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Linguagem dos juristas frente a representações jurídico-culturais de povos e comunidades tradicionais: o caso do conflito possessório envolvendo a comunidade quilombola de São Bento, Brejo/MA
Ruan Didider Bruzaca; Adriana Dias Vieira
Ruan Didider Bruzaca; Adriana Dias Vieira
Linguagem dos juristas frente a representações jurídico-culturais de povos e comunidades tradicionais: o caso do conflito possessório envolvendo a comunidade quilombola de São Bento, Brejo/MA
Jurist language in front of juridical and cultural representation of traditional folks and communities: the case of possessory conflict involving the quilombola community of São Bento, Brejo/MA/BRA
Prisma Jurídico, vol. 16, núm. 1, pp. 181-204, 2017
Universidade Nove de Julho
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Resumo: O presente artigo insere-se no contexto de conflitos jurídicos envolvendo territórios de povos e comunidades tradicionais. Pretende compreender o distanciamento entre as representações advindas da linguagem dos juristas e aquelas empreendidas no âmbito das relações de povos e comunidades tradicionais. Par tal, aborda a consolidação da legitimidade da linguagem dos juristas, a imposição de conformação de povos e comunidades tradicionais àquela linguagem e, por fim, o caso concreto do conflito possessório envolvendo a comunidade quilombola de São Bento, Brejo/MA. O marco teórico utilizado parte da concepção jusrealista e antiformalista de Santoro sobre o Direito, inserindo-a no estudo de Bourdieu a respeito do Estado e do campo jurídico. Quanto à metodologia, utilizou-se pesquisa documental, bibliográfica e de campo, estudando-se o caso concreto da comunidade São Bento.

Palavras-chave:Povos e Comunidades TradicionaisPovos e Comunidades Tradicionais, Linguagem dos Juristas Linguagem dos Juristas, Conflito Possessório Conflito Possessório, Comunidade Quilombola Comunidade Quilombola.

Abstract: This article inserts into the juridical conflicts context involving traditional folks and communities territory. Want to comprehend the distance between the representation from the jurist language and those from the traditional folks and communities relationship. For this, approach the consolidation of the jurist language legitimacy, the imposition of conformation of traditional peoples and communities to that language, in the end, the case of possessory conflict involving the quilombola communitie of São Bento, Brejo/MA/BRA. The theoretical framework used goes from the jusrealist and antiformalist concept of Santoro about the Right, inserting in the Bourdieu studies about State and the juridical field. As for the methodology, used documental, bibliographic end field research, with study of the São Bento community case.

Keywords: Traditional Folks and Communities, Jurist Language, Possessory Conflicts, Quilombola Communities.

Carátula del artículo

Linguagem dos juristas frente a representações jurídico-culturais de povos e comunidades tradicionais: o caso do conflito possessório envolvendo a comunidade quilombola de São Bento, Brejo/MA

Jurist language in front of juridical and cultural representation of traditional folks and communities: the case of possessory conflict involving the quilombola community of São Bento, Brejo/MA/BRA

Ruan Didider Bruzaca
Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Brasil
Adriana Dias Vieira
Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Prisma Jurídico, vol. 16, núm. 1, pp. 181-204, 2017
Universidade Nove de Julho

Recepção: 15 Maio 2017

Aprovação: 16 Outubro 2017

Introdução

Os conflitos fundiários envolvendo comunidades quilombolas no cenário brasileiro remetem a um contexto marcado pela histórica exclusão do referido grupo social, pela morosidade nos processos administrativos de titulação, por racismos institucionais, pela violência no campo e pela dificuldade de solução de conflitos judiciais. Quanto à dificuldade na solução de conflitos, a linguagem dos juristas pode remeter a representações que se distanciam daquelas articuladas por determinados grupos étnicos, como as referidas comunidades quilombolas.

Neste compasso, nos debates a respeito de cidadania e direitos, o tema dos direitos de povos e comunidades tradicionais ganha importância, principalmente em razão das dificuldades em adequá-los a determinadas figuras jurídicas existentes. Neste sentido, enquanto problema, indaga-se em que medida a linguagem dos juristas, quando da formulação de pedidos e de decisões, remetem a um distanciamento das representações jurídico-sociais de grupos étnicos.

O presente artigo tem como objetivo geral analisar o distanciamento das representações operadas pela linguagem dos juristas frente a representações de povos e comunidades tradicionais. Especificamente, pretende-se analisar a legitimidade de representações no campo jurídico; compreender a conformação de povos e comunidades tradicionais a representações provenientes da linguagem dos juristas e; realizar o estudo de caso da comunidade quilombola de São Bento, localizada na zona rural do município de Brejo, interior do Maranhão.

Para tal, utiliza-se como marco teórico a concepção de direito como prática social, conforme os ensinamentos do jusrealista e antiformalista Emílio Santoro (2005), em conjunto com a abordagem de Pierre Bourdieu (2014). Com isso, a referida concepção de direito é compreendida sob a égide do poder simbólico e da constituição do campo jurídico.

