Resumo: O Código de Processo Civil reconheceu o sistema multiportas de resolução de conflitos, incentivando a resolução consensual de litígios e impondo a realização obrigatória, em regra, de audiências de conciliação ou mediação. A ausência, injustificada, de qualquer das partes à audiência de conciliação será considerada ato atentatório à dignidade da justiça apenada com multa de 2% sobre a vantagem econômica ou valor da causa, contudo no presente artigo indaga-se se a ausência injustificada à audiência de mediação conduziria a mesma sanção. Foram investigadas duas hipóteses, a primeira, relacionada à impossibilidade legal da aplicação de multa por ausência de previsão legislativa e, a segunda, impossibilidade da mesma sanção, em virtude da natureza, características e objetivos da mediação. Utilizando de método hipotético-dedutivo as hipóteses foram desenvolvidas por meio de revisão bibliográfica e analises legislativa, possuindo como marco teórico o atual CPC, e culminaram com a confirmação de ambas as hipóteses.
Palavras-chave:MediaçãoMediação, Inaplicabilidade de Multa Inaplicabilidade de Multa, Dignidade da Justiça Dignidade da Justiça.
Abstract: The Civil Code Proceedings recognized the multiport system of conflict resolution, encouraging consensual disputes dictum and imposing mandatory, as a rule, conciliation or mediation hearings. The unjustified absence of either party to the conciliation hearing shall be deemed to be an offense against the dignity of justice, which shall be punished with a 2% fine on the economic advantage or case value, but in this article it is asked whether the unjustified absence of the mediation would lead to the same penalty. Two hypotheses were investigated, first one related to the legal impossibility of imposing a fine due to lack of legislative foreknowledge, and second, impossibility of the same sanction, due to nature, characteristics and objectives of the mediation. Using a hypothetical-deductive method, the hypotheses were developed through a bibliographical review and legislative analysis, having as theoretical framework the current Proceedings, culminating with confirmation of both hypotheses.
Keywords: Mediation, Fine Non-Applicability, Dignity of Justice.
Não foi esquecimento, o legislador está certo! Inaplicabilidade de multa processual em caso de ausência injustificada na audiência de mediação
It was not forgotten, the legislator is right! Procedural fine inapplicability in case of unjustified absence on mediation hearings
Recepção: 18 Abril 2017
Aprovação: 22 Novembro 2017
Nos últimos anos tem ganhado força o sistema multiportas de acesso à justiça mediante o oferecimento e reconhecimento de mecanismos e meios de solução de controvérsias, em especial meios consensuais, como mediação e conciliação.
Todavia, há que se esclarecer, desde logo, que a possibilidade de conciliação, depois de instaurado o processo judicial, não é novidade, estando presente, por exemplo, na Lei nº 5478, de 25 de julho de 1968, que dispões sobre ação de alimentos e dá outras providências, assim como Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 especificamente entre seus artigos 407 e 409, da, bem como nas Leis nos 8.952, de 13 de dezembro de 1994; 9.245, de 26 de dezembro de 1995; 10.358, de 27 de dezembro de 2001; 11.232, de 22 de dezembro de 2005, 11.382, de 06 de dezembro de 2006, que editaram o texto original do Código de Processo Civil anterior.
Porém, com a edição da resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foi atribuído ao Judiciário a missão de estabelecer políticas públicas de tratamento adequado aos problemas jurídicos e conflitos de interesses não apenas por soluções adjudicadas mediante sentenças, mas também por meio opções consensuais de solução de conflitos, atendimento e orientação ao cidadão.
Desde então uma “triste demonstração do fanatismo que tem tomado conta do âmbito doutrinário e legislativo a respeito de solução consensual do conflito” (NEVES, 2016, p. 820) vem nublando as percepções dos operadores do direito, fazendo com que compreensões exageradas, desassociada da natureza jurídica dos instrumentos e do raciocínio jurídico venham a prejudicar a finalidade e utilidade dos meios alternativos ao método heterônomo de resolução de conflitos, como se verificará dos enunciados expedidos pelo Tribunal de Justiça Mineiro (TJMG) e pelo Fórum Permanente de Processualistas Civil (FPPC).
