Resumo: Es este artigo presento breve comentario de los doce versos iniciales del primer libro del Vākyapadīya de Bhartr̥hari (V d.C.), a fin de clarear la relación entre la ontología de brahma y el estatuto de la disciplina de la Gramática, Vyākaraṇa, como instrumento de conocimiento de lo real.
Palavras-chave:RealReal,VedaVeda,GramáticaGramática,Filosofia del LenguajeFilosofia del Lenguaje.
Abstract: In this article I present a brief commentary on the first twelve verses of the first book of Bhartr̥hari’s Vākyapadīya (V d.C.), in order to clarify the relationship between the ontology of brahma and the status of Grammar, Vyākaraṇa, as a means ofknowledge of reality.
Keywords: Reality, Veda, Grammar, Philosophy of Language.
Resumen: En este artículo presento un breve comentario de los doce versos iniciales del primer libro del Vākyapadīya de Bhartr̥hari (V d.C.), a fin de clarificar la relación entre la ontologia de brahma y el estatuto de la disciplina de la Gramática, Vyākaraṇa, como instrumento de conocimiento de lo real.
Palabras clave: Real, Veda, gramática, filosofía del lenguaje.
A Gramática como instrumento de conhecimento do real no Vakyapadiya de Bhartr̥hari: breve comentário a Vp I.1-12
A mais famosa tese que se tem atribuído ao Vākyapadīya (Vp) de Bhartr̥hari, seja pela tradição de comentadores antigos, seja pelos que retomaram o estudo da obra no período pós-colonial e moderno, é a de que o sentido linguístico (arthaḥ) radica não nas partes ou unidades do som ou fonemas (varṇāḥ, s. varṇaḥ) nem do vocábulo (padam), mas em unidade maior, chamada vākyam, a frase ou enunciado. No âmbito dessa unidade maior, o sentido é uma entidade supra-analítica, não decomponível em partes. No entanto, a fim de compreender o alcance dessa tese, é preciso esclarecer o que entende por śabdaḥ (palavra ou linguagem) a tradição intelectual indiana, e especialmente a escola especulativa que deriva da Gramática pāṇiniana. Decerto os contornos desse conceito tal como articulados pelos antigos pensadores indianos, em especial na obra do gramático Bhartr̥hari, não se coadunam com as noções modernas acerca da linguagem postuladas por linguistas e filósofos da linguagem.
É no primeiro livro do Vp que Bhartr̥hari constrói a ontologia de brahma por meio de proposta singular acerca da natureza desse real. Brahma, para Bhartr̥hari, é de natureza linguística, real verbal, quer em seu aspecto uno, quer em seu aspecto múltiplo, manifesto. Apenas parte do aspecto múltiplo é a linguagem tal como entendemos, manifesta em sons distintos ou articulados e aparentemente diversa dos demais componentes da realidade objetiva de que faz parte, ainda que detentora da capacidade especial de referir-se a eles e de com eles, de certa maneira, identificar-se. O aspecto uno do real é a linguagem como substrato da forma da consciência. Para conectar a forma linguística da consciência e a palavra manifesta, Bhartr̥hari postula plano intermediário do funcionamento da linguagem, i.e., da relação entre linguagem e referente, em que a distinção ontológica entre palavra e coisa torna-se maleável e tende a diluir-se. Esse é o aspecto mental da linguagem. Na linguagem mental e interior, ainda que o indivíduo consciente distinga a relação entre a palavra como significante e o referente como significado em virtude da seriação, i.e., o aspecto sequencial ou linear decorrente do tempo, a forma de existência de ambos, significante e significado, é idêntica, já que ambos são de natureza mental, imaterial e, sendo assim, começam a confundir-se numa mesma substância. O aspecto uno do real será a contração desse tempo ainda presente na existência mental da palavra.
Essa breve exposição dos três aspectos ou planos da linguagem postulados no Vp, exarada em metalinguagem moderna e abstrata, não deixa entrever os pormenores do texto de Bhartr̥hari que precisam e singularizam as categorias por ele empregadas. Refiro-me ao que por vezes é deixado de lado no tratamento das tradições de pensamento segundo a concepção de uma philosophia uniuersalis, como se se tratasse não mais que de rebarbas da peça que sai do molde, ou de verniz que, por assim dizer, se dilui nos níveis conceituais mais abstratos. Entendo, porém, que esses mesmos pormenores sejam a própria essência dos fundamentos conceituais, i.e., do ponto de vista que tem Bhartr̥hari do seu objeto, e que esse ponto de vista, para aqui lembrar Ferdinand de Saussure, não é mera descrição ou entendimento singular de objeto compartilhado, mas estabelece objeto singular em comparação com outras tradições de pensar a linguagem.
