Resumo: O presente artigo tem como escopo, a partir da ligação entre os processos de internacionalização do direito, de constituição de uma sociedade civil mundial e de uma cidadania comum, determinar a construção de uma (ciber)democracia comum-mundial. Para tanto, compõe essa possibilidade tendo como ponto de partida o surgimento do comum enquanto subjetividade cooperativa e solidária, fundamentada na garantia e concretização dos direitos humanos e fundamentais enquanto direitos da humanidade.
Palavras-chave:Internacionalização do DireitoInternacionalização do Direito, Cidadania Comum Cidadania Comum, Sociedade Civil Mundial Sociedade Civil Mundial, Ciberdemocracia Comum-Mundial Ciberdemocracia Comum-Mundial.
Abstract: This article aims to determine the construction of a common world (cyber) democracy from the link between the processes of internationalization of law, the formation of a global civil society, and a common citizenship. Therefore, we made up this possibility taking as a starting point the emergence of common as cooperative and supportive subjectivity, based on the guarantee and realization of human and fundamental rights as rights of mankind.
Keywords: Internationalization of Law, Common Citizenship, Global Civil Society, Common World Cyberdemocracy.
Possibilidades e desafios para uma (Ciber)democracia mundial
OPPORTUNITIES AND CHALLENGES FOR WORLD (CYBER)DEMOCRACY
Recepção: 21 Janeiro 2016
Aprovação: 29 Novembro 2016
O direito na contemporaneidade passa pelas alterações que marcam esse tempo, o movimento da globalização que desloca tempos e dissolve espaços, a neoliberalização dos processos de produção de sentidos e subjetividades, a banalização do humano em suas relações. Nesse compasso, transformam-se ou até mesmo desfazem-se instituições clássicas, bem como, transmutam-se algumas dessas instituições em direção a uma nova operacionalidade e estrutura.
O direito, ademais, de passar por processos de globalização e mundialização, passa sobremodo por um fenômeno tratado por internacionalização do direito. O fenômeno de internacionalização do direito se dá em pontos de abertura e contato entre as instituições e normatividades clássico-modernas e novas possibilidades de fontes do direito e locais de aplicação desse direito. O monopólio estatal na produção do direito, o protagonismo estatal no sentido de dizer o que é direito ou não, e sua autossuficiência na construção do arcabouço jurídico válido, foram rompidos num ambiente que ganhou novos atores, novos locais de produção do direito e novos locais de aplicação do direito que devem ter por mirada a concretização e garantia dos direitos humanos fundamentais em perspectiva mundial/global (Parte 1).
Nesse caminho, a sociedade contemporânea também passa por rupturas e reorganizações que lhe dão uma nova configuração, num arranjo mundializado de relações humanas. Nesse contexto, torna-se necessário para o direito e para a política repensar a percepção das estruturas sociais que os atingem, sendo necessário constituir-se uma nova concepção de sociedade civil que abarque essas teias de relações que transbordam os limites culturais e sociais ligados ao Estado. Por quanto, se percebe a possibilidade de uma sociedade civil mundial que dá vida ao constructo de uma cidadania comum. Afinal, nos termos dessa mundialização das sociabilidades e abertura dos limites estatais, a cidadania e as ações cidadãs ganham nova amplitude e alcance em torno ao comum-mundial (Parte 2).
E o que se pretende a partir dessa construção teórica proposta é vislumbrar um regime democrático comum-mundial, possibilitado pelo que pode ser uma efetiva (ciber)democracia. Nesse plano, a sociedade civil mundial reorganizada e a cidadania comum conforma(ria)m uma (ciber)democracia comum-mundial pensada a partir e para uma sociabilidade diferente e diferenciada que se perfaz cidadã em âmbito mundial e configura uma democracia comum-mundial de garantia e concretização dos direitos humanos fundamentais (Parte 3).
O direito na contemporaneidade se vê colocado frente a uma série de processos de extrema complexidade, que ao mesmo tempo em que o alça a lugar de destaque, também o desloca rumo a uma sensação, muitas vezes, de angustia e impotência em meio às novas estruturações vividas pela sociedade e pelo Estado. Os desarranjos provocados pelos movimentos de internacionalização – do direito –, globalização – do(s) mercado(s) – e mundialização das práticas sociais desassossegam os sistemas jurídicos numa zona de desafios a serem superados.
A partir de novos parâmetros de organização social, gestados nesse caldo de mudanças provocado por acontecimentos que marcam a rearticulação do mundo em novas estruturas, a sociedade como concebida modernamente, presa aos delineamentos territoriais de determinado Estado-Nação, se encontra borrada por uma intensificação dos contatos e inter-relações humanas.
Porquanto, o direito, nesse caminho, sem dúvida passa por variados processos, dos quais nos ocupamos de apenas um nesse texto: o processo de internacionalização do direito. Este tem um escopo propriamente jurídico de construção de novas fontes – de direito –, de novas práticas jurídicas e de novos mecanismos judiciais de tratamento do jurídico-social. Mas, também tem um viés sociológico que proporciona novas organizações sociais, uma nova concepção de cidadania, de sociedade civil, de Estado, de política etc.