A sobrecarga e expectativa colocada sobre os institutos da mediação e conciliação, “ante um cenário desolador de nosso Judiciário, de aguda crise estrutural que vai resultar na mais profunda ruptura entre a satisfação do direito e o processo que o instrumentaliza” (BRAGA, 2009, p. 41), acaba por exorbitar o sentido deontológico do sistema multiportas e deturpar o sentido ontológico da mediação e da própria conciliação, trazendo confusão entre os institutos e banalizando sua construção, afastando a semântica construída em torno da do instituto da mediação e mesmo da sistemática legal.
O §8º do art. 334 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, atual Código de Processo Civil (CPC), estabelece a possibilidade de multa àqueles que não comparecem de forma injustificada à audiência de conciliação, considerando tal falta ato atentatório à dignidade da justiça.
Ainda que tal disposição legislativa atente contra o princípio da autonomia da vontade que guia o método autônomo solução de litígios, contudo, o ponto a se destacar neste artigo consiste na indagação acerca da impossibilidade de sanção aos que deixarem de comparecer em audiência preliminar de mediação e a interpretação apresentada pelo enunciado nº 25 do TJMG e nº 273 do FPPC, que ampliam a multa aos que, injustificadamente, se ausentarem à audiência de mediação.
Diante do problema, partiu-se da hipótese sobre a ausência de previsão legal, compreendendo que somente seria legalmente viável a imposição de multa por ausência injustificada em audiência de conciliação, afastada a sua aplicabilidade aos que se ausentarem da audiência de mediação.
Outra hipótese ventilada consiste na adequação da escolha legislativa, não devendo ser considerado ato atentatório à dignidade da justiça a ausência injustificada à audiência de mediação em virtude da natureza e caráter ontológico desta espécie de audiência prévia.
O desenvolvimento teórico e investigativo impresso na pesquisa utilizou o método científico hipotético-dedutivo, possuindo como referencial teórico o atual Código de Processo Civil.
A pesquisa será construída em quatro partes, na primeira descreveremos, resumidamente, os movimentos de acesso à justiça a luz das proposições formuladas por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, porém voltada ao cenário brasileiro; na seguinte o artigo será dedicado ao exame da autonomia da vontade privada dirigida à construção da solução consensual de conflitos e princípio basilar das audiências preliminares; posteriormente empenharemos esforços a definir o conceito, natureza, caraterísticas e finalidade da mediação, traçando ainda distinção ontológica entre os institutos da conciliação e mediação, conforme os atuais ditames do CPC; e ainda, por derradeiro, passaremos ao exame acerca da (in)aplicabilidade da multa do §8º do artigo 334 do CPC àqueles que injustificadamente não comparecerem à audiência de mediação.
Para o desenvolvimento do trabalho será realizado levantamento bibliográfico e da legislação pertinente, voltada à interpretação sistemática da pesquisa, com a finalidade de contribuir para o desenvolvimento do raciocínio jurídico-científico sobre o tema.
Cappelletti e Garth (2002) ao analisarem os movimentos históricos e jurídicos de acesso à justiça identificaram três momentos renovatórios, divididos cronologicamente em “ondas”, a primeira estaria voltada à assistência judiciária integral e a justiça gratuita aos pobres; a segunda, direcionada à representação e proteção dos interesses coletivos e difusos; e a terceira teria como finalidade a promoção e simplificação de procedimentos, buscando a efetiva resolução de conflitos, reconhecendo formas alternativas à jurisdição estatal como meio a solucionar controversas.
Observam aqueles autores que a primeira onda renovatória tinha finalidade exclusivamente privatista e individualista, enquanto a segunda tinha como objetivo proporcionar a facilitação da possibilidade de defesa de interesses difusos ou coletivos, sem que isto significasse o afastamento de qualquer um deles.
Mesmo com foco diverso, tanto o primeiro como o segundo momento estavam dirigidos ao acesso à jurisdição estatal, se estabelecendo uma relação de sinonímia entre fazer justiça e Judiciário.
Diferente dos momentos anteriores, a terceira onda renovatória de acesso à justiça não se dedica apenas à promoção de do acesso ao Judiciário, mas busca favorecer o acesso substancial à justiça.
