder. É deste modo que Bourdieu encara de frente o problema do antagonismo entre agência e estrutura (Alves, 2008). Desnecessário dizer, ante a imagem de que goza o nome do sociólogo, que seus esforços foram bem-sucedidos, tornando-se figura influente em diversas áreas do conhecimento nas ciências humanas.

Ainda sem entrar nos meandros do quadro conceitual que nos é ofertado pelo trabalho de Bourdieu, chama atenção o desenho metodológico das pesquisas desenvolvidas pelo autor. Sem ater-se a um determinado conjunto de técnicas de coleta e tratamento de dados de natureza exclusivamente qualitativa ou quantitativa, Bourdieu lança mão de técnicas etnográficas e estatísticas de pesquisa (Bourdieu, 2006), sem perder de vista campos da linguística e da filosofia (Bourdieu, 1983). Tal postura ante a pesquisa, designado comumente hoje como “triangulação metodológica”, permite-nos o acesso a dimensões distintas do fenômeno de nosso interesse e, por isso, confere maior potência aos nossos esforços interpretativos. Em nosso projeto de pesquisa, buscamos nos posicionar em termos metodológicos de forma correlata à de Bourdieu: por um lado, fazemos uso de entrevistas semiestruturadas, submetendo os dados obtidos por essa via à análise de seu conteúdo e apreendendo, ainda que parcialmente, a visão dos próprios entrevistados sobre si mesmos e o fenômeno que nos interessa — a relação entre a Capes e a ciência brasileira. Por outro lado, através de técnicas quantitativas de pesquisa, procuramos identificar temas emergentes e lacunas na produção científica brasileira, relacionando-os à análise do desempenho de grupos de cientistas no Brasil a partir da cientometria.

A obra de Bourdieu também nos é útil em termos teóricos. Os conceitos construídos pelo autor nos convidam a lutar contra a tendência de “pensar o mundo social de maneira realista, ou, para dizer como Cassirrer, substancialista: é preciso pensar relacionalmente” (Bourdieu apud Scartezini, 2011: 32). Para isso, são centrais ao pensamento do autor os conceitos de campo, habitus . capital.

Por campo, entendemos um espaço estruturado de posições relativamente autônomo, que conta com regras específicas e é atravessado e definido por relações de força entre agentes ou instituições em luta pelo monopólio da violência legítima (Bourdieu, 1983: 89-90). Em outras palavras, essas lutas são travadas em torno da “conservação ou subversão da estrutura da distribuição do capital específico [para determinação da estrutura relacional do campo]” (Bourdieu, 1983: 90).

A noção de capital de Bourdieu deriva de uma longa reflexão que o permite “recuperar a tradição materialista do marxismo na linha epistemológica do positivismo francês” marcado pelo estruturalismo (Miceli, 2011: XXXVI). Sérgio Miceli retoma essa longa discussão na Introdução à edição brasileira de A Economia das Trocas Simbólicas, a fim de expor o conceito de capital bourdieusiano:

“Tudo se passa como se uma determinada formação social estivesse fundada numa divisão social do trabalho cujos agentes, instituições, práticas e produtos circulam no âmbito de um mercado material e de um mercado simbólico que, por sua vez, encontram-se fundamentalmente imbricados [...] Nestes termos, justifica-se a ambição de sua teoria [de Bourdieu] regional dos fatos simbólicos que procura enxerga-los antes de tudo no próprio processo através do qual se constitui a divisão do trabalho simbólico, cujos aparelhos, agentes, produtos e representações correspondem aos diversos domínios da realidade em vias de autonomização [...] No curso de um processo complexo de divisão do trabalho, chega-se à separação final entre mercado material e mercado simbólico, entre trabalho material e trabalho simbólico, entre empresa de bens econômicos e empresa de bens simbólicos, entre lucro econômico e lucro simbólico, entre empresário econômico e empresário de bens de salvação, entre capital econômico e capital simbólico, e assim por diante, fazendo-se presente em todo o aparato conceitual que dá conta da organização interna do campo simbólico” (2011: XXXVII-XXXVIII).

