Resumo: O objetivo deste artigo é analisar os principais entraves na comercialização direta de pescados e de produtos agrícolas entre pequenos produtores locais e o trade turístico, objetivando a inclusão socioprodutiva. A metodologia consistiu em análise documental de projetos técnicos desenvolvidos em Jericoacoara, Lençóis Maranhenses, Delta do Parnaíba e Porto Seguro; observação direta; e realização de entrevistas semiestruturadas e oficinas participativas. Foram identificados 10 principais obstáculos: dificuldade de emissão de nota fiscal; insuficiência de capital de giro; precariedade da estrutura de beneficiamento; limitações quanto ao recebimento-pagamento; inadequação da produção à sazonalidade do turismo; instabilidade na qualidade e no volume de produtos fornecidos; dificuldades na obtenção de selos de inspeção sanitária; indisponibilidade logística; pouca capacitação profissional; e fragilidades na organização coletiva do trabalho. Serão necessárias ações que reconheçam a importância dos pequenos produtores locais no sistema turístico, que sejam capazes demitigar as barreiras impostas pela legislação e que facilitem o acesso dos produtores ao crédito e à assistência técnica e à formação continuada.
Palavras-chave:Inclusão socioprodutivaInclusão socioprodutiva,Exclusão socialExclusão social,AtravessadoresAtravessadores,Políticas públicasPolíticas públicas,Desenvolvimento localDesenvolvimento local,Turismo sustentávelTurismo sustentável.
Abstract: The aim of this article is to analyze the main obstacles for selling fishes and agricultural products between small local producers and the touristic trade with the objective of a socio-productive inclusion. The methodology consisted of documentary analysis of the technical projects developed in Jericoacoara, Lençois Maranhenses, Delta de Paraiba and Porto Seguro; direct observation; semi structured interviews and participative workshops. Ten main obstacles have been identified: difficulty for outgoing invoice, insufficient need for capital, precariousness of the benefit structure, limitations regarding receipt/payment, inadequacy of the production to the seasonal effects of tourism, instability of the quality and the volume of the provided products, difficulties for obtaining a sanitary surveillance seal, logistic unavailability, few professional capacitation, and weak collective work. It will be necessary to develop actions that recognize the importance of the small local producers in the touristic system other that ease the obstacles imposed by the legislation and facilitate the producers’ access to credit, technical assistance and continuous vocational training.
Keywords: Socioproductive inclusion, Social exclusion, Middlemen, Public policy, Local development, Sustainable tourism.
Resumen: El objetivo de este artículo es analizar los principales obstáculos en la comercialización directa de pescados y de productos agrícolas entre pequeños productores locales y el comercio turístico, apuntando a una inclusión socioproductiva. La metodología consistió en análisis documental de proyectos técnicos desarrollados en Jericoacuara, Lençois Maranhenses, Delta del Parnaíba y Porto Seguro; observación directa; realización de entrevistas semiestructuradas y talleres participativos. Fueron identificados 10 obstáculos principales: dificultad de emisión de factura; insuficiencia de capital de trabajo; precariedad de la estructura de beneficio; limitaciones en cuanto al recibo y al pago; producción inadecuada a la temporalidad del turismo; inestabilidad en la calidad y en el volumen de productos suministrados; dificultades en la obtención de sellos de inspección sanitaria; indisponibilidad logística; poca capacitación profesional; y fragilidades en la organización colectiva de trabajo. Serán necesarias acciones que reconozcan la importancia de pequeños productores locales en el sistema turístico, que mitiguen las barreras impuestas por la legislación y faciliten el acceso de los productores a credito, asistencia técnica y formación continua.
Palabras clave: Inclusión socioproductiva, Exclusión social, Intermediarios, Políticas públicas, Desarrollo local, Turismo sostenible.