A conveniência e abrangência do termo linguagem e a metalinguagem poderosa e universalista da tradição filosófica moderna podendo embaçar pontos embaraçosos do pensamento bhartr̥hariano, neste artigo, por meio de breve comentário aos versos iniciais do Vp (I.1-12), procuro explicitar as conexões supramencionadas entre o real, brahma, o estatuto da palavra, śabdaḥ, e a função da Gramática, Vyākaraṇa, como instrumento de conhecimento desse real. Faço-o, porém, procurando recuperar a singularidade dos fundamentos conceituais em que se baseia o pensamento desse autor, derivados de modelo tradicional de conhecimento, no âmbito do qual a Gramática cumpre a função primeira e primordial de disciplina auxiliar do processo de transmissão, preservação e interpretação — manipulação enfim — de corpus textual revelado, o Veda. Para a pormenorização do teor dos versos, apoio-me na Vākyapadīya-vr̥tti (Vp-v), comentário atribuído a Bhartr̥hari por alguns, a algum discípulo, por outros estudiosos (cf., e.g., Biardeau 1964, Bronkhorst 1988; Aklujkar 1993). Utilizo a versão crítica do texto tal como estabelecida por Rau (1977), para as mūla-kārikāḥ (mk), e por Aklujkar, para a Vp-v, esta última ainda não publicada, a que tive acesso por intermédio do editor.
I.1ab an-ādi-nidhanaṁ brahma śabda-tattvaṁ yad akṣaram
O primeiro verso é o postulado metafísico que permeia toda a obra: o real, brahma, é descrito como algo que supera o tempo (an-ādi-nidhanam), como um eterno (akṣaram), tratando-se, portanto, de ideia já conhecida acerca do real suprassensorial que remonta às especulações das Upaniṣad (circa VI a I a.C.). Mas o real é, ainda, śabda-tattvam, i.e., algo cuja natureza, quididade ou realidade (tattvam) é palavra (śabda-). Trata-se, portanto, de real verbal ou linguístico suprassensorial. Leio o composto śabda-tattvam
como um karma-dhārayaḥ copulativo — i.e., no qual os membros são nomes em relação de identidade — empregado como bahu-vrīhiḥ (composto exocêntrico, qualificativo) de brahma: “brahma cuja realidade é verbo”. Também é possível lê-lo como composto do tipo tat-puruṣaḥ genitivo. Neste caso, a relação genitiva daria a entender que brahma é “a realidade da palavra/linguagem”, aquilo que na linguagem é real (sabdasya tattvam yad). Ambas as ideias são conceptualmente corretas na perspectiva ontológica de Bhartr̥hari. Neste segundo caso, basta pensar na estratificação de śabdaḥ nos três planos aludidos na introdução, vaikharī, madhyamā e paśyantī (cf. Vp I.159-170). A “realidade da linguagem” seria, aí, a forma pura de vāk (= śabdaḥ), paśyantī, na qual toda diversidade se reabsorveu, o que a torna idêntica a brahma, como real verbal imanifesto. Cf., e.g., o que diz a Vp-v I.159, ao explicar o termo paśyantī:
pratisaṁhr̥ta-kramā saty apy abhede samāviṣṭa-krama-śaktiḥ paśyantī. Sā calācalā pratilabdha-samādhānā cāvr̥tā viśuddhā ca, saṁniviṣṭa-jñeyākārā pratilīnākārā nirākārā ca, paricchinnārtha-pratyavabhāsā saṁsr̥ṣtārtha-pratyavabhāsā praśānta-sarvārtha-pratyavabhāsā cety aparimāṇa-bhedā. “Vidente (paśyantī) é aquela em que a seriação se reabsorveu, mas que, mesmo na indiferenciação, a possui in potentia. Ela ora é flutuante, ora está em repouso; ora é contaminada, ora é pura; ora residem nela as formas dos objetos cognoscíveis, ora nela essas formas se dissolvem, ora não há qualquer forma; ora os reflexos dos objetos nela se mostram distintamente, ora se dissolvem, ora cessam completamente. Tais são suas inumeráveis formas.”
I.1cd vivartate’rtha-bhāvena, prakriyā jagato yataḥ.
Esse real, último e verbal, manifesta-se múltiplo (vivartate) como ou sob a forma de arthāḥ (artha-bhāvena). Arthaḥ significa tanto o objeto-referente dos sentidos físicos (vastv-arthaḥ) como o objeto-referente da palavra ou linguagem (śabdārthaḥ). O autor se aproveita da ambiguidade semântica do termo arthaḥ para exprimir a diluição dessa diferença quando a manifestação é observada do ponto de vista da unidade. Essa manifestação múltipla de brahma é a criação ou produção (prakriyā) do mundo (jagat) que experimentamos (prakriyā jagato yataḥ, “a partir do que a produção o mundo”).
O real verbal, brahma, é uno (ekam). Sabemo-lo uno, pois foi assim transmitido pela tradição. Āmnātam, que em princípio significa “lembrado ou transmitido” (raiz mnā, cf. gr. mnē), tem sentido restrito ao âmbito em que se faz a transmissão. Mais adiante, em I.5, Bhartrhari menciona o Veda (vedaḥ, pl. vedāḥ), o que não deixa dúvida sobre a filiação das ideias expressas no Vp[2]: é no âmbito do vedismo ou bramanismo que se transmite o Veda como sendo uno.
