Resumo: A judicialização das políticas públicas levanta inúmeras controvérsias sobre o papel do Direito e do Poder Judiciário nas relações sociais. A partir da perspectiva do aumento de litigância provocado pela possibilidade de judicialização dos direitos sociais e da presença do direito nas relações sociais, a juridicização, o presente trabalho analisa uma demanda específica – o acesso ao ensino superior. O objetivo é problematizar a percepção positiva da judicialização considerando o desenho das políticas públicas e a demanda individual envolvida.
Palavras-chave:Judicialização das Políticas PúblicasJudicialização das Políticas Públicas, Juridicização Juridicização, Ensino Superior Ensino Superior, Política Pública Política Pública.
Abstract: The judicialization of public policies raises many controversies about the role of Law and Judicial Power in social relations. From the litigation increase perspective caused by the possibility of judicialization of social rights and the presence of law in social relations, the juridicization, this paper analyzes an specific demand – the right to access higher education. The intention is to discuss the positive perception of judicialization considering the public policies design and the individual demand involved.
Keywords: Judicialization of Public Policies, Juridicization, Higher Education, Public Policy.
A tensão entre juridicização e judicialização do direito à Educação Superior
The tension between juridicization and judicialization of the right to higher education
Recepção: 16 Janeiro 2016
Aprovação: 01 Junho 2016
Um dos dilemas do campo jurídico atualmente é o papel dos atores jurídicos e do próprio Direito. Diante do aumento da presença do Direito, regulando cada vez mais novas esferas particulares dos indivíduos, os atores do campo jurídico como Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, advogados, também recebem demandas sobre como efetivar este Direito.1
Este dilema se resume em duas categorias teóricas: juridicização e judicialização da política. A primeira se resume na presença do Direito nas relações sociais, ou seja, a “colonização do mundo da vida pelo Direito”, nas palavras de Habermas (1997; 2002), que será explorado neste trabalho2. Neste contexto, atrelado a textos constitucionais com extensas cartas de direitos, surge a judicialização da política – o aumento de demandas no Poder Judiciário de temas cada vez mais “estranhos” ao campo jurídico, acostumado a resolver demandas a partir do raciocínio lógico da subsunção, em uma espécie de acomodação do fato à norma e à consequente decisão.3
Diante deste cenário, surge outro fenômeno: a judicialização das políticas públicas. Aqui temos três possibilidades – a judicialização no âmbito da política pública como um todo e sua constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal - STF; as ações coletivas do Ministério Público e a Defensoria Pública; e ainda, individualmente, onde o cidadão provoca em primeira instância a garantia/efetivação de um direito social, reflexo de uma política pública. Principalmente na perspectiva individual, a reivindicação de direitos sociais é também uma estratégia para debate e definição da agenda pública, provocando os poderes políticos sobre as necessidades de atores sociais “invisíveis” quanto à representação nos Poderes Executivo e Legislativo (ABRAMOVICH, 2006; VIEIRA, 2008)4.
A partir destas premissas, a discussão se concentrará na juridicização e na relação que esta pode ter com a judicialização das políticas públicas: a percepção da Sociedade sobre qual é o papel do Direito enquanto norma na definição das relações sociais, quais são as expectativas, e como estas influenciam as demandas no Poder Judiciário. Este é o contexto do presente trabalho.
Gloppen (2006)5 aborda esta problemática a partir da atuação do Poder Judiciário, estabelecendo dimensões de análise para as diferentes demandas recebidas pelo Judiciário. A autora busca analisar o impacto que o Judiciário tem na transformação social e na inclusão de grupos “marginalizados” – se de alguma forma circunstâncias como classe social, sexo, gênero, religião e orientação sexual deixam de ter um peso significativo na desigualdade e nas relações de poder, e em que medida a atuação do Poder Judiciário concede “voz" para os pobres e grupos marginalizados. Os direitos sociais são demandados perante o Poder Judiciário, são aceitos por ele, os julgamentos efetivam direitos sociais e há impacto nos direitos sociais e/ou na inclusão dos sujeitos envolvidos.