Quanto à metodologia, utilizou-se pesquisa bibliográfica, com obras e artigos pertinentes ao direito, à sociologia e à antropologia. Ademais, valeu-se de estudo de caso, referente ao conflito possessório envolvendo a comunidade quilombola São Bento, também sendo realizada pesquisa documental, referente à análise do processo administrativo de titulação quilombola e do processo judicial envolvendo a referida comunidade quilombola.

1 Legitimidade de representações no campo jurídico: reconhecimento de direitos desde práticas silenciadoras

As relações identificadas no mundo jurídico são marcadas pela linguagem, ou seja, são utilizados elementos linguísticos seja para produzir normas, seja para decidir um determinado caso. Neste compasso, observa-se uma identificação, operacionalizada por meio da linguagem, entre a realidade e as produções jurídicas, acarretando tanto na simplificação da realidade quanto no império de determinada gramática.

Segundo Adeodato (2012, p. 300-301), as expressões linguísticas promovem a comunicabilidade entre a realidade e a ideia. Trata-se de um elemento do conhecimento, constituindo uma “expressão simbólica propiciada na linguagem”, mas remete a uma incompatibilidade ontologia. Entende que na teoria do direito, as expressões linguísticas (fontes do direito) conectam as ideias (normas jurídicas) e a realidade (fato juridicamente relevante).

As “expressões linguísticas” são desta forma a “expressão simbólica desses fatos e normas” (ADEODATO, 2012, p. 297). Da mesma forma que a mediação da experiência humana ocorre partindo da socialização e da linguagem que “reencena as práticas sociais através das gerações, ao mesmo tempo que torna possível a diferenciação de passado, presente e futuro” (GIDDENS, 2002, p. 28-29), o mesmo ocorre no Direito. A experiência jurídica parte da socialização e da linguagem, existindo a consolidação, manutenção e transformação de categorias, ideias e procedimentos a partir das relações sociais e da língua.

Consoante tal pressuposto, as legislações, assim como as decisões judiciais, são consubstanciadas em expressões linguísticas, em textos escritos, que buscam conectar fato e norma, inseridos em um determinado contexto social. Tal conexão não significar completa identificação entre ideia e realidade, mas é operacionalizada no mundo jurídico e, consequentemente, instrumentalizada para a solução de conflitos existentes na sociedade. Trata-se de uma linguagem inserida na prática jurídica, que consolida categorias (como “sujeito de direitos”, “negócio jurídico”, “propriedade” etc) na tentativa de aproximar a norma do real.

As expressões linguísticas constituem pressuposto gnosiológico, compreendendo ato cognitivo objeto da semiótica, da teoria da linguagem e da comunidade (ADEODATO, 2012, p. 300). Entende-se que representa a forma pela qual em sociedade e por meio da linguagem se traduz a realidade em norma, inserindo-se no Direito enquanto elemento que faz parte da prática jurídica.

Neste compasso, os discursos e a linguagem permeiam a consolidação das figuras do sujeito e dos direitos, acarretando na tentativa de identificação com os indivíduos e os direitos que lhes caibam, por meio daquelas referidas expressões. Importa destacar que, conforme a classificação abordada por Hall (2007, p. 10-11), entende-se que o sujeito no Direito confunde-se com o do Iluminismo, consubstanciando “um indivíduo totalmente centrado, unificado”.

Destarte, parte-se do marco temporal da modernidade e da consolidação dos diversos modelos de Estado de Direito, que repercute na construção de direitos, dos sujeitos e dos objetos de direitos. Assim, observa-se desde tais instituições modernas a submissão a “uma fonte poderosa de significados para as identidades”, como quando da submissão da sociedade ao Estado-nação (HALL, 2007, p. 49).

Não se trata de significados e identificações enquanto algo dado. Resulta de relações sociais, no qual determinados sujeitos e gramáticas sobrepõem-se a outras. Aquela unificação do sujeito no âmbito das instituições modernas perpassa por conquistas violentas, subjugando povos, culturas, línguas, tradições, impondo-se uma “hegemonia cultural mais unificada” (HALL, 2007, p. 59-61).

A composição do Estado-nação enquanto homogeneizador de sujeitos, portadores de direitos definidos no âmbito dos códigos, reconhecidos e interpretados pelos juristas, remete a uma forma representação cultural. Hall (2003, p. 78-79) destaca essa “representação cultural” quando apresenta o problema da universalização da forma cívica, na qual os Estados-nação são vistos como “comunidade imaginada”. Em resumo, não se trata de uma construção natural, mas sim no âmbito de relações sociais que implicam inclusões e exclusões.

Seguindo, consoante a concepção de Direito enquanto “prática social”, este não se resume à decisão, à norma ou ao ordenamento, mas sim “a uma subjetividade-objetividade do compreender, garantida e controlada internamente por um contexto comunitário no qual o Direito é elaborado e vivido”, observando-se uma “complexa práxis jurídica discursiva [que] confere sentido ao Direito” (SANTORO, 2005, p. 55-56).

As expressões linguísticas estão inseridas no contexto da prática jurídica que, caracterizada por discursos, consubstancia o Direito. Em resumo, a compreensão do Direito remete à existência da relação entre diversos elementos linguísticos e discursos, desde a tentativa de identificação entre realidade e ideia até a atribuição de sentido adequado ao Direito.

