Resumo: O presente estudo tem por objetivo analisar o artigo 29 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e suas nuances interpretativas. A interpretação pro homine guarda nuances que só podem ser compreendidas tendo-se em conta os corretos conceitos e pressupostos para o seu desenvolvimento. Aliada a um controle de convencionalidade, a internacionalização dos Direitos Humanos permite estabelecer standards mínimos de proteção, que são complementados pelos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no sistema regional interamericano.
Palavras-chave:Interpretação Pro HomineInterpretação Pro Homine, Controle de Convencionalidade Controle de Convencionalidade, Direitos Humanos Direitos Humanos.
Abstract: This study aims to analyze the article 29 of the American Convention on Human Rights and its interpretative nuances. Pro-homine interpretation holds nuances that can only be understood by taking into account the correct concepts and presuppositions for its development. The internationalization of Human Rights allows for the establishment of minimum standards of protection, which are complemented by the precedents of the Inter-American Court of Human Rights in the inter-American regional system.
Keywords: Pro Homine Interpretation, Conventional Control, Human Rights.
A interpretação pro homine da convenção americana de direitos humanos: desafios e perspectivas
THE PRO HOMINE INTERPRETATION OF THE AMERICAN CONVENTION ON HUMAN RIGHTS: CHALLENGES AND PERSPECTIVES
Recepção: 28 Abril 2017
Aprovação: 25 Outubro 2017
Uma república tumultuada. Passado o recente processo de impeachment, vive-se um clima de grande instabilidade política, e tal conjuntura influencia as concepções de institutos jurídicos que são aplicados cotidianamente. A ausência de um padrão hermenêutico claro enseja um verdadeiro sincretismo metodológico, rejeitando métodos tradicionais e colocando no mesmo polo teorias incompatíveis, como leciona Virgílio Afonso da Silva (2005, p. 141). Pouco ou nada se menciona acerca de textos normativos internacionais, sendo que sua utilização, quando existe, é feita com um espectro meramente retórico. Direitos humanos no plano internacional? Pouco se fala sobre isso no cotidiano forense.
Para evitar equívocos, cumpre dizer que, neste estudo, adota-se a diferenciação de Ingo Sarlet (2010, p. 29) de forma que Direitos Humanos e direitos fundamentais, apesar de serem utilizados por muitos como sinônimos, diferenciam-se pois o último termo é reservado aos direitos do ser humano já reconhecidos e positivados na esfera constitucional de determinado Estado, enquanto que a expressão “Direitos Humanos” guarda relação com os documentos de direito internacional, que reconhecem o ser humano enquanto tal, independentemente da ordem jurídica estatal, aspirando a uma validade universal.
A despeito da adoção da diferença acima, este trabalho utilizará algumas teorias desenvolvidas para os diretos fundamentais, transportando-as para a apreciação dos Direitos Humanos, quando entender cabível.
Mesmo sendo um lugar-comum, deve-se lembrar que a internacionalização dos Direitos Humanos é um movimento do pós-guerra, em reação às atrocidades do regime nazista, que ceifou 11 milhões de vidas no holocausto. Tendo acordado para a necessidade de um esforço global de proteção aos Direitos Humanos, a comunidade internacional passou a consagrar a centralidade do indivíduo. Este processo de internacionalização fez com que se revisasse a noção de soberania, antes ilimitada, agora convivendo com compromissos mútuos em convenções internacionais. Os Direitos Humanos são interesse de toda a comunidade mundial, não podendo haver limitações aos mecanismos de monitoramento internacional. Tais direitos dizem respeito a todos os Estados conglobados na comunidade internacional, mercê de sua inegável indivisibilidade (MAZZUOLI, 2012, p. 541-554).
É curioso observar, como José Luiz Bolzan de Morais (2011, p. 105-118) que, também com a globalização, há uma radical mudança do caráter soberano do Estado contemporâneo, que passa (o caráter soberano) a ser partilhado e convive com a perda de sua centralidade exclusivista e superior. Presencia-se uma crescente e reconhecida desterritorialização dos Direitos Humanos, que pode ser vista na abertura expansionista da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, quando prescreve, no artigo 5º, § 2º, que os direitos e garantias expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República seja parte (BRASIL, 1988). É uma nova era dos Direitos Humanos, com interação construtiva do nacional com o internacional, em uma verdadeira internacionalização do direito constitucional, que se complementa pela internalização do direito internacional público.
A interação da Constituição de 1988 é ainda mais estreita com os Direitos Humanos do que se poderia imaginar, bastando mencionar que seu artigo 4º, inciso II, estabelece como princípio reitor da República, na ordem internacional, a prevalência dos Direitos Humanos (BRASIL, 1988).
Os antigos cânones de unidade, plenitude e coerência do ordenamento jurídico interno devem ser revistos diante de uma realidade plural, em que há a abertura do sistema constitucional. Os Direitos Humanos constituem uma ordem axiológica que representa não só a sociedade pátria, mas a comunidade internacional. E esta unidade de sentido é corolária da exigência de que os direitos e liberdade constitucionais sejam interpretados em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e dos tratados e acordos internacionais subscritos pelo país. Se, antes, o ordenamento era visto como uma pirâmide fechada, agora deve ter a estrutura de uma abóbada, com interação de um conjunto de arcos ou círculos esféricos, as estruturas normativas de procedência heterogênea, nas lições de Antonio Henrique Pérez Luño (2012, p. 15-39).
O Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho são alguns dos primeiros esforços para se criar um sistema global de proteção aos Direitos Humanos, que só encontrou verdadeira consolidação em meados do século XX, após a experiência mundial com o nazismo e outros regimes totalitários. O Tribunal de Nuremberg foi um poderoso impulso neste sentido. Com a criação das Nações Unidas, em 1945, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, consagrou-se uma ética universal e uma pauta de valores universais / comuns, calcados na dignidade da pessoa humana. Para juridicizar a Declaração, foram celebrados dois pactos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIOVESAN, 2013, p. 187-240).
Diga-se que a Declaração Universal foi elaborada para ser uma etapa anterior à elaboração de um tratado internacional, algo que foi impedido pela guerra fria. Assim, a Carta Internacional de Direitos Humanos, entendida como um conjunto de diplomas, é composta pela Declaração Universal, pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, e pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966. Posteriormente, as Nações Unidas têm estimulado a adoção de vários tratados de Direitos Humanos em temas diversos, embasando o sistema global (RAMOS, 2015, p. 147).
A Declaração de 1948 representa o ápice do humanismo político da liberdade, convergência de anseios e esperanças, exprimindo a consciência do homem livre, cidadão de todas as pátrias. Os Direitos Humanos são os aferidores da legitimação de todos os poderes sociais, políticos e individuais. A crise dos Direitos Humanos é a crise de toda sociedade democraticamente organizada (BONAVIDES, 2015, p. 589-590).
O esforço de reconstrução dos Direitos Humanos foi reiterado com a Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993. Não se perca de mira que a Declaração de 1948 confere lastro axiológico e unidade valorativa aos Direitos Humanos, que passam também a ser protegidos por sistemas regionais, onde se situa o interamericano. O citado sistema regional interamericano não é dicotômico com o sistema global, mas complementar, posto que inspirado pelos valores e princípios da Declaração Universal (PIOVESAN, 2016, p. 36-49).
Foi durante a 9ª Conferência Interamericana, realizada em Bogotá, em 1948, que se aprovou a Carta da Organização dos Estados Americanos e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. O salto seguinte para o fortalecimento do sistema americano foi a aprovação do texto da Convenção Americana de Direitos Humanos em São José, Costa Rica, em 1969. A Convenção, contudo, só entrou em vigor em 1978, após 11 ratificações, tendo o Brasil aderido em 09 de julho de 1992, depositando a carta de adesão em 25 de setembro de 1992, e promulgando o texto por meio do Decreto n. 678, de 06 de novembro do mesmo ano. O ato multilateral entra em vigor para o Brasil em 25 de setembro de 1992, quando se depositou o instrumento de ratificação (RAMOS, 2015, p. 247-252). Existem diversos outros diplomas que não cabem neste trabalho, mas que são de igual relevância.
Este estudo tem por fito analisar como se dá a interpretação de acordo com a Convenção Americana de Direitos Humanos. Para tanto, além das noções preliminares até aqui desenvolvidas, será estudada a relação entre os Direitos Humanos e a interpretação pro homine, o controle de convencionalidade e posteriormente as possíveis novas tendências. Pela proposta do trabalho, não se adentrará profundamente em determinada nova tendência, pelo que serão apresentadas linhas de pensamento gerais que permitam ao leitor familiarização.
Há todo um arcabouço para a proteção dos Direitos Humanos, que encontram na dignidade seu eixo valorativo. A pessoa é sujeito de direitos universais, anteriores e superiores a toda ordenação estatal, algo confirmado pelo advento da filosofia kantiana. Dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela um fim em si, mas também do fato de que, por sua vontade racional, vive em condições de autonomia (COMPARATO, 2005, p. 20-21).
É inevitável lembrar-se, apesar de não serem abordadas neste estudo as diferentes teorias (positivistas, jusnaturalistas, utilitaristas, liberais, dentre outras) que tentam fundamentar os Direitos Humanos, da metáfora levantada por Bobbio, com anteparo em Aristóteles, de que o direito natural é aquele que tem em toda parte a mesma eficácia, como o fogo que queima em qualquer parte (BOBBIO, 2006, p. 17). Há, nisto, um paralelo com a posição atual dos Direitos Humanos.
Em tempos globalizados, pode-se dizer que os Direitos Humanos, a par de serem expressos em princípios e regras jurídicas, seja do direito das gentes, seja do direito estatal, são precedidos de princípios de diversas ordens (filosóficas, religiosas, sociológicas, políticas, antropológicas, econômicas, dentre outras). As normas jurídicas não são, contudo, pleonasmo das normas éticas. Dignidade e respeito são sinônimos relacionados à pessoa humana, já que além de ser uma qualidade intrínseca (a dignidade), é ligada à capacidade de linguagem e arrazoamento do agir. Dignidade representa um ponto interno, como o indivíduo se percebe, e um externo, que se constrói pelos outros. Os Direitos Humanos e fundamentais, entendidos os primeiros como os positivados na ordem internacional, e os segundos nas Constituições estatais, guardam semelhança quanto à conformação e promoção da dignidade da pessoa humana (MOLINARO, 2016, p. 17-33).
A dignidade humana é mencionada até mesmo no artigo 5º da Convenção Americana de Direitos Humanos, que exige respeito à dignidade inerente ao ser humano (BRASIL, 1992).
