Recepção: 02 Novembro 2016
Aprovação: 16 Novembro 2017
DOI: https://doi.org/10.5585/prismaj.v16n1.6873
Resumo: Este texto tem como finalidade gizar a influência da codificação oitocentista na concepção do Direito. Para isso, procura-se isolar o momento em que o Direito passa a estar reduzido nas palavras e frases do documento legislativo (lei), principalmente do Código. Esse contexto impõe uma forma específica de visualizar a esfera jurídica, ao ponto de romper com algumas experiências encontradas na história do Direito, principalmente no que se refere à pluralidade de fontes. Por conseguinte, ocorreu a redução do Direito ao fenômeno legal. Trata-se de igualar a lei ao Direito, por meio da técnica codificista e do pensamento jurídico desenvolvido no período do Iluminismo.
Palavras-chave: Código, Direito, História do Direito, Lei, Positivismo.
Abstract: The text aims to outline the influence of nineteenth-century codification in the concept of Law. For such, it seeks to determine the moment Law begins to be reduced into the words and sentences of a legal document (law), especially the Code. This context requires a particular view of the legal sphere to the point of breaking away from certain experiences found in Law history, especially those referring to the variety of sources. Therefore, Law was reduced to the legal phenomenon. It refers to equaling law to the legal phenomenon by means of a codifying technique and legal thinking developed in the Enlightenment period.
Keywords: Code, Law, History of Law, law, Positivism.
1 Introdução
Pretende-se determinar a influência codificadora oitocentista no Direito e ensaiar a separação entre este e a lei, a fim de estabelecer uma concepção inicial para se repensar o Direito. É o desafio que se atravessa na estrada da reflexão histórica, ao ser interpelada pelos problemas, os quais atravessam a compreensão atual de Direito, com a crise de legitimidade. Expor-se-á a influência codificadora no Direito moderno e passar-se-á a questionar a forma com que este vem sendo apresentado até a presente época.
Primeiramente, apresentar-se-á, de forma resumida, a paisagem histórica da codificação, a fim de determinar qual a imagem do Direito possível de ser visualizada. Essa imagem tende a representar a modificação introduzida na fase codificadora da história do Direito e, com isso, a mostrar a forma como o Direito passa a se manifestar, por meio de sua fonte.
Após, procurar-se-á desvelar as consequências do emprego do pensamento codificista no Direito. Objetiva-se deixar claro como se desenvolve na prática a aplicação do Direito e qual o resultado dessa aplicação para a própria arte jurídica, sob a ótica da codificação. A questão proposta é refletir acerca da participação do código no pensamento jurídico e questionar se o Direito reduz-se à pura legislação sistematizada e escrita ou se este pode/deve se manifestar de outras formas e possuir outras dinâmicas paradigmáticas.
A busca da não restrição do Direito ao código/lei assume contornos, com base em uma ampliação de seu sentido ou reconhecimento de experiências anteriores à época codificista, com a possibilidade de estabelecer novos paradigmas. No entanto, o objetivo do texto não é decretar a inutilidade/ilegitimidade do Código ou exaltá-lo, ao ponto de colocá-lo no ápice do desenvolvimento do pensamento jurídico e da prática jurídica, nem recusar a importância funcional da lei (legislação) no Direito. Pelo contrário, a intenção volve-se em direção ao esclarecimento da diferença entre o Direito e a lei. Diferença essa relevante para os dias de hoje, com base na qual se produz e se consome prescrições jurídicas de forma industrial.
O paradigma codificista, nesse intento, serve de base para estabelecer a influencia do código no Direito e, com base nessa influência, reorientar a dinâmica jurídica. Assim, traz-se a tentativa de resposta à pergunta quid ius? (BRONZE, 2006, p 17)
2 Em direção à época oitocentista
O paradigma da codificação estende-se na história do Direito, pois dependerá do ponto de partida da análise da questão: o que é o código? Se for se considerar um código somente como um documento sistematizado, poder-se-iam citar: as XII Tábuas, Código de Hamurabi; Corpus Iuris Civilis; Corpus Iuris Canonici; as Ordenações Portuguesas (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas) (COSTA, 1996, p. 273-293); e até mesmo (e por que não?) incluir a Magna Glosa de Acursio (COSTA, 1996, p. 216-218) e os Comentários de Bartolo. Tais obras são trabalhos que possuem certa sistematicidade, porém não no mesmo grau e arquitetura que a ideia de código moderno, pois lhes faltam a abstração e a generalidade, características da modernidade (GROSSI, 2011, p. 114). Em períodos pré-modernos, o Direito manifestava-se por diversas fontes (MARQUES, 2003, p. 7-12), como: pelos juristas, pelos costumes, pelos textos romanos e canônicos e por leis (em sentido geral). Não existia a intervenção (única e exclusiva) do legislador – como na atual função moderna. A práxis, por exemplo, a dos juristas, era mais relevante ao Direito (VALLAURI, 1981, p. 26).
No entanto, a questão da análise encontra-se na época dos códigos modernos e de sua influência no mundo jurídico, principalmente no referente às marcas deixadas no Direito desde o momento de considerá-lo ponto culminante da cultura jurídica moderna. Tal característica, ainda hoje, apresenta-se visível, de forma a macular a visão do Direito e a dificultar a construção de resposta jurídica adequada à época corrente, que em complexidade ultrapassa a concepção moderna. A história da codificação está ligada à modernidade, pois representa uma época de renovação e de ruptura em relação ao passado. A questão “o que é o código?” ganha outros contornos. Além da forma sistematizada, esta abrange também a completude, a unidade e a racionalidade (more geometricus).