Partindo da concepção de Direito enquanto prática, observa-se a existência de uma gramática definida pela “comunidade interpretativa”, que limita a interpretação, conectando seus membros a uma “tradição jurídico-institucional” – delimita o conflito de interpretação, define a manutenção de linhas interpretativas e indica caminhos para a evolução da prática jurídica (SANTORO, 2005, p. 56-57). As expressões linguísticas estão inseridas no mundo jurídico, entrelaçando-se com discursos da prática jurídica que consolidam a compreensão do Direito conforme a gramática da comunidade interpretativa.

Os aspectos gramaticas e práticos para a consolidação do Direito pode se relacionar com a descrição empreendida por Rosenfeld (2003) a respeito da análise do sujeito constitucional. Para o referido autor, o debate sobre o sujeito constitucional remete à identidade constitucional, que pode ser alterada pelo tempo e relacionada com outras identidades (nacionais, étnicas e culturais). Continuando, destaca que quanto ao aspecto textual, a apreensão da identidade parte por uma longa corrente de interpretação e elaboração das decisões das cortes.

Estas produções discursivas são empreendidas pelo jurista, que pertence a uma comunidade profissional dotada de ações, interações e reconhecimento, ou seja, “seu discurso espelha os conflitos, as solidariedades, as relações de poder, os esquemas comportamentais, os valores, as normas socialmente compartilhadas, típicas de seu ambiente” (SANTORO, 2005, p. 63). Deste modo, a consubstanciação do Direito passa pela gramática dos juristas, que domina a relação entre realidade e ideia, a existência de direitos e a solução de controvérsias jurídicas.

Assim, o reconhecimento de direitos, de sujeitos e de fatos jurídicos pelo jurista é consolidado em comunidade, de acordo com determinadas regras e métodos, guiado por uma linguagem, operacionalizado de acordo com o habitus. O papel dos juristas nessa representação da realidade é aprofundado quando se observa sua atividade interpretativa – inclusive quando a eles é conferida a capacidade de dizer o que é o direito, não resumindo este a codificações.

Entretanto, o império da referida gramática decorre da prévia consolidação de um campo pelos juristas. Bourdieu (2014, p. 66) atenta que os juristas auxiliaram na construção do Estado, ou seja, na construção de “recursos específicos que autorizam seus detentores a dizer o que é certo para o mundo social em conjunto”. Ademais, Miceli (2014, p. 23-24) destaca que os juristas elaboraram teorias para legitimar o Estado, defendendo uma única jurisdição, seguida pela acumulação de informações, “convertendo o metapoder em unificador teórico”, legitimando o Estado e transformando-se em “detentores do capital particular do jurista”.

Assim, a “identidade de Estado”, ou seja, a classificação, quantificação e codificação da sociedade, mesmo em desacordo com ela, é aceita por ser uma “produção de identidade social legítima” (BOURDIEU, 2014, p. 37-38). Trata-se da legitimidade das expressões linguísticas (a exemplo das legislações), mesmo imprecisas, que se inserem no campo jurídico enquanto elemento que dialoga com discursos para alcançar o Direito.

Segundo Dezelay e Trubek (1998, p. 31), o campo jurídico envolve a articulação de instituições e práticas que resultam na produção, interpretação e aplicação da legislação, determinando as decisões dos juízes. Há, segundo Bourdieu (1989, p. 212-213), uma correlação de forças que resultam no corpus jurídicos, não sendo neutro e independente das relações existentes na sociedade.

Portanto, as categorias jurídicas criadas no âmbito do Estado e aquelas construídas desde a prática dos juristas consolidam e legitimam uma representação da realidade, cuja imprecisão pode remeter à posterior conformação da sociedade e dos sujeitos que a compõe – com o império da linguagem do jurista. A gramática dos juristas, desenvolvida no seio de sua comunidade, comunica-se à anterior linguagem de classificação, quantificação e codificação da realidade. Os juristas, ao passo que legitimaram o Estado, legitimaram-se enquanto sujeitos capazes de dizer o que é o Direito.

Carvalho Netto (2003) destaca que no Direito existe uma tutela paternalista, na qual os tutores/defensores manipulam e instrumentalizam os cidadãos, crendo na sua superioridade em relação aos demais e os desqualificam como interlocutores. Em outros termos, o jurista é legitimado para proteger sujeitos, sendo estes ilegítimos no campo para dizer o que é direito conforme sua própria linguagem. Existindo a linguagem construída pela comunidade de juristas, em sua prática, define-se a realidade e remeter a exclusão de determinados sujeitos que não compõem essa comunidade.

Neste compasso, na prática dos juristas, as expressões linguísticas são tidas como instrumentos de sua atuação. Tanto a sua prática quanto a sua gramática são legitimadas, sendo a conformação da realidade à ideia dominada pela linguagem do jurista, descartando outras formas de representação da realidade. Neste sentido, Castro (139-140) apresenta, no âmbito do Estado e da Constituição, a consolidação de ideias como sujeito e indivíduo que quando se deparam com comunidades inteiras, como aquelas formadas por “índios”, impõem mascaras como “sujeitos coletivos de direitos coletivos”, o “supra-individual”, o “Super-Indivíduo”.

