
Recepção: 25 Maio 2018
Aprovação: 13 Maio 2019
Resumo: Pretendeu-se analisar no presente artigo se o direito das pessoas com deficiência à educação inclusiva, além de um Direito Fundamental, também é um Direito Humano e, em caso positivo, quais as consequências advindas desta constatação. Para tanto, analisou-se os fundamentos normativos e doutrinários que embasam a resposta a esta questão. Concluiu-se que tal direito, além de um direito fundamental, também se classifica como um direito humano, possibilitando ao indivíduo buscar a tutela de seu direito em instâncias supranacionais. A vertente metodológica adotada será a jurídico-dogmática; o tipo de raciocínio utilizado será o dedutivo; os tipos metodológicos da pesquisa serão o jurídico- descritivo e o jurídico-comparativo.
Palavras-chave: Constituição Federal de 1988, Direitos Fundamentais, Direitos Humanos, Tratados Internacionais de Direitos Humanos.
Abstract: The purpose of this article is to analyze whether the right of persons with disabilities to inclusive education, in addition to a Fundamental Law, is also a Human Right and, if so, the consequences of this finding. For that, normative and doctrinal foundations were analyzed to support the answer to this question. It was concluded that this right, in addition to a fundamental right, is also classified as a human right, enabling the individual to seek the protection of his/her right in supranational instances. The methodological aspects adopted will be juridical-dogmatic; the type of reasoning used will be the deductive; the methodological types of research will be juridical-descriptive and juridical- comparative.
Keywords: Federal Constitution of 1988, Fundamental Rights, Human Rights, International Human Rights Treaties.
Introdução
O direito das pessoas com deficiência a uma educação inclusiva está estampado na Constituição sob a categoria de Direito Fundamental, não restando dúvidas, portanto, quanto à natureza de tal direito.
Porém, será que é possível afirmar que referido direito, assegurado às pessoas com deficiência, também se encaixam na categoria de Direito Fundamental? E, em caso positivo, quais as consequências práticas de tal classificação para tais indivíduos?
Pois bem, o segundo questionamento já pode ser respondido, justificando também a importância do desenvolvimento da presente pesquisa. Ao ser alçado à categoria de Direito Humano, como se detalhará no desenvolvimento deste trabalho, o espectro de proteção do direito se amplia, transcendendo a esfera jurisdicional interna, e alcançando as instancias supranacionais. Dessa forma, caso o direito humano do indivíduo seja violado pelo Estado, o mesmo poderá buscar a tutela do seu direito em instancias jurisdicionais que vão além do ordenamento jurídico doméstico em que se encontra inserido.
Portanto, o presente artigo tem como objetivo definir se o direito das pessoas com deficiência a uma educação inclusiva, além de um Direito Fundamental, também pode ser considerado como um Direito Humano, bem como qual a consequência de tal classificação. Para tanto, adota-se como marco teórico o seguinte fragmento textual:
O reconhecimento de que os seres humanos têm direitos sob o plano internacional implica a noção de que a negação desses mesmos direitos impõe, como resposta, a responsabilização internacional do Estado violador. Isto é, emerge a necessidade de delinear limites à noção tradicional de soberania estatal, introduzindo formas de responsabilização do Estado na arena internacional, quando as instituições nacionais se mostram omissas ou falhas na tarefa de proteger os direitos humanos internacionalmente assegurados. Verificar-se-á como, na ordem contemporânea, se reforça, cada vez mais, esse complexo sistema de “concorrência institucional”, pelo qual a ausência ou insuficiência de respostas às violações de direitos humanos, no âmbito nacional, justifica o controle, a vigilância e o monitoramento desses direitos pela comunidade internacional. Importa esclarecer que a sistemática internacional de proteção dos direitos humanos, ao constituir uma garantia adicional de proteção, invoca dupla dimensão, enquanto: a) parâmetro protetivo mínimo a ser observado pelos Estados, propiciando avanços e evitando retrocessos no sistema nacional de direitos humanos; e b) instância de proteção dos direitos humanos, quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas no dever de proteção desses direitos.