O acesso à justiça observada na terceira onda proporciona o rompimento da relação de sinonímia até então existente entre justiça e Judiciário, ou seja, o monopólio da justiça não estaria restrito às mãos do Estado-Juiz, detentor no monopólio da jurisdição, devendo ser reconhecida formas alternativas de solução de conflitos que aquelas decorrentes de resoluções adjudicadas mediante sentença.
O terceiro movimento renovatório de acesso à justiça não se limitou ao reconhecimento de formas alternativas ao Judiciário como meio de alcançar a justiça, vindo a impor, concomitantemente, reformas ao arranjo jurídico por meio de normas materiais e processuais com o objetivo de apresentar soluções substanciais aos conflitos sociais que são levados ao Judiciário, alterando assim o agir e pensar estatal, bem como a forma de atuação dos profissionais que operam a máquina judiciária.
Com este enfoque trazido pela terceira onda renovatória de acesso à justiça deve ser interpretado o inciso XXXV do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988, que reconhece a faculdade1 do cidadão em obter do Estado-juiz resposta jurisdicional efetiva e satisfativa ao dilema levado ao crivo estatal a ser desenvolvido sob o paradigma do Estado Democrático de Direito2.
Eventual interpretação formal do princípio constitucional de acesso à justiça fundamentada na mera existência do Judiciário devidamente constituído, sem relação direta com a efetiva entrega da jurisdição satisfativa, está afastada do elemento sistemático3 que envolve o exercício de interpretação do texto constitucional.
O modelo de Estado Democrático de Direito, instituído constitucionalmente exige a interpretação substancial do acesso à justiça, por ser a “expressão popular que resulta na ideia de instituições públicas sólidas e na possibilidade de o cidadão buscar do Estado-Juiz a solução do litígio em que esteja envolvido para defesa de seus direitos” (VALCNOVER, 2014. p. 03).
Figueiredo Teixeira (1993. p. 80) argumenta que “nenhum texto constitucional valorizou tanto a ‘Justiça’, tomada aqui a palavra não no seu conceito clássico de ‘vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu’, mas como conjunto de instituições voltadas para a realização da paz social” que a Constituição da República de 1988.
A interpretação conforme a Constituição acerca do acesso à justiça repercute no vigoroso incentivo dos operadores do Direito e dos legisladores em criar meios emancipatórios para que os cidadãos possam resolver de forma consensual e autônoma os conflitos em que estão inseridos.
A resolução de conflitos afastada da concepção heterônoma exige o reconhecimento da autonomia e capacidade privada de resolução de controvérsia, ou seja, do desejo e da disponibilidade em convergir.
O Código de Processo Civil estabelece em seu art. 166 os princípios informadores da conciliação e mediação, dentre os quais, o princípio da autonomia da vontade.
Todos os princípios fixados, assim como o princípio da autonomia da vontade, possuem concepções deontológicas a determinar que “algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes” (ALEXY, 2008, p. 90).
Observa-se que o caráter deontológico do princípio da autonomia dirigida à resolução consensual de conflitos se dá a prima facie enquanto as razões definitivas encontram-se erigidas em regras presentes no capítulo V, “Da audiência de conciliação ou de mediação”, do título I, “Do procedimento comum”, do livro I, “Do processo de conhecimento e do cumprimento de sentença”, da parte especial do CPC.
Cabe destacar, desde logo, que o princípio da autonomia da vontade não se confunde com o princípio da autonomia privada, ainda que, de maneira geral, há autores utilizem os termos como sinônimos, como adverte Roberta Elzy Simiqueli de Faria (2007, p. 60).
O princípio da autonomia da vontade, desenvolvido no modelo de Estado Liberal, esteve assentado na concepção de liberdade formal em que a construção normativa era construída pelos envolvidos cabendo ao Estado-Juiz garantir o cumprimento de acordos livremente avençados e não limitados pelo Estado-Legislador.
O princípio da autonomia da vontade esteve vinculado à liberdade e igualdade formal, adequado ao paradigma de Estado Liberal, contudo, em virtude da ausência de equilíbrio e crescimento dos movimentos sociais no período seguinte ao pós Primeira Guerra Mundial, o Estado capitalista burguês se vê obrigado a abandonar o modelo do Estado Liberal dando início ao modelo de Estado Social4, mais organizado, buscando corrigir as divergências por meio de grande regulação da vida pública e privada.