Com a legitimidade do jurista, entende-se ainda pela existência de silenciamentos. Nos dizeres de Spivak (2010, p. 31-32), nos atos de representação há “um ato de fala em que há a pressuposição de um falante e de um ouvinte”. Por outro lado, “[n]esse espaço dialógico de interação não se concretiza jamais para o sujeito subalterno que, desinvestido de qualquer forma de agenciamento, de fato, não pode falar” (ALMEIDA, 2010, p. 13). Em outros termos, desde a formação do Estado moderno e com o reconhecimento da existência de uma comunidade de intérpretes, o jurista monopoliza o ato de fala, seja para legitimar o Estado, seja para dizer o que é o direito.

Bourdieu (1989, p. 225) atenta que nem todos participam do jogo no campo jurídico, havendo a determinação de quem participa ou não deste, ou seja, uma “imposição de uma fronteira entre os que estão preparados para entrar no jogo e os que, quando nele se acham lançados, permanecem de facto dele excluídos”. Neste sentido, dentre os que participam do jogo estão os juristas. Já grupos que mantém práticas jurídicas e sociais alheias aqueça desenvolvida no seu campo e legitimado junto ao Estado são excluídos.

Com isso, o jurista reproduz gramáticas, linguagens, técnicas e modos de se comportar, empreende expressões linguísticas que refletem o habitus no campo jurídico, legitimam e criam representações da realidade. Não obstante terem se legitimado, trata-se de uma operação que acarretam em exclusão de interlocutores, como a impossibilidade do outro falar, conforme será destacado no tópico a seguir.

2 Representação dos juristas x representações culturais de grupos étnicos: uma abordagem sobre as relações com a terra e o território

Os juristas são legitimados, no e pelo seu campo, a dizer o que é o direito, desde teorias que sustentam o monopólio jurisdicional do Estado até a aplicação de dispositivos legais. Entretanto, quando se torna a realidade abstrata, deixa de lado outras formas de representação, seja pela negação da legitimidade de formas jurídicas alheias ao estado, seja pela própria exclusão e silenciamento histórico de determinados grupos.

Segundo Geertz (1997), a descrição do fato que permite ao advogado defender e ao juiz julgar é uma representação, sendo o mundo apresentado pelo direito conforme suas formas de sentido. Trata-se, segundo o referido autor, de uma maneira específica de imaginar a realidade. Com isso, esta forma de imaginar a realidade pode, em determinado momento histórico e social, remeter a monopólios e excluir outras imaginações e culturas.

Se houve no Direito o império de um sujeito de direito alinhado à concepção Iluminista, a isto Wolkmer (2001, p. 26-27) acrescenta que ocorreu a consolidação de na moderna cultura europeia ocidental uma concepção burguesa e capitalista, assentada na ideologia liberal-individualista e na centralização política, por meio de um Estado Nacional Soberano. Com isso, formas de representação alinhadas às expressões linguísticas destacadas no tópico anterior repercutem na compreensão da realidade e na resolução de conflitos jurídicos.

Neste sentido, é importante compreender a influência de sujeitos como o consagrado no Código Civil napoleônico e sua consequente repercussão em ordenamentos jurídicos como o brasileiro. As propostas da Revolução Francesa, postas por membros da classe burguesa, resultaram na necessidade da ordem, da estabilidade e da hierarquia para preservar a individualidade, a liberdade, a propriedade e o lucro, o que se consolidou com o Código Civil Francês, de 1810, o Código de Napoleão (AGUIAR, 1994, p. 52).

Neste sentido, o ser humano napoleônico é descrito no Código Civil napoleônico, ou seja, um homem útil e disciplinado para a produção industrial. É este ser humano que se observa em leis, doutrinas e jurisprudências – trata-se assim de um sujeito de direito abstrato e individualista (AGUIAR, 1994, p. 55). Esta forma de representar a realidade é observada nas lides civis, como os que envolvem o conflito de terras, tornando abstratos os sujeitos e objetos de direito.

Assim, os indivíduos tornam-se abstratos, transformados em “sujeitos”, “proprietários”, “possuidores”, “detentores”. A terra é traduzida em “propriedade privada”, passível de apropriação, cujo trabalho na terra transforma-se “posse” ou “domínio”. Disto há a possibilidade de tutela, por meio de “ação de reintegração de posse”, ou “ação manutenção de posse”, ou “interdito proibitório”. Para tal, é necessário comprovar a referida “posse” e, por vezes, mostra-se necessário demonstrar a “função social da propriedade”.

Esta conformação da realidade a determinadas representações remente ao que Michel Miaille (2005, p. 63) determina como universalismo a-histórico, explicando-se tudo por meio de “ideias”, destacado do contexto geográfico e histórico. Assim, encobrem-se não somente aspectos históricos e geográficos, mas também ideologias, relações de poder e de dominação.