Portanto, na medida em que cada campo específico é dotado de suas próprias regras de “jogo”, é compreensível que haja tipos de capital específicos que comandam “as propriedades através das quais se estabelece a relação entre a classe e a prática” (Bourdieu, 2006: 106), isto é, que permitem a participação em tal jogo. Assim, dirá Bourdieu,

“[...] sendo capital uma relação social, ou seja, uma energia social que existe e produz seus efeitos apenas no campo em que ela se produz e se reproduz, cada uma das propriedades associadas à classe recebe seu valor e sua eficácia das leis específicas de cada campo: na prática, ou seja, em um campo particular, nem sempre todas as propriedades incorporadas (disposições) ou objetivadas (bens econômicos ou culturais), associadas aos agentes, são eficientes simultaneamente; a lógica específica de cada campo determina aquelas que têm cotação neste mercado, sendo pertinentes e eficientes no jogo considerado, além de funcionarem, na relação com este campo, como capital específico e, por conseguinte, como fator explicativo das práticas” (2006: 107).

Com base nessas considerações, Bourdieu constrói um modelo de espaço social cuja constituição depende do volume e estrutura do capital, distribuído em três dimensões básicas: capital econômico, cultural e social. Finalmente, cabe destacar que a noção de capital pode ser desmembrada entre capital objetivado (propriedades) e incorporado (habitus).

O conceito de habitus traduz a ideia de uma estrutura estruturada estruturante que advém, por um lado, das condições materiais de existência de determinado sujeito integrante de determinado grupo social e, de outro, da posição deste agente na estrutura das condições de existência (sistema de disposições que orientam a ação social). Conforme Bourdieu, “o habitus é estrutura estruturante porque organiza práticas e percepções; e é estrutura estruturada por ser produto da incorporação da divisão em classes sociais” (2006: 164). Habitus diferentes implicam em: a) sistemas de esquemas geradores de práticas e obras; e b) sistemas de percepção e apreciação (gostos) diferentes. Estes, por sua vez, dão ensejo a práticas e obras classificáveis objetivamente, que estão associadas a estilos de vida distintos. 2.

Nesse sentido, então, não nos parece interessante investigar e analisar a percepção que cientistas têm de si mesmos, a forma que enxergam as avaliações da Capes e suas atividades em termos estatísticos como entidades como que ontologicamente distintas e isoladas entre si. Bourdieu nos chama a atenção para a necessidade de se apreender a lógica do campo científico, as lutas que o atravessam e os tipos de capital específico que permitem que certos agentes ali ocupem uma posição dominante. Ao contrário dos que poderíamos deduzir a partir da estrutura normativa-funcional de Merton sobre a ciência, vale a pena pensar o mundo científico, por exemplo, como “palco de uma concorrência [...] orientada pela busca de lucros específicos [...] e assumida em nome de interesses específicos” (Bourdieu, 1983: 17). 3. No caso de nosso projeto, destaca-se a competição entre agentes acadêmicos (pessoas ou departamentos) pela maior eficiência produtiva de seus programas – isto é, da conversão de insumos em produtos, através da melhor prática, em vista da minimização dos custos de produção – que desemboca, atualmente, em maior afluência de recursos proveniente do Governo Federal e prestígio entre pares.

Seria possível, ainda, desnaturalizar o sucesso acadêmico, que comumente é atribuído de forma pouco problemática ao “brilhantismo” ou à “competência” individual, relacionando-o a um conjunto mais ou menos homogêneo de necessidades e facilidades consideradas legítimas e características de determinada classe (ou fração de classe). Ao considerarmos a maneira pela qual as disposições do habitus se especificam legitimamente para o campo da prática científica brasileira de hoje, abrimos brecha para uma compreensão mais sofisticada das razões pelas quais alguns pesquisadores cultivam uma percepção positiva ou negativa em relação às avaliações da Capes, dedicam-se mais ou menos à pesquisa, ao ensino ou à extensão, tornam-se bolsistas CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) ou são afastados da pós-graduação, e assim por diante.