Nossa proposta é problematizar a transformação social desta grade de leitura em um tema específico – o do acesso ao ensino superior. Outras variáveis podem influenciar na demanda, mas o objeto da pesquisa é justamente situar a problemática na tensão entre juridicização e judicialização das políticas públicas. A questão da pesquisa é: em que medida a juridicização acarreta a judicialização de conflitos político-sociais de forma a alterar o desenho da política pública e deslocar a demanda do acesso ao direito?
A hipótese aqui levantada é a de que a crescente presença do Direito nas relações sociais tem acarretado um efeito perverso na compreensão do seu papel: não se pode confundir o reconhecimento de direitos – no caso, aqui analisado, os direitos sociais (direito à educação) e suas possibilidades – com uma estratégia de alteração na forma de efetivação destes direitos, definida na política pública, instituída pelos atores políticos responsáveis, Legislativo e Executivo6. A hipótese é de que esta estratégia é perversa para o arranjo democrático, representando uma perspectiva que não se aproxima da noção de cidadania e de inclusão verificada em outros exemplos.
Para comprovar a hipótese, trabalharemos com uma demanda específica: a crescente judicialização do acesso ao ensino superior no Distrito Federal. Os resultados integram um projeto de pesquisa construído no âmbito do grupo de pesquisa Democracia, Direitos Fundamentais e Cidadania – DDFC, do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP.7
A proposta é demonstrar que esta judicialização comprova nossa hipótese: a de que ao dar “voz” aos diferentes atores sociais, a presença do Direito nas relações sociais também acaba acarretando uma compreensão equivocada sobre o seu papel: a demanda não é pelo Direito em si, na perspectiva do “direito a ter direitos”8, mas sim uma demanda de cunho procedimental, que não pode ocorrer via Poder Judiciário, mas sim por intermédio do arranjo democrático.
Portanto, o artigo será construído da seguinte forma. No primeiro capítulo, uma apresentação sociojurídica sobre a principal premissa da problemática aqui proposta, a juridicização. Em que consiste a presença do Direito nas relações sociais?
Em seguida, abordaremos os dados da pesquisa sobre judicialização do acesso ao ensino superior considerando a matriz de análise de Gloppen (2006). Por fim, trabalharemos a tensão entre juridicização e judicialização das políticas públicas sob a perspectiva da demanda individual e o desenho da política pública a partir dos dados da pesquisa, problematizando a resposta do Judiciário às demandas.
A presença do Direito nas relações sociais está atrelada ao termo juridicização. O termo juridicização (juridification) é atribuído ao termo em alemão Verrechtlichung e em inglês a legal pollution – uma proliferação da presença das leis (TEUBNER, 1987). Teubner (1987) aponta a construção de quatro dimensões de análise conceitual:
- legal explosion – uma questão de crescimento numérico de leis9;
- expropriation of conflict – processo onde os conflitos humanos são retirados do seu contexto e transformados em objeto de processo judicial (retirando outras possíveis alternativas de solução de conflitos);10
- depoliticization – formalização das relações, especialmente de trabalho, o que retira do campo do debate político a solução dos conflitos, neutralizando os genuínos conflitos políticos de classes;11
- materialization – restringe o espaço de manobra para movimentos sociais e grupos de interesse.12
Independentemente da dimensão conceitual utilizada, a questão apontada pelo termo é justamente a presença do Direito nas relações sociais: seja por intermédio da judicialização, seja pela discussão de conflitos sociais utilizando a linguagem dos direitos, na linha do que Habermas (1997; 2002) chama de colonização do mundo da vida pelo Direito. Aqui reside o objetivo desta categoria teórica como categoria operacional na análise da discussão judicial sobre a antecipação do acesso ao ensino superior.
Teubner (1987) aponta algumas perguntas e uma delas se coaduna com a análise aqui proposta: como e em qual extensão a expansão da lei em ambientes sociais é contingente ou reversível, necessária ou irreversível, e como está conectada a um desenvolvimento social mais amplo?13
Na dimensão conceitual da materialização, Habermas (1997; 2002) aponta quatro épocas para análise do fenômeno da juridicização14. A última etapa é justamente a constitucionalização e a regulação do sistema econômico, assim como já tinha ocorrido com o sistema político.