Nesse contexto, os tratados internacionais voltados à proteção dos direitos humanos, ao mesmo tempo que afirmam a personalidade internacional do indivíduo e endossam a concepção universal dos direitos humanos, acarretam aos Estados que os ratificam obrigações no plano internacional. Com efeito, se, no exercício de sua soberania, os Estados aceitam as obrigações jurídicas decorrentes dos tratados de direitos humanos, passam então a se submeter à autoridade das instituições internacionais, no que se refere à tutela e fiscalização desses direitos em seu território. Sob esse prisma, a violação de direitos humanos constantes dos tratados, por significar desrespeito a obrigações internacionais, é matéria de legítimo e autêntico interesse internacional, o que vem a flexibilizar a noção tradicional de soberania nacional. Nesse sentido, destaque-se a afirmação do Secretário-Geral das Nações Unidas, no final de 1992: “Ainda que o respeito à soberania e integridade do Estado seja uma questão central, é inegável que a antiga doutrina da soberania exclusiva e absoluta não mais se aplica e que esta soberania jamais foi absoluta, como era então concebida teoricamente. Uma das maiores exigências intelectuais de nosso tempo é a de repensar a questão da soberania (...). Enfatizar os direitos dos indivíduos e os direitos dos povos é uma dimensão da soberania universal, que reside em toda a humanidade e que permite aos povos um envolvimento legítimo em questões que afetam o mundo como um todo. É um movimento que, cada vez mais, encontra expressão na gradual expansão do Direito Internacional”. Com esse raciocínio, perceber-se-á como a violação de uma obrigação internacional pelo Estado, seja em razão de ação ou omissão, implica responsabilização internacional. Nas lições de Henry Steiner: “Muitos dos princípios nos quais o Direito Internacional dos Direitos Humanos está baseado relacionam-se à necessidade de assegurar que não apenas as violações cessem, mas que a justiça seja feita em relação a ambos, vítimas e perpetradores. Estes princípios incluem o direito a um remédio, à responsabilização, à punição dos autores e ao pagamento de uma indenização apropriada, bem como a medidas que facilitem a reabilitação da vítima”. (PIOVESAN, 2013, p. 67/68).
No presente trabalho, adotar-se-á a vertente metodológica jurídico-dogmática, uma vez que se trabalhará com elementos internos ao ordenamento jurídico. O tipo de raciocínio utilizado no presente trabalho será o dedutivo, partindo-se da definição do conceito geral de Direitos Humanos, com o intuito de se determinar se o direito específico das pessoas com deficiência a uma educação inclusiva, se enquadram em tal conceito. Por fim, em relação aos tipos metodológicos da pesquisa serão empregados o jurídico-descritivo e o jurídico- comparativo (DIAS; GUSTIN, 2010, p. 21-28).
2 Diferença conceitual entre direitos fundamentais e direitos humanos
Primeiramente, deve-se proceder a uma distinção entre Direitos Fundamentais e Direitos Humanos, visto que, apesar de serem, ocasionalmente, utilizadas como sinônimas, tais terminologias são tecnicamente distintas (SARLET, 2010, p. 29). Em relação ao primeiro, Almeida (2008, p.304) observa que “A pluridimensionalidade, a interdisciplinaridade e a complexidade dos direitos fundamentais dificultam a formulação de conceituação, mas não a impedem.”. Após, conclui que:
[...] direitos fundamentais são todos os direitos, individuais ou coletivos, previstos expressa ou implicitamente em determinada ordem jurídica e que representam os valores maiores nas conquistas histórica dos indivíduos e das coletividades, os quais giram em torno de um núcleo fundante do próprio Estado Democrático de Direito, que é justamente o direito à vida e à sua existência com dignidade. (ALMEIDA, 2008, p.310).
Por seu turno, os Direitos Humanos são aqueles protegidos pela ordem internacional, principalmente por tratados, contra as eventuais arbitrariedades ou violações praticadas pelo Estado contra seus jurisdicionados, estabelecendo, desta maneira, um nível de proteção mínimo que deve ser respeitado, sob pena de responsabilização internacional (MAZZUOLI, 2016, p. 25). Em outras palavras:
[...] garantem às pessoas sujeitas à jurisdição de um Estado meios de vindicação de seus direitos, para além do plano interno, nas instâncias internacionais de proteção [...].
Destaque-se, por fim, que, quando se trata da proteção dos direitos humanos, não importa a nacionalidade da vítima, bastando ter sido ela violada em seus direitos por ato de um Estado sob cuja jurisdição se encontrava. (MAZZUOLI, 2016, p. 25).
Assim, os Direitos Fundamentais referem-se aos “[...] direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado [...]” (SARLET, 2010, p. 29), enquanto que os Direitos Humanos:
[...] guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir- se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional). (SARLET, 2010, p. 29)
Realizada esta importante distinção, parte-se para a análise da questão principal do presente trabalho, a saber, o direito das pessoas com deficiência à educação como um direito fundamental e humano.
3 Direito das pessoas com deficiência à educação como um direito fundamental
O Título II da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é intitulado “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Dentro deste Título, se encontra o Capítulo II, denominado “Dos Direitos Sociais”. O artigo 6º da Constituição determina que são direitos sociais: “[...] a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (BRASIL, 1988).
Assim, através desta simples análise, é possível afirmar que a educação faz parte dos Direitos Sociais que, por sua vez, são considerados constitucionalmente como Direitos Fundamentais do indivíduo.
Ainda nessa linha de raciocínio, estabelece o artigo 205 da Constituição de 1988, que se encontra sob o Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo III (Da Educação, da Cultura e do Desporto), Seção I (Da Educação), que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” Importante ressaltar, também, que um dos princípios que norteiam o ensino no Brasil é a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (Artigo 206, inciso I da Constituição).
Dentro dessa esfera de direitos fundamentais garantidos ao indivíduo, há disposição específica, presente no artigo 208, inciso III, que garante o atendimento educacional especializado às pessoas com deficiência, destacando, ainda, que tal atendimento deverá ser prestado, de preferência, na rede regular de ensino.