Nesse ponto, o que se deve ter presente é que no que tange à internacionalização do direito, não se está a falar de um processo de padronização e homogeneização – autoritária – de práticas jurídicas, mas sim, de um caminho de interligação e comunicação entre sistemas e fontes de direito. Pretende-se com esses diálogos o condicionamento de uma ordem jurídica comum ordenada por princípios de humanidade e pela busca por práticas de proteção e concretização dos direitos humanos em toda a sua extensão e amplitude (DELMAS-MARTY, 2004).
A multiplicidade de fontes jurídicas, de locus de poder institucionais ou não, públicos ou não, o ruir de marcos normativos – os já existentes – ou a ausência de marcos no que tange a novas questões, exigem sim um Estado orientado pela multiplicidade e pela pluralidade. Pela multiplicidade de locais de fala tanto normativa quanto para-normativa, e a pluralidade de atores e de projetos de vida assentados em direitos/desejos humano-existenciais (DELMAS-MARTY, 2004). Sem dúvida, essa abertura ao diálogo deve, ainda, vir marcada pela participação do Estado – mesmo que rearticulado –, como participante importante em uma arena de luta por direitos humanos fundamentais, que ainda contemporaneamente ligam-se às zonas jurídicas estatais, mesmo que atravessadas por outras fontes jurídicas para além do Estado – e do(s) direito(s) (PÉREZ-LUÑO, 2004).
Nota-se uma clara relativização de postulados-chave para a produção jurídico-normativa na modernidade. As modificações que perturbam a modalidade estatal moderna desmantelam três “princípios” orientadores da produção normativa dessas épocas. O Estado não tem mais a suprema autoridade na produção legislativa, ou seja, não é o poder estatal que determina a validade ou não de determinada norma, assim como o Estado deixou de deter o monopólio sobre a criação normativa, dividindo espaço com agências supraestatais, internacionais, de fomento econômico, entre tantas outras, e, em decorrência disso, perdeu sua autossuficiência na determinação do que se pode ter por normas jurídicas ou não, isto é, não é mais exclusivamente o poder estatal que determina o que é jurídico (PÉREZ-LUÑO, 2011).
Nesse viés, há um movimento de internacionalização do direito a partir dessa efervescência de ordens normativas múltiplas que passam a se entrelaçar num emaranhado normativo que extrapola os limites delimitados pelo Estado e pela Constituição em seu âmbito interno. Esse processo de internacionalização movimenta a normatividade estatal para além dela mesma, combinando-a com essas diversas novas fontes que podem tanto estar inseridas no contexto estatal, quanto transbordadas para fora do Estado, seja em âmbito regional, global, local etc. (BOLZAN DE MORAIS; SALDANHA; VIEIRA, 2013).
Nesse ritmo de complementação recíproca entre espaços jurídicos estatais e não estatais, o caminho é de entrecruzamento, é de mão dupla, tanto da juridicidade estatal se internacionalizando e sofrendo os influxos de juridicidades supraestatais/transnacionais, quanto em relação às diversas ordens jurídico-normativas internacionais e regionais que são chamadas ao ambiente jurídico antes habitado apenas por ordens constitucionais diversas e incomunicáveis (SALDANHA, 2012). Isto quer dizer que a construção de uma ambientalidade comum-mundial (cosmopolita), no que tange a essas múltiplas ordens normativas que se proliferam na contemporaneidade, surge além das, mas com as constitucionalidades-estatais. O novo arranjo comum-mundial é condição de possibilidade para o agir democrático-plural do cidadão nessa nova esfera mundial/universal de construção da normatividade (BOLZAN DE MORAIS; SALDANHA; VIEIRA, 2013).
Nos dizeres de Pérez-Luño (2011) esse novo arranjo da(s) normatividade(s) se dá como o que se pode chamar de transbordamento das fontes. Fenômeno que ocorre num ambiente de interlegalidade que articula e entrecruza sistemas jurídicos diversos e níveis sistemáticos, tanto de produção, quanto de prática do direito, também diversos. Essa diversidade e multiplicidade de locus de produção e aplicação do direito deriva do deslocamento do sistema jurídico-normativo unitário-hierárquico da modernidade, para o pluralismo de fontes normativas contemporâneas.
No entanto, essa pluralidade de fontes normativas e ambientes de aplicação normativa deve seguir como guia um constructo feito com base em valores, direitos e garantias universais do ser humano. Deve-se mirar à frente, na capacidade de que essas múltiplas fontes de direito e esses diversos locais de aplicação do direito vislumbrem sempre a garantia e a concretização dos direitos humanos fundamentais, na perspectiva de construir uma normatividade comum-mundial múltipla, mas ordenada (PÉREZ-LUÑO, 2011)1.
Nesse caminho, claramente há que se ordenar o pluralismo – de fontes – sob um ponto comum de observação e práticas que consubstanciem uma nova ordem jurídica internacionalizada, mas construída compartilhadamente, e não impositivamente. Essa ordenação do pluralismo deve ter como ponto comum os direitos humanos, vistos nesse momento como direitos da humanidade. Desse modo, há – ou pode haver – um local de compatibilização entre os processos de internacionalização, mundialização e globalização, sem que haja preponderância do econômico numa perspectiva planetária de imposições e desvirtuamentos (DELMAS-MARTY, 2004)2.