Esta materialização do Direito, ultrapassando a previsão formal, está inserida no contexto dos papéis do Estado Social. A juridicização não significa apenas a proliferação da norma, ou a “inflação legislativa”15. É preciso compreender que além da materialização há a intenção do Social intervencionista (TEUBNER, 1987).
No Brasil, a centralidade do Direito e dos atores jurídicos é atribuída ao caráter dirigente e comunitarista16 da Constituição de 1988, ainda que o Estado Brasileiro não possa ser enquadrado como um típico Estado Social17. A questão que surge no caso brasileiro é a histórica ausência de cultura cívica em virtude das recorrentes quebras constitucionais da história do Estado de Direito. Neste sentido:
Mais uma vez, e agora no território inédito da democracia política, o direito, seus procedimentos e instituições passam a ser mobilizados em favor da agregação e da solidarização social, como campo de exercício de uma pedagogia para o civismo. A expansão do direito e do Poder Judiciário, em uma sociedade que jamais conheceu, de fato, a liberdade, se reveste, portanto, de uma dupla inspiração. De um lado, nasce, como em outros contextos nacionais contemporâneos, da ocupação de um vazio deixado pela crise das ideologias, da família, do Estado e do sistema da representação; de outro, reitera uma prática com raízes profundas na história brasileira, em que o direito, como instrumento de ação de um intelligentzia jurídica, se põe a serviço da construção da cidadania e da animação da vida republicana. (VIANNA, 1999, p. 153)
Contudo, formular regras, criar direitos coletivos não é sinônimo de reconhecimento destes mesmos direitos por parte do Poder Judiciário. A judicialização é consequência do reconhecimento dos direitos, mas ela não alcança a justiça distributiva e não representa a coletividade, principalmente nas demandas individuais.
Os temas que têm chegado ao Judiciário são predominantemente de justiça distributiva. Dizem respeito à defesa do patrimônio comum da humanidade (história, ecologia, cultura). Neste contexto, quem é a parte adversa, a parte contrária, é o réu e os processos judiciais? Mesmo que se apresentem alguns réus determinados (o Estado, uma agência governamental, uma federação de patrões, uma empresa ou pessoa jurídica privada), o que está em jogo é, muitas vezes, algo que diz respeito à organização social, eventualmente concretizada num litígio determinado. Aqui está uma das dificuldades enfrentadas pelo Judiciário hoje: a discussão judicial, discussão política, faz-se ainda sob o signo do confronto de vontades, de interesses, de atores individualizados (mesmo que os atores sejam sindicatos, corporações). Uma política pública (uma política industrial, um regime de importações, uma política educacional, um plano de estabilização monetária) não pode ser compreendida senão em referência plurilateral, e às disputas em torno de um bem comum, que não é o interesse do Estado, nem da maioria, nem dos mais ruidosos detentores de espaços privilegiados nos meios de comunicação social. Neste sentido chegam ao Judiciário como fórum de discussão pública, questões que o sistema representativo brasileiro e a sociedade não têm conseguido resolver. (LOPES, 2006, p. 128, grifamos)
A materialização implícita na crescente juridicização não é automática, mas tem acarretado o protagonismo do Poder Judiciário na vida política, social e econômica – um aumento na litigância de temas de cunho constitucional e caráter coletivo, pois afetam a sociedade. Entretanto, os direitos não podem ser vistos como “posse”, relacionado com o ter.