A mudança intelectual ocorrida no século XVII impora uma renovação metodológica que rompeu com a autoridade – predominante à época do ius commune –, em detrimento da evidência racional com a descoberta e da interpretação nas Ciências. A renovação filosófica superou a teologia e exaltou a Ciência como fundamento regulador da reflexão. Com isso, a razão sobressai-se ao argumento de autoridade, devido ao Direito ser idealizado como unicamente derivado da razão imutável e universal. O jusnaturalismo racionalista instalou as fundações para uma nova ordem jurídica, que, sem dúvida, ultrapassa o tecnicismo, o sistematicismo […], para alcançar patamares mais profundos da motivação política da codificação (MARQUES, 2002, p. 171).
É preciso levar em consideração uma Antropologia pré-capitalista e da organização econômica, que surgiu com a ascensão e as conquistas burguesas, principalmente com a revolução no final do século XVIII. Uma perspectiva nova emergiu com base na proteção externa do sujeito, que é o patrimônio. A propriedade transcende à riqueza (coisa), mas se confunde com a liberdade individual. Nesse sentido, o proprietário foi se tornando o centro das atenções pela Europa, já como um direito natural, reconhecendo no Homem originário um proprietário. Por conseguinte, o indivíduo volta-se a se ocupar da autoconservação não só da pessoa, mas da propriedade. A ideia de um Estado forte, unitário, compacto e monopolizador da produção do Direito torna-se atraente à burguesia. Porém, o liberalismo econômico contrasta com o absolutismo jurídico. Por isso, o poder legislativo e os atos legislativos ganham relevância, culminando na codificação de todo o Direito (GROSSI, 2011, p. 114-115) e na redução do Direito à lei.
O Code Civil de 1804 é o ápice do projeto codificador, ao materializar o espírito codificista, que busca uma sociedade ideal de complexidade reduzida – segurança jurídica. Na razão do legislador, está a fórmula matemática que criaria um ambiente ideal e preparado para o futuro; já as consolidações ou ordenações buscam compilar o existente como leis esparsas e costumes. A experiência do rigor matemático e racional dos entusiastas iluministas suplanta a visão de mundo religiosa anterior, muito embora os jusnaturalistas perseguissem, também, um direito universal e imutável – porém, fundado na natureza humana-racional. Nessa crença, encontram-se os fundamentos da abstração do direito da razão refletida na construção dos códigos. Junto a esta, está o fundamento político da destruição do “caótico” direito comunitário e feudal, com a simplificação técnica do direito privado – principalmente por meio do arquétipo do homem abstrato, que favorece a unificação do sujeito de direito e a igualdade de todos perante a lei (MARQUES, 2002, p. 173-174) – conquista burguesa ao derrubar a classe nobre. Por isso, a Ciência do Direito, com base no código, desenvolve-se na direção da interpretação das disposições legais e no modus operandi de sua determinação, como principais tarefas (GAUDÊNCIO, 2003, p. 682).
2.1 Codificação europeia
O período codificador da Europa inaugurou uma nova época para o Direito, que se estende desde o final do século XVI e início do século XVII, até dominar o século XIX e grande parte do século XX. É um projeto político-jurídico – impulsionado determinantemente pela Revolução Francesa (TODESCAN, 2009, p. 252) – que buscou solucionar o problema das fontes do Direito. O código pressupõe dois contextos revolucionários: o primeiro é o cultural do jusnaturalismo/iluminismo; o segundo é o factual dos anos 1789-1795. Surge, desses dois contextos, uma nova forma de entender a relação entre a política e o Direito, surgindo uma nova forma de conceber a produção jurídica (GROSSI, 2011, p. 136).
O caos de fontes criadoras do Direito no passado cedeu espaço para a geometria legal de linhas claras, certas e abstratas. O resultado dessa passagem é a concentração do Direito em estatutos, de forma que o poder político – nesse caso, supremo – estabelece como única fonte a lei e, juntamente, ergue rigoroso monismo jurídico, substituindo o antigo pluralismo. Atingem-se, assim, três objetivos: a) fonte única que condiz com o Estado absoluto (TODESCAN, 2009, p. 249) moderno; b) fonte mais completa possível, a fim de garantir a desejada unidade; c) fonte exclusiva, com o objetivo de atingir a mesma finalidade (GROSSI, 2011, p. 137).
As condições culturais favoreceram o cultivo da visão universalizante, pois a qualidade racional situa os indivíduos em estado de igualdade. Isso foi resultado da influência da Revolução Francesa, que espalhou pelo continente europeu a concepção formal de igualdade entre todos os Homens e povos, ancorada na concepção da generalização e da abstração (TODESCAN, 2009, p. 256). Destacam-se três experiências ideológico-culturais distintas, porém sob idêntica diretriz espiritual: revoluções inglesas, Revolução Norte Americana e Revolução Francesa (WIEACKER, 1993, p. 366)1.
2.1.1 Preussischen Allgemeinen Landsrecht
O Preussischen Allgemeinen Landsrecht de 1794 foi o primeiro que surgiu. A sua base filosófica estava estruturada sob o usus modernus e o direito natural de WOLFF e de THOMASIUS. Por conseguinte, este compreende o direito mercantil, o direito dos seguros, o direito marítimo, o direito da Igreja, o direito feudal e o direito penal. A sua índole estava convergida no sentido da completude e da centralização, característica do pensamento irradiado na Aufklärung. No tangente à constituição normativa, esta confia no a priori da ratio, independentemente da experiência. Por conseguinte, o Preussischen Allgemeinen Landsrecht representa uma crença acrítica na razão e no postulado de se alcançar um direito justo com base no jusnaturalismo. Inferem-se duas finalidades (projetos). A primeira era coordenar a vida dos súditos nos seus pormenores; a segunda tratava-se da declaração de autossuficiência do legislador iluminista. De forma parcial, essas finalidades têm o condão de combater o arbítrio, a insegurança e a complexidade da romanística do ius commune (MARQUES, 2002, p. 175).