A ideia de que brahma se apoia em diferentes poderes (bhinna-śakti-vyapāśrayāt), entendo que seja recurso para conceptualizar a flutuação entre identidade e diferença no processo de manifestação: Brahma, “embora não se distinga dos poderes, manifesta-se como se deles distinto fosse (I.2cd)”. Śaktibhyaḥ em I.2c, abl. pl. de saktih, está colocado no centro de dois sintagmas e deve ser lido com ambos: i. apr̥thaktve’pi śaktibhyaḥ, ii. śaktibhyaḥ pr̥thaktveneva vartate. Os poderes são ao mesmo tempo identidade como constituição do real e diferença como sua potência de manifestação. A Vp-v I.2b de fato diz que em brahma (loc. brahmaṇi) estão acumulados (samuccitāḥ) poderes (śaktayaḥ) a ele contraditórios (virodhinyaḥ) e idênticos (ātma-bhūtāḥ): bhinna-śakti-vyapāśrayāt: ekasyāvirodhena śabda-tattve brahmaṇi samuccitā virodhinya ātma-bhūtāḥ śaktayaḥ. Em seguida, a Vp-v propõe interessante analogia entre a identidade e diferença das modificações (vikārāḥ, cf. Vp 1.3c) em brahma e a identidade e diferença dos objetos dos sentidos na percepção ou apreensão (upalabdhiḥ). Upalabdhiḥ aqui refere-se à forma interna momentânea do que é apreendido, espécie de “tela” da consciência, na qual a multiplicidade apreendida são reflexos feitos duma mesma substância, idêntica à “superfície” refletida, a qual, mesmo abarcando quaisquer que sejam os reflexos do exterior, permanece sempre a mesma: tad yathā: bhinnārtha-pratyavabhāsa-mātrāyām ekasyām upalabdhāv arthākāra-pratyavabhāsa-mātrāḥ ´pr̥thivī´, ´lokā’ iti. Um recorte ou identificação de parte dos reflexos apreendidos (avagrahaḥ), e.g., a identificação de que na apreensão de certa terra (pr̥thivī) há uma árvore (vr̥ksaḥ), não está em contradição com o caráter uno da cognição (na... jñānasya ekatvena virudhyate), i.e., toda diversidade existente na apreensão de algo complexo como ‘terra’ não modifica o caráter uno da cognição desse objeto: na hi jñeya-gato vr̥ksādy-ākārāvagraho jñānasyaikatvena virudhyate. Tal como no funcionamento da cognição (jñānam), a derivação ou diversificação (prakriyā, vivartaḥ), ainda que efeito do real, não o modifica em sua forma última; é, de certa forma, realidade secundária dependente de sua origem, os poderes constitutivos da unidade de brahma: pr̥thaktvene vartate, “[brahma] manifesta-se (múltiplo) como se [deles] distinto fosse”.
Dentre os poderes de brahma, o primeiro responsável pela diversificação é kāla-śaktiḥ, o poder do tempo. Todo um capítulo é dedicado no livro III do Vp (cf; III.9) ao conceito de tempo, tal como compreendido em várias tradições anteriores e contemporâneas ao Vp. A Vp-v chama ao tempo svātantryam, independência ou autonomia. Em I.3a diz-se que ele, o poder do tempo, contém em si partes (adhyāhita-kalām, i.e., adhyāhitāḥ kalāḥ yasyām). Essa expressão, no meu entender, exprime o poder totalizador, compreensivo ou universal do tempo. Cf. Vp-v I.3 kālakhyena hi svātantryeṇa sarvāḥ para-tantrā janmavatyaḥ śaktayaḥ samāviṣṭāḥ kāla-śakti-vr̥ttim anupatanti.
As partes ou particulares desse poder universal são os poderes em sua diversidade e, destarte, dependência (pāratantryam), i.e., as modificações que dele dependem (upaśritāḥ... vikārāḥ ṣaṭ). O poder do tempo (kāla-śaktiḥ), como geral ou universal, é o responsável pela instauração primeira da existência ou de cada existente (bhāvaḥ), bem como substrato e critério dos demais poderes. Bhartr̥hahi representa esse caráter fundamental da função do tempo por meio da referência ao movimento essencial da existência comum, a saber, a vida do nascimento à morte (janmādayo vikārāḥ ṣaṭ). O tempo, portanto, independência ou autonomia que seja, é-o no plano da manifestação, já que do funcionamento dele dependem os demais poderes. Que seriam os demais poderes? Justamente tudo o que se pode pensar como substrato da multiplicidade. As seis modificações a que se refere o verso são movimentos específicos dependentes do tempo, resultado desses poderes não nomeados. O passo é clara citação do Nirukta de Yāska (séc. V a.C.). Diz Yāska, citando Vārṣyāyaṇi: ṣaḍ-bhāva-vikārā bhavantīti vārṣyāyaṇiḥ: jayate’sti vipariṇamate vardhate’pakṣīyate vinaśyatīti (Nir. I.2). “Vārṣyāyaṇi diz que são seis a modificações da existência/dos existentes, a saber, nascer, modificar-se, crescer, decair, morrer.” No trecho que segue Yāska explica o teor de cada termo. Nem as mk nem a Vp-v dão ideia mais específica do que sejam esses poderes. Como indiquei acima, penso que sejam nada mais que o substrato que se puder nomear a todas as formas de manifestação, tais como as que Vārṣyāyaṇi reduzira a seis. Essas modificações, que têm por substrato os poderes dependentes do tempo, são a fonte da multiplicidade da existência (bhāva-bhedasya yonayaḥ).