A ideia de uma sociedade justa implica a promessa de emancipação e de dignidade humana. Pois o aspecto distributivo da igualdade de status e de tratamento, garantido pelo direito, resulta do sentido universalidade do direito, que deve garantir a liberdade e a integridade de cada um. Por isso, na sua respectiva comunidade jurídica, ninguém é livre enquanto a sua liberdade implicar a opressão do outro. Pois a distribuição simétrica de direitos resulta do reconhecimento de todos como membros livres e iguais. Esse aspecto do respeito igual alimenta a pretensão dos sujeitos a iguais direitos. O erro do paradigma jurídico liberal consiste em reduzir a justiça a uma distribuição igual de direitos, isto é, em assimilar direitos a bens que podem ser possuídos e distribuídos. No entanto, os direitos não são bens coletivos consumíveis comunitariamente, pois só podemos ‘gozá-los’ exercitando-os. Ao passo que a autodeterminação individual constitui-se através do exercício de direitos que se deduzem de normas produzidaslegitimamente. Por isso, a distribuição equitativa de direitos subjetivos não pode ser dissociada da autonomia pública dos cidadãos, a ser exercida em comum, na medida em que participam da prática de legislação. (Habermas, 1997, v II, p. 159, grifos no original)
Para Habermas (1997; 2002), o Direito está relacionado ao exercício da cidadania ativa, na ideia de papéis ou relações, e assim pode ser objeto de demanda, não apenas de prestação. O cidadão participa de processos deliberativos de produção de normas legislativas ou atos da administração. Em áreas onde cada vez mais o Direito passa a atuar, como família e escola, o Direito enquanto medium é um instrumento de integração social. Mas isso não se confunde com distribuição, mas sim com um fazer, com uma ação (DUTRA, 2004). Trata-se da cidadania ativa.
Neste sentido, a judicialização das políticas públicas, decorrente da juridicização, como forma de garantia dos direitos sociais[18], acaba escondendo as reais possibilidades do Poder Judiciário no debate sobre a política pública propriamente dita.
O reconhecimento de direitos sociais não perpassa única e exclusivamente a ideia de “direito a ter direitos” e a sua garantia pelo Poder Judiciário, mas também pelas diferentes maneiras definidas pelo próprio Direito de garantir a sua efetivação. Os direitos sociais são efetivados observando o desenho da política pública definida em lei, no que analisaremos adiante como “direito das políticas públicas”.19
A demanda que inverte a lógica entre o “direito a ter direitos” e a forma como o acesso a este direito é desenhado pela política pública tem sido verificada em alguns casos de judicialização de políticas públicas (direitos sociais), dentre eles o acesso ao ensino superior por intermédio da antecipação da conclusão do ensino médio, que abordaremos em seguida.
As instituições de ensino superior (IES) estabelecem em seus editais a forma de ingresso dos candidatos aprovados no exame vestibular, que deverão comprovar a conclusão do ensino médio com a apresentação do respectivo certificado. Contudo, vários candidatos são aprovados antes do término do ensino médio e estão procurando a justiça para garantir a matrícula, pois as instituições de ensino superior indeferem administrativamente os pedidos de matrícula.
Os candidatos-alunos recorrem ao Poder Judiciário alegando a inconstitucionalidade e/ou interpretação flexibilizada de artigos da Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB). O artigo 44 da LDB20 exige a conclusão do ensino médio para os cursos de graduação, e o art. 3821 prevê as condições para os cursos e exames supletivos, para os maiores de dezoito anos. O argumento constitucional reside no art. 208, inciso V, da Constituição Federal, que permite o acesso ao ensino superior “segundo a capacidade de cada um”, sem exigência de conclusão do ensino médio.
Neste sentido, o grupo Democracia, Direitos Fundamentais e Cidadania – DDFC, do Instituto Brasiliense de Direito Público/IDP, estabeleceu um projeto de pesquisa para analisar este fenômeno no Distrito Federal. A pesquisa levantou processos de três anos, 2012, 2013, 2014, durante um mês, o de julho, na Vara Cível de Família e de Órfãos e Sucessões do Núcleo Bandeirante/DF. A análise dos diferentes fundamentos adotados pelos magistrados nas decisões judiciais permitiu problematizar a “voz” da sociedade e a forma como esta impulsiona a busca pela máxima efetividade da Constituição: uma discussão sobre o papel do Poder Judiciário na definição da política pública educacional.
Após o levantamento dos processos com sentença de mérito procedentes e utilizando a modalidade de amostra aleatória simples, com 10% dos processos para cada período, foram analisados:

A pesquisa analisou os seguintes documentos: a petição inicial, a decisão interlocutória e a sentença dos processos, todos contra o Centro Educacional Bandeirantes (CEBAN), responsável pelo exame supletivo no Núcleo Bandeirante.