Paradoxos do Turismo Sustentável no Brasil: obstáculos à inclusão socioprodutiva de pescadores artesanais e agricultores familiares
Paradoxes of Sustainable Tourism in Brazil: obstacles to socio-productive inclusion of artisanal fishermen and family farmers
Paradiciones del Turismo Sostenible en Brasil: obstáculos a la inclusión socioproductiva de pescadores artesanales y agricultores familiares
Recepção: 24 Abril 2018
Aprovação: 02 Agosto 2019
Destinos turísticos brasileiros têm sido objeto de discussões e de intervenções públicas quanto às dimensões da sustentabilidade, em particular a da equidade social. O foco tem sido a vulnerabilidade social e econômica de suas populações. Projetos de desenvolvimento local, com o objetivo de enfrentar a pobreza, têm sido implantados nesses destinos, seguindo a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS). Em geral, compreendem o subsídio, financeiro e técnico, de iniciativas de grupos populares, como forma de estimular a capacidade produtiva e de gestão e gerar melhorias nas condições de subsistência. Em outros casos, também, o fortalecimento da organização social, a preservação do meio ambiente e a elevação do padrão de qualidade de vida de suas populações (BRASIL, 2012).
O combate à pobreza tornou-se elemento comum na agenda política brasileira, embora haja discordância quanto ao modus faciendi. A operacionalização mais aceita é a de “inclusão produtiva”, definida pelo Governo Federal (2010-2014), e presente no Plano “Brasil Sem Miséria (BSM)”. Trata-se de uma iniciativa em que a população mais desmunida de renda é estimulada a ingressar no mercado, por meio de projetos de desenvolvimento local sustentável. Tal iniciativa busca fortalecer atividades de grupos produtivos como agricultores familiares e pescadores artesanais, com aumento da capacidade produtiva e inserção de produtos no mercado (BRASIL, 2013c).
Contudo, esse tipo de iniciativa tem esbarrado em múltiplos obstáculos técnicos, logísticos e jurídicos, ou mesmo culturais e ambientais, que formam uma barreira quase intransponível aos pequenos produtores para acessarem o mercado do Turismo. Tratam-se de restrições que se somam à dinâmica das cadeias produtivas do pescado e de produtos agrícolas, as quais têm como peça estratégica o “atravessador”. Este é um intermediário ativo na comercialização entre pequenos produtores rurais e o trade turístico, com papel determinante na dinamização da produção, por suprir as necessidades primárias para o desenvolvimento de atividades como a pesca artesanal.
São atores comuns na atividade pesqueira. Frequentemente são o único elo entre pescadores e o mercado, ou a única fonte de crédito. O sistema de negociação dos atravessadores opera dentro de um amplo ambiente econômico e político, que pode ter implicações cruciais para a atividade pesqueira, em geral, e para o comércio pesqueiro, em particular. (PEDROZA, 2013, p. 02 – tradução dos autores).
Os atravessadores (proprietários de peixarias, de fábricas de gelo, de pequenos mercados e de embarcações) adquirem os produtos diretamente dos pescadores e dos agricultores, pagando um valor irrisório. Por possuirem uma estrutura adequada de crédito, beneficiamento, estocagem e oferecimento dos produtos, e manterem contato direto com representantes do trade turístico, revendem com grande margem de lucro.
Aparentemente, tais processos acabam mantendo a maioria dos produtores confinada a atividades informais, sem direcionar melhorias para as comunidades. Esta estrutura de trabalho, caracterizada pelo confinamento de grupos populares a atividades informais, é apenas uma das representações da exclusão social.
A questão central deste artigo reside na análise dos obstáculos para a inclusão socioprodutiva de pescadores artesanais e de agricultores familiares no sistema produtivo local de Turismo, tomando como exemplo casos no Nordeste brasileiro. É guiado por duas perguntas: (a) Quais os desafios inerentes aos processos produtivos que dificultam, ou mesmo impedem, que os pequenos produtores se tornem competitivos no mercado turístico e obtenham reconhecimento e renda efetiva? (b) É possível efetivar a inclusão socioprodutiva desses grupos sem o intermédio de atravessadores?
A partir da análise desses obstáculos pretende-se gerar insumos para o desenvolvimento local sustentável de destinos turísticos brasileiros. Em especial, gerar insumos para políticas públicas de inclusão social, voltadas ao fortalecimento da relação mercantil entre o trade turístico e os grupos de pequenos produtores locais.