O novo paradigma tornou o direito o maior vetor moral destinado a proporcionar proteção e libertação, voltada à preservação de igualdade material entre os indivíduos em suas relações mútuas (justiça comutativa5) ou em suas relações sociais (justiça distributiva6) com a finalidade de fazer justiça e alcançar progresso (DIAS, 2003, p. 30-32).
Neste momento “o Estado deixa de ser mero garantidor das relações particulares e passa a intervir na esfera privada” (FARIA, 2007, p. 57) dirigindo e limitando a autonomia da vontade, pautando-se pelo interesse e justiça social em detrimento da liberdade individual.
A intervenção estatal alterou os contornos da autonomia da vontade exigindo sobre esta inevitável releitura atenta aos novos prismas decorrentes das mudanças sociais e regulamentares.
A essa nova roupagem César Fiúza denomina autonomia privada (2003, p. 311) que não afasta a autonomia da vontade, indispensável à realização de negócios jurídicos e dos atos processuais, mas limita as conotações subjetivas a aspectos objetivos juridicamente impostos.
A atual ordem constitucional brasileira declarou o modelo de Estado Democrático de Direito centrado em concepções neoconstitucionalistas7, inaugurando, ao menos formalmente, a concepção solidarista do Direito, fazendo com que “a liberdade, princípio gestor das relações sociais, não mais possa significar, na ordem constitucional vigente, o espaço da ausência de responsabilidade” (FACHIN e GONÇALVES, 2011, p. 10).
Nessa perspectiva as relações não devem mais ser avaliadas de forma atomizada, cabendo o exame da repercussão dos atos na ordem global, algo presente em uma sociedade solidária em que sujeitos venham agir de maneira cooperada para materialização dos fins sociais constitucionalmente previstos.
A leitura constitucional do princípio da autonomia da vontade associada à ampliação do conceito de acesso à justiça centrada no objetivo de solucionar não apenas demandas, mas conflitos conduzem os institutos da conciliação e mediação no atual processo civil brasileiro instituído pela Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015.
Os referidos institutos, diante do cenário constitucional e da atual sociedade plural e hipercomplexa, devem ser incentivados e disponibilizados no âmbito do processo judicial (THEODORO JÚNIOR, et al, 241, 2016) como, o fez o atual CPC e constavam da exposição de seus motivos.
A autonomia da vontade apesar das restrições impostas pelos contornos constitucionais e infraconstitucionais ainda relaciona-se à livre autonomia dos interessados, também reconhecida no §4º do art. 334 do CPC.
Contudo, apensar da explicita menção ao princípio da autonomia da vontade e da livre autonomia dos interessados, conforme §§2º e 4º do art. 334 do CPC, os litigantes estão impedidos de ausentarem, injustificadamente, à audiência de conciliação (§8º do art. 334) e mediação (enunciado nº 25 do TJMG e enunciado nº 273 do FPPC).
A limitação imposta à autonomia da vontade ainda que lida sob a o viés da autonomia privada fragiliza os fundamentos da conciliação e mediação, pois sobre o âmago dos institutos paira a principal restrição, submissão obrigatória à audiência prévia.
Contudo, como se observará a seguir a imposição de multa àquele que se ausentar, injustificadamente, à audiência de mediação, além de atentar contra os fundamentos do princípio da autonomia da vontade, também colide com a autonomia privada, com o Estado de Direito, com a natureza e finalidade da mediação.
Inicialmente se mostra relevante analisar o conceito apresentado à mediação com o objetivo de definir seus contornos e sua natureza.