Vislumbram-se, assim, os direitos humanos como um fundamento ético-moral transcendente à positividade normativista desse ou daquele direito, bem como, desse ou daquele ordenamento, ou de qualquer fonte jurídico-normativa – positiva ou não. Os direitos humanos são a luz guia desse novo caminho comum-mundial traçado a partir do contato entre sistemas de Direito e de direitos, e do diálogo intercultural, interjurisdicional e interconstitucional, internormativo etc. (BRAGATO, 2010)3. Busca-se estabelecer uma ordem normativa plural-humanitária como caminho e fonte de um diálogo construtivo de uma racionalidade prático-legal intersubjetivamente possível, nas pegadas de uma visão comum-universal atrelada à positividade transcendente dos direitos humanos como locus de sustentação dos sistemas jurídicos mundiais-planetários num horizonte de garantia do homem e de sua humanidade (BOLZAN DE MORAIS; SALDANHA; VIEIRA, 2013).
Nessa lógica, o processo de internacionalização do(s) direito(s) deve vir abarcado em um movimento integrador das sistemáticas jurídicas internas – nacionais – e externas – internacionais –, bem como um diálogo integrativo entre os sistemas jurídicos – aqui vistos como famílias jurídicas, civil law e commmon law – diferentes num âmbito de “diferença cultural4” e diálogo de tradições – jurídico-sociais – por meio de um sentido comum de tradução das práticas jurídicas no interior de diferentes sociabilidades (SALDANHA, 2012).
É por esse liame criado pela sobreposição dos direitos humanos fundamentais nesse quadro de internacionalização e abertura das fontes e dos locais de aplicação do direito que o Estado se mantém como ator importante. Embora, modificado na sua operacionalidade, estrutura e funções, se mantém presente como ator, garante maior, dessa articulação em torno aos direitos humanos e às humanidades cidadãs pertencentes a essa nova ordem mundial(izada).
Nesse caminhar, mesmo mantendo-se na condição de importante ator nesse novo palco, o Estado-legislador passa por perturbações enquanto produtor e aplicador da normatividade jurídica – produzida estatalmente ou não. O processo de internacionalização gera uma disputa permanente entre as normas estabelecidas interna ou internacionalmente, num ambiente que é de interligação, mas também, de conflitos. A norma jurídica, que segue sim derivando do “povo soberano”, ou seja, ligada ao Estado, também deve atentar-se a variáveis externas à estatalidade, como as do capitalismo financeiro, devendo, assim, compatibilizar-se com normatividades de outros Estados e, até mesmo, paraestatais. Ainda, importante se torna o diálogo com as normas internacionais, geradas no âmago de organizações como a Organização Mundial do Comércio, a Organização Mundial da Saúde, etc. (DEFARGES, 1997).
Desse modo, mostra-se claro que tem-se um contexto de acontecimentos ininterruptos e contínuos que retiram do Estado e do Direito a sua condição moderna de centralidade econômica, política e social. Os processos implicados pela internacionalização do direito fazem dialogar diversas fontes normativas, conectarem-se o velho e o novo, permitem o acontecimento de uma normatividade comum e mundial que se construa, dialogadamente, com os Estados e para além deles.
É necessário que se torne esse processo ordenado e acalentado pela proteção e concretização dos direitos humanos enquanto direitos da humanidade. Os direitos humanos fundamentais é que devem dar o substrato dessa nova forma plural, mundial e comum de normatividade, estendendo os conteúdos garantidos pelos Estados via constitucionalismo a uma zona mundializada de compartilhamento. Nesse momento, se reorganiza o Estado, e, nesse sentido, necessário se torna (re)pensar uma sociedade civil mundial que suporte uma cidadania comum, o que irá – poderá – possibilitar a constituição de uma ordem democrática comum-mundial.
Nesse passo, esse cenário de modificações no Estado, no direito, na ordem internacional, não foge ao espaço social. A(s) sociedade(s) também sofrem mudanças, se rearticulam e reorganizam em torno de outras formas sociais. A sociabilidade passa pelos influxos da globalização, da mundialização e da internacionalização, seja nos espaços institucionais da política e do direito, seja nos espaços “especificamente sociais” comunitários, ou seja, nos ambientes de convívio social.
Por tal, as formas clássicas de sociedade civil e de cidadania devem ser revistas no bojo dessas alterações produzidas pela acomodação político-jurídico-social contemporânea. A sociedade civil não é mais organizada em torno de um povo definido – ou, pelo menos, bem definido – territorialmente e culturalmente, bem como a cidadania não liga-se mais somente a um determinado elemento estatal, mas sim, com o aumento do fluxo de pessoas, o “homem” é cidadão para além de sua pátria.
Como ficou demarcado no capítulo anterior, se a nova ordem normativa comum e mundial deve vir assentada num “ideal” de proteção e concretização dos direitos humanos fundamentais que ainda ligam cidadão e Estado nesse novo liame de atores e estruturas, torna-se claro que a cidadania deve transbordar as margens do ente estatal, tornando “seus cidadãos” com ele e para além dele. Também deve-se ter claro que se passa a ter problemas que condicionam a sociedade como um todo, que escapam aos domínios do Estado – de um único Estado –, pois são questões mundia(lizadas)is que se colocam, como por exemplo: meio ambiente, saúde, fundamentalidade de direitos, dignidade da pessoa humana etc.