Com o intuito de regulamentar o exercício do direito fundamental de acesso à educação pelas pessoas com deficiência, foram criados diversos instrumentos legislativos que tratam sobre o mesmo, os quais serão analisados na sequência.
3.1 Lei 10.098/2000 - Lei de Acessibilidade
A Lei 10.098 (BRASIL, 2000) de 19 de dezembro de 2000 tem como escopo estabelecer regras gerais e critérios básicos para promover a acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida “[...] mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e nos meios de transporte e de comunicação.” (artigo 1º).
O artigo 2º da lei em comento, onde são estabelecidos diversos conceitos pertinentes à mesma, foi inteiramente reformulado pela Lei 13.146/15 (BRASIL, 2015), que será objeto de estudo em tópico próprio. O termo chave “acessibilidade” é definido como:
[...] possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida. (BRASIL, 2000).
Percebe-se que o conceito de acessibilidade é muito amplo, englobando tanto o acesso a estruturas físicas quanto a informações e suas tecnologias, o que visa garantir o máximo de inclusão social da pessoa com deficiência. Outro termo chave na Lei 10.098/00, é o de pessoa com mobilidade reduzida, sendo todo aquele que possua, por qualquer motivo “[...] dificuldade de movimentação, permanente ou temporária, gerando redução efetiva da mobilidade, da flexibilidade, da coordenação motora ou da percepção, incluindo idoso, gestante, lactante, pessoa com criança de colo e obeso”.
Avançando, uma pequena, porém importante modificação, também perpetrada pela Lei 13.146/15, é a que ocorreu no artigo 3º da Lei 10.098/00. Na sua redação antiga, tal artigo determinava que “O planejamento e a urbanização das vias públicas, dos parques e dos demais espaços de uso público deverão ser concebidos e executados de forma a torná-los acessíveis para as pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.”. Já a nova redação, acrescentou que o planejamento e urbanização deverão ser concebidos e executados de forma a torná-los acessíveis para todas as pessoas, inclusive para aquelas com deficiência ou com mobilidade reduzida.
Apesar de parecer simples, referida modificação representa a preocupação em se promover não apenas a inclusão social, mas uma inclusão social plena, através da eliminação de todas as barreiras, independentemente de sua natureza.
Ainda sobre essa temática, foi elaborada, em 7 de novembro de 2003, pelo Ministério da Educação, a Portaria nº 3.284 (BRASIL, 2003) que trata sobre os requisitos de acessibilidade das pessoas com deficiência, para instruir os processos de autorização e de reconhecimento de cursos superiores, bem como para o credenciamento de instituições de ensino superior.
Referida portaria afirma que, tendo em vista a necessidade em se garantir às pessoas com deficiência condições básicas de acesso ao ensino superior, de mobilidade e de utilização de equipamentos e instalações das instituições de ensino, resolve-se:
Art. 1º Determinar que sejam incluídos nos instrumentos destinados a avaliar as condições de oferta de cursos superiores, para fins de autorização e reconhecimento e de credenciamento de instituições de ensino superior, bem como para renovação, conforme as normas em vigor, requisitos de acessibilidade de pessoas portadoras de necessidades especiais. (BRASIL, 2003).
Percebe-se pela leitura do artigo 1º da Portaria nº 3.284/03, o caráter de inclusão social presente na mesma. A promoção da igualdade de direitos deve ser realizada em todas as esferas que compõem a sociedade, principalmente na da educação – em todos os níveis – uma vez que está constitui a base de uma sociedade civilizada, pautada nos ideais internacionais de Direitos
Humanos. Portanto, referida portaria possui uma enorme importância no que tange à inclusão e equalização dos direitos das pessoas com deficiência no âmbito da sociedade brasileira.
O artigo 2º, §1º da Portaria nº 3.284/03, estabelece os requisitos mínimos de acessibilidade que deverão estar presentes nas instituições de ensino superior.In verbis:
- com respeito a alunos portadores de deficiência física: a) eliminação de barreiras arquitetônicas para circulação do estudante, permitindo acesso aos espaços de uso coletivo; b) reserva de vagas em estacionamentos nas proximidades das unidades de serviço; c) construção de rampas com corrimãos ou colocação de elevadores, facilitando a circulação de cadeira de rodas; d) adaptação de portas e banheiros com espaço suficiente para permitir o acesso de cadeira de rodas; e) colocação de barras de apoio nas paredes dos banheiros; f)instalação de lavabos, bebedouros e telefones públicos em altura acessível aos usuários de cadeira de rodas;
- no que concerne a alunos portadores de deficiência visual, compromisso formal da instituição, no caso de vir a ser solicitada e até que o aluno conclua o curso: a) de manter sala de apoio equipada como máquina de datilografia braile, impressora braile acoplada ao computador, sistema de síntese de voz, gravador e fotocopiadora que amplie textos, software de ampliação de tela, equipamento para ampliação de textos para atendimento a aluno com visão subnormal, lupas, réguas de leitura, scanner acoplado a computador; b) de adotar um plano de aquisição gradual de acervo bibliográfico em braile e de fitas sonoras para uso didático;
- quanto a alunos portadores de deficiência auditiva, compromisso formal da instituição, no caso de vir a ser solicitada e até que o aluno conclua o curso:
de propiciar, sempre que necessário, intérprete de língua de sinais/língua portuguesa, especialmente quando da realização e revisão de provas, complementando a avaliação expressa em texto escrito ou quando este não tenha expressado o real conhecimento do aluno;
de adotar flexibilidade na correção das provas escritas, valorizando o conteúdo semântico;
de estimular o aprendizado da língua portuguesa, principalmente na modalidade escrita, para o uso de vocabulário pertinente às matérias do curso em que o estudante estiver matriculado;
de proporcionar aos professores acesso a literatura e informações sobre a especificidade lingüística do portador de deficiência auditiva. (BRASIL, 2003).