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos possui uma importante regra específica de interpretação, em seu artigo 29 (BRASIL, 1992), que merece reprodução:
Artigo 29. Normas de interpretação
Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de:
a. permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista;
b. limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados;
c. excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; e
d. excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza.
A hermenêutica é um termo ligado por muitos (PALMER, 2006, p. 23-54) ora ao grego hermeneuein, ao substantivo hermeneia – interpretação - ora a hermeios, sacerdote do oráculo de Delfos, tendo como alguns usos já antigos a forma de dizer, exprimir ou afirmar algo, e a forma de explicar, dando ênfase ao aspecto discursivo da compreensão. Até mesmo, pode-se vincular a hermenêutica como um sistema de interpretação.
O dispositivo convencional transcrito quer dizer que, em um caso concreto, deve ser investigada se determinada norma está sendo aplicada conforme os Direitos Humanos. O critério de interpretação pro homine exige que a interpretação dos Direitos Humanos seja sempre aquela mais favorável ao indivíduo, reconhecendo-se a superioridade das normas de Direitos Humanos. A dignidade servirá para fundamentar a criação jurisprudencial de novos direitos, para formatar a interpretação adequada das características de um determinado direito, para limitar a ação estatal e para fundamentar juízos de ponderação. Enfim, todas as normas devem ser compatíveis com a promoção da dignidade humana (RAMOS, 2015, p. 76-105).
Quando Robert Alexy escreveu acerca dos Direitos Humanos e sua correlação com a metafísica (2014, p. 110-124), logo os fixou como direitos morais dotados de cinco características: (i) universalidade, abrangendo seu exercício por todos os seres humanos, (ii) caráter fundamental, já que não protegem todas as fontes e condições imagináveis do bem-estar, mas somente interesses e necessidade fundamentais, (iii) abstração relativa ao seu objeto, (iv) validade moral, que os Direitos Humanos possuem enquanto tais, sendo a validade sua própria existência (a existência dos Direitos Humanos consiste em sua fundamentalidade e em nada mais), podendo ser agregada à uma validade positiva, como acontece com sua positivação nos diversos diplomas internacionais, de que é exemplo a convenção americana de Direitos Humanos, (v) prioridade, já que enquanto direitos morais, não podem ter sua força invalidada por normas jurídico-positivas, ao tempo em que são o padrão com que se deve medir toda a interpretação daquilo que está positivado.
O autor (2014, p. 118-119), ainda, demonstra que os Direitos Humanos se fundamentam, além de uma perspectiva existencial, em uma perspectiva explicativa. Por esta última, a fundamentação encontra-se necessariamente nos juízos e ações humanas, no tratamento do outro como igualmente legitimado no discurso, reconhecendo-lhe um papel sério ou genuíno que conecta suas capacidades discursivas com o interesse em fazer uso dessas capacidades para o agir. Reconhece-se o outro como autônomo, como pessoa a quem se atribui dignidade.
Apesar de sua porosidade, a dignidade não é conceito alheio à atividade jurídica, ou meramente retórico. Tem uma inegável dimensão ontológica, sendo um dado prévio independente do reconhecimento do Direito, inerente à pessoa humana. Sem prejuízo da ontologia, há uma dimensão comunicativa e relacional, já que ela (dignidade) só faz sentido na intersubjetividade e na pluralidade. É, ainda, construto histórico-cultural que reclama constante concretização. Enfim, serve como limite, impedindo a utilização do homem como mero objeto (fórmula do homem-objeto), e como tarefa, clamando pela proteção do Estado, que também deve promovê-la (SARLET, 2013, p. 15-39).
O Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), aprovado por meio do Decreto Legislativo n. 56/1995, e promulgado por meio do Decreto n. 3.321, de 30 de dezembro de 1999, é claro ao mencionar que as diferentes categorias de direitos constituem um todo indissolúvel que protege a dignidade humana (BRASIL, 1999).
Pode-se dizer que a dignidade da pessoa humana estabelece uma relação de teoria e prática com os direitos fundamentais, servindo até mesmo para a dedução dos direitos implícitos no seio da ordem constitucional (PESSOA, 2009, p. 31).
O que foi traçado até aqui permite dizer que as normas individuais de um sistema perdem o caráter jurídico quando determinado grau de injustiça é transposto. É a fórmula-Radbruch, que retira o caráter jurídico de normas insustentavelmente injustas. Algumas exigências morais mínimas são suscetíveis de uma fundamentação racional. Tem-se um componente nuclear de Direitos Humanos elementares (ALEXY, 2011, p. 48-76).
Para Alexy, toda e qualquer violação a um direito humano fundamental será, em contrapartida, uma violação ao ideal de Justiça (STRECK, 2016, p. 53).
A importância de se mencionar Alexy reside no fato de esclarecer que os Direitos Humanos funcionam (ou deveriam funcionar) como verdadeiro processo de filtragem pro homine (RAMOS, 2015, p. 88), seja pela sua fundamentalidade, seja pela sua prioridade. A sua fundamentação explicativa demonstra a estreita vinculação com a dignidade.
Há uma verdadeira interdependência ou mútua implicação dos direitos fundamentais, aparecendo a unidade de sentido como uma característica de todos eles enquanto conjunto (LUÑO, 2012, p. 18). Este é o espírito do artigo 29 da Convenção Americana, ao proibir uma interpretação que exclua “outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo”.
Não se pretende apenas dizer que a interpretação a ser observada será a mais consentânea com os Direitos Humanos, posto que a mera assertiva representaria ignorar as complexas nuances da interpretação.