Os entrelaçamentos normativos delineados na primeira parte deste trabalho, e que entrelaçam um novo modelo de fontes e locais de aplicação do direito, pelo movimento de internacionalização do direito, não fica restrito a essa área; provoca, também, entrelaçamentos humanos, onde cidadãos de diferentes países passam a conviver e ter interesses em comum. Sem dúvida, a emergência de novos parâmetros comunicacionais e informacionais, a partir do desenvolvimento tecnológico e da formação do que se pode chamar de uma sociedade neotecnológica, impulsionada sobremodo pelo poder da informática e internet, é um componente importante, porém dual, nesse momento de transformações.
A cidadania, hodiernamente, não pode mais ser apenas um conceito político-jurídico atrelado ao Estado-Nação, haja vista a zona de intercomunicação e “pertencimento total” possibilitada – imposta – pelas novas tecnologias da comunicação e da informação. O cidadão contemporâneo é um “cidadão total”, no sentido de que não manifesta – ou, pelo menos, está apto a manifestar – a sua cidadania no que tange ao seu raio de ação comunitário. A interligação da comunicação torna-se (muitas vezes) interligação humana e resulta em uma esfera de participação que extrapola os limites clássicos do Estado, da democracia e da cidadania (ROSA, 2010).
A abertura das redes de comunicação telemáticas capitaneada pela internet abre um sem fim de possibilidades de contato pessoal, social e até mesmo político. Quando os cidadãos colocam-se nesse “emaranhado digital” de possibilidades, abre-se uma capacidade de comunicação que extravasa as relações pessoais, em direção a relações sociais e políticas que formam uma nova percepção do que seja a sociedade (civil) (ZOLO, 2010). Parece viável pensar em outro contrato social que envolva, para além do Estado, organizações internacionais, multilaterais e os atores econômicos transnacionais, que abarque as complexidades sociais através da participação das “coletividades internas de cada país”, marcadas em grupos representativos, nos movimentos sociais e na ação do próprio indivíduo enquanto cidadão (IANNI, 2005).
Os “conceitos” de sociedade civil (mundial) e cidadania (comum) se interconectam e possibilitam um ao outro tomar forma e ganhar existência. A sociedade civil mundial aparece conectada à noção de que as reformas jurídico-políticas, já tratadas anteriormente, devem ter como referência um “pacto mundial” em favor dos direitos humanos fundamentais e dos valores democráticos, ao mesmo tempo em que surgem como uma possibilidade de garantir e concretizar essa nova ordem de valores em torno do ser humano (ZOLO, 2010). A sociedade civil mundial se constrói a despeito de problemas comuns, mas também, de valores comuns que agrupam as variadas sociabilidades ao redor de “bens comuns”, ou de um “patrimônio comum” que aproxima os cidadãos em uma mesma construção do social – da sociedade (DEFARGES, 1997).
A problemática que surge conjuntamente com as mudanças estruturais do direito e da política, e que desnaturam a percepção clássica sobre cidadania e sociedade civil, não estão condicionadas somente a aspectos políticos, ou politico-jurídicos, mas sim, envolvem processos de reestruturação social, econômica e cultural. A rearticulação desses conceitos, em um “projeto” de sociedade civil mundial e cidadania comum, deve vir conjuntamente articulada em meio a uma outra percepção das esferas sociais – como um todo –, econômica e culturais, que deverão, também, ser pensadas numa perspectiva mundializada e comum (IANNI, 2005). Essa nova sociedade civil mundial, deve constituir uma opção à organização social que era exclusivamente presa ao modelo estatal-nacional. Isto porque a figura do cidadão no centro do rearranjo mundial/global delineado na primeira parte desse trabalho fica – mais – à deriva dos processos de decisão. Cria-se uma figura despolitizada e incapaz de participar do “jogo político”, pois ainda ligada aos contornos da sociedade e cidadania moderno-estatais. O cidadão contemporâneo, sem o repensar da sociedade civil e da cidadania, corre o risco – se isso já não aconteceu – de ser alijado da sociedade numa perspectiva de participação ativa dos processos político-democráticos (NEGRI; HARDT, 2014). Com efeito:
No horizonte da sociedade global são outras e novas condições sociais, econômicas, políticas e culturais nas quais se constitui e desenvolve o indivíduo. No processo de socialização, entram em causa relações, processos e estruturas que organizam e movimentam, em escala mundial, as novas perspectivas do indivíduo, da individuação, da realização do indivíduo em âmbito que transcende o local, regional e nacional. (IANNI, 2005, p. 113)
Nesse passo, a sociedade civil mundial deve se ver livre de desigualdades e perturbações ligadas à diversidade cultural, questões de classe, gênero, raça, etnia etc. A sociedade civil mundial deve perceber os indivíduos em sua totalidade como cidadãos em condições iguais de participação política. A cidadania comum, só exsurgirá consubstanciada em uma sociedade civil que, para além de mundial, seja igual(itária) e perceba amplamente o cidadão em sua potencialidade participativo-democrática, concedendo a todo e qualquer indivíduo a possibilidade de integrar efetivamente as discussões políticas/públicas (BUNCHAFT, 2014).