O mesmo se passa em relação ao discurso produzido pelo jurista, conforme destaca Santoro (2005, p. 63):

O jurista produz o próprio discurso enquanto sujeito pertence a uma específica comunidade profissional, exatamente aquela dos juristas, como direito cujo papel é definido por um denso retículo de ações, interações e reconhecimentos. Seu discurso espelha os conflitos, as solidariedades, as relações de poder, os esquemas comportamentais, os valores, as normas socialmente compartilhadas, típicas de seu ambiente.

Todavia, partindo-se de ideias e das expressões linguísticas, imiscuídas no discurso jurídico, observa-se a tentativa de universalização. Existem em cenários marcados por uma pluralidade étnica e cultural, como no Brasil, formas de resistência de grupos étnicos sociais e reconhecimentos de direitos – muitos ainda no âmbito da legitimidade do Estado e dos juristas. Neste sentido, conforme destacado no tópico anterior, o Estado exerce a função de classificar e codificar a sociedade, muitas vezes conformando grupos étnicos a formas que não partem de suas representações.

O Direito, desta forma, impõe aos indivíduos a representação de papeis, como comerciante, funcionário, pai, dentre outros, inseridos em um jogo social, implicando “a necessidade de uma ordem, de uma organização, quer dizer, de um conjunto de normas que estabelecerão a medida destas relações sociais” (MIAILLE, 2005, p. 92-93). Não obstante, nem todas as representações culturais se alinham a tais formas que o Direito representa a realidade.

Para Marshall (1967, p. 61), existe necessidade de buscar recursos e produção capazes de fornecer as bases para que todo homem se torne um cavalheiro, fornecendo educação e eliminando o trabalho excessivo. Ademais, haveria “a reivindicação de todos para gozar dessas condições [enquanto] exigência para ser admitido numa participação na herança social”.

Não obstante, o ser cavalheiro acima descrito parte de uma representação da realidade, que desencadeia o conteúdo das normas, as decisões judiciais e consequentemente o Direito. Enquanto prática, conforme destacado anteriormente, estas formas de representações, muitas vezes traduzidas em expressões linguísticas, repercutem nas ações, procedimentos, técnicas, em resumo, no habitus do meio jurídico.

No caso, ser cavalheiro é ser cidadão, é ter direitos e, conforme destaca Souza (2003, p. 181), “em sociedades periféricas modernizadas de fora para dentro, como a brasileira, ‘gente’ vai ser o ‘europeu’”. Neste sentido, constrói-se decima para baixo, de forma eurocêntrica e etnocida padrões jurídicos e sociais que excluem e silenciam sujeitos por se distanciarem de práticas culturais, jurídicas e étnicas dominantes.

Seguindo, há que se analisar o caso dos embates envolvendo povos e comunidades tradicionais. Esta preocupação ocorre em razão de o Estado – e consequentemente o Direito que auxilia a produzir – falhou em cumprir suas obrigações e em realizar seu projeto de nação, sendo “o depositário da herança da conquista, o herdeiro direto do conquistador” (SEGATO, 2014, p. 81).

Assim sendo, esta imposição de representações que conformam a realidade de povos e comunidades tradicionais a formas específicas de imaginação dificultam a capacidade do jurista, do juiz e do Estado em solucionar determinados conflitos sociais. Neste sentido, a análise de conflitos possessórios envolvendo comunidades quilombolas exemplifica o distanciamento entre as formas jurídicas legitimadas no campo jurídico e as representações culturais articuladas no âmbito do referido grupo social.

Assim, Almeida (2008, p. 133-134) apresenta a existência de modalidades de uso comum da terra que consistem em situações em que o uso dos recursos não se faz livre e individualmente por um determinado grupo, não havendo previsão em lei. Apresenta que são instituídos por grupos familiares que compõem uma unidade social. As normas de uso da terra ocorrem em territórios, funcionando como fator de identificação, resultando na concepção de “terra comum”, inalienável e essencial, instituída solidariamente.

Não se trata da propriedade do sujeito individual-liberal-burguês de matriz napoleônica ou da perspectiva civilista brasileira, conforme apresentando parágrafos antes. Por outro lado, são relações com a terra e o território que podem não se identificar com formas jurídicas existentes na lei ou em decisões judiciais. Em outros termos, não se identificam com expressões linguísticas que podem não permear na comunidade jurídica.

Continuando, Almeida (2008, p. 134) apresenta que o acesso a recursos básicos não se dá apenas por familiares, parentes, grupos de povoado ou aldeia. Podem-se inserir sujeitos que formam relações coesas e solidárias com o grupo, do contrário resultar-se-á na impossibilidade do uso dos recursos. Assim, a ideia de “terra comum” possui desdobramentos: “terras de parente”, “terras de preto”, “terras de índio”, “terras de santo”. Entretanto, não se identifica com a “propriedade privada” protegida pelo Direito.