O Preussischen Allgemeinen Landsrecht manifesta algumas particularidades que destacam a sua intenção de completude e de perfeição: 1) relutância ao emprego das fontes externas; 2) aversão ao Juristenrecht; 3) obstáculos criados ao desenvolvimento do Direito: ou seja, cada caso deveria, impreterivelmente, encontrar uma norma decisória no código (MARQUES, 2002, p. 175-176). Frederico – “o grande” –, em 14 de Abril de 1780, no seu gabinete, destinou uma tarefa à comissão de trabalho de elaboração do Código prussiano, de não permitir a qualquer juiz a “audácia” de interpretar, de restringir, de dilatar e, muito menos, de produzir uma nova lei. Nos casos duvidosos, a comissão legisladora devia submeter ao König um relatório específico para a sua avaliação e posterior decisão. No caso de impossibilidade de aplicação direta da lei ao caso, o juiz devia decidir em conformidade aos princípios gerais do código e por meio analógico de suas disposições, conforme o § 49 do Allgemeinen Landsrecht (MARQUES, 2002, p. 176)2. A consequência dessa linha de pensamento era a proibição de comentários ao código, ao ponto de um bayerische Strafgesetzentwurf prever um tipo penal específico e prevendo a pena de prisão (KRIELE, 2004, p. 67-68). Cabe destacar que esse código perdeu prestígio justamente por ser ultrapassado em clareza lógica e rigor pelos códigos posteriores (WIEACKER, 1993, p. 379)3.
2.1.2 Code Civil
A experiência histórica e culturalmente marcante foi a francesa. O país do droit coutûmier (setentrional e ocidental) e do droit écrit (central e meridional) (WIEACKER, 1993, p. 387)4 acabou por ser o modelo codificista do mundo, não só pelo modelo do Code, mas por um conjunto de códigos e de uma tradição que se formava. O Code civil de 1804 representa a ruptura com um direito baseado na doutrina e nos costumes, os quais, após a sua instituição, passaram a ser fontes estranhas ao direito estatal. Por conseguinte, a pluralidade de fontes – Ordennances, ius commune, costumes – são substituídas por um documento único, sistemático e conciso: o código. O movimento francês buscou uma imediata cisão entre o antigo regime jurídico e o novo, que nesse momento florescia. O exemplo está entre o período de 1789 e 1799, quando vigorou o chamado Droit intermédiaire, uma copiosa legislação setorial. Inaugura-se, assim, o período-auge da codificação (MARQUES, 2002, p. 176-177).
As ideias filosóficas do século XVIII e as políticas da Revolução são aplicadas ao direito consuetudinário e ao direito romano. Com isso, formou-se uma conexão entre o antigo direito e o direito revolucionário francês. O Code civil de 1804, no início, apresentou uma imagem utópica idealista do período revolucionário. Porém, passada a euforia, este mostra-se conservador, no sentido de refletir a visão do legislador do individualismo, privilegiando o direito de família e direito de propriedade. Aquele indivíduo sem posses não encontra espaço no Code. As categorias de pensamento do Vernunftsrecht somente foram empregadas com o objetivo de desfundamentação do antigo regime político. O Code representa o ápice da técnica jurídico-política, que, com a sua intervenção na realidade, rompeu com o passado (MARQUES, 2002, p. 178). A arquitetônica que forma o Code é forjada com grande vigor, pois este resistiu às reformas, às interpretações e aos movimentos renovadores exsurgentes da prática. Graças à qualidade dos magistrados e dos cientistas do Direito, o Code, embora ultrapassado social e economicamente, mantém e ainda influi na realidade (WIEACKER, 1993, p. 392)5.
2.1.3 Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch
Outro código importante é o Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch, da Áustria. Com intuito de unificar o direito dos territórios, Maria Teresa (1740-1780) constitui a Kompilationskommission, que estava incumbida de elaborar um código de direito privado de características gerais. A ratio deveria complementar e corrigir o usus modernus (TODESCAN, 2009, p. 253) e, também, torná-lo certo e universal. Dessa iniciativa, surgem três códigos em diferentes períodos: Codex Theresianus (1776) (WIEACKER, 1993, p. 381), Westgalizisches Gesetzbuch (1797) e o Allgemeines Bürgerliche Gesetzbuch (1811) (MARQUES, 2002, p. 179)6.
A influência filosófica sofrida pelo código austríaco não foi a wolffiana, mas a kantiana. A concepção kantiana contrapunha direito natural e direito positivo, pois entendia que o direito natural era condição a priori da justiça, enquanto o direito positivo, a aplicação do direito natural. Trata-se do movimento do direito natural ao direito fenomênico. O jurista ZEILLER, nome principal do código austríaco, era kantiano, porém sua experiência prática como jurista capacitou-o a mediar os ideais jurídicos kantianos com uma legislação concreta (TODESCAN, 2009, p. 253).
Dos dois códigos anteriores, toda a legislação e o ius commune que contradissesse o código foram abolidos. Neste, encontram-se duas características: a ideológica e a técnica. A primeira remete à homogeneização social e política do território; a segunda unifica a legislação na maior parte do território da Coroa dos Habsburgos. Embora embevecido no jusnaturalismo racionalista, o usus modernus continuou a manter contato com o Direito moderno. Como o direito natural corporifica-se como fonte de todo o direito civil, assim, sempre que o juiz não conseguir decidir com as palavras do código, nem mesmo com o sentido natural das leis, o código austríaco oferece o recurso da analogia e, se ainda não for suficiente, os natürliche Rechtsgrundsätze. Nisso consiste a marca da completude da legislação, pois a concepção gravada é de não existência de lacunas, já que os princípios naturais de Direito completam-no (WIEACKER, 1993, p. 384). A norma-princípio do código austríaco colocou-se como alternativa à norma-comando do código francês (MARQUES, 2002, p. 179-180).