Nessa perspectiva e andamento, é possível a construção de uma cidadania comum associada a uma percepção livre das subjetividades, tendo como fundamento maior a instituição do comum como força potencializadora da realização humana em uma realidade de cooperação e interdependência que aparece vinculada à condição primeira de proteção e garantia dos direitos humanos fundamentais e, extensivamente, à nossa capacidade produtiva de poder na(s) semelhança(s). Há(veria) uma reconciliação social entre nós mesmos, “cidadãos mundiais” reconciliados com as diferenças e semelhanças, com o “eu” e o “outro”, numa realidade de reciprocidade ético-humanitária (NEGRI; HARDT, 2014).
A cidadania comum aparece na possibilidade de se configurar interesses públicos comuns, recuperando a ideia já apresentada de “bens comuns”, ou “patrimônio comum”. A cidadania comum vem calcada em “vontades” humanas comuns por conquistas necessárias em nível mundial, como a predominância de valores e políticas em direção à paz mundial, diversidade cultural, justiça social, etc. (BOLZAN DE MORAIS; RIBAS DO NASCIMENTO, 2010). A potencialidade das relações humanas desloca o feixe de atenção das articulações eminentemente institucionais, ligadas ao Estado, para a ação cidadã em níveis diversos, que vão do local ao mundial na esteira da constituição comum de subjetividades produtivas de força(s) e podere(s) (NEGRI; HARDT, 2014).
A questão social deixa(ou) de ser nacional-estatal, partindo para um espectro bem mais amplo e profundo de desejos e realizações, que vão além do institucionalizado, seja a nível nacional ou internacional. Passa a haver um espectro de poder estritamente ligado às e permeado pelas relações sociais. A questão ambiental, a saúde pública, as ameaças nucleares, os regimes antidemocráticos, entre outros, são problemas ligados à cidadania em sentido amplo (BOLZAN DE MORAIS, 2011). É a estruturação de um espaço-tempo que, ao mesmo tempo que abriga problemas locais e específicos, abarca questões de maior complexidade e extensão mundial – planetária. Conforma-se uma cidadania múltipla nos lugares de fala e das multiplicidades, tanto na produção de sentidos quanto na extensão e amplitude das questões a serem discutidas e decididas (ROSA, 2010).
“A organização política sempre requer a produção de subjetividades. Devemos criar uma multidão capaz de uma ação política democrática e de uma autogestão do comum” (NEGRI; HARDT, 2014, p. 67). Essas novas “subjetividades cidadãs” aportam conteúdos novos nos aparatos político-institucionais e reestruturam a cidadania nessa proposta para além das limitações da estatalidade. É a cidadania produtora de sentidos em um âmbito de articulação interno e externo, nacional e internacional, local e mundial, que se perfectibiliza na ação comum (PÉREZ-LUÑO, 2004).
Essa nova perspectiva de cidadania – e de sociedade civil – permite que as coletividades afetadas pelas decisões dos atores principais desse processo – elites políticas e empresariais – venham a ter condições de participar, ou, pelo menos, criar perturbações nos caminhos decisórios. Mesmo que os procedimentos decisórios estejam vinculados principalmente aos Estados, organizações internacionais e empresas transnacionais – ao mercado como um todo –, abre-se um espaço de “constrangimento” democrático alicerçado nessa cidadania comum interligada à sociedade civil mundial (BUNCHAFT, 2014).
A sociedade civil mundial interconectada – principalmente por meio das novas tecnologias da informação e comunicação, sobremodo, pela internet – determina uma zona de conflito, mas, de coordenação de movimentos em direção a pautas mundiais – meio ambiente, saúde, catástrofes, justiça social, paz mundial. Há uma integração social, cultural, étnica, ao redor do que se pode delimitar como uma nova comunidade humana-mundial (PÉREZ-LUÑO, 2004). A sociedade civil mundial só será fiadora de uma cidadania comum, pensada pela lógica do diálogo e do contato intercultural, pela lógica de uma comunidade humana cooperativa e solidária. Não pode haver espaço para individualismos extremos, ou para arroubos nacionalistas provocadores dos extremismos contemporâneos. Os “deslocamentos” sociais nessas novas configurações de sociedade civil e cidadania não podem ser meramente utilitaristas ou pragmatistas, devem sim ser pautados pela compreensão solidária do mundo e de seus “problemas” (IANNI, 2005).
Como bem lembram Bolzan de Morais e Ribas do Nascimento (2010), mesmo que a história da humanidade ainda não tenha vivido a experiência de sociedades formadas totalmente por “homens” livres e iguais, essa condição é sempre mirada como fim primordial de uma organização social ideal. Por evidente, não há que se pensar em uma reorganização social e cidadã sem que se tenha os direitos humanos e fundamentais como conquistas alcançadas a todos sem distinção de raça, credo, cor, etnia, cultura etc. Como aponta Rosa (2010), “há diferentes setores e espaços, em que a cidadania se desenvolve e se manifesta, mas, também, há vários tipos de cidadania, que representam projetos políticos e situações históricas distintas”, mas, sem dúvida alguma, todos eles devem pautar-se pela cooperação, pela solidariedade e pela busca por condições iguais de participação cidadã e desenvolvimento humano.
Desse modo, é possível imaginar um regime democrático comum-mundial. Somente com as bases sólidas de uma nova sociedade civil e de uma nova forma de cidadania – de prática cidadã – é possível concretizar práticas, desejos e estruturas democráticas mundiais e comuns. Nesse caminho, sem sombra de dúvidas, as novas tecnologias de informação e comunicação e a intensidade propiciada pela internet podem ser decisivas na constituição dessa nova sociedade cidadã e democrática. Porquanto, o uso das novas tecnologias não é garantia de ordem democrática, de sociedade civil cooperativa ou de cidadania solidária.