Segundo Adolfo Braga Neto mediação é:
Mediação é uma técnica não-adversarial de resolução de conflitos, por intermédio da qual duas ou mais pessoas (físicas, jurídicas, públicas, etc.) recorrem a um especialista neutro, capacitado, que realiza reuniões conjuntas e/ou separadas, com o intuito de estimula-las a obter uma solução consensual e satisfatória, salvaguardando o bom relacionamento entre elas. (BRAGA NETO, 1999, p.93)
Ildemar Egger:
Mediação é um método extrajudicial, não adversarial, de solução de conflitos através do diálogo. É um processo autocompositivo, isto é, as partes, com o auxílio do mediador, superam o conflito sem a necessidade de uma decisão externa, proferida por outrem que não as próprias partes envolvidas na controvérsia. Ou seja, na mediação, através do diálogo, o mediador auxilia os participantes a descobrir os verdadeiros conflitos, seus reais interesses e a trabalhar cooperativamente na busca das melhores soluções. A solução obtida culminará num acordo voluntário dos participantes. A mediação consegue, na maioria das vezes, restaurar a harmonia e a paz entre as partes envolvidas, pois o mediador trabalha especialmente nas inter-relações. Na mediação, as soluções surgem espontaneamente, reconhecendo-se que a melhor sentença é a vontade das partes. (EGGER, 2002, p.60).
Observa-se que nos conceitos propostos além da técnica evidente e indispensável ao instituto é apresentado também o objeto teleológico da mediação que corresponde ao intuito de restabelecer o diálogo entre os conflitantes, ou seja, o retorno a um momento anterior em que era possível a interação das partes, sendo forçoso concluir que entre os litigantes já teria havido, em algum tempo, certa relação amistosa convolada em conflituosa.
Este é o objetivo também proposto pelo §1º, do art. 2º da Lei nº 13.140, de 26 de julho de 2015, que prevê a possibilidade de fixação de mediação em instrumento contratual, ou seja, em momento anterior ao conflito quando as relações entre as partes eram consensuais.
Mesmo DIDIER JÚNIOR (p. 274, 2016), para quem a diferença entre mediação e conciliação é sutil ou mesmo inexistente, a mediação seria mais indicada para casos em que exista relação anterior e permanente entre os interessados.
O §3º do art. 165 do CPC, mesmo direcionado à figura do mediador e não propriamente à audiência de mediação, apresenta como finalidade da audiência de mediação o estabelecimento de condições favoráveis ao “reestabelecimento da comunicação”, assumindo a condição de meio emancipatório a solucionar conflitos.
Desta forma não resta dúvida que, para que se possa dizer sobre mediação é indispensável a existência de relação amistosa prévia ao conflito, pois não há como “reestabelecer” algo que não tivesse existido anteriormente.
Contudo, a atuação do mediador em audiência específica e a aplicação de técnicas mediadoras foram relativizadas no Código de Processo Civil, vindo o caderno processual a flexibilizar a atuação tanto do conciliador como do mediador, não condicionando a atuação destes, respectivamente, à ausência ou existência de vínculo entre as partes conflituosas, ou seja, é possível ao conciliador e mediador atuarem em conflitos aos quais existam ou não previa relação entre as partes, sem que isto desnature o tipo de audiência a ser realizada, se conciliação ou mediação.
Assim, o que temos nos §§ 2º e 3º do art. 165 do CPC é a possibilidade de pessoa capacitada para determinado tipo de procedimento realizar outro ao qual não possui formação técnica, ainda que de forma excepcional, como se verifica do exame sistemático dos parágrafos mencionados combinados com o §1º do art. 334 do mesmo código.
A possibilidade apresentada afasta a precipitada conclusão segunda a qual a definição acerca da natureza da audiência, se conciliação ou mediação, decorreria da escolha do auxiliar capacitado para conciliar ou mediar, justamente porque, nos termos dos §§ 2º e 3º ambos do art. 165, do CPC, os auxiliares da justiça não estão vinculados, rigorosamente, àquilo para o qual foram capacitados8.
Observa-se também que a audiência de conciliação e mediação poderá ser realizada por magistrado[9], conforme inciso V, do art. 139 do CPC, a quem caberá, a qualquer tempo, o dever-poder de realiza audiência visando a autocomposição, ainda que, preferencialmente, com o auxilio de conciliador ou mediador (REDONDO, p. 223, 2016).