3 O Direito encadernado
A codificação ocasionou um impacto sem precedentes na concepção jurídica. A ideia de Direito modifica-se, gradualmente, no sentido de uma esfera jurídica racionalmente planejada (e pressuposta) dentro dos limites do Código (ou lei), ao deixar o sistema do ius commune (com o afastamento do direito natural clássico) e incorporar definitivamente o direito nacional como soberano – o caso oposto deu-se na Inglaterra, com a permanência de seu common law e a não filiação ao movimento codificador (MERRYMAN, 1989, p. 51-52). O cotidiano das relações intersubjetivas é transposto para um código racionalmente planejado e geometricamente construído para gerir o futuro. O ponto central não está mais no exterior do Homem, mas neste mesmo – no indivíduo racional –, ao ponto de as palavras de HEGEL tornarem o mundo produto da razão7.
O Direito foi reduzido à ratio legislativo-codificista, sendo que há dificuldades de proposição de outro método capaz de enfrentar a atual complexidade com segurança jurídica. Tem-se, assim, uma inflação legislativa que pouco impacta na realidade da sociedade e na própria condição histórica humana. Destaca-se que a realidade atual não é a mesma oitocentista; por isso, a ratio já não é o elemento autossuficiente para cuidar dos problemas sociojurídicos. Nesse sentido, o código restringe muitos aspectos, a potencialidade de um Direito pluralista em fontes. Não se deve continuar, de certa forma, considerando a codificação como um desvelamento, relativamente, o que é ou não o Direito. A legislação/codificação serve para dar-lhe uma dimensão de sentido, capaz de contribuir com a realização da função do Direito. É o momento de superar o legalismo, redução do Direito à lei, criticado pelo seu reductio ad Hitlerum (VALLAURI, 1981, p. 28)8.
O código, racionalmente estruturado, guarda os segredos do tempo e a crença na neutralidade. Isso implica em localizar o justo[9] na expressão da recta ratio e, por conseguinte, na formalidade, sistematicidade e segurança do Código. A segurança jurídica reduziu a arbitrariedade por parte do Estado, pois o código traz, de forma clara, as posições jurídicas que devem ser observadas pelos tribunais. Além do mais, permitiu maior facilidade na ação de correção dos tribunais em relação às suas decisões, à generalidade das pessoas; e uma previsibilidade do resultado de suas litigâncias, ao deixar claro os seus direitos e seus deveres em relação aos demais coexistentes (HASSEMER, 2002, p. 285-286).
Nos códigos, os problemas jurídicos são organizados em tipos legais, que são condensados em seções e capítulos, ainda em parte geral e especial. Todas estas partes formam uma unidade. De fato, a codificação facilitou e agilizou o acesso ao conhecimento jurídico. Também com o Código – tem-se essa ideia –, a legitimação da decisão tornou-se precisa e simples de forma material; material quando a decisão fundamenta-se num tipo contido no código. Isto devido à norma do código não possuir a necessidade de estar legitimada socialmente, pois se está em vigor, esta legitima-se automaticamente. A norma transporta à decisão a legitimidade. Quando a norma codificada não é aplicada, o juiz fundamentará, por meio de outros dispositivos jurídicos a sua decisão, como os princípios jurídicos fundamentais (HASSEMER, 2002, p. 287-289), previstos no próprio código.
A pretensão de um Direito positivo puro é marca irretocável da superioridade da ratio suplantadora da filosofia do Direito10, ao ponto de torná-lo, ao abandonar a fundamentação metafísica, uma operação de lógica matemática11. O lugar da justiça passa a ser ocupado pela segurança e pela certeza do Direito; e a arte do jurista desloca-se para a atmosfera da técnica – no caso da interpretação12. É a instalação da superlegitimidade da lei e a estatualização do Direito com o advento do Estado absoluto (VALLAURI, 1981, p. 26). A voluntas legislatoris entifica a monopolização do Estado. Ao mesmo tempo, o poder de criar o Direito é transferido para as mãos do legislador, no sentido de unificar o poder de mando (MARQUES, 2002, p. 172)13. A jurisprudência perde seu lugar de destaque na Ciência do Direito para a lei, já como critério racional (GAUDÊNCIO, 2003, p. 684). A discussão jurídica, com essa perspectiva, concentra-se em dois polos: a normal legal, de um lado; e a decisão judicial, de outro (HASSEMER, 2002, p. 281).
Os juristas passam a se reunir em torno da lei, pois esta assume uma posição indispensável para manter a paz, a ordem democrática e o progresso por meio de suas qualidades de precisão, de segurança e de conservação. A redução da interpretação jurídica à técnica prejudica a visão do fundamento da lei e dos princípios. Atualmente, tais elementos são pontos importantes na discussão da nova teoria da interpretação (KRIELE, 2004, p. 65).
O Direito positivo (pelo menos, por um determinado ângulo de visão) compreende o juiz como aplicador da lei, cujo monopólio da criação da lei está nas mãos do legislador. Somente esse último tem a legitimidade de criar, alterar ou revogar as leis; ao juiz, sobra a prerrogativa de aplicá-la tal como o seu texto apresenta – um aplicador automático da lei (HASSEMER, 2002, p. 281-282).
A tarefa do juiz resume-se à operação silogística – já que o diploma jurídico (Código) sistematizado é (era) considerado completo e perfeito. O magistrado precisa apenas encaixar a premissa menor na maior e chegar à conclusão. O ponto central do positivismo jurídico mostrou-se como uma força de manutenção do monopólio do legislador (do político) do Estado em face do jurista, ao atrelar radicalmente o juiz à lei (KRIELE, 2004, p. 65-66). Na realidade, trata-se do dogma positivista da identidade completa da lei, com o Direito no sentido da normatividade isolada da lei ao impedir que o Direito possua outra espécie ou meio de manifestação (KAUFMANN, 1966, p. 5)14.