O tempo é, portanto, o maior responsável pela condição de existência comum, iyam anekadhā ... sthitiḥ (cf. I.4d), a realidade tal como derivada da “semente una de tudo” (ekaḥ sarva-bījaḥ = brahma).
O que caracteriza a existência múltipla de brahma é sua divisão em três categorias ou formas (rūpāṇi, s. rūpam), sujeito, objeto e experiência (bhoktā, bhoktavyam, bhogaḥ). O sentido literal desses termos remete ao campo semântico da fruição: fruens, fruendum, fruitio. É deveras antigo o uso do conceito de fruição para representar a experiência da existência ordinária. É provável que derive dos debates do período das Upaniṣad (circa VI-III a.C.), marcados pelo ideal da renúncia à experiência mundana. A fruição identificava-se tanto aos aspectos básicos da subsistência, relativos à alimentação (sentido primeiro da raiz bhuj), como aos aspectos mais complexos, relativos ao gozo dos prazeres mundanos (sentido secundário de bhuj). O mumukṣuḥ, o que desejasse a libertação (mokṣaḥ), devia compreender a experiência da existência isenta da relação de sujeito e objeto. Na Kaṭha Upaniṣad (KU; circa III a.C.), e.g., Morte (Yama) oferece a Naciketas o gozo de todos os prazeres mundanos (ye ye kāmā durlabhā martya-loke/ sarvān kāmāṁs chandataḥ prārthayasva. KU I.1.25ab), a fim de afastá-lo do conhecimento do mistério da morte (naciketo, maranaṁ mānuprākṣīḥ. KU I.1.25f). Nesse texto, a renúncia ao prazer mundano, ícone da prisão da dualidade, marca a primeira barreira ou medo que se deve superar para superar a morte. De fato, na ordem da narrativa, é justamente essa renúncia de Naciketas no fim do primeiro capítulo (cf. KU I.1.26-29), esse enfrentamento do personagem Morte, que marca o assentimento desta em expor-lhe a doutrina do ātmā, o existente uno eterno, cf. KU I.2.
Diluída a unidade do real verbal, śabda-tattvaṁ brahma, na realidade fenomênica, persiste dele um símbolo ou imagem (anukāraḥ) em forma de linguagem, em princípio um bhoktavyam, fruendum, i.e., objeto dos sentidos. O conceito de anukāraḥ é um dos pontos embaraçosos da filosofia de Bhartr̥hari, pois se funda na ideia de revelação pela palavra de ordem última e universal (dharmaḥ). Os agentes dessa revelação, os maharṣayaḥ (ou apenas r̥ṣayaḥ, s. r̥ṣiḥ), sábios do tempo antigo, têm acesso à visão imediata do dharmaḥ. Eles transmitem-na aos que dela não têm acesso sob a forma de bilmaḥ. Bilmaḥ é termo de sentido obscuro, porém é o mesmo que anukāraḥ, portanto é o vedaḥ em sua condição de reflexo, imagem ou réplica da ordem última. Essa ideia, Bhartr̥hari toma-a também ao supramencionado Nirukta de Yāska. Cf. Vp-v I.5: āha khalv api: sākṣāt-kr̥ta-dharmāṇa r̥ṣayo babhūvuḥ. te’perbhyo’sākṣāt-kr̥ta-dharmabhya upadeśena mantrān saṁprāduḥ. upadeśāya glāyanto’pare bilma-grahaṇayemaṁ granthaṁ samāmnāsiṣur vedaṁ ca vedāngāni ca... (Nir. I.20) iti. Mas qual a relação entre o dharmaḥ e brahma? O ponto de contato entre um e outro é o Veda, anukāraḥ de brahma, na terminologia de Bhartr̥hari, e bilmaḥ (anukāraḥ) do dharmaḥ, na terminologia de Yāska. Ora, o dharmaḥ, ordem última — necessariamente serial, linear —, sob a forma do Veda, é o aspecto linguístico-fenomênico de brahma, realidade última, não linear, de natureza verbal.
O Veda é, ademais, meio ou expediente de obtenção (prāpty-upāyaḥ), i.e., de recuperação do real, da unidade imanifesta. De fato, segundo a Vp-v I.5a, a obtenção de brahma significa nada mais que a superação das amarras (granthiḥ) do senso de eu (ahaṁ-kāraḥ), marcados na linguagem pela expressão do sujeito (aham) e do objeto (mama): mamāham ity ahaṁkāra-granthi-samatikrama-mātraṁ brahmaṇaḥ prāptiḥ. Também se expressa aí, em seguida, a mesma ideia sob outro ponto de vista, dizendo-se que é o retorno das modificações à condição de origem, i.e., à condição de unidade: vikārāṇāṁ prakr̥ti-bhāvāpattiḥ. Mas como o Veda funciona como instrumento de recuperação da unidade original?