Portanto, não será a pessoa ou a formação daquele que preside a audiência que irá determinar sua natureza no CPC, ou seja, substancialmente quando o objetivo da audiência for o “reestabelecimento da comunicação” (BRASIL, 2015b) entre as partes submetidas aos contornos estabelecidos pelo Código de Processo Civil, estaremos sempre diante de audiência de tentativa de mediação, assim ainda que o magistrado designe audiência de conciliação ou a audiência preliminar venha a ser presidida por conciliador ou magistrado, a depender de sua finalidade, poderemos estar diante de uma mediação, não sendo possível ao magistrado ou ao auxiliar da justiça desnaturar a espécie de audiência.
A técnica a ser empregada pelo auxiliar da justiça, mediador ou conciliador, ou ainda pelo magistrado, quando no exercício da função de mediar, deve compreender a investigação das motivações conflituosas que muitas vezes extrapolam as razões jurídicas formalmente trazidas ao Judiciário, para que então consiga aclarar as nebulosas relações pretéritas construídas pelas partes e incentiva-las a encontrar soluções adequadas à resolução de conflitos, conforme estabelecido pelo §3º do art. 165 do CPC.
A técnica a ser empregada pelos auxiliares da justiça ou pelo magistrado na mediação consiste em ações voltadas à emancipação das partes para que estas consigam “identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios próprios” (§3º do art. 165 do CPC).
Essa autonomia concedida às partes justifica a dispensa da advertência ao mediador, porém imposta ao conciliador no §2º do art. 165 do CPC, em que se tem “vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem” (BRASIL, 2016b).
Os objetivos traçados pelo Código de Processo Civil exigem que o mediador conheça e desenvolva técnicas necessárias para alcançar a finalidade descrita, sendo esta a razão dos termos fixados no §1º do art. 167 do mesmo diploma legal, relacionadas à habilitação dos auxiliares da justiça.
Porém, utilizando do mesmo raciocínio acima desenvolvido, a luz dos §§ 2º e 3º do art. 165 do CPC, ainda que a pessoa que presida a audiência de mediação não possua qualificação técnica específica, tal fato não afastará a natureza substancial da mesma, cabendo àquele que funcionar como mediador observar o objetivo teleológico do instituto, destinado a reestabelecimento da comunicação das partes, e as características legalmente fixadas, solução consensual por meio da emancipação, possibilitando assim a mediação.
Diante de tais argumentos temos por afastada a concepção segundo a qual a mediação no atual CPC se resumiria a técnica[10] destinada à obtenção de autocomposição, inexistindo, analiticamente, aspectos substanciais a lhe conceder natureza autônoma, sendo forçoso, muito antes pelo contrário concluir que havendo relação consensual anterior ao conflito entre as partes a audiência prévia a ser designada será, invariavelmente, a audiência de tentativa de mediação, independentemente de quem irá presidi-la, ou de sua qualificação técnica, cabendo, tem todo caso, observar a finalidade e características impostas pelo Código de Processo Civil.
O capítulo V, do título I, do livro I da parte especial do CPC, composto unicamente pelo art. 334, regula a audiência prévia de tentativa de conciliação ou mediação.
No único artigo referido tem-se explicita a dicotomia entre as audiências de conciliação e mediação a que os artigos pretéritos já haviam relatados, primeiramente em virtude do título atribuído ao capítulo V, “da audiência de conciliação ou de mediação” (BRASIL, 2016b), em que o legislador utilizou o conectivo excludente, ou, para diferir os tipos de audiência, construindo a semântica segundo a qual determinado tipo de audiência, condicionalmente, exclui a outra.
Ainda, tanto no caput como nos parágrafos do referido artigo, o legislador cuidou de repetir de forma exaustiva os termos “audiência de conciliação” e/ou “audiência de mediação”, ainda que em sua ampla maioria as disposições se referissem a ambos os tipos de audiência prévia, fato que deixa explícita a intenção de destacar que os dispositivos são aplicados aos dois tipos previstos de audiências prévias e a sua autonomia.
Contudo, ao tratar no §8º acerca do não comparecimento injustificado do autor, do réu ou de ambos à audiência prévia e suas consequências, o legislador somente considerou como ato atentatório à dignidade da justiça a ausência injustificada à audiência de conciliação nada tratando acerca da audiência de mediação, apesar desta ser reiteradas vezes mencionada tanto em parágrafos anteriores como ulteriores.