A fonte privilegiada do Direito é (era) a lei, produzida pelo legislador (político). Nem o juiz nem o jurista possuíam autoridade de instituir a lei, poderiam, apenas, orientar o legislador no seu projeto de lei. Claramente, a época codificadora traz consigo as marcas das revoluções, principalmente, a francesa, e da unificação das regiões conjuntamente com a criação do Estado-nação. Por isso, o positivismo estatal expressa incontornavelmente o dogma da soberania externa e interna do Estado, ao ponto de legitimar e efetivar as regras exsurgentes exclusivamente do acordo entre os indivíduos. Na mesma linha, devido à separação dos poderes, somente o poder legislador está imbuído de criar a lei (o Direito) (MERRYMAN, 1989, p. 52-53). Assim, evidencia-se a polaridade entre a norma legal (ou legislada) e o juízo decisório do juiz. Essa dicotomia predominante na teoria jurídica europeia continental assinala a submissão de todos os ordenamentos jurídicos nacionais ao modelo jurídico da codificação-legislação (KAUFMANN; HASSEMER, 1971, p. 35)15.
Isto significa duas coisas distintas. Num sentido, encontra-se a delimitação do sistema de leis codificado sem levar em consideração a prática jurídica, em especial os aspectos sociais e individuais particulares dos casos. Noutro sentido, localiza-se a total confiança na orientação das Ciências Naturais e na conceitualidade imanente do sistema codificado, produzido pelo Estado absoluto e, depois, liberal. A tese fundamental do positivismo tardio é um sistema jurídico fechado com a promulgação da lei. Assim, este exclui, em princípio, um desenvolvimento a posteriori do Direito. Os casos novos e a promulgação da lei exigem decisões que não provocam um enriquecimento do conteúdo do Direito, mas uma sofrível formação de novo conceito, pois o sistema é considerado completo (KAUFMANN; HASSEMER, 1971, p. 37).
3.1 Nem todo o Direito é código (leis)
Contra essa concepção, exsurgiu Savigny com o seu Volksgeist, ao afirmar que o Direito tem seu Dasein no Volksgeist comum; portanto, na vontade do todo, que também é a vontade de cada um (KAUFMANN; HASSEMER, 1971, p. 37-38)16. Sua teoria não conseguiu evitar o processo codificador, muito embora sua batalha contra as ideias de Thibaut (BOBBIO, 1995, p. 57-62) tenha adiado a codificação na Alemanha. O ponto nodal estava na petrificação do Direito pelo código, o que retiraria a dinâmica histórica do Volksgeist. Em termos metodológicos, a ideia de Savigny era semelhante à aplicada à codificação, na medida em que o Volksgeist acaba por ser deduzido, numa operação de conceitualizar o princípio superior e, então, descer ao caso concreto. Em essência, Savigny não se afastava completamente do intuito do Código (MERRYMAN, 1989, p. 67-68). A distância encontrava-se no impulso inicial: estava circunscrito ao romantismo alemão do século XIX, que era adversário da abstração codificista. A Escola Histórica alemã recolhe da história a efetiva concretude, ao ponto de valorar todos os aspectos, pois todos os movimentos históricos irrepetíveis (TODESCAN, 2009, p. 25)17.
Com o tempo e as mudanças sociojurídicas, a concepção do juiz, de não criar Direito, mas de apenas aplicar estritamente os ditames do código, foi ultrapassada pelo reconhecimento de que ele também cria o Direito, porém de uma forma especial. No entanto, isto não ocasionou o total desprezo pelo Code; pelo contrário, a tarefa do juiz ficou mais complexa, pois ele não está mais totalmente subjugado à lei: precisa interpelar o direito codificado acerca de seu significado no momento específico da decisão judicial. De certa forma, o código serve de base e ponto de partida para a decisão judicial, o que não significa ter de considerar a literalidade e a abordagem histórica do texto. A crise codificista estava baseada na comparação entre a jurisprudência dos tribunais e os códigos, de forma a evidenciar as alterações no direito por parte das decisões, sem que estas alterassem a letra do texto do código ((HASSEMER, 2002, p. 283-284).
As decisões judiciais continuam apoiando-se na letra da lei e na segurança e sistematicidade dos códigos. Para manter essa aparência, quando a letra da lei não alcançar o caso prático ou não for suficientemente clara, o juiz pode completar a lacuna do código, conforme regulou o art. 1º do Código Civil suíço; e, no caso brasileiro, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro no Art. 4º18. Nota-se a própria lei a regular o seu próprio complemento (VALLAURI, 1981, p. 26).
A discussão passa e gira em torno de um critério para a aplicação do Direito e mostra uma multiplicidade topológica de opiniões. Uma das concepções é, justamente, a ordem codificada do Direito, que contém todos os juízos jurídicos completo em si. Porém, existe a concepção contrária, que considera o código como um documento lacunoso. Logo, esta defende a atividade jurídica livre em relação à produção do Direito – salvo poucas exceções. No meio dessa última concepção, encontra-se empreendida uma teoria dominante, a separação da lei e do juízo do juiz, para mostrar a apresentação do critério individual-prático da decisão na lei ou da tentativa de critério de sentido jurídico no objeto da decisão jurídica. Trata-se de assumir uma postura além da teoria da fenomenologia do Direito, da teoria da dialética do Direito ou da chamada Südwestdeutsche Neukantianismus, mas também em direção distinta da teoria livre do Direito ou da jurisprudência dos interesses. Aqui, estaria sugerida diretamente a relação não Direito/lei (KAUFMANN; HASSEMER, 1971, p. 35-36).