Nesse ponto, o conjunto novas tecnologias da informação e comunicação e sociedade civil e cidadania, pode gerar o tripé sociedade civil mundial, cidadania comum e ordem democrática comum-mundial. Mas apenas isso acontecerá tendo-se como práticas substanciais a cooperação e solidariedade “planetárias”, bem como, a concretização e garantia dos direitos humanos fundamentais como fim último sem distinções. O que não resta dúvidas é que, para tal, um novo regime democrático é preciso. É o que se passa a tratar.
De pronto, cabe referir que a democracia passa por uma crise. Não uma crise enquanto instituição política, mas sim enquanto meio verdadeiramente democrático. Quando se fala em crise, insta lembrar que esta seria uma crise do modelo democrático liberal, e, sobremodo, contemporaneamente, do modelo democrático-representativo.
A democracia representativa, em verdade, passaria por uma crise de representação – representatividade – provocando um esvaziamento da esfera civil e um déficit de participação – em âmbito decisório – cidadã. Ou seja, aqueles aos quais a democracia se dirige, estariam alijados do processo democrático. O modelo democrático que alcançamos – democracia representativa – não condiz mais com a formatação do mundo na atualidade. As sociedades são plurais, os indivíduos são do mundo, os mercados entrecruzam-se e, com isso, a esfera político-democrática passa por uma complexificação.
Assim, embora se fale em crise da democracia, o que está em crise é a representatividade democrática5, que provoca um déficit de participação do povo na tomada de decisões. A esfera civil fica esvaziada de conteúdo democrático-decisório, não possibilitando assim a participação do cidadão nos processos político-decisórios. A participação cidadã fica restrita ao momento do voto – às eleições – não sendo depois possível qualquer vinculação do seu representante aos desígnios populares.
No entanto, cada vez mais se percebe a democracia como algo muito além da mera representatividade política, ou da mera função de votar. A democracia exigida pela sociedade contemporânea é de um modelo participativo que atue num espaço-tempo comum interligado de vontades democráticas, permitindo a consolidação de um regime como “voz do povo”. No entanto, não se pensa nesse sentido em uma democracia direta, mas sim em uma democracia que paute pela maior e irrestrita participação popular.
Por meio de um modelo democrático participativo far-se-á a refundação do pacto democrático, rompendo com os modelos passados – já consolidados – mas não os relegando completamente. Aprofundando-os, transformando-os em um espaço verdadeiramente democrático, que alcance ao cidadão o locus de participação ativa na esfera pública. Como salientam Negri; Hardt (2014), o debate democrático na atualidade não se basta quanto à relação entre público e privado, mas sim, necessita de uma reordenação de sua forma. Nesse sentido, o transbordamento da representatividade para o comum. O comum surge aqui, como a possibilidade de interligação cooperativa e solidária entre os cidadãos, dando forma a um novo “sentido democrático” em aberto e a ser constituído.
Nesse bojo, o surgimento de uma (ciber)democracia6 – de um projeto (ciber)democrático – pode ter importante função em impedir o cada vez maior distanciamento entre as esferas pública e civil – cidadã –, bem como, a absorção da esfera pública pela privada e, sobremodo, impedir que o modelo de participação democrático-cidadã por meio das vias tradicionais da democracia representativa esteja exaurido no mero ato de votar (GOMES, 2005). É como possibilitadora deste avanço que vislumbra-se a (ciber)democracia, como algo que pode aprofundar a democracia e o agir democrático, como algo que pode gerar um espaço-tempo culturalmente democrático, que oriente o nascer de um sentimento de democracia nos cidadãos (PÉREZ-LUÑO, 2004).
Com estes novos modelos e, sobremodo, com este novo tempo para a democracia – tempo democrático – afigura-se a reconstrução do ambiente político. Tal reconstrução pauta-se pelo entrecruzamento do social e do político via participação cidadã nos processos deliberativos-decisórios da esfera pública. Funda-se, então, um espaço-tempo promíscuo de união – confusão – entre esferas pública, sociedade civil e cidadania comum, um espaço-tempo único de decisão e comunicação democrática (BOLZAN DE MORAIS, 1998). É a celebração de um novo processo constituinte arraigado no comum como subjetividade que rompe com as produções de sentido moderno-capitalistas consolidadas sobre uma visão individualista e privatista de sociedade. Ao assumir o comum como subjetividade, se assume a força modificadora de uma sociedade civil (mundial) que é capaz de consolidar um projeto democrático comum-mundial (NEGRI; HARDT, 2014).