A exclusão da audiência de mediação não compreende lapso do legislador e tampouco deve ser compreendida como forma a conceder semântica sinonímia aos institutos da conciliação e mediação, tratando-se de escolha legislativa consciente e adequada.
De forma contrária posiciona-se Eduardo Cambi (2015, p. 887) quando comenta:
Ademais, embora o art. 334, §8º, do NCPC tenha se referido apenas à audiência de conciliação, a sanção pelo não comparecimento também deve ser imposta a ausência na audiência designada para mediação, pois a interpretação sistemática do NCPC impede a existência de tratamento diferenciado entre ambos os meios, igualmente relevantes, de autocomposição.
Em que pese o posicionamento do autor, a interpretação sistemática não nos leva à conclusão semelhante, pois, como já argumentado anteriormente, em todo o capítulo V examinado o legislador frisou, de forma redundante, a necessária implicação das disposições tanto às audiências de conciliação como de mediação, deixando de proceder da mesma forma justamente no §8º do art. 334 do CPC, em que trata exclusivamente da audiência de conciliação.
Ainda que para nós o texto legal se apresente de forma clara e incontestável, ou seja, somente admitindo condenação a multa prevista por ato atentatório à dignidade da justiça quando a parte, injustificadamente, se ausentar à audiência de conciliação11, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e o Fórum Permanente de Processo Civil (FPPC) editaram, respectivamente, os seguintes enunciados:
Enunciado 25 - (art. 334, §8º) A multa pelo não comparecimento injustificado da parte será imposta no termo da própria audiência de conciliação ou mediação e fixado o prazo para pagamento (TJMG, 2016).
Enunciado 273 - (art. 250, IV; art. 334, § 8º) Ao ser citado, o réu deverá ser advertido de que sua ausência injustificada à audiência de conciliação ou mediação configura ato atentatório à dignidade da justiça, punível com a multa do art. 334, § 8º, sob pena de sua inaplicabilidade. (Grupo: Petição inicial, resposta do réu e saneamento) (FPPC, 2016).
Os enunciados acima colacionados refletem o fanatismo (NEVES, 2016, p. 820) pela resolução consensual do conflito a qualquer custo, inclusive por meio de proposições sem fundamento legal ou contrários à natureza consensual das audiências de mediação, servindo a ameaça da multa a ser imposta como meio coercitivo ao comparecimento à audiência prévia.
Os respectivos enunciados destinados a orientar as interpretações a serem aplicadas ao Código de Processo Civil concebem os institutos da conciliação e mediação como sinônimos12, isto porque, mesmo inexistindo previsão legal para tanto, admitem a imposição de multa à parte ou às partes que ausentarem, injustificadamente, à audiência de mediação, sinonímia a qual a corrente majoritária e a interpretação sistemática do CPC afasta.
Observa-se que a escolha legislativa pela exclusão da audiência de mediação do §8º do art. 334 do CPC é adequada, pois, considerando as duas espécies de audiência prévia, conciliação ou mediação, a necessária apresentação recíproca das partes, assim como a sugestão de soluções para o litígio com o objetivo de reduzir o números de processos a serem julgados pelo Estado-Juiz se faz presente na audiência de conciliação, sendo relevante oportunizar às partes a possibilidade de se conhecerem, algo já presente nas situações em que tem cabimento a mediação, cujas ações desenvolvidas em audiência são estruturais e destinadas à resolução não apenas da demanda, mas de conflitos mesmo que não jurídicos que circundam o litígio, possuindo ainda como finalidade o restabelecimento da comunicação.
Assim, enquanto na audiência de conciliação é oportunizada às partes a possibilidade de se conhecerem, identificarem os argumentos contrários com o objetivo de alcançar acordos sobre o objeto da demanda, sendo evidente a intransigência quando recusada a possibilidade diante do desconhecido, o mesmo não é verificado na mediação diante da existência de relação prévia ao conflito e o seu direcionamento ao reconhecimento da capacidade humana emancipatória em resolver controversas.
Em virtude do exposto temos que obrigar as partes a se reunirem pessoalmente, ou ainda que por preposto (§10, do art. 334 do CPC) em audiência de mediação, sob a ameaça de multa, poderá causar maior constrangimento e hostilidade entre os envolvidos, algo que justifica a escolha legislativa pela inaplicabilidade de sanção pecuniária ao que se ausentar, injustificadamente, à referida audiência.