Entendendo o controle de convencionalidade, é possível apreciar como têm sido aplicados os Direitos Humanos pelas cortes nacionais e internacionais, algo que não pode passar ao largo da discussão.
Os Direitos Humanos, de acordo com a doutrina contemporânea, devem ser encarados acima dos interesses meramente nacionais, quando se trata de sua preservação, merecendo atenção do direito internacional. As declarações ou convenções sobre Direitos Humanos buscam a emancipação do homem, e apesar de não terem ainda alcançado toda a sua plenitude, é possível vislumbrar que a superação de obstáculos por alguns juízes e legisladores, criando mecanismos de implementação, é uma das mais fantásticas conquistas da atualidade (CAMINHA, 2012, p. 421-430).
A Constituição de 1988 preconiza, no artigo 5º, § 3º, que os tratados e convenções internacionais sobre Direitos Humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, equivalerão às emendas constitucionais. Inserido pela Emenda Constitucional 45, promulgada em 08.12.2004 e publicada no dia 31 daquele mesmo mês e ano, o dispositivo acarretou uma mudança no posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que passou a entender o tratado sobre Direitos Humanos não mais com a hierarquia da lei ordinária, mas com hierarquia constitucional (equivalente às emendas) caso aprovado pelo quórum qualificado, ou hierarquia supralegal, caso não submetidos ao procedimento diferenciado. Tal entendimento foi consolidado por ocasião do Recurso Extraordinário 466.343/SP, que tratou da questão da prisão civil do depositário infiel, vedada pela convenção americana de Direitos Humanos, mas admitida pela legislação brasileira (FIGUEIREDO, 2014, p. 715-728).
Sempre houve, claro, quem já reconhecesse, como Fernando Luiz Ximenes Rocha (2011, p. 177-198) os tratados internacionais sobre Direitos Humanos com uma hierarquia constitucional, pelo que já fariam parte materialmente do bloco de constitucionalidade. Com a inserção do dispositivo supracitado, além de uma integração material ao bloco, seriam formalmente considerados como parte do arcabouço constitucional.
Em resumo, há correntes que preconizam a natureza supranacional dos tratados de Direitos Humanos, que defendem a natureza constitucional derivada do artigo 5º, parágrafo 2º, que entendem tais tratados com status de lei ordinária, ou mesmo que advogam sua supralegalidade (GUERRA, 2014, p. 227-248).
No controle de convencionalidade, a relação de validade se estabelece através de um critério material, da aplicação dos critérios pro homine. Haverá declaração de inconvencionalidade quando a proteção derivada do direito internacional dos Direitos Humanos seja mais efetiva ou com restrições menos excessivas que os atos internos. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, juntamente com seus protocolos, e as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, formam o chamado bloco de convencionalidade, que faz paradigma de controle de validade de atos em sentido lato expedidos pelos Estados (CONCI, 2015, p. 1467-1497).
Essa dualidade não significa que o texto internacional prevaleça definitivamente, mas que ele é um inegável ponto de partida. As disposições estatais internas podem incidir em prejuízo da Convenção Americana, ou mesmo as de outro diploma internacional podem ter primazia, caso adotem um patamar protetivo superior. É isto que o artigo 29 da Convenção quer dizer ao vedar sua utilização para “limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados”.
Há duas vertentes do controle de convencionalidade. A primeira trata da competência da Corte Interamericana, que analisa a compatibilidade entre a conduta do Estado e as disposições da Convenção, em uma órbita internacional própria e autônoma de controle de juridicidade, não sendo uma última instância nacional, nem mesmo substitutiva. A segunda vertente identifica o controle de convencionalidade como uma obrigação a cargo dos juízes nacionais, sendo dever dos juízes e operadores judiciais do Estado efetuar o controle no momento da aplicação, sob pena de responsabilização do Estado na órbita internacional (FIGUEIREDO, 2014, p. 725).
Um dos leading cases julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em que se explorou com precisão o conceito de controle de convencionalidade foi o caso Almonacid Arellano vs. Chile. No caso, indica-se que o parâmetro para o controle é não apenas o tratado internacional, mas a jurisprudência internacional. Vale a pena reprisar o entendimento da Corte, compilado em coletânea organizada pelo Ministério da Justiça, em sete volumes, sendo o presente caso previsto no volume 1 (BRASIL, 2014, p. 96):
A Corte tem consciência de que os juízes e tribunais internos estão sujeitos ao império da lei e, por isso, são obrigados a aplicar as disposições vigentes no ordenamento jurídico. Mas quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana, seus juízes, como parte do aparato estatal, também estão submetidos a ela, o que os obriga a velar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam diminuídos pela aplicação de leis contrárias a seu objeto e a seu fim e que, desde o início, carecem de efeitos jurídicos. Em outras palavras, o Poder Judiciário deve exercer uma espécie de “controle de convencionalidade” entre as normas jurídicas internas aplicadas a casos concretos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Nesta tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não apenas o tratado, mas também a interpretação que a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana, fez do mesmo (Sem grifos no original).
A importância dada aos precedentes da Corte Interamericana lembra a construção de Dworkin, que entendia o Direito enquanto empreendimento coletivo, integridade, instruindo os juízes a identificarem os direitos e deveres legais pressupondo que foram criados por um único autor, a comunidade personificada, o que permitiria manter uma concepção coerente de integridade e justiça (DWORKIN, 2014, p. 271-272).