Diante deste processo gestacional, a democracia desfaz os vínculos referentes a um projeto estabelecido e acabado, regrado de uma vez por todas dentro de padrões dogmatizados. Desfazem-se, outrossim, as separações estanques entre espaços políticos e não políticos. Há uma emersão do político no social, ou uma submersão deste naquele [...]. [...] Sente-se a democracia como um espaço polifônico onde não há lugar para o estabelecimento de um modelo acabado de ser-estar no mundo, ela vai de encontro a uma historia fixada definitivamente (BOLZAN DE MORAIS; STRECK, 2010, p. 126)
Assim, se faz necessário criar-se também um espaço-tempo culturalmente democráti(zado)co, que dê suporte a este novo complexo participativo-cidadão, que possibilite a persecução de direitos não só para as maiorias poderosas, mas também às minorias caladas dentro da democracia tradicional. É necessário o desenvolvimento de um ambiente propício ao diálogo político-democrático – uma nova esfera pública (BUNCHAFT, 2014). Há que se repensar a democracia, construindo não apenas um espaço democrático-decisório aberto à participação cidadã – da esfera civil – no locus de decisão da esfera pública. Mas sim, deve-se construir um lugar para o acontecer da democracia em toda sua extensão, que seja capaz de incutir um sentimento de democracia nos cidadãos. Um ambiente culturalmente democrático-participativo que abarque todos os meios de participação na vida pública (PÉREZ-LUÑO, 2004).
É necessário construir um ambiente apto a refazer a ligação Estado-cidadão, alcançando aos sujeitos políticos por excelência – cidadãos –, meios eficazes de participação na vida pública. Não é necessário abandonar o que está posto pela história já escrita como democracia, mas sim entender que esta história segue sendo escrita, e que, nesta quadra do tempo, deve-se abarcar a complexidade do acontecer humano. Por assim dizer, é necessário também estender os laços Estado-cidadão ao espaço do “comum-mundial”. O processo de internacionalização do direito descrito anteriormente e a construção de uma sociedade civil mundial e de uma cidadania comum, além de reforçar a convivência democrática clássica – cidadão/Estado – deslocam a democracia para a ambiência cidadão/comum.
Dessa forma, é possível com o ambiente (ciber)democrático comum-mundial que se afigura reforçar os laços Estado-cidadão que legitimam – ou deveriam legitimar – o agir dos órgãos político-administrativos em nome da soberania popular. Abre-se assim, um processo claro, complexo e participativo de formação da vontade popular-democrática, que consubstancia o agir estatal e coloca a vontade do cidadão num grau de importância que lhe é devido (BÖCKENFÖRDE, 2000). Também, é possível constituir um nexo de vontade popular-democrática para além da estatalidade e da democracia liberal. O cidadão no comum participa em uma “vontade popular mundial”, emancipada e transformadora, que consolida um agir democrático em sua totalidade, abarcada por um processo democrático comum-mundial (NEGRI; HARDT, 2014).
Nesse processo de democratização do espaço político, as novas tecnologias da informação e comunicação ganham importância ao apresentar aos sujeitos jurídico-sociais um meio potencialmente efetivo de participação na esfera político-decisória, bem como um aparato procedimental que possibilita a estes mes mos sujeitos a criação de esferas discursivo-argumentativas de debate que podem tornar-se formas de pressão “popular” indireta sobre os âmbitos político-democráticos tradicionais. Como também podem configurar-se em lugar privilegiado para a ação discursivo-argumentativa cidadã com vistas à positivação de conteúdos sociais (GOMES, 2005).
Assim, não há que se pensar a (ciber)democracia comum-mundial como um modelo único e excludente de todas as outras possibilidades democráticas já consolidadas. O uso da tecnologia digital para uma maior participação civil nas decisões políticas – ou pelo menos na discussão a respeito destas – não deve excluir o uso destas mesmas tecnologias para possibilitar uma esfera pública mais transparente (LIMBERGER, 2013). Ou seja, a (ciber)democracia comum-mundial deve ser vista como uma possibilidade ampla e não restritiva de confluência de vários modelos democráticos clássicos, funcionando como uma esfera político-democrática mais ampla, que englobe participação política da sociedade civil, controle dos gestores públicos, controle do orçamento público, bem como participação na definição a respeito da repartição deste orçamento etc. (LIMBERGER, 2013).7
Institui-se um processo democrático que repercute os desejos dos sujeitos sociais, que desvela a prática democrática como construtora de subjetividade. É o lançamento da democracia ao caldo nutriente do vir-a-ser humano. A democracia é desassossegada e desassossega assim os lugares marcados a priori para a produção da subjetividade democrática. Nestes novos tempos, ser democrático é estar conectado aos desejos da sociedade, do cidadão que vislumbra na internet um campo de visibilidade ímpar para as suas reivindicações (WARAT, 1997). Essa nova subjetividade democrática é o comum em toda a sua potencialidade e intensidade de participação social. O movimento de luta no comum se dá conforme o “desejo comum” dos cidadãos interligados nessa esfera de convívio que tenciona a esfera pública de maneira mais ou menos intensa, de acordo com o seu movimento. O comum é uma subjetividade camaleônica que se perfaz no acontecimento dele próprio comum enquanto subjetividade eminentemente democrática (NEGRI; HARDT, 2014).
Gera-se assim, uma democracia perpassada pelo tecido vivo social, calcada na indeterminação sócio-cultural do mundo contemporâneo. Sua legitimidade será construída dia após dia, fecundada neste DNA cultural (ciber)democrático comum-mundial e não mais estará posta por um “estado-de-coisas” institucionalizado peremptoriamente de cima para baixo. Produz-se uma forma social democrática, um espectro social produtor da legitimidade democrático-decisória que transcende o legitimar meramente político da decisão. É o consenso social que produz decisão legítima (BOLZAN DE MORAIS, 1998).