A técnica de pesquisa utilizada foi a análise de conteúdo22, que tem como principal objetivo inferir compreensões não explicitadas no texto. Para compreender as “entrelinhas” do texto, é preciso definir unidades de registro e unidade de contexto. As primeiras representam a unidade de significação a codificar e corresponde ao segmento de conteúdo a considerar como unidade de base (tema, objeto, personagem...). A unidade de contexto corresponde ao segmento da mensagem, cujas dimensões são utilizadas para que se possa compreender a significação exata da unidade de contexto.
As unidades de registro utilizadas foram: ensino médio, vestibular, instituição de ensino superior e supletivo. A partir destas unidades, os pesquisadores buscaram unidades de contexto – significados atribuídos às unidades de registro nos três documentos analisados (petição inicial, decisão interlocutória e sentença)23.
O pedido se repete nas 46 petições iniciais: os requerentes demandam a matrícula no curso de Educação de Jovens e Adultos – EJA, conhecido como Curso Supletivo do ensino médio no Centro Educacional Bandeirantes – CEBAN, com o intuito de acelerar o término do ensino médio ou o 3o ano do ensino médio. Obtendo êxito no curso, podem obter o Certificado de Conclusão do Ensino Médio para viabilizar a matrícula na Universidade onde foram aprovados no vestibular, pois não têm autorização para fazer a matrícula sem 18 anos completos.
Importante apresentar alguns dados iniciais sobre os processos. Em 2012, são apenas 6 processos e todos os requerentes foram aprovados em Instituição de Ensino Superior – IES, pública, a Universidade de Brasília – UnB. Em 2013, no mesmo período, 24 processos e todos também na UnB. Já em 2014, 15 processos, mas 4 requerentes foram aprovados em IES privadas.
Em 2012 e 2013, jovens com 17 e 16 anos, em 2014, jovens com 14, 16 e 17 anos – uma redução no universo de requerentes, pois são jovens que estão cursando o 1o ou o 2o ano do ensino médio.
O conteúdo das decisões demonstra a dificuldade na análise do papel do próprio Poder Judiciário na judicialização do acesso ao ensino superior: as decisões em 2012 e 2013 priorizam o argumento da “aprovação em vestibular de reconhecida universidade” como parâmetro para o deferimento. Em 2014 este parâmetro parece não ser suficiente, e alguns processos incluem a alta concorrência no vestibular como argumento. Contudo, alguns cursos almejados em 2013 têm dois candidatos por vaga24, o que demonstra que a partir de 2014 houve uma maior preocupação com o deferimento da demanda sem atender requisitos mínimos, em uma espécie de jurisprudência defensiva.25
Ao mesmo tempo em que o argumento sobre o reconhecimento da instituição de ensino superior é utilizado, pública ou privada, e a concorrência dos cursos, outra unidade de registro abordada foi o papel do ensino médio.

Percebe-se que o Judiciário descarta o critério biológico como único requisito para se aferir a capacidade do aluno iniciar o ensino superior, alegando que este critério demonstraria um “mero apego à disposição literal de lei, sem se valer de uma interpretação sistêmica conforme a Constituição” (trecho das decisões). A argumentação é de que o art. 208, inciso V, assegura o acesso aos níveis mais elevados do ensino “segundo a capacidade de cada um”.
Portanto, a partir da análise do conteúdo das petições iniciais e das decisões (interlocutória e sentença), é possível perceber o aumento na judicialização do acesso ao ensino superior e da ampliação dos argumentos utilizados pelos requerentes, que inicialmente valorizam o fato do vestibular ser concorrido e em uma IES pública, o que sensibilizou o Judiciário. Em 2014 os pedidos alcançam outras IES, cursos não concorridos e jovens com 14 anos.
Em que medida este aumento de judicialização com a expansão de critérios utilizados para a demanda pode ser interpretado como uma “banalização” da judicialização no contexto da colonização do mundo da vida pelo Direito? Este seria um exemplo de uma postura que assume uma responsabilidade excessiva na materialização de direitos sociais?