Veda, aqui no singular (vedaḥ), recupera a dimensão unitária (eko’pi) da multiplicidade verbal expressa no conjunto de textos transmitidos oralmente (samāmnātaḥ) pelos antigos sábios-videntes. O Veda é a fundação das práticas rituais e intelectuais da tradição bramânica. Essa multiplicidade de textos se manifesta sob hierarquia que será explicitada nos próximos versos, a saber: em I.6 Śruti, em princípio as coleções védicas (saṁhitāḥ), inclui ademais Brāhmana, Āraṇyaka e Upaniṣad, primeira forma de exegese da tradição litúrgica; em I.7. Smr̥ti, corpus variado de obras auxiliares do ritual védico, como os Śrauta- e Gr̥hya-sūtra, os Vedāṅga, disciplinas auxiliares do Veda, dentre as quais a Gramática, Vyākaraṇa, e obras do corpus jurídicos tais como o Mānava-dharma-śāstra; e em I.8. Artha-vāda, sentenças da Śruti isoladas e tomadas como fonte de debate intelectual e conceitual, bem como os próprios debates ou discursos (pravādāḥ) de monistas e dualistas (ekativināṁ dvaitināṁ ca).
As coleções de textos que compõem a Śruti ao longo do tempo foram transmitidas por diversos grupos ou escolas (śākhāḥ, lit. “ramos”), em diversas recensões (bhedānāṁ bahu-mārgatvam), apresentando pequenas variações no emprego e no sentido de determinados termos (śabdānāṁ yata-śaktitvam). Na diversidade dos ramos do Veda (tasya śākhāsu dr̥śyate), o elemento central, porém, o rito, permaneceu, uno (karmaṇy ekatra cāṅgatā), pois os ritos tal como praticados pelos ramos são um único rito enquanto fundamento da ordem do mundo, que é una, dharmaḥ. A Vp-v a I.6b tenta dar conta dessa ideia por meio de simples analogia: um único rico resulta de todos os ramos, assim com um único tratamento resulta de todos os ramos da medicina: karmaṇy ekatra cāṅgatā: sarva-śākhā-pratyayam ekaṁ karma. tad yathā: sarva-bhiṣak-śākhā-pratyayam ekaṁ cikitsitam. A ideia de unidade decorre da função do rito ou do tratamento médico: em qualquer de suas formas, este deve curar a doença, aquele, suster a ordem.
O segundo grau dessa hierarquia cuja função primordial é a manutenção da ordem (dharmaḥ), são as coleções a que se dá o nome coletivo de Smr̥ti ou Tradições. As Tradições, pelo que se entende a partir da Vp-v, incluem todos os dispositivos, de base verbal e não verbal, que regulam o comportamento social do indivíduo, baseados no exemplo de uma elite (śiṣṭāḥ). A Vp-v faz referência ao tratamento médico (o cuidado com a saúde), a hábitos alimentares apropriados, ao uso apropriado da linguagem, ao comportamento sexual apropriado e à pena por comportamento faltoso (e.g., a execução opcional de rito expiatório por matar uma rã). Vp-v I.7b: dr̥ṣṭa-prayojanāś cikitsitādi-viṣayaḥ. adr̥ṣṭa-prayojanā bhakṣyābhakṣya-gamyāgamya-vācyāvacya-viṣayāḥ. (...) avipratipattau tu śiṣṭānāṁ, dr̥ṣṭa-prayojana-saṁbhave’pi sati, vikalpa eva. tad yathā: maṇḍūka-vadhe prāyaścitasya.
Essas Tradições são concebidas, formuladas (prakalpitāḥ) com base em indicações (liṅgam, pl. liṅgāni) contidas no Veda ou Śruti, i.e, no primeiro nível hierárquico dos sustentáculos do dharmaḥ, A elite mencionada no comentário — o termo śiṣṭa lit. significa culto, instruído — são, na mk, os vedavidaḥ (s. vedavid), conhecedores do Veda, responsáveis por essas formulações. A participação nesse grupo é restrita: o indivíduo agente dos ritos prescritos pela tradição, ritos que sustentam uma única ordem, é mesmo (kartr̥-sāmānyam) que se conduz de maneira apropriada tendo por guia as Tradições. Cf. Vp-v I.7c: tam evāśritya lingebhya iti. śruty-āśritāni liṅgāni śruti-vihitānāṁ smr̥ti-vihitānāṁ ca karmaṇāṁ kartr̥-sāmānyaṁ prevedayante.