2.5. Elias e a sociologia processual

Norbert Elias entende a sociologia como a disciplina dedicada ao estudo dos problemas da sociedade, mas não a “sociedade reificada”, isolada e oposta a nós, pessoas, mas da sociedade “inteiramente formada por indivíduos” (Elias, 2008: 13). Com essa afirmação, apresentada na Introdução de seu livro Introdução à Sociologia, Elias manifesta o propósito principal de seu trabalho: fornecer categorias de pensamento necessárias à apreensão da vida social, em suas várias dimensões, capazes de superar o antagonismo analítico entre sujeito e estrutura social, que marca historicamente a sociologia.

Para Elias, um problema fundamental na sociologia, que deve ser superado a fim de prover insumos para delineamentos teóricos capazes de superar a dicotomia “indivíduo-sociedade”, diz respeito às bases epistemológicas sobre as quais se assentam alguns campos das Ciências Sociais.

Em uma palavra, essas bases epistemológicas, bem como os conceitos delas advindos, provêm das Ciências Naturais. Por questões históricas, nas quais não nos delongaremos, convencionou-se por (sobre)valorizar enunciados científicos que tomam a forma de “leis” em função de seu caráter imutável, ou, para todos os fins práticos, aparentemente imutável (Elias, 2008). Essa forma de ver e analisar objetos da ciência, quando transpostos para a sociologia, faz com que fenômenos intrinsicamente processuais sejam interpretados como se fossem imutáveis e estáticos. A consequência disso, argumenta Elias, é inescapável, e se traduz em sistemas conceituais que “nos afastam de um contato mais íntimo entre teoria e prática” (Elias, 2008: 128). De acordo com Elias, a resolução do problema “indivíduo” versus “sociedade” é impossível na medida em que se toma esses conceitos não só como estáticos, mas como autônomos e isolados; seria preciso, então, que a sociologia se dedicasse à tarefa de elaborar conceitos capazes de captar “o caráter processual das sociedades como estrutura de referência para investigação” (Elias, 2008: 126):

“Chegaremos a uma melhor compreensão das matérias-primas com que lida a sociologia se não nos abstrairmos do seu movimento e do seu caráter processual e utilizarmos conceitos que captem a natureza processual das sociedades em todos os seus diferentes aspectos [...] Por outras palavras, formas atuais de análise sociológica tornam possível a separação de coisas inter-relacionadas em componentes individuais – “variáveis” ou “fatores” – sem que haja qualquer necessidade de considerar como aspectos tão separados e isolados de um contexto compreensivo se relacionam entre si [...] O tipo especial de ordem associado aos processos de interpenetração social é melhor considerado se começarmos pelas conexões, pelas relações, e trabalharmos a partir delas para os elementos nelas envolvidos” (Elias, 2008: 126).

É com base nessa discussão que Elias defende a concepção de indivíduos orientados uns para os outros e unidos uns aos outros de muitas maneiras. De certa maneira, a proposta conceitual do autor está na esteira de cientistas sociais cujas investigações e trabalhos baseiam-se na ideia da sociedade organizada em rede (Barreto et al., 2009): “cidades e aldeias, universidades e fábricas, estados e classes, famílias e grupos operacionais, todos eles constituem uma rede de indivíduos. Cada um de nós pertence a esses indivíduos” (Elias, 2008: 16). Nesse sentido, Elias define o conceito de indivíduo como sendo a pessoa que se automodifica, que está em constante movimento. “Uma pessoa é um processo” (Elias, 2008: 129). Um indivíduo, partindo desta perspectiva, deve ser entendido como “pessoas interdependentes” (Elias, 2008: 136). O conceito de “sociedade” pode ser derivado, então, do conceito de indivíduo: uma sociedade consistiria num conjunto de “pessoas interdependentes no plural”, ou, adicionaríamos, como uma “rede de redes”.