Assim, a democracia passa a ser entendida como um acontecer simbólico; a outra face simbólica do totalitarismo. Assim, a democracia pode ser entendida como a transgressão permanente de uma realidade já dominada e de um futuro antecipadamente interpretado. A democracia não é outra coisa que uma ruptura simbólica do tempo instituído, um território de significações sem garantias. Ou seja, uma forma de semiotização, que, renunciando a uma concepção individualista da sociedade, e descartando as visões congeladas do mundo, possibilite um desenvolvimento ilimitado do homem e da sociedade (WARAT, 1997, p. 106)
Forma-se uma democracia adulta, que se orienta em meio à conflituosidade social, em meio à complexidade do acontecer da sociedade plural contemporânea. O modo de agir (ciber)democrático é intenso, é (in)constante, transmuta-se a cada momento, a cada acontecimento no tecido social. Amolda-se às condições de mundo da sociedade contemporânea e do comum, da sociedade que se transmuta num emaranhado de interligações humanas intemporais, que não mais ocorrem num único tempo (BOLZAN DE MORAIS, 1998).
Neste caminho, nota-se evidente que o tempo da democracia contemporânea é um tempo impetuoso, complexo, surgido de uma temporalidade social pura. A esfera tempo-social reconstrói-se ininterruptamente, flagelando o que está posto como eterno, profanando – Agambem – o instituído. Complexifica-se o acontecer democrático possibilitando o verdadeiro acontecer da democracia como ambiente político-decisório da cidadania. Com efeito:
Um tempo de democracia se vincula a um tempo disforme, onde a continuidade representa, tão-só, a possibilidade do incompleto, do contraditório, da afirmação da diferença que marca a existência humana individual e coletiva. Apresenta-se como o enigma daquilo que num instante é e, no próximo, passa a ou já pode não ser (BOLZAN DE MORAIS, 1998, p. 108).
A (ciber)democracia comum-mundial que se quer resulta de um traço inacabado da condição humana, se quer como possibilidade do vir-a-ser democrático, como possibilidade de acontecimento dela própria e de pertencimento a um mundo democrático-plural circundante. É a construção paradigmática de uma nova condição de mundo – de estar no mundo – culturalmente democrático, intensamente complexo e comunicativamente comum. É a retomada de uma prática comunicativo-decisória emancipatória e legitimada pelo participar do cidadão no comum.
A diferença é o DNA dessa nova (ciber)democracia comum-mundial, a pluralidade de pessoas, de mundos, de condições de mundo, de estar em democracia, a pluralidade cultural, essencial para este novo paradigma. É a democracia do outro, do todo, e não das minorias ou maiorias. A (ciber)democracia comum-mundial é, assim, um projeto em construção que habita historicamente o nosso tempo e desvela-se como condição de possibilidade para o efetivo (re)acontecer da democracia num espectro planetário (NEGRI; HARDT, 2014).
Irrompe, assim, um modelo plural de democracia digital, que pensa a própria democracia digital como uma possibilidade democrática plural, e não como algo que se basta e se esgota em um determinado modelo democrático tradicional, escolhido teórico e aprioristicamente – e, porque não, também, antidemocraticamente (PÉREZ-LUÑO, 2004). A (ciber)democracia comum-mundial é plural do ponto de vista não só dos meios de participação, ou dos participantes – comunidade civil –, como também, do ponto de vista democrático-institucional, não devendo ser adjetivada como deliberativa, participativa, deste ou daquele grau, pois o seu adjetivo principal é ser democrática e estar em constante movimento.
O direito internacionalizado se refaz no seu locus de produção e aplicação normativa, bem como se refaz enquanto normatividade, abrindo-se aos influxos externos – internacionais, transnacionais, supranacionais etc. – e corroborando uma institucionalidade jurídica que une nacional e internacional; e local e global. O processo de internacionalização do direito dá forma a uma normatividade múltipla, plural e transcendente que tem por mirada a concretização e a garantia dos direitos humanos fundamentais enquanto direito da humanidade a partir de uma concepção de bens e valores comuns da humanidade (Parte 1).
Ligado a esse processo de internacionalização do direito constrói-se necessariamente uma nova organização social que perfaz zonas de “contato social” mais intenso. Essas novas ambiências de “contato social” acabam por determinar a recriação da sociedade civil organizada, numa perspectiva mais ampla, o que dá forma à sociedade civil mundial(izada). Essa nova sociedade civil mundial(izada) é conteúdo e substância de uma nova forma de cidadania que se origina no comum como nova subjetividade humana pensada em sua existencialidade e capacidade de produção cooperativa e solidária de direitos. Nesse ponto, se origina uma cidadania comum em torno de conteúdos humano-existenciais de produção de sentidos, tendo como horizonte o comum (Parte 2).
Assim, toma vida uma (ciber)democracia comum-mundial que, a partir dos novos vínculos sociais – sociedade civil mundial – e de novas formas de ação – cidadania comum –, consubstancia um agir democrático cooperativo e solidário em órbita “planetária”. Ao assumir o comum como subjetividade, se assume a força modificadora de uma sociedade civil mundial pela ação de uma cidadania comum que é capaz de consolidar um projeto (ciber)democrático comum-mundial (Parte 3).