4 “Na forma da lei”
A codificação representa a junção de concepções de Direito e de lei. A lei torna-se o Direito; e o Direito reduz-se à lei19. O Código é o ápice do pensamento jurídico moderno, trata-se de um documento engenhosamente pensado, que contém os elementos juridicamente relevantes de forma sucinta, precisa e sistematicamente distribuídos neste (em suas partes, títulos, capítulos, seções, subseções, artigos, parágrafos, incisos e alíneas) (BECCARIA, 1998, p. 47)20. A própria lei pode estabelecer como encontrar uma solução para o caso que, por algum motivo ou característica do fato, encaixa-se em alguma lacuna ou não se enquadra num ditame legal. A completude do Código, com o impulso positivista, admitia, de certa forma, a ideia de que o que não estava referido ou proibido em lei era permitido. Com isso, a técnica toma conta da esfera jurídica. Tudo se resume à legislação e à operação de silogismo do juiz21. O problema jurídico reduz-se à busca no Código por uma solução do caso concreto; e, com a resposta, de imediato, aplicá-la no caso particular. Por isso, a generalidade não compõe apenas o discurso da não arbitrariedade e desigualdade, mas contribui para que o caso concreto seja encontrado no sistema codificado, pois um detalhe destoante entre o texto e o fato concreto prejudicaria a operação silogístico-matemática.
Nota-se a tentativa – bem sucedida – de igualar o Direito à lei, legado que o período codificista deixa e que ainda hoje é o grande motivo de dificuldade para compreender o fenômeno jurídico, no sentido de (re)atribuir-lhe a ideia de justiça ligada ao caso concreto – como único e irrepetível – e à história. A distinção entre o Direito e a lei não é nova; remonta à época clássica romana, a Idade Média e ganha evidência atualmente com alguns juristas, principalmente aqueles da pós-Segunda Guerra Mundial. A visão estrita que atribui ao Código a experiência total do Direito não consegue mais ser sustentada. Nem por isso o Código perde sua função; pelo contrário, ainda fornece apoio para fundamentação da segurança jurídica.
4.1 Direito e lei
Pelo resgate etimológico das palavras ius e lex, é possível notar a afinidade existente entre as noções apresentadas; com isso, a lex é o instrumento utilizado pelo jurista ou por qualquer cidadão para tomar conhecimento do ius. O problema está com base no momento da redução do fenômeno jurídico à lei (ao texto legislativo) que provoca a submissão da esfera jurídica à esfera política e retira a ideia de justiça para situar a de competência – poder – no centro da legitimidade. Os preceitos são Direito somente pela legitimidade de competência, sem incluir qualquer noção de justiça. Nesse talante, se o Direito é idêntico à lei, é possível inferir duas possibilidades de compreensão: a) a lei proclamada é sempre Direito, porém não só esta; b) só a lei é Direito; logo, ao excluir a lei, não se tem Direito. Na primeira compreensão, ter-se-ia toda a lei como Direito, com a abertura a outras fontes. Na segunda (b), somente a lei equivaleria ao Direito. O Direito não possui mais realidade própria além daquela circunscrita à lei, sendo a palavra “Direito” um nome de um conjunto de leis – perspectiva objetiva – ou de uma perspectiva subjetiva, sem, propriamente, possuir um conceito além dos limites da lei. Isso torna indiferente o tratamento do positivismo, podendo ser tratado indistintamente como Rechts ou Gesetzespositivismus. Em conformidade com isto, também o Estado deixa de ser de Direito (Rechtsstaat) e adota o sinônimo de Estado legal ou da lei (Gesetzesstaat) (KAUFMANN, 1966, p. 5).
É preciso superar essa questão, de forma a reelaborar a distinção entre lex e ius, loi e Droit, law e Right22, legge e Diritto, Gesetz e Recht, ley e Derecho e lei e Direito […]. Esta distinção, que poderia (uma dentre várias opções) ser feita pela diferença entre direito natural – repaginado – e direito positivo, não pode ser realizada com a pretensão de considerar o primeiro direito como absoluto e eterno, mas, sim, com o fundamento no seu reconhecimento sobre o concreto e o histórico. O direito natural não se contraporia ao direito positivo, no sentido de sobreposição; na realidade, estar-se-ia diante de uma noção de justo ou injusto. Isso poderia fundamentar a diferença entre lei e Direito, pois ambos não podem ser definidos de maneira a excluir o conteúdo valorativo de um (lei) nem a positividade do outro (Direito). Porém, é possível considerar a lei injusta como um Unrecht, na iminente diferença entre Direito e lei, já que esta pode ser injusta e o Direito não (KAUFMANN, 1966, p. 9-10).
É evidente que uma norma injusta seria considerada inválida e não deve ser aplicada, pois um Estado de Direito contradir-se-ia ao exigir a aplicação de lei unrechtlich. Levando em consideração a distinção entre lei e Direito, o juiz não é obrigado a aceitar uma lei injusta. No entanto, sua independência de ser influenciado por elementos do exterior jurídico não o liberta da malha legal a que está submetido. Essa questão retoma as noções de segurança e de ordem jurídica, pois aqui se reconhecem os perigos do afastamento da decisão do juiz do parâmetro legal. No entanto, igualar o Direito à lei não significa atingir uma segurança jurídica, pois o terror possui, também, sua segurança – inclusive refletida nas palavras da lei –, porém não seria a Rechtssicherheit, mas a Unrechts-Sicherheit. Com isso, o juiz estaria submetido à Unrecht em forma de lei (lex corrupta). Se um juiz recusa-se a aplicar a lei por causa de seu não costume, isso não seria um ato de conhecimento, mas de arrogância de seu poder de contraposição à vontade do legislador (KAUFMANN, 1966, p. 10-12).