O sociólogo alemão demonstra que, longe de uma inexorabilidade da Natureza, a forma em que comumente entende-se o indivíduo, a sociedade e a relação entre os dois conceitos, é fruto de um processo social no sentido da maior integração e interdependência da humanidade que tende à acentuação da chamada “identidade-eu” (caracterizada, hoje, como o indivíduo autônomo, autorealizado e diferente de todos os demais), em detrimento à “identidade-nós” (em que a noção de sujeito e pessoa é associada à coletividade da qual pertence), como fora em outros momentos (Elias, 1994). Para o autor, dado o caráter tipicamente mutável das sociedades humanas, portanto, faz-se necessária uma abordagem histórico-sociológica de fenômenos sociais para que possamos apreender, de forma menos reducionista, fenômenos sociais. Evidentemente, no bojo das elaborações teórico-metodológicas de cunho sociológico-histórico de Elias, nesse sentido, toma lugar de centralidade o conceito de processo social.

“O conceito de processo social refere-se às transformações amplas, contínuas, de longa duração – ou seja, em geral não aquém de três gerações – de figuraçõesformadas por seres humanos, ou de seus aspectos, em uma de duas direções opostas. Uma delas tem, geralmente, o caráter de ascensão, a outra um caráter de um declínio. Em ambos os casos, os critérios são puramente objetivos [...] Logo, é inerente às peculiaridades dos processos sociais que eles sejam bipolares [...] Os instrumentos conceituais para a determinação e a investigação de processos sociais são pares conceituais como integração e desintegração, engajamento e distanciamento, civilização e descivilização, ascensão e declínio. Pares conceituais desses tipos indicam a direção dos processos sociais” (Elias, 2006: 27-28).

Por figuração, Elias entende “a forma determinada que assume o convívio de seres humanos” (2008: 26), não sendo fixas. Isso implica em conceber as sociedades humanas como algo mais que um aglomerado de pessoas, e em supor, junto com Simmel (2006), que, mesmo na “desintegração” e na guerra, o fluxo da vida só pode se dar por formas específicas de relação social. Nas palavras de Elias,

“Seres humanos singulares vivem uns com os outros em figurações determinadas. Os seres humanos singulares se transformam. As figurações que eles formam uns com os outros também se transformam. Mas as transformações dos seres humanos singulares, e as transformações das figurações que eles formam uns com os outros, apesar de inseparáveis e entrelaçadas entre si, são transformações em planos diferentes e de tipo diferente” (2006: 26-27).

Conforme demonstra Elias (2000) em seu estudo da comunidade de Winston Parva, figurações são constituídas por meio de balanços específicos de poder, transformando-se ao longo tempo em consonância com o desenvolvimento de determinado processo social.

Para o caso da execução de nosso projeto, convém notar que, talvez, a maior contribuição de Elias consista no seu conceito de processo social, de modo que possamos enquadrar a atual figuração da academia no momento sócio-histórico atual, sem perder de vista que ela consiste no que as pessoas sentem, pensam e fazem cotidianamente. Com base na literatura especializada em Sociologia da Ciência, temos elementos que nos permitem pensar que as atividades científicas, desde os séculos XVIII e XIX, acompanham o processo de integração da humanidade acusado por Elias. Isso faz com que, cada vez mais, a academia funcione em congruência com outras esferas da vida, como a economia e a política, estando sujeitas, por outro lado, à “prestação de contas” em relação à sociedade civil.

Por exemplo, podemos citar o trabalho de Galison et al. (1992), que identifica nos anos 1940 a emergência de uma representação da “ciência pura”, dedicada, por vezes, a projetos grandiosos, financiada generosamente pelo Estado, assumindo um papel central ao longo da Guerra Fria, e às voltas com novas políticas científicas e tecnológicas. Suas características viriam, posteriormente, a ser alocadas sob o conceito de “Modo 1” de produção do conhecimento (como fazem, por exemplo, Gibbons et al., 1994).