Conclui-se, assim, que a Portaria nº 3.284/03 contribui positivamente para os direitos das pessoas com deficiência, através da promoção da inclusão social e da igualdade de oportunidades na esfera educacional, estando alinhada ao direito fundamental à educação estabelecido na Constituição.
3.2 Decreto 7.611/2011 - Educação Especial e Atendimento Educacional Especializado
O Decreto nº 7.611 (BRASIL, 2011) de 17 de novembro de 2011, que dispõe sobre a educação especial e o atendimento educacional especializado, declara como um de seus
embasamentos legais, dentre outros, o artigo 24 (Educação) da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que será estudada de forma pormenorizada em tópico próprio.
Referido decreto estabelece em seu artigo 1º, as diretrizes através das quais o Estado cumprirá com seu dever de efetivar a educação especial. São elas:
- garantia de um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades;
- aprendizado ao longo de toda a vida;
- não exclusão do sistema educacional geral sob alegação de deficiência; IV - garantia de ensino fundamental gratuito e compulsório, asseguradas adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais;
- oferta de apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação;
- adoção de medidas de apoio individualizadas e efetivas, em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena;
- oferta de educação especial preferencialmente na rede regular de ensino; e
- apoio técnico e financeiro pelo Poder Público às instituições privadas sem fins lucrativos, especializadas e com atuação exclusiva em educação especial. (BRASIL, 2011).
O §1º do artigo sob análise, determina que o público-alvo da educação especial se constituem nas pessoas com deficiência, com transtornos globais do desenvolvimento1 e com altas habilidades ou superdotação. Já o §2º traz disposição específica sobre os estudantes surdos e com deficiência auditiva, o que remete à Lei nº 10.346 de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais (Libras), afirmando em seu artigo 1º, parágrafo único que:
Art. 1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados. Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual- motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil. (BRASIL, 2002).
Já em seu artigo 4º, a Lei 10.346/02, determina a inclusão do ensino de Libras nos cursos de formação de Educação Especial, de Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio e superior, pelo sistema educacional federal e os sistemas educacionais estaduais, municipais e do Distrito Federal. Por sua vez, o Decreto nº 5.626 de 22 de dezembro de 2005, que tem como escopo regulamentar referida lei, esclarece, em seu artigo 3º, que a inclusão do ensino de Libras engloba as instituições de ensino públicas e privadas, aduzindo, ainda, em seus
§1º e 2º:
§ 1o Todos os cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do conhecimento, o curso normal de nível médio, o curso normal superior, o curso de Pedagogia e o curso de Educação Especial são considerados cursos de formação de professores e profissionais da educação para o exercício do magistério.
§ 2o A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais cursos de educação superior e na educação profissional, a partir de um ano da publicação deste Decreto. (BRASIL, 2005).
Retornando à análise do Decreto nº 7.611/11, seu artigo 2º afirma que os serviços de apoio especializado, garantidos pela educação especial, tem como principal finalidade “[...] eliminar as barreiras que possam obstruir o processo de escolarização de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação”. Tais serviços são denominados pelo §1º de “atendimento educacional especializado”, sendo compreendidos como “[...] o conjunto de atividades, recursos de acessibilidade e pedagógicos organizados institucional e continuamente [...]” (BRASIL, 2011) que deverão ser prestados das seguintes formas:
- complementar à formação dos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, como apoio permanente e limitado no tempo e na frequência dos estudantes às salas de recursos multifuncionais; ou
- suplementar à formação de estudantes com altas habilidades ou superdotação. (BRASIL, 2011).
A dupla matrícula, tanto no ensino regular quanto no atendimento educacional especializado, será garantida pelo Poder Público, nos termos do artigo 4º do Decreto nº 7.611/11. Desta forma, proporciona-se aos estudantes-alvo da educação especial um ensino de qualidade que vise suprir qualquer necessidade que apresentem, sem que a sua participação no ensino regular seja prejudicada, prezando-se assim pela educação, mas sem se abrir mão da inclusão social. Por fim, cumpre-se mencionar os artigos 27 e 28, da Lei 13.146/15 (BRASIL, 2015), que tratam sobre o direito das pessoas com deficiência à educação, e que possuem conteúdo normativo similar aos das disposições legais analisadas até o momento.