A ideia do romance encadeado de Dworkin parece amoldar-se ao caso do controle de convencionalidade, já que para ele decidir os casos controversos é similar ao exercício literário em que o juiz deve considerar-se inserto num empreendimento em cadeia. As decisões, estruturas, convenções e práticas são a história e é seu trabalho continuar essa história no futuro, de forma coerente, por meio do que ele faz agora (DWORKIN, 2005, p. 38).
Mencionar Dworkin não significa dizer que só haverá, sempre, uma única resposta correta ao caso. Significa, sim, realçar o papel da jurisprudência na busca por um caminho adequado.
Com as disposições constitucionais estudadas, pode-se dizer que a validade da lei é analisada de acordo com sua compatibilidade com a Constituição e com os tratados internacionais de Direitos Humanos (entendidos conjuntamente com a interpretação dada pela Corte Interamericana). Não apenas tais tratados possuem uma hierarquia diferenciada, mas a interpretação pro homine pode ser defluída do art. 5.º, § 2.º, da Constituição de 1988, que trata de direitos implícitos oriundos do regime e dos princípios adotados pela ordem constitucional. A primazia à norma que mais garanta os Direitos Humanos é extraída, então, do direito interno e do direito internacional. Adaptar as leis e atos internos aos compromissos internacionais é uma obrigação que proporciona o controle de convencionalidade (MAZZUOLI, 2015, p. 1499-1543).
No caso da comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni, o Juiz Sérgio Garcia Ramírez esclareceu, em seu voto, apresentado no volume 2 da coletânea organizada pelo Ministério da Justiça (BRASIL, 2014, p. 70), que a interpretação pro homine busca assegurar maior e melhor proteção às pessoas. Veja-se no original:
No exercício de sua jurisdição contenciosa, a Corte Interamericana está obrigada a observar as disposições da Convenção Americana, interpretando-as conforme as regras previstas por este mesmo instrumento e as demais que pudessem ser invocadas conforme o regime jurídico dos tratados internacionais, que figuram na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de maio de 1969. Igualmente, deve-se ter em conta o princípio de interpretação que obriga a considerar o objeto e fim dos tratados (artigo 31.1 da Convenção de Viena), ao que infra se faz referência, e a regra pro homine, inerente ao Direito Internacional dos Direitos Humanos – frequentemente invocada na jurisprudência da Corte –, que conduz à maior e melhor proteção das pessoas, com o propósito último de preservar a dignidade, assegurar os direitos fundamentais e alentar o desenvolvimento dos seres humanos (Sem grifos no original).
Igualmente relevante, o Parecer Consultivo 7/86, facilmente encontrado no volume 6 da já referida coletânea jurisprudencial organizada pelo Ministério da Justiça, (BRASIL, 2014, p. 55), assentou que a interpretação pro homine implica até mesmo no exercício imediato dos Direitos Humanos:
Nesse aspecto, parece-me que o critério fundamental é o que impõe a própria natureza dos direitos humanos, a qual obriga a interpretar extensivamente as normas que os consagram ou ampliam e restritivamente as que os limitam ou restringem. Esse critério fundamental —princípio pro homine do Direito dos Direitos Humanos—, conduz à conclusão de que sua exigibilidade imediata e incondicional é a regra, e seu condicionamento a exceção, de maneira que se, nos termos em que o direito de retificação ou resposta está definido pela Convenção, poderia ser aplicado ainda na falta das referidas “condições que estabeleça a lei” (Sem grifos no original).
As construções formuladas não permanecem, então, no plano teórico, mas fazem parte do cotidiano funcional da Corte Interamericana. Tratou-se, nos arestos internacionais acima expostos, de se exemplificar o controle de convencionalidade tradicional (internacional).
Há, como se disse, a possibilidade de que o controle de convencionalidade seja exercido pelos juízes nacionais. É interessante trazer à lume dois arestos citados por Marcelo Figueiredo (2014, p. 715-728), em que se verificou a menção ao entendimento da Corte Interamericana: (i) no julgamento do recurso extraordinário 511.961-SP, em que se discutia a exigência do curso de jornalismo, o Ministro Gilmar Mendes levou em explícita consideração a jurisprudência da Corte Interamericana e o conteúdo do Informe Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; (ii) na arguição de descumprimento de preceito fundamental 132/RJ, julgada em 05.05.2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu as uniões homoafetivas, tendo aludido ao julgado da Corte Interamericana de Direitos Humanos que reconhece a proteção jurídica conferida ao projeto de vida (Loayza Tamayo vs. Peru, Cantoral Benavides vs. Peru e Gutiérrez Soler vs. Colômbia).
A Convenção Americana de Direitos Humanos traz, explicitamente, a obrigação de que os Estados adequem suas disposições normativas internas aos parâmetros convencionais, deixando isenta de dúvidas a qualidade do texto internacional enquanto parâmetro de confronto:
Artigo 2º - Dever de adotar disposições de direito interno
Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1º ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.
O sistema interamericano busca estabelecer standards mínimos de respeito aos Direitos Humanos, sendo que a Convenção Americana e sua interpretação pela Corte Interamericana promovem a construção do patrimônio jurídico comum mínimos dos Estados americanos. O controle de convencionalidade representa a vinculação dos juízes nacionais não apenas à Convenção Americana, mas à interpretação da Corte Interamericana, devem respeito à ratio decidendi (ALCALÁ, 2015, p. 15-26).