Neste cenário, observam-se laudos elaborados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, contendo informações sobre os imóveis rurais e seus detentores. Neste documento, as terras comuns foram denominadas “ocupações especiais”: “abrangendo dentre outras, as chamadas ‘terras de santo’, ‘terras dos índios’ (que não devem ser confundidas com as terras indígenas), ‘terras de negro’, ‘fundo de pasto’ e ‘pastos comuns’, também cognominados ‘terras abertas’, ‘terras soltas’ e ‘campos’” (ALMEIDA, 2008, p. 138-139).

Diferente disto, expressões linguísticas presentes na prática do direito civil dificilmente coincidem com aquelas formas de representação, empreendidas por culturas e etnias que se afastam da dominante. Com isso, assemelha-se ao entendimento de Wolkmer (2001, p. 97), para quem o modelo montado para resolver conflitos de natureza individual e civil é incapaz de apreciar devidamente os conflitos coletivos de dimensão social. Ademais, a estrutura legal vem procurando sempre deslegitimar as manifestações normativas não-estatais.

O judiciário e a legislação civil inserem-se “[...] no contexto de uma sociedade burguesa agrário-mercantil, defensora de uma ordenação positivista e de um saber jurídico inserido na melhor tradição liberal individualista” (WOLKMER, 2001, p. 97). A prática do jurista e sua comunidade não estão alheias a este cenário. Com isso, podem repercutir na manutenção das exclusões e domínio de representações da realidade que se afastam de outras manifestações étnicas e culturais.

Shiraishi Neto (2007, p. 29-30) destaca que existem grandes dificuldades jurídicas operacionais em “enquadrar” determinados grupos étnicos e sociais em modelos jurídicos preexistentes. Ademais, apresenta que em determinadas situações, a imposição de tais modelos jurídicos “constituem muitas vezes um empecilho à reprodução física e cultural dos povos e comunidades tradicionais”.

Assim sendo, observa-se um funcionamento do Estado e de seu arcabouço jurídico-legal alinhado àquela apresentada ao longo do presente artigo, ou seja, enquanto “moinhos produtores de substâncias, categorias, papéis, funções, sujeitos, titulares desse ou daquele direito etc” (CASTRO, 2008, p. 144). Novamente, classifica-se, quantifica-se e canoniza-se segundo uma legitimidade do Estado e do jurista, que é construída e que se insere na prática e no cotidiano jurídico.

O atrofiamento dos indivíduos e de coletividades em razão de modelos jurídicos dominados por determinadas gramáticas repercute em empecilhos na reprodução de grupos sociais. Neste sentido, o caso da comunidade quilombola de São Bento exemplifica as dificuldades em impor determinadas representações da realidade a determinados grupos étnicos e culturais – é o que se passa a analisar.

3 Conflito possessório envolvendo a comunidade quilombola de são bento, brejo/ma: a simplificação da realidade pela linguagem dos juristas

A comunidade quilombola de São Bento localiza-se no município de Brejo, interior do Maranhão. Compõe a região do Baixo Parnaíba Maranhense, às margens do Rio Parnaíba, divisa com o estado do Piauí. A referida região, como outras no Maranhão, é marcada por diversos conflitos envolvendo a terra, principalmente em razão do avanço do agronegócio, pela insuficiente reforma agrária e histórica concentração de terras. O município também é marcado pela presença de diversas comunidades quilombolas, como as de Depósito e Saco das Almas – esta última constitui um dos maiores territórios quilombolas da região.

O Baixo Parnaíba Maranhense1 é marcado por diversos conflitos agrários, como os decorrentes das investidas do agronegócio, que causam problemas socioambientais, violência e expulsão da população do campo (GERUR, 2014, passim) – além de ser marcado por problemas decorrentes da histórica ausência de distribuição de terras. Neste cenário, também se inserem conflitos envolvendo comunidades quilombolas, várias sem titulação finalizada, situação agravada com o ajuizamento de ações possessórias.

Quanto a São Bento, as narrativas sobre a comunidade advêm de membros e da sociedade civil organizada que a acompanha, como o Centro de Defesa de Direitos Humanos de Santa Quitéria e a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos. Segundo aquelas, a constituição da comunidade remonta à existência da ancestralidade negra, bem como do desmonte histórico das relações sociais e territoriais provocadas pela intervenção de latifundiários, com consequente expulsão da população.

Atualmente corre no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agraria o Processo Administrativo SR-12MA 54230.001024/2013-24, que visa a titulação do território quilombola em nome da Associação Comunitária Afrodescendente de Quilombo do Povoado São Bento da Data Genipapo. A referida comunidade já conta com a certidão de autodefinição quilombola, expedida pela Fundação Cultural Palmares (SMDH, 2014).

Ocorre que em face de Francisco de Assis Martins Ferreira, um dos membros da comunidade, foi ajuizada uma “Ação de manutenção de posse com liminar com interdito proibitório cumulada com perdas e danos”, que se refere ao Processo nº 0001176-73.2013.8.10.0076 (905532013), Comarca de Brejo/MA. Disto se observa as implicações da linguagem do jurista, seja nas petições dos advogados das partes, seja na decisão proferida pelo juízo de Brejo.