A formação e o amadurecimento de uma ideologia inclusiva, que visa promover a igualdade de direitos entre todos os indivíduos de uma sociedade, depende, indubitavelmente, do oferecimento de uma educação de qualidade a todos. É justamente este o papel que o Decreto 7.611/11 visa alcançar ao estabelecer as diretrizes para uma educação especial de qualidade que, ao mesmo tempo que procura suprir as necessidades educacionais das pessoas com deficiência, através da eliminação de barreiras, preza também por sua inclusão social.
3.3 Lei 13.146/2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência
A Lei nº 13.146 ou Estatuto da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2015), foi sancionada em 06 de julho de 2015, e entrou em vigor em janeiro de 2016, tendo como base a CDPD. O Estatuto determina em seu artigo 1º que se destina a “[...] assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.”.
Os artigos 27 ao 30 do Estatuto, que se encontram sob o Título II (Dos Direitos Fundamentais), Capítulo IV (Do Direito à Educação), estabelecem direitos e diretrizes básicas a serem implementadas com o intuito de se garantir o acesso à educação pelas pessoas com deficiência. Seu artigo 27 preconiza que:
Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurado sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem.
Parágrafo único. É dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação. (BRASIL, 2015).
Em relação aos artigos 28 e 30 do Estatuto, mais especificamente o §1º daquele e o caput deste, foram alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), interposta pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN), que alegou que tais artigos violavam diversos dispositivos constitucionais, inclusive o artigo 208, inciso III da Constituição, visto que que as medidas de adequação e inclusão educacional estabelecidas pelo Estatuto gerariam um alto custo para as escolas privadas, obrigando uma grande parte delas a encerrarem suas atividades (BRASIL, 2016).
Resumidamente, o artigo 28 do Estatuto da Pessoa com Deficiência aponta medidas que devem ser implementadas e fiscalizadas pelo Poder Público em prol de um sistema educacional inclusivo. Seu inciso V, por exemplo, determina a “adoção de medidas individualizadas e coletivas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência, favorecendo o acesso, a permanência, a participação e a aprendizagem em instituições de ensino”. Ocorre que, o §1º do artigo 28, objeto da ADI supracitada, estabelece que as instituições privadas de ensino também devem cumprir com várias das medidas elencadas, proibindo a cobrança de valores adicionais de qualquer natureza por referidas instituições no cumprimento destas determinações.
Dessa forma, o artigo 30 do Estatuto em comento, estabelece medidas a serem adotadas nos processos seletivos para ingresso e permanência nos cursos oferecidos pelas instituições, tanto públicas como privadas, de ensino superior e de educação profissional e tecnológica.
No dia 09/06/2016, a ADI 5.357 foi julgada improcedente pelo Plenário do STF. Pela relevância da decisão, transcreve-se sua ementa:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. LEI 13.146/2015. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. ENSINO INCLUSIVO. CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INDEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR. CONSTITUCIONALIDADE DA LEI 13.146/2015 (arts. 28, § 1º e 30, caput, da Lei nº 13.146/2015).
Acredita-se, com convicção, no acerto do STF em relação ao julgamento da ADI 5.357. Obviamente que razões econômicas não podem servir de motivo para a supressão de Direitos Fundamentais arduamente conquistados e garantidos formalmente na Constituição. Ao se sopesar os direitos discutidos em referida ADI, a balança deve pender, sem dúvida alguma, para o lado da promoção da dignidade da pessoa humana, igualdade e educação.
4 Direito das pessoas com deficiência à educação como um direito humano
Não resta dúvida que o direito das pessoas com deficiência à educação inclusiva, em todos os níveis, tanto na esfera pública quanto na particular, trata-se de um direito fundamental no ordenamento jurídico pátrio. Cabe agora, de acordo com o conceito estabelecido anteriormente no presente artigo, definir se o mesmo também é um Direito Humano.