Para Michael Gibbons e colegas, no final do século XX o trabalho científico e tecnológico passou por mudanças relativamente profundas, desembocando em “um novo éthos para pesquisa e novos critérios epistemológicos para avaliar a qualidade do conhecimento produzido” (Castelfranchi, 2008: 78). O modelo analítico proposto pelos autores, nomeado “Modo 2”, é sintetizado da seguinte forma:

“Nossa visão é que, embora o Modo 2 não esteja substituindo o Modo 1, o Modo 2 é diferente do Modo 1 – em quase todos os aspectos. O novo modo opera dentro de um contexto de aplicação, de modo que problemas não são estabelecidos a partir de um enquadramento disciplinar. Ele é antes transdisciplinar do que mono ou multidisciplinar. É levado a cabo por formas organizacionais transitórias, heterogêneas e não hierárquicas. Ele não está sendo institucionalizado preeminentemente nas fronteiras universitárias. O Modo 2 envolve a interação aproximada entre muitos atores ao longo do processo de produção do conhecimento, e isso significa que a produção de conhecimento está se tornando mais responsiva socialmente. Uma consequência dessas mudanças é que o Modo 2 faz um uso mais abrangente de critérios no julgamento do controle de qualidade. De modo geral, o processo de produção do conhecimento está se tornando mais reflexivo, e afeta nos níveis mais profundos o que deve ser considerado uma ‘boa ciência’” (Gibbons, 1994: vii).

Contudo, Etzkowitz e Leydesdorff apontam que, desde o século XIX, nos EUA, cientistas buscavam construir uma narrativa de “ciência pura”, a fim de se livrar de influência demasiada proveniente de industriais, e defendem que

“O tão chamado Modo 2 não é novo; trata-se do formato original da ciência antes de sua institucionalização acadêmica no século XIX. Uma outra questão que deve ser respondida é por que o Modo 1 emergiu depois do Modo 2: a base organizacional e institucional original da ciência, consistindo em redes e faculdades invisíveis. De onde essas ideias, de um cientista como um indivíduo isolado, e da ciência separada dos interesses da sociedade, vieram? O Modo 2 representa a base material da ciência, como ela de fato opera. O Modo 1 é um construto, elaborado com o fim de justificar a autonomia da ciência, especialmente nos tempos em que ela ainda era uma instituição frágil, buscando toda ajuda que pudesse conseguir (Etzkowitz y Leydesdorff, 2000: 116).

Em resumo, o desenvolvimento do projeto que apresentamos neste trabalho suporia não somente os esforços para coleta de dados a partir de cientistas e da estatística – coisa que, nos termos de Elias, reforçaria a distinção estática e reificada entre indivíduo e sociedade – mas também o exercício de apreender o processo social de integração das atividades cientificas a âmbitos não acadêmicos. Processo este que, em vista da discussão elaborada até aqui, não é autônomo, mas dependente diretamente de redes interdependentes (indivíduos) e das formações de alto nível de integração a que essas redes articuladas dão ensejo (a que chamamos de Estados, capitalismo, Universidade e assim por diante).