Portanto, torna-se indispensável o reconhecimento da autonomia da mediação, desvinculada da conciliação, assim como a fixação de critérios objetivos para a sua definição a afastar arbitrariedades e conceder interpretação adequada do §8º do art. 334 do CPC, por meio de uma análise sistemática do Código de Processo Civil.
O atual Código de Processo Civil reconheceu o sistema multiportas de acesso à justiça voltando à necessária entrega da jurisdição satisfativa, por meio de processos constitucionais democráticos, reconhecendo a emancipação cidadã e a capacidade humana de resolução autônoma de conflitos.
As resoluções de conflitos possuem maior amplitude que as resoluções das demandas judiciais que, em determinados casos, agravavam a hostilidade entre os envolvidos, fato que, juntamente com a morosidade das decisões judiciais, justificou a maior abertura do CPC a meios consensuais como regra a solucionar litígios.
A resolução consensual de conflitos assenta-se no princípio da autonomia da vontade, a qual o art. 166 do CPC, expressamente, faz referência. A menção ao princípio digitado quando perfilado com o atual modelo de Estado de Direito em que a autonomia da vontade resta limitada pela ordem jurídica, sem, contudo afastar completamente a vontade essencial ao negócio jurídico e ao exercício de faculdades de atos processuais, necessita de regulamentações que lhe estabeleçam limites e contornos.
A autonomia da vontade como supedâneo à resolução de conflitos levados à jurisdição estatal encontra na conciliação e mediação a possibilidade de se desenvolver.
Na conciliação o objetivo resume-se a resolução litigiosa pelas próprias partes envolvidas, por meio do auxilio direcionado por terceiro, unicamente direcionado ao fim do conflito, que por sua vez não possui origem em situações anteriores.
Por outro lado, na mediação, o litígio levado ao Judiciário possui ramificações em situações pretéritas, nem sempre exclusivamente jurídicas, sendo importante que as ações práticas em seu exercício tenham como objetivo o reestabelecimento da comunicação até então perdida ou conturbada entre as partes, possuindo assim natureza diversa da conciliação ao se destinar a resolução estrutural dos conflitos existentes entre as partes e não apenas da demanda judicial.
Portanto, a designação de audiência se conciliatória ou mediadora não comporta discricionariedade do magistrado, pois, cada qual possui natureza e finalidade diversas, sendo determinante para tanto observar a existência e o grau de intensidade das relações anteriores ao litígio que envolve as partes para que então se defina a espécie de audiência preliminar a ser designada, algo importante em virtude do §8º do art. 334 do CPC.
O artigo 334 do CPC disciplina a obrigatoriedade, em regra, da audiência prévia tratando no seu caput assim como em quase todos os seus parágrafos, concomitantemente, das duas espécies de audiência, conciliação e mediação.
Contudo observando o §8º do art. 334 do CPC verifica-se que o legislador optou por não atribuir à ausência injustificada da parte à audiência de mediação a pecha de ato atentatório à dignidade da justiça e, por consequência, a multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, a ser revertida em favor da União ou do Estado, estando a penalidade reservada, exclusivamente, às audiências de conciliação.
A opção legislativa pela inaplicabilidade de multa por ato atentatório à dignidade da justiça àquele que se ausentar, injustificadamente, da audiência de mediação se mostra adequado em virtude da natureza do instituto, assim como de seus objetivos, pois, conforme o momento ou a situação em que estão envolvidas as a mediação poderá prejudicar o reestabelecimento da comunicação entre as partes.
Assim, é forçoso concluir que a mediação constitui espécie autônoma ao lado da conciliação, não se confundindo com esta, sendo também evidente a inexistência de previsão legal a sustentar a aplicação de multa por ato atentatório à dignidade da justiça àquele que se ausentar, injustificadamente, de audiência de mediação, sendo ainda adequada à natureza do instituto a escolha legislativa, razão pela qual se tem por, juridicamente, descabida as interpretações propostas pelos enunciados formulados pelo TJMG e pelo FPPC.