Primeiramente, cumpre ressaltar o fato de que a preocupação em se promover um ensino de qualidade, isonômico e disponível a todos não é uma preocupação exclusiva do Brasil, e sim de toda a humanidade. Assim, no ano de 2000, foi realizado o Fórum Mundial de Educação na cidade de Dakar, no Senegal, onde 164 países concordaram e adotaram o texto intitulado “Marco de Ação de Dakar, Educação para Todos: Cumprindo nossos Compromissos Coletivos”, assumindo o compromisso, descrito em seu artigo 7º, de atingir seis objetivos educacionais de amplo alcance até o ano de 2015 (BRASIL, 2014, p. 7-9), quais sejam:
7. Comprometemo-nos a atingir os seguintes objetivos:
expandir e melhorar o cuidado e a educação da criança pequena, especialmente das mais vulneráveis e em maior desvantagem;
assegurar que todas as crianças, com ênfase especial nas meninas e nas crianças em circunstâncias difíceis e pertencentes a minorias étnicas, tenham acesso à educação primária obrigatória, gratuita e de boa qualidade até o ano 2015;
assegurar que as necessidades de aprendizagem de todos os jovens e adultos sejam atendidas pelo acesso equitativo à aprendizagem apropriada e às habilidades para a vida;
alcançar uma melhoria de 50% nos níveis de alfabetização de adultos até 2015, especialmente para as mulheres, e acesso equitativo à educação básica e continuada para todos os adultos;
eliminar disparidades de gênero na educação primária e secundária até 2005 e alcançar a igualdade de gênero na educação até 2015, com enfoque na garantia ao acesso e ao desempenho pleno e equitativo de meninas na educação básica de boa qualidade;
melhorar todos os aspectos da qualidade da educação e assegurar excelência para todos, de forma a garantir a todos resultados reconhecidos e mensuráveis, especialmente na alfabetização, na aquisição de conhecimentos matemáticos e habilidades essenciais à vida. (BRASIL, 2001, p. 8-9).
Esse fato demonstra a preocupação internacional em se efetivar o direito à educação a todos, ou seja, não se trata de algo que apenas algumas ordens constitucionais isoladas procuram garantir. Trata-se de um direito de natureza supranacional, que transcende a ordem interna dos países, encaixando-se, desta maneira, no conceito de Direitos Humanos.
Ademais, o direito das pessoas com deficiência à educação, está expressamente garantido em um tratado internacional de Direitos Humanos da ONU, intitulado Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), que conta atualmente com 175 Estados- Parte2.
Outro tratado internacional de Direitos Humanos, também relativo ao direito de acesso de pessoas com deficiência à cultura e à educação é o Tratado de Marraquexe para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas para Pessoas Cegas, do ano de 2013.
Interessante notar que esses dois tratados são os únicos no ordenamento jurídico brasileiro aprovados como equivalentes às emendas constitucionais, de acordo com os parâmetros definidos pelo artigo 5º, §3º da Constituição do Brasil de 1988. Pela importância e relevância para o presente artigo, ambos os tratados serão analisados na sequência.
4.1 Direito à Educação no âmbito da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo foram assinados em Nova Iorque, no dia 30 de março de 2007, sendo ratificados no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 186 (BRASIL, 2008) de 9 de julho de 2008, nos termos do artigo 5º, §3º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Sua promulgação se deu com o Decreto nº 6.949 (BRASIL, 2009) de 25 de agosto de 2009.
Os princípios gerais que embasam a CDPD estão estabelecidos em seu artigo 3, que assim preconiza:
Os princípios da presente Convenção são:
O respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas;
A não-discriminação;
A plena e efetiva participação e inclusão na sociedade;
O respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade;
A igualdade de oportunidades;
A acessibilidade;
A igualdade entre o homem e a mulher;
O respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua identidade. (ONU, 2006).
No tocante ao Direito à Educação, o mesmo se encontra localizado no artigo 24 da CDPD, que determina aos Estados-Parte, em seu inciso 1, a garantia de um sistema educacional inclusivo em todos os níveis às pessoas com deficiência, que preze pelo máximo desenvolvimento da personalidade, dignidade, autoestima e habilidades de tais indivíduos, visando a sua efetiva participação em uma sociedade livre. Uma vez que o artigo em análise prega um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, pode-se afirmar que o acesso ao ensino superior também se constitui em um direito das pessoas com deficiência. Isto é confirmado pelo inciso 5, que preconiza o direito ao “[...] acesso ao ensino superior em geral, treinamento profissional de acordo com sua vocação, educação para adultos e formação continuada [...].”. Para tanto, os Estados deverão assegurar que (inciso 2):
As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência;
As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade e gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem;
Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais sejam providenciadas;
As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação;
Medidas de apoio individualizadas e efetivas sejam adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena. (ONU, 2006).
Fazendo uma alusão ao analisado Decreto nº 7.611/11, seu artigo 1º, incisos I e II, foram elaborados com base no artigo 24, inciso 1 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), o que demonstra o objetivo de referido decreto em internalizar e adequar o conteúdo da Convenção ao ordenamento jurídico brasileiro, no que tange à educação. Do mesmo modo, os incisos III, IV, V e VI, baseiam-se na redação do artigo 24, inciso 2 da CDPD. O inciso VII visa, além de dar cumprimento ao princípio da inclusão social, uma vez que as pessoas com deficiência deverão, preferencialmente, serem matriculadas na rede regular de ensino juntamente com os demais alunos, fomentar o princípio descrito no artigo 3º, alínea “d” da Convenção, qual seja, o do respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade. Isto pois, desde muito pequenas, as crianças aprenderão a conviver com as diferenças e, sobretudo, a respeitá-las, passando a enxergar o ambiente em sua volta com um olhar livre de preconceitos, o que possibilitará que percebam o potencial presente em cada ser humano, independentemente das distintas características que apresentem.