Em suma, é a representação da importância da ratio decidendi nos julgados. Por enquanto, é relevante mencionar a observação de Pedro Henrique Nogueira (2016, p. 202), no sentido de que todo precedente é composto pelas circunstâncias de fato que embasam a controvérsia e pela tese assentada na motivação da decisão. A ratio decidendi compreende como os fundamentos que sustentam a decisão e que servirão para fundamentar as decisões dos casos sucessivos, iguais ou similares, sendo um verdadeiro fato jurídico que gera os efeitos (eventualmente até mesmo a vinculação, conforme o tipo de eficácia) em relação aos julgamentos futuros.
O controle de convencionalidade é forma de garantia da interpretação pro homine, sendo praticado por juízes nacionais e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O controle de convencionalidade cria um verdadeiro diálogo entre as cortes nacionais e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, podendo levar a diversos resultados interpretativos possíveis. Cumpre indicar a consolidação feita por Alcalá (2015, p. 28-39), acerca das hipóteses interpretativas dadas pelos juízes nacionais:
a) interpretação extensiva: o juiz nacional pode desenvolver uma interpretação extensiva, que o leve além dos alcances da interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos;
b) interpretação inovadora: o juiz nacional, por meio da interpretação inovadora, pode abordar alguns direitos contidos na Convenção Americana, sobre os quais a Corte Interamericana pode não ter emitido pronunciamentos até o momento. Confrontado com o silêncio da Corte Interamericana, aplicador estatal pode censurar ou invalidar uma norma nacional tendo por fundamento direto a Convenção Americana;
c) interpretação corretiva: é o alinhamento da jurisprudência nacional à da Corte Interamericana, arcando com as consequências de uma condenação do Estado. Modifica-se a jurisprudência nacional, praticando-se uma interpretação conforme o direito convencional;
d) interpretação receptiva: é aquela que faz com que a jurisprudência nacional se conforme à ratio decidendi das sentenças de condenação de outros Estados partes da Convenção Americana, por violação desta;
e) interpretação neutralizadora: uma verdadeira estratégia de contornar ou evitar responsabilização internacional, neutralizando a interpretação da norma internacional vinculante. Busca esconder a reivindicação de uma margem de apreciação que se revela numa manobra do juiz nacional para escapar à aplicação da jurisprudência da Corte Interamericana;
f) interpretação francamente discordante entre os juízes nacionais e a Corte Interamericana: a jurisprudência nacional considera que a resolução da Corte Internacional constitui uma interpretação incorreta, que não avaliou corretamente a norma de direito interno ou não ponderou adequadamente outro direito ou atributo determinado do doutro direito. Em um novo caso, o Tribunal nacional expressa seu desacordo com a Corte Interamericana, completando um diálogo ascendente.
O controle de legalidade, sobretudo em casos onde há restrição a Direitos Humanos, exige do Judiciário uma valoração do grau de adequação das condutas das autoridades públicas com o Direito. Esta legalidade tem como parâmetro não apenas o ordenamento nacional, mas a adequação de todo o Direito estatal e sua atuação à Convenção Americana de Direitos Humanos (FIGUEIREDO, 2014, p. 725).
A América Latina tem sido vista como exemplo de desigualdade social e exclusão, convivendo com as reminiscências de regime ditatoriais. Neste cenário, o sistema interamericano se legitima como instrumento para a proteção dos Direitos Humanos, em especial diante de falhas ou omissões de instituições nacionais. Apesar de toda a proposta de diálogo, ainda são relativamente escassas as referências diretas do Supremo Tribunal Federal à Convenção Americana de Direitos Humanos. Deve-se reforçar a responsabilidade do judiciário nacional na realização dos parâmetros protetivos mínimos dos Direitos Humanos. Os tratados internacionais sobre Direitos Humanos possuem status diferenciado, e isto não pode ser ignorado, o que passa por um reforço na educação para os Direitos Humanos. É necessário avançar e aprofundar o diálogo entre as cortes nacionais e internacionais, endossando-se a interdependência entre Direitos Humanos, democracia e estado de Direito (PIOVESAN, 2011, p. 123-140).
A atuação dos Tribunais Internacionais de Direitos Humanos corresponde, na ordem externa, à função de vinculação e de restrição da soberania que se consolida internamente com o Estado de Direito, com a Constituição e com os Tribunais Constitucionais (LEAL, 2015, p. 68-69).
Pode-se fazer uma paráfrase das lições de Peter Haberle, e dizer que um juiz não interpreta, mais, de forma isolada, já que muitos são os participantes do processo. Muitos são os intérpretes e as forças pluralistas públicas (HABERLE, 1997, p. 41).
Ressalva necessária é a de ser comum que se tente, numa interpretação, dar maior relevo aos Direitos Humanos individuais, em detrimento dos coletivos e difusos, numa possível colisão, é resultado de uma lógica equivocada que trata dos primeiros como direitos sem custos, quando, em verdade, ensejam custos tão vultosos quanto os demais, bastando lembrar os diversos exemplos citados por Cass Sunstein e Stephen Holmes (2000, p. 13), como o do fatídico incêndio em Westhampton, área nobre de Nova Iorque, que consumiu cerca de R$ 2.9 milhões de dólares em recursos do erário para salvaguardar as propriedades particulares.