Afora o elemento prescritivo que apresentam Śruti e Smr̥ti verbais e não verbais, ainda outra forma de conhecimento indireto do dharmaḥ se extrai do primeiro grupo de textos, o Veda ou Śruti. São os chamados artha-vādāḥ, sentenças extraídas do Veda que fundamentam, ao menos na perspectiva da Vp-v, elaborações de cunho esotérico, os discursos (pravādāḥ) de dualistas e monistas. Não se precisa se o exercício exegético desses grupos de pensadores fica restrito à mesma elite que arregimentara as Tradições. Seja como for, é interessante notar que esses discursos monistas ou dualistas são fruto do vikalpaḥ dos indivíduos envolvidos (sva-vikalpajāḥ... pravādāḥ). Vikalpaḥ tem o sentido primeiro de opção na execução de prescrições rituais: é a possibilidade de decisão que resulta do debate entre ritualistas, no âmbito da ação ritual, e a elite social, no âmbito da ação comum (sempre ritualizada, como se pode já compreender). Fora do ambiente ritualista, o sentido de diferença ou diversidade é aplicável a esse termo, entre outros. A Vp-v especifica tratar-se de puruṣa-buddhi-vikalpaḥ. Seria “a diversidade do intelecto humano”? Ou a expressão tem sentido menos preciso, significando algo como “o pensar diferente dos homens”, ou ainda a “diferença no intelecto humano”, significando mais claramente a ideia de capacidades diferentes? A exposição da Vp-v I.8 aponta para a 1ª ou 2ª opção, uma vez que apenas apresenta rol de artha-vādāḥ extraídos do Śatapaṭha-brāhmaṇa, R̥g-veda e Taittirīya-brāhmaṇa explanados de diferentes pontos de vista, primeiro monistas e em seguida dualistas, além de um terceiro, que parece provir de algum tipo de monismo cum dualismo baseado em artha-vādaḥ extraído do Yajur-veda.
Os discursos supramencionados, que se fundam nos artha-vādāḥ do Veda, têm justamente a brahma por objeto, o mesmo real verbal uno. Sua diversidade resulta do fato de que brahma, estando além de toda diversidade (sarva-vikalpātite), contém si todos os poderes (sarva-śakti-yogāt) e todas as formas (sarva-rūpe; cf. Vp-v Ad I.9 e I.9a). Ora, em brahma, um discurso não se distingue de outro discurso a que se cria contrário: ihaikasmin sarva-rūpe brahmaṇi yo darśana-parikalpaḥ sa viruddha-rūpābhimatebhyo darśana-parikalpāntarebhyo na bhidyate. Brahma é śabda-tattvam, destarte, é o universal da palavra, śabdatvam. Essa pureza (viśuddhiḥ), que não conflita com nenhum discurso (sarva-vādāvirodinā), está atrelada à forma do praṇava (yuktā praṇava-rūpeṇa), a sílaba om. Em que sentido brahma, como śabda-tattvam, é o om? A Vp-v I.9cd responde que o pranavah contém a forma de todas as palavras articuladas (sarva-śruti-rūpaḥ; cf. o sentido técnico de śruti aqui), é prakr̥ti-sarvanāma, “o pronome, a dêixis de prakr̥tiḥ”, i.e., da forma original de brahma. Essa relação expressa em dualidade o uno apenas figurativamente, por necessidade da articulação verbal in actu. O critério ontológico garante a unidade do entre signo e referente.
O Veda, aqui idêntico ao praṇavaḥ, é o lokānāṁ vidhātā, criador/ordenador do mundo, pois, como anukāraḥ de brahma, é origem mesma e, como bilmaḥ, imagem do dharmaḥ, assume a forma de instrutor: Vp-v I.10: vedo hi lokānāṁ prakr̥titvena copadeṣṭr-rūpatvena ca vivarteṣu [ca] vyavasthāsu ca vidhātā.
Em todas as formas manifestas do real verbal, e em todas a variáveis dessas formas (cf. citação da Vp-v acima: vivarteṣu [ca] vyavasthāsu ca), os membros do Veda (aṅgāni), sub membros (upāṅgāni) e de demais ciências (-nibandhanā vidyā-bhedāḥ) conexas ou dependentes cumprem o papel de aperfeiçoar o conhecimento humano (jñāna-saṁkāra-hetavaḥ). Na Vp-v, apesar de algumas lacunas, conseguimos vislumbrar o rol de ciências auxiliares, os membros (aṅgāni) do Veda, que pertencem à categoria maior de Smr̥ti, e incluem “Jautiṣa (Astrologia) etc.”, i.e., como toda probabilidade a lista tradicional de seis vedāṅgāni, contendo ainda Śikṣā (Fonética), Chandas (Métrica), Vyākaraṇa (Gramática), Nirukta (Etimologia) e Kalpa (Ciência do ritual). Quanto aos submembros, a Vp-v dá testemunho problemático, ao separar a Śruti do Trayyanta (i.e., as Upaniṣad), dando a entender, pela ordem dos termos nos compostos nominais, que este é upāṅgam: praṇavāṅgopāṅgebhyaś ca śruti-smr̥ti-trayyantādibhyo vidyā-bhedāḥ prabhavanti. Outro passo pouco satisfatório é a identificação das diferentes ciências (vidya-bhedah) derivadas do Veda, de seus membros e submembros. O passo, tal como editado por Aklujkar, aponta mais de uma lacuna possível, além de dúvidas quanto a certos termos. Seja como for, o único nome de ciência ou saber mencionado como exemplo não é claro: svapna-vipāka-yoni-jñānādayaḥ, seria cada membro do composto o nome de um saber? Subramania-Iyer (1966) apenas utiliza a expressão dream-lore, decerto na tentativa de reconstituir svapna-jñānam¸mas não comenta outras possibilidades.