Na petição inicial (TJ/MA, 2013a), observa-se a preponderância da concepção civilista voltada para a proteção da propriedade. Com isso, ao invés de compreender a realidade quilombola, valeu-se das abstrações jurídicas, provenientes de expressões linguísticas e da prática do jurista, para empreender a tutela de um bem jurídico, mesmo que em descompasso com as formas de representação cultural empreendidas na comunidade. Neste sentido, discute-se em termos de “propriedade”, “posse”, “esbulho” e “turbação” uma relação social que remonta a aspectos sociológicos, históricos e antropológicos.

Entretanto, Almeida (2008, p. 134-135) apresenta que a forma de uso da terra por comunidades tradicionais, como as comunidades quilombolas, colide com disposições jurídicas e econômicas vigentes, cujo catálogo por instituições estatais é quase inexistente, dependendo o reconhecimento desse sistema por atuações de pesquisadores e técnicos que realizam pesquisas e vistorias in loco.

Conforme se observa, as práticas do referido grupo não necessariamente coadunam com as formas legais dominantes envolvendo os Direitos Reais. Resumir a atuação do jurista a esta visão pode resultar na desconsideração de diversos direitos em favor de direitos individuais e patrimoniais. Duprat (2007, p. 23) destaca que é necessário que o aplicador do direito, em relação aos direitos de comunidades quilombolas, deva compreender o ambiente que recai a norma e dar atenção às pessoas que lhe conferem – compreender, ao invés de interpretar, é sair do pensamento e ir à prática, fazendo-a falar.

Seguindo, de acordo com o art. 927 do Código de Processo Civil de 1973 (atual art. 561, do Código de Processo Civil de 2015), as decisões liminares em ações possessórias serão concedidas quando comprovada a posse, a turbação e o esbulho, a sua data e a continuação da posse. Entretanto, defende-se na peça a necessidade de proteção da propriedade, juntando como prova o título de propriedade e relações indiretas de posse (TJ/MA, 2013a).

Não comprova o cumprimento da função social da propriedade, nem destaca o fato de a comunidade ser quilombola. Preponderam assim as noções constituídas no âmbito do direito civil, mais precisamente dos direitos reais, de cunho estritamente civilista e que se alinha a determinados sujeitos – especialmente na figura do proprietário, capaz de adquirir e alienar bens, diferente daqueles que com a terra possuem relações ancestrais e culturais.

Por fim, realiza pedido solicitando a reintegração da posse à parte autora e impedindo o acesso à propriedade dos ditos “invasores” (TJ/MA, 2013a). Não obstante, conforme destacado anteriormente, as relações existentes entre comunidade quilombola e território não se traduz da mesma forma que as relações civis visam realizar a ligação entre sujeito e objeto de direito.

Da mesma forma ocorre com a decisão do conflito, assim proferida ao final:

Defiro, pois, a liminar de manutenção liminar da posse, com fundamento nos arts. 1.210 do Código Civil e 926 a 928 do Código de Processo Civil, e de interdito proibitório, ex ci do art. 932 CPC.

Comino ao requerido a pena de R$ 500,00 (quinhentos reais) ao dia, na hipóteses de transgressão à ordem judicial aqui estabelecida, até o limite de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) às custas do réu a serem revertidas a favor do Autor.

Expeça-se mandado liminar de manutenção e interdito proibitório para que se abstenha o réu: de retirar qualquer madeira, efetuar picadas, demarcações, alterações de limites, construções ou desfazimentos, e plantios sem a autorização do autor E/OU efetue/prova qualquer tipo de invasão, ainda que por terceiros, em ato atentatório ao livre exercício da posse do requerente na área em questão (TJ/MA, 2013b).

Certamente que conflitos jurídicos ajuizados necessitam de fundamentos previstos em lei, bem como na formulação de normas jurídicas particulares aos casos concretos. Entretanto, o que se percebe é que a representação da realidade operada se sobrepõe a outras, como no caso em tela. As relações envolvendo a propriedade dizem respeito a um sujeito liberal-individual-burguês que não se confunde com os direitos referentes a comunidades quilombolas.

Assim, a privação da propriedade àquele sujeito resulta numa privação predominantemente patrimonial, diferente do que ocorre com povos e comunidades tradicionais. Para estes, a privação do território repercute na impossibilidade da reprodução das relações sociais, étnicas e culturais que lhe são características.

Neste sentido, O’Dywer (2010, p. 43) destaca em relação à territorialidade quilombola, que a ocupação da terra não se dá em lotes individuais, mas sim pelo uso comum, obedecendo a sazonalização das atividades. Em outras palavras, não predomina a relação patrimonial, primazia de tutela do direito civil, mas sim relações de uso comum e de reprodução cultural.

As “perdas e danos” possuem um significado específico no Direito e envolvem novamente questões patrimoniais e morais específicos de um determinado sujeito. Suas formas de reparação são predominantemente feitas em termos de “indenização” e “obrigações de dar, fazer e não fazer”. Apesar das particularidades, é imposto universalmente. Assim, Almeida (2008, p. 141) apresenta que a incompreensão de determinadas relações territoriais, como as que ocorrem em terras comuns, impossibilita entender a economia de determinados grupos étnicos. Conhecer possibilita uma imposição a medidas de remoção e reassentamento – que não raro ocorre em ações de reintegração ou manutenção de posse.