Não se adentrará, nestas breves linhas, no teor mais profundo do custo dos direitos, sendo suficiente mencionar que o reconhecimento dos custos é meio de promover a conscientização dos indivíduos para a responsabilidade no exercício e persecução dos seus Direitos Humanos (GALDINO, 2005, p. 212).
Há, ainda, uma gama de outras considerações que devem ser aventadas diante das novas argumentações propaladas na doutrina contemporânea.
Muitas vezes, a construção de um raciocínio simplista pode ocultar uma ausência de amparo concreto a quem busca a solução de contendas concretas. Nos casos fáceis, não há dúvidas quanto à incidência da interpretação pro homine, já nos hard cases, em que há limitações dos Direitos Humanos, surgem questões sobre como determinar a interpretação mais favorável.
Não há caráter absoluto nas normas jurídicas, pelo que a discussão sobre a restringibilidade dos direitos ou seus limites passa pelas teorias interna e externa. A teoria interna entende que há limites internos ou imanentes a cada direito, verdadeiras fronteiras implícitas e apriorísticas que não são autênticas restrições. Ocorre que tal teoria, ao não diferenciar o âmbito de proteção de um direito e os limites, permite que sejam incluídas considerações relativas a outros bens no próprio âmbito destes direitos, o que aumenta o risco de restrições arbitrárias (SARLET, 2010, p. 389).
Pela teoria externa, há uma separação entre conteúdo do direito e os limites impostos do exterior, oriundos de outros direitos. Primeiramente, deve-se verificar se a situação fática se amolda no texto prima facie do direito, e em um segundo momento, deve-se investigar a existência ou não de limites justificáveis impostos por outros direitos. A justificação será feita pelo critério da proporcionalidade (RAMOS, 2015, p. 113).
Além das limitações, é de se mencionar o caso das colisões entre Direitos Humanos, bem sintetizadas por Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gonet Branco (2014, p. 237), quando demonstram que podem se referir a direitos idênticos ou diversos. Em relação aos idênticos, podem existir quatro espécies de colisão:
a) colisão entre dois direitos liberais de defesa: dois grupos adversos resolvem realizar demonstração na mesma praça pública;
b) colisão de direito de defesa de caráter liberal e direito de proteção: atirar no sequestrador para proteger a vida do refém ou da vítima;
c) colisão do caráter negativo de um direito com o caráter positivo desse mesmo direito: a liberdade religiosa pressupõe a prática de uma religião e também o direito de não desenvolver ou participar de qualquer prática religiosa. Dúvida se o Estado poderia impor crucifixos em sala de aula;
d) colisão entre aspecto jurídico de um direito fundamental e o seu aspecto fático: a concessão de auxílio a hipossuficientes gera a indagação acerca da dimensão fática ou jurídica da igualdade.
Há quem defenda, também, uma corrente alheia às teorias externa e interna, com um suporte fático amplo dos direitos, pelo que seriam aplicáveis prima facie, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas, de acordo com a noção de princípios em Robert Alexy. Não há como determinar aprioristicamente as condutas salvaguardadas por determinado direito. Retira-se o foco do momento em que se define o que determinado direito protege para o momento em que se fundamenta uma intervenção (SILVA, 2014, p. 94-109).
Para uma compilação similar à feita aqui relativamente às colisões de direitos, mas com adoção de outras críticas, consulte-se a obra de Bernardo Gonçalves Fernandes (2014, p. 336-344).
Nas teorias acima, e de acordo com a dogmática jurídica moderna, um papel relevante tem sido atribuído à ponderação e a à proporcionalidade. A proporcionalidade seria utilizada quando houvesse um ato normativo infraconstitucional que, a pretexto de garantir determinado valor, restringisse determinado direito humano. Já a ponderação seria utilizada quando não houvesse tal ato infraconstitucional, mas uma aplicação direta de normas principiológicas ao caso concreto (SILVA, 2014, p. 178-179).
Este é o teor dos escritos de Juarez Freitas (2001, p. 230), que defende que o intérprete guarde uma perspectiva proporcional da Carta, “não entendida a proporcionalidade apenas como adequação meio-fim. Proporcionalidade significa, sobremodo, que estamos obrigados a sacrificar o mínimo para preservar o máximo de direitos”.
Decerto, a aplicação da proporcionalidade, em suas três sub-regras (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), não é despicienda, seja entendida como derivada de um devido processo legal substancial (BARROSO, 2001, p. 320-321), seja como fruto de um estado democrático (GUERRA FILHO, 2001, p. 269-270).
Um meio adequado, como se sabe, “não é somente o meio com cuja utilização o objetivo é alcançado, mas também o meio com cuja utilização a realização de um objetivo é fomentada, promovida, ainda que o objetivo não seja completamente realizado” (SILVA, 2002, p. 36). Um meio necessário é consiste imperativo de que os meios utilizados para o atingimento dos fins visados sejam os menos onerosos para o cidadão (BARROSO, 2001, p. 328). Um meio proporcional em sentido estrito representa a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido (BARROSO, 2012, p. 282).
Quando o artigo 29 da Convenção Americana de Direitos humanos prescreve que não se deve “permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista”, quer também mencionar uma verdadeira proibição do excesso, ou seja, entre dois meios aproximadamente adequados a atingir determinada finalidade, deve ser escolhido aquele que intervenha de modo menos intenso, como leciona Alexy (2014, p. 590), em sua teoria dos direitos fundamentais. É a sub-regra da necessidade.