Ainda que não se possa, a partir da forma do texto das mk e da Vp-v, fixar com exatidão qual teria sido a classificação das ciências derivadas dos membros e submembros do Veda, mesmo assim a Gramática sempre ocupa posição de Vedāṅga ou Smr̥ti. Aqui Bhartr̥hari chama-a próxima de brahma (āsannam brahmaṇas tasya), e a Vp-v glosa: de śabda-brahma, o brahma-palabra, i.e., o Veda como forma manifesta do real verbal. A gramática é próxima de brahma porque atua como auxiliar direta (sākṣād upakāri) no aperfeiçoamento da forma própria do brahma-palavra que serve à aquisição da correção. Vp-v I.11: śabda-brahmaṇo yataḥ sva-rūpa-saṁskāraḥ sādhutva-pratipatty-arthaḥ tad āsannaṁ sākṣād upakāri. O que seja esse auxiliar diretamente, a Vp-v explica-o tomando como exemplo a ciência da substituição, ūhaḥ, mencionada no Mahābhāsya de Patañjali (II a.C) dentre os objetivos precípuos (prayojanāni) da Gramática: kāni punaḥ śabdānuśāsanaṁ prayojanāni? rakṣa_ūha_āgama-laghu_asandehāḥ prayojanam, Mbhāṣ I.I.14). Ūha é previsão e provimento das modificações das formas gramaticais a serem adaptadas a passagens de textos ritualísticos em diferentes contextos. É função do ritualista (yajña-gatah). Porém o ritualista e o gramático (vaiyakaraṇaḥ) se confundem na visão de Patañjali: a Gramática é o instrumento sine qua non do conhecimento do ritualista: sarvair liṅgair na ca sarvābhir vibhaktibhir mantrā nigaditāḥ. te cāvaśyaṁ yajña-gatena yathāyathaṁ vipariṇamayitavyāḥ. tān nāvaiyākaraṇaḥ śaknoti yathāyathaṁ vipariṇamayitum. tasmād adhyeyaṁ vyākaraṇam (Mbhāṣ I.1.16-18). A Gramática tem, portanto, acesso imediato à matéria verbal do Veda, e o gramáticos é aquele que tem ou arroga-se a prerrogativa não só de guardar e transmitir (cf. rakṣaḥ e āgamaḥ, no rol supracitado), mas também de manipular, ritualista por excelência, essa matéria, essa “massa de brahman” (brahma-rāśiḥ, cf. MBhāṣ I.36.18). Em virtude desse contato imediato com o Veda como matéria, o oficio da gramático, como studium, esforço especial, supera as demais asceses (tapasām uttamaṁ tapaḥ). Essa superação se funda no testemunho da tradição. Transmite a tradição que o mero conhecimento do akṣara-samāmnāyaḥ, o conjunto dos fonemas, rol anexo a Gramática de Pāṇini, é uma forma de ascese, que dá frutos especiais, “os mais puros frutos de todos os Veda”: Vp-v I.11b: yasya akṣara-samāmnāyasya jñāna-mātreṇa sarva-veda-puṇya-phalāvāptir āgamena smaryate.
Concluindo o raciocínio acima enunciado, a Gramática é primeiro dos vedāṅgāni, as disciplinas auxiliares do Veda (prathamaṁ chandasām aṅgam). Das seis disciplinas mencionadas, quatro lidam com matéria verbal (Fonética, Métrica, Gramática e Etimologia). No âmbito da transmissão tradicional dessas disciplinas, é possível que cada chefe de escola tenha dado proeminência à sua. A Vp-v não justifica o uso do plural em āhur vyākaranaṁ budhāḥ (dizem os sábios acerca da Gramática), de modo que seria apenas um plural de respeito, comum em sânscrito, pois foi de fato Patañjali, a quem a Vp-v se refere, quem se pronunciou a posição da gramatica entre os vedāṅgāni: evaṁ hy āha: pradhānaṁ ca ṣaṭsv aṅgeṣu vyākaraṇam. pradhāne ca kr̥to yatnaḥ phalavān bhavatīti.