Imperando uma gramática específica, afastada de outras realidades étnicas e culturais, formula-se um senso que se insere na prática do jurista. Para Warat (2010, p. 53), trata-se de um senso comum teórico dos juristas, no qual há o “emprego estratégico dos conceitos na práxis jurídica” ou o emprego da episteme como doxa – aqui é possível perceber o valor político do processo de objetivação e torna ideológico o discurso da episteme.

Em algumas situações, diferente do que ocorreu no caso de São bento, observam-se decisões que compreendem as especificidades dos povos e comunidades tradicionais. Entretanto, ainda sob a ótica da legitimidade do campo e do monopólio de sua gramática. Assim, utilizando-se o judiciário como exemplo, é possível observar em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a preservação do direito à posse de comunidades quilombolas:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL.AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. TERRENO DE MARINHA. ILHA DA MARAMBAIA. COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBOS. DECRETO N.º 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003, E ART. 68 DO ADCT. [...] 6. Os quilombolas tem direito à posse das áreas ocupadas pelos seus ancestrais até a titulação definitiva, razão pela qual a ação de reintegração de posse movida pela União não há de prosperar, sob pena de por em risco a continuidade dessa etnia, com todas as suas tradições e culturas. O que, em último, conspira contra pacto constitucional de 1988 que assegura uma sociedade justa, solidária e com diversidade étnica. 7. Recurso especial conhecido e provido (BRASIL, 2010, grifos nossos).

Assim sendo, exemplificou-se a partir de um caso concreto a problemática da forma como a comunidade de interpretes, ou seja, dos juristas, traduzem a realidade dos conflitos envolvendo o território das comunidades quilombolas – tendo em vista que a proteção dos direitos destas conflitam com visões tradicionais dos direitos reais, acarretando no aprofundamento das desigualdades e na negação de direitos. Em outros termos, compreendem a realidade ainda alinhada a gramáticas e linguagens monopolizadas em desfavor de uma abertura àquelas que não são técnicas, científica e politicamente usuais, como a de povos e comunidades tradicionais, que podem continuar silenciadas.

Considerações finais

No Direito observa-se o uso de linguagens e gramáticas que traduzem a realidade em termos jurídicos, dispositivos, decisões, inseridas em na prática jurídica e legitimada em um campo jurídico. Não obstante, esta representação remete a uma simplificação que exclui e silencia outras formas de compreender a realidade, principalmente aquelas dotadas de particularidades étnicas e culturais, como as provenientes de povos e comunidades tradicionais.

As expressões linguísticas estão inseridas nesse contexto e influenciam na tomada de decisões, no ensino jurídico e na prática jurídica, apesar de imprecisa na conexão entre realidade e ideia. Não obstante, legitima-se enquanto forma adequada de resolver conflitos, resultado de um monopólio da capacidade de dizer o que é o Direito – seja no âmbito do Estado, seja no campo jurídico.

As representações jurídico-culturais de povos e comunidades tradicionais, alheias a tal gramática dominante e legitimada, consubstanciam sujeitos que se afastam daquele geralmente consagrado na prática jurídica. Especialmente, destaca-se o distanciamento em relação ao sujeito liberal-individual-burguês, evidenciando um descompasso no momento de tutela de direitos.

Assim sendo, o caso da comunidade quilombola de São Bento exemplificou esse distanciamento, no qual o império da gramática do jurista repercute na abstrativização da realidade em desfavor das práticas econômicas, sociais, culturais e étnicas de povos e comunidades tradicionais. Neste sentido, o debate a respeito das garantias de direitos em juízo circundam termos, vocábulos e institutos particulares a uma forma de representação da realidade.

No âmbito da classificação, quantificação e canonização de normas, de expressões e de representações da realidade no âmbito estatal e na prática do jurista, a desqualificação de sujeitos historicamente excluídos enquanto aptos a dizer o que é direito resta evidenciado. Apesar destas dificuldades, existe resistência interna e externamente por parte de tais grupos sociais à prática social consubstanciada na comunidade de interpretes legitimados, ou seja, dos juristas.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
1 A respeito da referida região, Gaspar e Andrade (2015, p. 111) destacam: “Oficialmente denominada de Leste Maranhense pelo IBGE, essa Mesorregião é conhecida também genericamente como Baixo Parnaíba. Esta denominação é adotada, principalmente, por integrantes de movimentos sociais como o Fórum em Defesa da Vida do Baixo Parnaíba Maranhense, membros de associações comunitárias, instituições confessionais e sindicatos de municípios da região. A referência ao chamado Baixo Parnaíba não coincide com a área oficial correspondente à Mesorregião Leste Maranhense, mas se refere, principalmente, às áreas geográficas que integram alguns municípios dessa região, como Santa Quitéria do Maranhão, Brejo, Anapurus, Mata Roma, Chapadinha, Buriti, Urbano Santos, São Bernardo, Barreirinhas, Belágua, São Benedito do Rio Preto, Santana do Maranhão, Milagres do Maranhão”.
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