A proporcionalidade, contudo, não se resume à perspectiva aqui traçada, mas também a outra moderna, conhecida como proibição da proteção deficiente, consentânea com a interpretação pro homine, já que não pode o Estado se omitir ou agir de modo insuficiente. Tal nova faceta também adota as três sub-regras clássicas (RAMOS, 2015, p. 116-123).
Operando como uma decorrência lógica da função imperativa de tutela dos Direitos Humanos e fundamentais, é uma ferramenta dogmática extraída do mandado de proporcionalidade, sendo verdadeiro parâmetro de controle de determinados atos estatais que eliminem ou não concretizem a proteção necessária, adequada e eficaz aos direitos fundamentais (FELDENS, 2007, p. 222).
A jurisprudência alemã tem reconhecido ao princípio da proporcionalidade vigência enquanto critério de vedação da insuficiência ou de proibição de proteção deficiente (untermassverbot) dos direitos fundamentais, em especial no campo da função protetiva desses direitos. Enquanto vedação da insuficiência, a proporcionalidade serve para fundamentar juízos de inconstitucionalidade de atos estatais que, sob o pretexto de densificarem direitos e garantias, dão cumprimento incompleto aos deveres de proteção, organização e procedimento, e de prestação, normativa e material, como demonstra Mariana Filchtiner Figueiredo (2007, p. 506-508).
E esta proibição da proteção insuficiente ou deficiente mantém estreita relação com a interpretação pro homine, como se pode concluir. Uma vez que o Estado se comprometa a tutelar bens e valores fundamentais, não pode fazê-lo de forma insuficiente, mas sim da melhor forma possível. A obrigação dirige-se não apenas ao legislador, mas também ao julgador (BONFIM, 2010, p. 291).
Um exemplo em que houve a aplicação indireta trata do caso Ximenes Lopes vs. Brasil, no qual se reconheceu violação aos direitos à vida, à integridade pessoal, às garantias judiciais e à proteção judicial. No precedente, Damião Ximenes Lopes, portador de deficiência mental, fora vítima em decorrência de condições desumanas e degradantes da sua hospitalização. O Estado brasileiro foi condenado por não ter cumprido, dentre outras, a obrigação de proteger e preservar a vida. A Corte decidiu que, da obrigação geral de garantia dos direitos à vida e à integridade física, nascem deveres especiais de proteção e prevenção, traduzidos em cuidado e regulação (BRASIL, 2014, p. 117-196).
Após as breves linhas aqui construídas, pode-se caracterizar os Direitos Humanos como supra-estatais, já que sua incidência não depende de reconhecimento constitucional, posto que pertencem à ordem jurídica exterior e acima do Estado, que atua com um definidor de exceções e clarificador de conteúdo pela mediação do legislador constituinte ou ordinário. São verdadeiros direitos fundamentais absolutos, posto que se erguem sobre o Estado por força de tratados, cabendo a lei estabelecer limites de sua incidência. Não são produtos da norma constitucional, mas sua origem transcende a ordem jurídica nacional e se impõe inexoravelmente a ela, vinculando o poder constituinte a declará-los, executá-los e protege-los na Lei Fundamental (SARMENTO, p. 14-24).
Eis a necessária e inegável dedução após essas reflexões. Direitos Humanos são fatores de legitimação dos atos estatais, ensejando não apenas responsabilidade interna, mas também internacional.
A perspectiva desterritorializada dos Direitos Humanos gera uma profunda revisão na acepção da soberania estatal, e nos dogmas de unidade, plenitude e coerência das ordens jurídicas internas, que passam a conviver com os sistemas planetário e regional de Direitos Humanos.
Há uma profunda correlação entre os Direitos Humanos e a dignidade, seja na sua perspectiva ontológica, na sua perspectiva cultural, mas também na discursiva / relacional, sendo que ela (dignidade) funciona, juntamente com os Direitos Humanos, como um filtro pro homine de interpretação. Deve ser dada a interpretação que melhor assegure, amplie ou proteja o direito humano.
Por meio de um controle de convencionalidade, passa-se a vislumbrar a submissão da ordem interna aos Direitos Humanos, sendo que os normativos nacionais devem obedecer não apenas à Constituição da República, mas aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, que guardam status diferenciado a depender do seu procedimento de internalização, mas que possuem inegável materialidade ou fundamentalidade, sendo verdadeiros parâmetros de confronto.
Múltiplos resultados interpretativos podem surtir dos diálogos travados entre o Poder Judiciário nacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (interpretação extensiva, corretiva, inovadora, receptiva, neutralizadora ou discordante).
Dizer apenas que o resultado interpretativo deve ser aquele que melhor salvaguarde os Direitos Humanos é subestimar a profundidade da controvérsia interpretativa que pode surgir, sendo que as teorias já estudadas para os direitos fundamentais podem ser úteis (teoria externa, interna, do suporte fático amplo).
A proporcionalidade ocupa um espaço de destaque, ao lado da ponderação pura, na solução de colisões envolvendo dois Direitos Humanos, sendo que para além de sua faceta negativa, há uma faceta positiva que consagra a proibição de uma proteção deficiente.
A proibição da proteção insuficiente é adequada e complementar à interpretação pro homine, apesar de pouco estudada na doutrina nacional.
Somente através de uma profunda revisão dos conceitos, será possível uma abordagem dogmaticamente adequada da interpretação pro homine, que merece estudo e atenção por parte da doutrina e da jurisprudência brasileiras.