O conflito entre o Direito e a lei, sem dúvida, pode ser atribuído à arrogância legisladora e à arrogância judicial, que, em última instância, seria a batalha pelo poder. O positivismo jurídico corroborou com o arbítrio de ambas as partes: do legislador, quando reduziu o Direito à lei e atribui-lhe sua fonte principal a vontade do legislador, e a do juiz, quando se reconheceu a indeterminação de conceitos legais e diversas interpretações destoantes (uma da outra) de um mesmo texto legal.
Isso demonstra a natureza do Direito, afastando-o da concepção da exatidão matemática e jogando-o para a senda do puro fenômeno do ser espiritual. A negação de validade de um negócio jurídico pelo fato deste contrariar os costumes delimita o Direito sem a necessidade de uma lei que classifique positiva ou negativamente ou estabeleça como deve ser o costume. Alguns elementos referenciados pela lei não são por esta classificados ou delimitados; pelo contrário, são apenas elencados e abandonados à sorte da experiência de determinado tempo, local e subjetividade. A ordem pública, os bons costumes (Art. 122 do Código Civil), os fins sociais, as exigências do bem comum (Art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) etc. são elementos difíceis de serem conceituados legislativamente; mesmo assim, são jurídicos como qualquer conceito legalmente estabelecido. Como a ideia de justiça absoluta é impossível de ser alcançada pelo conhecimento humano, a determinação dos aspectos negativos das coisas, das injustiças, dependerá da incidência de fatores extralegais, como o conhecimento da história se se pensar em uma lei que ordene o extermínio de um povo, por exemplo (KAUFMANN, 1966, p. 12-13)23.
Soma-se a isso a prática jurídica, que busca proferir juízos valorativos sobre a vida social do ponto de vista do direito vigente que, no caso dos Estados modernos, encontra-se representado pela legislação24. Destarte, os objetivos visados pela lei devem ser levados em consideração. Assim, a lei não constitui todo o Direito; na realidade, as leis são fórmulas, cujo seu cumprimento busca realizar intenções normativas (desígnios axiológicos), com a salvaguarda de certos valores jurídicos. A lei não passa de regras técnicas que orientam realizar, nos casos por estas previstos, certos ideais de justiça (harmonia, ordem social e manutenção dos direitos fundamentais). O decisivo no Direito, nesta perspectiva, não são as leis, mas as intenções normativas (os ideais axiológico-jurídicos) a serem concretizadas. Sendo isso o fundamental do Direito, é possível que se realize o Direito mesmo ao contrariar a lei (HESPANHA, 1971, p. 46-48). Esta concepção encontrou guarida no pensamento de S. TOMÁS, ao enquadrar a lei como um pedaço geral do cosmos. Por conseguinte, a lei não é a própria ordem das coisas – que é o Direito –, mas é a respectiva formulação racional; ou seja, é a expressão do cosmos. Assim, está-se diante de uma lei inclinada ao aspecto material (o cosmos), diferentemente da lei moderna, que se inclina apenas ao aspecto formal (MONCADA, 2002, p. 10-11).
O Direito, nesse contexto, não se restringe à legislação; é mais abrangente que os limites textuais da lei. À lei, incorporam-se outros elementos capazes de darem-lhe sentido e, muitas vezes, juridicidade. Significa, então, que a sinonímia entre Direito e lei (nesse aspecto) não corresponde à exatidão de conceitos e designações linguísticas. De forma ampla, pode-se inferir que a injustiça produz lei inválida, pois o abuso na matéria da lei configura-se algo ilícito. Contudo, estar sob o manto da lei não implica estar sob o manto do Direito. Em algum momento, abre-se uma fenda nessas duas concepções até ocorrer o desencontro – como na instituição do abuso de direito. Portanto, ao seguir a fórmula RADBRUCH, o direito positivo é válido em seu ordenamento e poder. Todavia, se este for inoportuno e injusto e estiver em contradição com a justiça em medidas insuportáveis, a lei, como unrichtiges Recht, deve ceder lugar à justiça; ou seja, quando a lei não ambicionar à justiça, a norma do direito positivo deve ser renegada (KAUFMANN, 1966, p. 13-14).
Em face da distinção entre lei e Direito não ser meramente ocasional, pelo contrário, ser ontológica, estes relacionam-se um com o outro como potência e ato; ou seja, como possibilidade e realidade. A lei é, seguramente, uma fase para a realização do Direito, não ultrapassando o significado de uma norma geral para uma variedade de casos possíveis; em comparação, o Direito decide uma situação real. A sua Natur der Sache está na generalização, pois esta acentua a diferença individual e a igualdade geral, obtendo validade perante todos. A lei não sofre variações em decorrência do concreto, sendo esta moderada essência anistórica ou sobreistórica. Demais, a fenomenologia da lei trata-se de um ato de pôr. Portanto, está radicada na autoridade do legislador, por isto esta não provém do Sein, mas é um produto de uma vontade normatizante (KAUFMANN, 1966, p. 29-30).
Por outro lado, o Direito radica-se na ordem natural das coisas e não na vontade da autoridade. O Direito é dado simultaneamente ao Sein, característica antiga do pensamento ocidental. O Direito é a ordem do sendo em sua plenitude concreta; indica a inexistência do Direito na norma, no esquema abstrato para a ação correta. Porém, está na ação correta e na decisão na situação concreta. Isso indica que a essência do Direito encontra-se na Seinsstruktur da historicidade. Assim, este não pode atribuir duas coisas distintas à mesma circunstância. O Direito possui pressuposição na lei, o que indica a impossibilidade de uma decisão, uma norma ou uma regra jurídica, sem a remissão à Grundnorm (KAUFMANN, 1966, p. 30-32).