Por sua vez, a Portaria nº 3.284/03, também analisada anteriormente, reflete o direito assegurado no artigo 24, inciso 5, da CDPD, que dispõe sobre a obrigação dos Estados-Parte em assegurar às pessoas com deficiência o acesso ao ensino superior, providenciando para tanto as adaptações razoáveis necessárias, o que demonstra o avanço legislativo do Brasil nesta área.
Por fim, tanto a Lei 10.346/02 quanto o Decreto nº 5.626/05, já estudados, se alinham com a disposição presente no artigo 24, incisos 3 e 4 da CDPD, que assim determinam:
3.Os Estados Partes assegurarão às pessoas com deficiência a possibilidade de adquirir as competências práticas e sociais necessárias de modo a facilitar às pessoas com deficiência sua plena e igual participação no sistema de ensino e na vida em comunidade. Para tanto, os Estados Partes tomarão medidas apropriadas, incluindo:
Facilitação do aprendizado do braille, escrita alternativa, modos, meios e formatos de comunicação aumentativa e alternativa, e habilidades de orientação e mobilidade, além de facilitação do apoio e aconselhamento de pares;
Facilitação do aprendizado da língua de sinais e promoção da identidade linguística da comunidade surda;
Garantia de que a educação de pessoas, em particular crianças cegas, surdocegas e surdas, seja ministrada nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados ao indivíduo e em ambientes que favoreçam ao máximo seu desenvolvimento acadêmico e social.
4.A fim de contribuir para o exercício desse direito, os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para empregar professores, inclusive professores com deficiência, habilitados para o ensino da língua de sinais e/ou do braille, e para capacitar profissionais e equipes atuantes em todos os níveis de ensino. Essa capacitação incorporará a conscientização da deficiência e a utilização de modos, meios e formatos apropriados de comunicação aumentativa e alternativa, e técnicas e materiais pedagógicos, como apoios para pessoas com deficiência. (ONU, 2006).
Percebe-se, portanto, que o direito das pessoas com deficiência à educação, se encontra assegurado em um Tratado Internacional de Direitos Humanos, o qual o Brasil faz parte, o que faz com que referido direito transcenda a própria ordem interna brasileira, podendo os indivíduos, caso o Estado violem seus direitos, recorrerem a instâncias judiciais supranacionais com o intuito de garantilos.
4.2 Tratado de Marraquexe para facilitar o acesso a obras publicadas para pessoas cegas
O Tratado de Marraquexe para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas para Pessoas Cegas (OMPI, 2013), foi adotado em 27 de junho de 2013, pelos Estados-Membros da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), com o objetivo de lidar com o problema mundial da escassez de obras literárias adaptadas para pessoas com deficiência visual, uma vez que, a cada ano, dos milhões de livros publicados no mundo, somente de 1 a 7% destes são adaptados para tal grupo, que compreende cerca de 285 milhões de indivíduos, dos quais 90% vivem em países em desenvolvimento (OMPI, 2016, p.2). A proposta do Tratado de Marraquexe partiu dos governos do Brasil, Argentina, Paraguai, Equador, e do México, com o apoio do Grupo de Países da América Latina e do Caribe. Sobre o conteúdo do tratado:
A matéria veiculada no tratado é claramente atinente a direitos humanos, recordando-se no seu primeiro considerando “os princípios da não
discriminação, de igualdade de oportunidades, de acessibilidade e de participação e inclusão plena e efetiva na sociedade, proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”.
O instrumento representa o culminar das lutas empreendidas pelas pessoas cegas, com deficiência visual ou outras dificuldades de leitura (por exemplo, dislexia) para ter amplo acesso à cultura, para o que retira direitos autorais (limitando o sistema de copyright) em prol da garantia de leitura acessível a essa categoria de pessoas. (MAZZUOLI; XAVIER, 2016).
Trata-se do primeiro tratado de direitos autorais (copyright) a incluir uma perspectiva clara de Direitos Humanos em seu texto normativo, demonstrando que os sistemas de direitos autorais representam uma importante parte da solução ao desafio em se ampliar o acesso a livros, bem como a outros trabalhos impressos, para as pessoas com deficiência visual (OMPI, 2016, p.2).
De maneira geral, o tratado em comento, com o intuito de alcançar seus principais objetivos, estabelece duas exceções aos direitos autorais, a saber:
[...] (a) a livre produção e distribuição de obras em formato acessível no território das Partes Contratantes e (b) o intercâmbio transfronteiriço desimpedido destes formatos. Este último dispositivo contribuirá para expandir, de forma significativa, sobretudo nos países em desenvolvimento, o acesso das pessoas com deficiência visual ao conhecimento, na medida em que permitirá o compartilhamento de formatos acessíveis produzidos em uma Parte Contratante com beneficiários residentes de quaisquer outras Partes. (SENADO FEDERAL, 2015).
Nesse sentido:
Para além do valor moral e político, o Tratado também possui aspectos juridicamente relevantes. O primeiro é que admite que leis de direitos autorais antiquadas podem ser usadas como barreiras para o acesso das pessoas com deficiência visual à informação impressa, dificultando que um número amplo de obras seja convertido e distribuído em formato mais acessível.