Comentários finais

A sociologia do conhecimento, da ciência e da tecnologia e os chamados estudos CTS emergem e se desenvolvem ao longo do século XX, sendo indissociáveis dos avanços teóricos alavancados pelos sociólogos de que tratamos ao longo deste artigo. Dos diálogos entre as obras de Parsons e Merton que nos conduzem à avaliação de sistemas de inovação em vigor, passamos à consideração da importância de se levar em conta processos microssociológicos de investigação com Goffman e o interacionismo simbólico, atravessando a etnometodologia, da qual Bruno Latour, Michel Callon e a corrente de estudos conhecida como “Teoria do Ator-Rede” são profundamente tributários. Vimos, ainda, com Bourdieu e Elias, que os chamados comumente “fatores estruturais”, dos quais dependem o funcionamento contemporâneos de sistemas de ciência, tecnologia e inovação, encontram-se encarnados em coletivos de pessoas engajadas em relações de forças, em meio a seus afetos, trajetórias e genealogia. Enfim, o desenvolvimento do projeto que apresentamos reforça o caráter transdisciplinar dos CTS, cuja completude faz-se possível por meio da articulação entre perspectivas teóricas distintas, sem vinculação a escolas que sejam, e supondo, sobretudo, a importância da triangulação metodológica como meio de conferir maior objetividade aos fenômenos estudados. Contudo, limitamo-nos a caracterizar as maneiras pelas quais poucos autores puderam construir seu pensamento, pontuando em que medida poder-se-ia utilizar funcionamentos epistêmicos distintos em um fim comum. Nesse sentido, cabe a dedicação ao aprofundamento nos estudos de clássicos da Sociologia, bem como de seus fundamentos epistemológicos, no sentido de se evitar percalços teórico-metodológicos e fomentar a solução de problemas colocados aos CTS na contemporaneidade — dentre eles, a percepção cada vez mais clara da ameaça de catástrofes de larga escala, de exposição a riscos e da situação de incerteza referente às possíveis soluções e criações tecnocientíficas para os desafios atuais, a transformação da autoridade inspirada pela ciência e pela expertise (Collins e Evans, 2016) e, em geral, a transformação que perpassa também as normas orientadoras da atividade acadêmica, num momento em que verdade e lucro, objetividade e política estão cada vez mais confortáveis num mesmo terreno compartilhado.

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Notas

1. Uma definição mais precisa de “algoritmo” nos é concedida por Lucas Introna: “um algoritmo [...] consiste no conjunto de instruções utilizadas para resolver um problema bem definido. [...] Algoritmos expressam a solução computacional em termos de condições lógicas (conhecimento sobre o problema) e estruturas de controle (estratégias para a resolução do problema), o que nos leva à seguinte definição: algoritmos = lógica + controle” (2015:5. Grifo meu). Por definição, portanto, a mediação algorítmica de determinada prática social nos coloca algumas questões sobre o que sabemos em relação a determinado problema que se nos apresenta e de que maneira desejamos resolvê-lo, embutindo, por exemplo, relações de poder (Gillespie, 2014).
2. A definição de “estilo de vida” consiste no seguinte: sistema de práticas classificadas e de sinais distintivos (gostos) que determinam a classe e se distribuem a partir de séries de oposições (por exemplo, “forma x substância”, “práticas dispendiosas x não dispendiosas”, “roupas chiques x roupas vulgares” e assim por diante). Nas palavras de Bourdieu, um estilo de vida é um “conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos (móveis, roupas, linguagem, maneirismos) a mesma intenção expressiva” (Bourdieu, 2006: 165). Sua origem reside no gosto.
3. Em texto clássico na sociologia da ciência, Robert Merton (1973) sugeriu quatro normas básicas que regeriam a ciência. Em síntese, são elas: 1) Comunalismo.Segundo essa norma, avanços obtidos por cientistas deveriam ser compartilhados com toda a comunidade científica, a fim de serem testados, criticados e eventualmente falseados; 2) Universalismo. A ciência não dependeria de atributos específicos daqueles que a ela se dedicam, seja gênero, cultura ou preferência política; y 3) Desinteresse. A observância dessa norma implica na busca, pelos cientistas, do conhecimento em si, o que leva ao reconhecimento acadêmico; e 4) Ceticismo Organizado. Com isso, Merton sugere que uma teoria, um resultado de experimento, só passa a fazer parte do corpus de conhecimento a partir do momento em que tenha sido avaliado, testado e criticado. Trata-se de rejeitar qualquer sorte de dogmatismo.


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