A justiça é simultaneamente bombeiro e piromaníaco: num mesmo movimento, ela afasta os indivíduos uns dos outros, desqualificando a autoridade tradicional e se apresentando como autoridade paliativa a essa ausência.... A justiça sai desse processo profundamente abalada: se, até o momento, ela se limitava a distribuir estatutos e honrarias, bens jurídicos e econômicos, eis que ela se vê a partir de agora também obrigada a distribuir funções sociais, melhor, ela deve prover os sujeitos de uma identidade social. Seria esse um verdadeiro progresso para a liberdade? Não seria seu preço exorbitante? (GARAPON, 2001, p. 152, grifamos)
A questão posta pela judicialização em análise problematiza a conexão de sentido entre a “sindicabilidade” de direitos sociais no Estado Social a partir da juridicização das políticas públicas e as formas definidas pelos poderes políticos para efetivação destes mesmos direitos sociais. As expectativas e interesses envolvidos na demanda individual não estão conectados com a intenção no desenho da política pública: estabelecer critérios para a maturidade dos jovens ao iniciar o ensino superior. Prosseguiremos nesta problematização a seguir.
A problemática suscitada neste trabalho é o impacto da judicialização no caso do acesso ao ensino superior. Pela análise do caso aqui exposto, é possível perceber um significativo aumento da judicialização e uma ampliação da fundamentação – a argumentação inicial é em virtude de cursos concorridos e instituições públicas reconhecidas – a maturidade e capacidade intelectual está atrelada à aprovação no vestibular de reconhecida instituição de ensino.
O contexto da judicialização da política e das políticas públicas perpassa discussões sobre o papel do Judiciário na justiça distributiva – o Poder Judiciário acaba definindo prioridades na efetivação de direitos sociais, e de alguma forma assumindo o papel de ator responsável por uma transformação social26 Com a Constituição de 1988 e seu caráter dirigente e programático, voltada à promoção e proteção dos direitos sociais, inclusive de grupos vulneráveis, o Judiciário tem se tornado cada vez mais um local de disputa para concretização destes direitos ou de intepretações sobre este direito. Ao incluir grupos vulneráveis e “invisíveis”, a atuação do Poder Judiciário tem sido valorizada.27
Nesta linha, a definição sobre critérios de acesso ao ensino superior pode ser objeto de intervenção e definição por particulares? Trata-se de tema de política pública, de definição sobre a forma como efetivar o direito à educação. Em que medida os envolvidos podem utilizar o Poder Judiciário para defini-la, em uma espécie de litígio estratégico28? Qual é o impacto desta judicialização das relações sociais na definição da política pública do ensino médio e superior brasileiro? Como as instituições de ensino superior estão reagindo a esta judicialização? 29. Como o Estado reage a esta judicialização?30. Estas são algumas das questões enfrentadas pelo projeto de pesquisa e que conduziram a presente reflexão.
Utilizando a matriz de análise de Gloppen (2006), é possível perceber que ao ter a resposta positiva do Judiciário, o cidadão reagiu com a ampliação da demanda, incluindo instituições particulares e cursos não concorridos na própria UnB. Dos 25 processos em 2013, todos aprovados na UnB, não há distinção entre cursos mais concorridos, como Direito, e outros que sobram vagas, como Filosofia e Química. O argumento é o mesmo: “o requerente demonstrou possuir maturidade e capacidade intelectual para ingressar no ensino superior, haja vista sua aprovação em vestibular de reconhecida instituição universitária”.
A matriz de análise busca reforçar o papel da judicialização na transformação social, aqui compreendida como a possibilidade de diminuição da desigualdade reduzindo o impacto de questões socioeconômicas, de raça, gênero, etc...31 As quatro dimensões estão presentes – voz, responsividade, habilidade e observância, contudo, cabe perguntar: há transformação social que legitime a atuação do Judiciário neste caso?
A pergunta decorre da legitimidade na definição da política pública. O EJA foi desenhado pela LDB para atender especificamente os alunos que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria (art. 37 da LDF). O EJA representa uma política pública vinculada ao direito à educação para atender um grupo mais “vulnerável” e excluído do direito à educação. Assim, percebe-se que a política pública está vinculada a direitos e metas compatíveis com os princípios e objetivos constitucionais.