Dada sua posição mais próxima das formas de existência do real verbal, a Gramática é a via direta (mārgo’yam āñjasaḥ) à seiva ou essência suprema (paramo rasaḥ) da linguagem (vācaḥ). A linguagem, como vimos, é, em toda sua extensão — śabda-tattvam brahma — real verbal que assume diferentes formas (prāpta-rūpa-vibhāgāyāḥ). A Vp-v I.12ab explica esse assumir diferentes formas de duas maneiras. 1. A linguagem, real verbal, una, não linear, interior, assume a forma dos objetos verbais, varṇaḥ, padam e vākyam por meio da distinção dos pontos de articulação etc.: abhinnāt saṁhr̥ta-kramād anta-saṁniveśinaḥ śabda-tattvād varṇa-pada-vākya-lakṣaṇaṁ rūpa-vibhāgaṁ sthānādi-bhedena prāptāyā vācaḥ. 2. A linguagem, real verbal etc., assume diferença de forma adicional (upagrahaḥ) em vacas etc. como referentes: abhidheyatvena vā gavādi-rūpa-pravibhāgopagrahaṁ nityenārtha-saṁbandhena prāptāyā vācaḥ. A ideia expressa pelo termo upagrahaḥ é a da precedência da existência da substância verbal em relação à categoria dos referentes. Essa precedência tão-somente respeita a ordem da manifestação do sutil ao crasso, subentendida na relação e o uno e o múltiplo. Se o uno é verbo, o verbo precede a coisa, que é forma final, crassa, do verbo.
Se é linguagem, portanto, toda a extensão do real, de palavras a coisas, a Gramática é a via direta (mārgaḥ āñjasaḥ) ao feixe mais puro de toda essa extensão: a porção correta da linguagem, que significa diretamente e é fonte de elevada existência mundana (paramo rasa iti vācakatvād abhyudaya-hetutvāc ca vyavasthita-sādhu-bhāvaḥ śabda-samūho’bhidhīyate; Vp-v I.12b); é via direta, ademais, à “luz mais pura” (puṇyatamaṁ jyotis), metáfora da consciência. A Vp-v cita passo não identificado, que fala da “luz (prakāśaḥ = jyotis), chamada palavra (śabdākhyaḥ), que ilumina o que tem e o que não tem luz (consciência individual); a ela se prende tudo isto (o mundo fenomênico), tudo quanto é material e imaterial, móvel e imóvel”. Vp-v I.12c (...) yaś ca prakāśāprakāśayoḥ prakāśayitā śabdākhyaḥ prakāśaḥ, tatraitat sarvam upanibaddhaṁ yāvad vastv avastu, yāvat sthāsnu cariṣṇu ceti.
O método gramatical baseado em regras que contêm o geral o particular é via breve (laghunopāyena) para aquisição da totalidade de śabda-brahma: Vp-v I.12d: sāmānya-viśeṣaddhi lakṣaṇaṁ lakṣaṇa-prapañcābhyāṁ kr̥tsnasya śabda-brahmaṇo laghunopāyena samadhigama-nimittam. O conhecimento do sistema de regras da Gramática permite, ademais, inferir a existência dos śiṣṭāḥ que, sem instrução, na forma da luz da consciência (labdha-jyotiṣām), se uniram à forma pura e sem desvios de sabda-brahma: Vp-v I.12d (...) upadeśaṁ cāntareṇa saṁskāravati nirapabhraṁśe śabda-brahmaṇi labdha-jyotiṣāṁ śiṣṭānām anumānam. Esses śiṣṭāḥ parecem ser os mesmos r̥ṣiḥ citados no Nirukta (cf. acima I.X), que haviam tido a experiência direta do dharmaḥ (sākṣād-dharmānaḥ r̥ṣayaḥ). A Gramática será, portanto, a instrução (upadeśaḥ, anuśāsanam), capaz de conduzir o indivíduo, gramático-ritualista, a condição de pureza dos antigos r̥ṣayaḥ.
O conceito de linguagem que se vem constituindo desde o início deste comentário radica em entendimento singular da natureza do real. Trata-se de real verbal, que, por sua vez, mais que residir na consciência dos indivíduos, constitui sua própria forma. A percepção da condição de existência como uma consciência independente de substância verbal (cf. vāg-rūpatā avabodhasya em Vp I.132), deriva, ao que tudo indica, de especulações sistemáticas acerca da experiência de conhecimento atribuída aos r̥ṣiḥ do passado e aos homens no tempo de Bhartr̥hari responsáveis pela manipulação do Veda associada à execução dos ritos. Nessa tradição todos os atos da vida que instauravam e sustentavam a ordem (dharmaḥ), atos rituais por excelência, mais que marcados pela palavra ritual (vedaḥ), eram mesmo identificados a ela. A experiência fenomênica da palavra múltipla, portanto, deriva de um real verbal uno e não linear, que assumiu primeiro diferença na matéria sutil do pensamento e depois a forma crassa de fonemas, vocábulos e enunciados. O passo necessário previsto pelo postulado ontológico é que não se distinguem palavra e coisa senão por força da multiplicidade, já a arbitrariedade da relação entre elas é negada pela experiência de transmissão da revelação, sempre a mesma e intocada pelo agenciamento humano. A Gramática, Vyākaraṇa, é a chave dessa experiência justamente a partir da manutenção material da tradição revelada, de que, em todas as suas elaborações teóricas, jamais de desprende.