Se deixar a cargo do legislador instituir a Grundnorm, os princípios de justiça, de costume e de bonum commune ficariam ao encargo de seu arbítrio. Não se pode esquecer, então, normas que sempre acompanharam a história do Homem, como o Decálogo (AQUINO, s.d., p. 97-130), por exemplo. Os cinco mandamentos positivos do Decálogo podem ser denominados de Grundnorm, desde que as normas e decisões jurídicas surjam dos mandamentos. Nesse caso, poder-se-ia denominá-los de lex naturalis. A lei positiva (ou estatal) volta-se à gradual atualização e concretização desses Grundprinzipien, a fim de concretizar o Direito. Contudo, a positivação não pode ser um mero ato de dedução. Pelo contrário, esta requer uma confrontação com as possibilidades de situações concretas, para que a norma legal possa ter validade. O método de produção da lei é indutivo e dedutivo ao mesmo tempo, num processo de união da Grundnorm abstrata com a Natur der Sache concreta. A lei necessita possuir certo grau de generalidade25, sendo esta nem completamente abstrata, nem totalmente concreta. A sua validade não é anistórica, mas vale – mais ou menos – por um período determinado (KAUFMANN, 1966, p. 32-33)26.
Destarte, recai na seara do Direito – que foge à exclusividade da lei – as cláusulas (Grundsatznorm) que não são obtidas por meio da positividade, mas, sim, preconizadas na lei, pois ao legislador não cabe proclamá-las, mas concretizá-las e positivá-las – estas encontram-se em outro patamar além do positivo da lei. Ao levar em consideração três estágios de desenvolvimento do Direito, o primeiro, Grundsatznorm (lei natural, princípio); o segundo, a lei positiva; e o terceiro, a decisão da situação concreta, estas – cláusulas gerais – estariam no primeiro (KAUFMANN, 1966, p. 35). Nesse momento, a lei corresponde e situa-se no segundo estágio, porém o Direito é o total desses três estágios. A decisão jurídica é somada ao trabalho do legislador, em direção ao aperfeiçoamento pontual do Direito, já no sentido de sua concretização. A jurisdição não é criativa somente nos casos excepcionais, nem se reduz à simples aplicação da lei. Esta possui a função criativa, na medida em que esta encontra nas respectivas situações históricas a justa ordem, sendo o tribunal o local em que o Direito existe em sua plenitude. Logo, o juiz não se reduz à “boca que pronuncia a lei”; este passa a ser um parceiro na concretização do Direito (KAUFMANN, 1966, p. 35-37).
A total identificação do Direito com a lei, em última instância, estabelece o Estado de legalidade (ou de lei), em que o legislador pretende assumir completamente a determinação do Direito. Ao contrário, se admitir o Estado de Direito, a formação do Direito é de responsabilidade dos três poderes, sendo que cada um, dentro da sua própria competência, coopera com o outro na função da realização jurídica (KAUFMANN, 1966, p. 45).
A total não identificação entre a lei e o Direito é observável em algumas teorias e em escolas jurídicas. É necessário atentar-se que até à época moderna a redução da significação do Direito à lei não era possível. Por isso, as escolas e teorias jurídicas, sob esse aspecto, surgem depois do período codificista27. Em suma, reduzir o Direito à ordem de palavras instituídas pelo legislador, mesmo que democraticamente, não o torna democrático nem justo. Este é um fenômeno complexo que envolve o cotidiano das pessoas no constante e constituendo ambiente social. No seu desvelamento, não basta a simples participação do legislador e a interpretação da lei pelo juiz, mas de todos envolvidos no seu processo de concretização.
Por isso, é fundamental que todos os juristas tenham respondido, pelo menos, para si mesmos, a pergunta: o que é o Direito? Somente com essa resposta, o jurista contribuirá para evitar a confusão entre os institutos políticos (ou econômicos) e jurídicos no momento da exposição de ideias e formulação de pensamentos – fundamentalmente quando invocam a autonomia do Direito. Assim, o Direito é um fenômeno que abrange a lei; e esta auxilia em grande parte a concretizar o Direito.
5 Conclusão
A ruptura da sobreposição de significado do Direito e da lei tende a parecer revolucionária para os esquemas mentais forjados no espírito do positivismo jurídico. Embora atualmente existam diversas concepções que incluam e excluam prefixos para indicar a superação (ou a necessidade de) do positivismo jurídico com sua formalidade legal e arbitrária, encontra-se sem significado qualquer prefixo se antes as concepções não se atentarem para a existência de distinção ou não entre o Direito e lei. As concepções “inovadoras” não ultrapassarão a retórica tendenciosa se ainda se apegarem ao formalismo legal, redutor de um fenômeno mais complexo (Direito) que o processo democrático-legislativo como fundamento de tudo.
Não significa o desprezo pelo processo democrático. Pelo contrário, este é um dos elementos constitutivos do ambiente juridicamente voltado à dignidade humana. No entanto, o ponto crucial encontra-se na distinção entre a democracia que conduz ao mal-estar humano; e na democracia que direciona ao bem-estar. As duas podem ser apoiadas na lei, mas apenas a última pode ser apoiada no Direito. Nesse sentido, o Direito não pode ser resumido à decisão democrática momentânea. A lei democrática permanece útil ao Direito, mas não o é em sua totalidade; por isso, pode existir a ideia de lei injusta.
A conclusão que se chega – ainda que com ressalvas – é a necessidade de identificar o código como símbolo máximo do direito moderno, mas também da de desfazer a indistinção entre lei (legislação sistemática e unitária) e Direito. Portanto, não importa se essa distinção existe ou não para os positivistas ou para os jusnaturalistas. Todavia, esta é crucial às novas correntes que pretendem superar o juspositivismo e/ou o jusnaturalismo. Acredita-se, com isso, que a distinção entre Direito e lei deve estar presente nas novas teorias que combatam as duas correntes citadas acima.
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