O direito passa a apresentar, além de suas funções tradicionalmente identificadas, outra já plenamente enraizada, em que vem caracterizado como médium para o estabelecimento desses objetivos, cuja materialização é implementada por meio de políticas públicas econômicas e sociais. (MASSA-ARZABE, 2006, p. 51)
E as ações estatais buscam a efetivação dos direitos sociais e o encaminhamento de soluções e problemas sociais que encontrem os objetivos fundamentais da sociedade. Estas ações são definidas nas políticas públicas.
As políticas públicas são conjuntos de ações e programas de ação governamental que se valem precipuamente de normas jurídicas para moldar e impulsionar a consecução dos objetivos estabelecidos. A norma jurídica desempenha a função de plasmar os objetivos, as diretrizes e os meios da atividade estatal dirigida. Por isso, a norma é fundamental no contexto presente tanto para viabilização da política como para a realização dos direitos que se visa proteger. Desse modo, a necessidade de aprofundamento dos estudos jurídicos neste campo é inquestionável e imprescindível. (MASSA-ARZABE, 2006, p. 67)
Neste sentido, as políticas públicas não são uma categoria jurídica strictu sensu, “mas arranjos complexos, típicos da atividade político-administrativa, que a ciência do direito deve estar apta a descrever, compreender e analisar, de modo a integrar à atividade política os valores e métodos próprios do universo jurídico”. (BUCCI, 2006, p. 31)
A judicialização do acesso ao ensino superior de jovens com menos de 18 anos aprovados em vestibular representa a discussão sobre o desenho da política pública do EJA e não uma demanda de “direito a ter direitos” mencionada anteriormente. A justificativa para a idade estabelecida com parâmetro decorre do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei n. 8.069/90, que em seu art. 2º considera a pessoa até 12 [doze] anos incompletos como criança e entre 12 [doze] e 18 [dezoito] anos, como adolescente).
Ainda que a LDB se preocupe mais com o amadurecimento cognitivo, mental e cultural voltando-se àquilo que um estudante sabe e do que está em condições de aprender e de se formar como cidadão, está claro que o parâmetro escolhido observa a própria responsabilidade da família e do Estado na proteção integral de crianças e adolescentes.32
Na verdade, há um deslocamento de seleção de prioridade e reserva de meios, cerne da construção das políticas públicas, dos Poderes Executivo e Legislativo, para a demanda judicial individual.
Dessa maneira, o aumento da litigância processual seria provocado pelo individualismo capitalista e o rompimento com laços sociais anteriores – família, Igreja, Estado Provedor, etc. Tudo o que era antes controlado pela relação interpessoal passa a ser regido por um contrato jurídico, com a invasão do direito de arenas que eram exclusivas de outras instituições sociais. E é importante salientar que a interferência judiciaria é um fenômeno facilitado, na prática, pelos próprios políticos. A inflação legislativa tem um rebatimento imediato no Judiciário, já que aumenta a área de atuação do mundo jurídico. E o resultado disso é que o cidadão individualizado não mais se envolve em questões de mobilização social e a justiça se torna um verdadeiro balcão de queixas sociais. (GONÇALVES, 2006, p. 95)
Ainda que a judicialização das políticas públicas possa ser analisada sob a perspectiva da “voz” dos excluídos e marginalizados e da efetivação dos direitos sociais, a questão aqui apresentada é a transposição dos problemas humanos e sociais em termos jurídicos e assim ameaça os vínculos sociais:
Há alguns anos, a constatação do aumento do poder do juiz teria feito tremer certa faixa da opinião pública que veria, como consequência, surgir um controle social insuportável. Mas isso talvez não constitua o essencial. Se o dogma da democracia for levado ao pé da letra, o perigo da ilusão da democracia jurídica não é tanto o governo dos juízes, mas sobretudo o poder da pessoa. A justiça deve permanecer como um poder corretivo. Os poderes negativos, que a imprensa e a justiça representam, essa incerteza da norma, esse jogo de massacre no qual a democracia parece estar engajada, correm o risco de instalar, como sucessor da antiga soberania política, não o poder de alguns poucos, mas a vacância do poder. (GARAPON, 2001, p. 153).