Ante isso, sem deixar de reconhecer que a proteção dos direitos autorais é uma forma de recompensa ao processo criativo dos autores e editores, pondera a necessidade de ampliar, de forma inclusiva, o contingente de leitores. O Tratado garante, no entanto, que a limitação de direitos autorais destina-se apenas à garantia de leitura dessa categoria de pessoas, não para terceiros que podem perfeitamente ler. (MAZZUOLI; XAVIER, 2016).
No seu artigo 3º, o Tratado de Marraquexe define quais as pessoas serão beneficiadas por suas disposições, a saber, aquelas que possuem deficiência visual ou outra deficiência de percepção ou de leitura, que não possa ser corrigida a fim de se obter visão substancial equivalente à de um indivíduo que não possua tal deficiência ou dificuldade, bem como aquelas que estejam impedidas, de qualquer outra maneira, devido a uma deficiência física, de manipular obra literária ou focar/mover os olhos de forma adequada à leitura, independentemente de quaisquer outras deficiências.
O Tratado de Marraquexe entrou em vigor internacional no dia 30 de setembro de 2016, três meses após o depósito do 20º instrumento de ratificação ou adesão, conforme preconizado por seu artigo 18º. Os primeiros vinte países são: Índia, El Salvador, Emirados Árabes Unidos, Mali, Uruguai, Paraguai, Singapura, Argentina, México, Mongólia, Coréia do Sul, Austrália, Brasil, Peru, Coreia do Norte, Israel, Chile, Equador, Guatemala e Canada (OMPI, 2016, p.7).
A importância do Tratado de Marraquexe é imensa, no que tange à inclusão social, promoção da igualdade de oportunidades, e fomento à educação e cultura das pessoas com deficiência. Dos 84 países signatários, 34 já o ratificaram3, sendo que, a grande maioria que compõe este último grupo são considerados “países em desenvolvimento”, o que evidencia o sentido eminentemente econômico desta expressão, uma vez que, ao assumirem este relevante compromisso perante à comunidade internacional, consubstanciado no Tratado de Marraquexe, referidos países demonstraram que se encontram muito mais desenvolvidos no que tange à preocupação em se garantir direitos e liberdades fundamentais, não somente aos seus nacionais, mas a todos seres humanos, visando, assim, uma sociedade mais justa e inclusiva, fundada nos Direitos Humanos.
Cumpre-se ressaltar, por fim, que referido tratado foi aprovado no Brasil nos termos do artigo 5º, §3º da Constituição Federal, conforme evidenciado pelo Projeto de Decreto Legislativo nº 347/2015 do Senado Federal (SENADO FEDERAL, 2015). Isso significa que o Tratado de Marraquexe foi incorporado à ordem jurídica brasileira em condição de equivalência com as emendas constitucionais, podendo ser utilizado, portanto, como paradigma para o exercício do controle concentrado de convencionalidade das leis internas brasileiras.
Considerações finais
Com o intuito de se alcançar o objetivo proposto neste artigo – definir se o direito das pessoas com deficiência a uma educação inclusiva, além de um Direito Fundamental, também pode ser considerado como um Direito Humano, bem como qual a consequência de tal classificação – primeiramente foi necessário delinear com precisão a diferença conceitual entre Direitos Fundamentais e Direitos Humanos, com base em doutrina especializada sobre o tema.
Logo após, analisou-se o direito das pessoas com deficiência a uma educação inclusiva como um direito fundamental, bem como as leis infraconstitucionais brasileiras relativas a referido direito, delimitando-se, desta maneira, quais as garantias específicas que tais indivíduos possuem no ordenamento jurídico pátrio.
Comprovado o patamar de Direito Fundamental, partiu-se para o exame de sua classificação como um Direito Humano e, conforme restou demonstrado, o direito das pessoas com deficiência a uma educação inclusiva, em todos os níveis, tanto na esfera pública quanto na esfera particular, é mais do que um direito fundamental, alçando-se à categoria de Direito Humano.
A CDPD, instrumento internacional de Direitos Humanos, reserva em seu corpo normativo um artigo que trata sobre o direito das pessoas com deficiência a uma educação inclusiva, o que, por si só, já erige tal direito ao patamar de Direito Humano.
Dessa maneira, o direito a uma educação inclusiva, transcende o direito interno, passando a ser reconhecido como uma prerrogativa que deve ser protegida e garantida por todos os Estados, uma vez que inerente ao próprio ser humano.
As consequências advindas deste reconhecimento como um Direito Humano, não são meramente formais, possuindo consequências práticas como, por exemplo, a possibilidade em se buscar a tutela jurisdicional do direito violado em instâncias supranacionais.
Por isso a importância em se definir, com embasamentos normativos e doutrinários, a alocação de referido direito a uma educação inclusiva, na categoria de Direito Humano, fato este devidamente demonstrado neste artigo.
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Notas