Neste sentido, há o efeito perverso da abordagem apresentada pela matriz de análise de Gloppen (2006) – a “banalização” da judicialização de questões de política pública que deveriam ser definidas e eventualmente rediscutidas pelos atores com representatividade para tal, o Legislativo e o Executivo.
Por outro lado, isso não quer dizer que o Judiciário não possua um papel fundamental no regime democrático. A história está repleta de exemplos que levam à conclusão de que a democracia não pode ser entendida apenas a partir do princípio majoritário. A democracia implica, além da decisão majoritária, também a instauração de um contexto de diálogo, de respeito pela posição do outro e de garantia dos direitos fundamentais das minorias. É justamente na promoção desse contexto e na garantia desses direitos que o Judiciário pode desempenhar um papel primordial. O Judiciário pode ser, nessa linha, um guardião da democracia. Por isso, só há sentido em pensar em uma ‘judicialização da política’ enquanto atuação judicial que preserve a interação democrática entre os cidadãos, e não como realização pelo Judiciário de tarefas que legitimamente cabem às maiorias. (SOUZA NETO, 2012, p. 36)
O Judiciário não pode ser o protagonista da transformação social. A hipótese levantada é de dar voz à ausência de efetivação de direitos, diante inclusive de legislação simbólica, que não é materializada. Contudo, a forma de efetivação precisa perpassar uma discussão democrática, e neste sentido o Direito é o medium no arranjo democrático, não no Judiciário.
A colonização do mundo da vida pelo Direito, de acordo com Habermas (1997; 2002), neste caso, parece conduzir a um distanciamento dos motivos políticos para a definição e desenho da política pública do EJA, e neste sentido interfere no arranjo democrático, substituindo argumentos discutidos no polo político por argumentos estritamente jurídico-formais. Isto não significa que a lógica dos direitos (ou a própria juridicização) seja negativa, contudo, também não legitima a instrumentalização desses direitos em uma estratégia perversa para atender uma demanda individual.
No contexto da judicialização da política e das políticas públicas, cujos elementos conformadores não se limitam aos demandantes, o Poder Judiciário tem assumido destacado papel no reconhecimento de direitos ainda desamparados por políticas públicas eficazes. E justamente em virtude da possibilidade de transformação social que este papel pode ser considerado positivo conforme salientamos no decorrer deste trabalho.
Contudo, considerando a juridicização e a colonização do mundo da vida pelo Direito, estes mesmos instrumentos para efetivação de direitos sociais têm sido objeto de demanda individual sem impacto na transformação social, que significaria a inclusão dos “marginalizados”. As expectativas e interesses envolvidos em algumas demandas individuais não estão conectadas com a intenção no desenho de determinadas políticas públicas, que devem obedecer princípios e objetivos constitucionais.
Este foi o caso relatado aqui. A judicialização do acesso ao ensino superior não acarreta uma transformação social mas sim uma alteração na política pública, em uma perspectiva individual. As questões que motivaram a definição da idade para iniciar o curso superior bem como os limites para o EJA não são jurídicas – são políticas e foram discutidas por ocasião da aprovação da LDB no âmbito do Poder Legislativo federal. A preocupação é definir critérios para o início da educação superior em um grupo que ainda pode ser considerado “vulnerável” na maturidade de suas escolhas.
Ao judicializar o acesso, o cidadão de alguma forma está discutindo os parâmetros da política pública a partir de uma apropriação do direito e não a partir de uma perspectiva de cidadania ativa. A juridicização, no sentido de presença e discussão das relações sociais sob o olhar do Direito está provocando uma judicialização que impede o diálogo e encerra a discussão no instrumento processual, “banalizando” o próprio “direito a ter direito”, pois a demanda é quanto ao processo de efetivação e não ao Direito propriamente dito. O cidadão passa a “ter” o Direito e não operacionalizá-lo na perspectiva de medium no processo de legitimidade democrática abordado por Habermas (1997; 2002).
Ainda que existam perspectivas positivas sobre a judicialização da política e das políticas públicas, a “banalização” da judicialização em face de um aumento da juridicização é uma questão que precisa ser considerada pelo Poder Judiciário nos eventuais riscos para o arranjo democrático brasileiro.