O artigo divide-se em cinco tópicos afora a esta introdução e conclusão. No primeiro, são apresentados, de forma breve, os destinos turísticos objetos do estudo. No segundo, descrevem-se a problemática central e algumas implicações teóricas. O terceiro tópico trata da metodologia utilizada. No quarto, são descritos os quatro projetos técnicos de inclusão socioprodutiva. No último tópico, são analisados os principais obstáculos para a inclusão socioprodutiva de pescadores artesanais e agricultores familiares, mostrando o papel dos atravessadores na manutenção do status quo.
Os destinos turísticos definidos foram: (a) Lençóis Maranhenses, Município de Barreirinhas (Maranhão); (b) Jericoacoara, Município de Jijoca de Jericoacoara (Ceará); (c) Delta do Parnaíba, Município de Parnaíba (Piauí); (d) Porto Seguro, Municípios de Santa Cruz Cabrália e de Porto Seguro (Bahia). No Quadro 1 são apresentadas, resumidamente, suas principais características.
Os municípios têm uma demografia variada (entre 60 e 150 mil habitantes), e similitudes quanto à ampla incidência de pobreza e à concentração de renda (índice de Gini[2]). Na Tabela 1, nota-se que a pobreza atinge mais de 52% de suas populações, chegando a quase 60% no Município de Barreirinhas. Quanto à desigualdade de renda, o coeficiente de Gini atestou, em todas as localidades, um nível acima de 0,40.
Mesmo com todas as potencialidades – produtivas e naturais – encontradas nos quatro destinos turísticos apresentados, são evidentes os contrastes sociais, os traços de pobreza e de miséria, e a ausência de um sistema produtivo local de turismo (SPLT) mais integrador, que propicie o desenvolvimento endógeno. A exclusão social está presente, principalmente, entre os pequenos produtores que, em sua maioria, encontra-se em zonas rurais afastadas dos centros de aglomeração turística e desenvolve atividades informais e tradicionais, como a pesca, a agricultura e o artesanato.
O paradoxo é que o turismo é considerado um fenômeno social essencialmente inclusivo, gerador de trabalho, emprego e renda. Uma ferramenta norteadora da inclusão socioprodutiva, por sua qualidade em combater a pobreza e a exclusão social (GOELDNER; RITCHIE, 2011; OCDE, 2008; OMT, 2010). Todavia, há inúmeras experiências de desenvolvimento de sistemas turísticos locais – sobretudo no Brasil - que direcionam os seus esforços para a canalização dos benefícios econômicos com exclusão das comunidades locais (CLARKE, 1997; COSTA, 2009; IRVING, 2002; KRIPPENDORF, 2011; SHARPLEY, 2000).
Nesse caso a exclusão social aqui atrelada é aquela da vertente conhecida por “exclusão social passiva” (ROGERS; JALAL; BOYD, 2008), que decorre de processos sociais em oposição aos legais, pois se refere às formas de inserção precária e restrições a oportunidades sociais e à falta de acesso a bens. É a própria “negação da cidadania”, processo múltiplo (NASCIMENTO, 1994), que se edifica na informalidade do trabalho e na baixa remuneração. Em todos os municípios estudados a porcentagem das populações locais com idade ativa (10 anos ou mais) que se encontra sem rendimentos ou rendimentos mensais menores que um salário mínimo, ultrapassa os 67%, como destacado na Tabela 2.
O Brasil conheceu, desde o século passado, uma série de programas de combate à pobreza como parte do consenso nacional de que o País não podia conviver com a pobreza. Era necessário um modelo de desenvolvimento com inclusão social (SACHS, 2004), com aproveitamento das potencialidades produtivas locais. Dentre as recentes estratégias adotadas, destaca-se a de ações de “inclusão socioprodutiva”, processo voltado à conquista de renda por parte do cidadão, que lhe dá autonomia e o integra ao mercado, conduzindo-o a uma vida digna e com direitos assegurados (BRASIL, 2013d).
A estratégia de inclusão socioprodutiva, no imaginário brasileiro, é uma “condição necessária para o desenvolvimento humano” (SIMÕES; PEIXOTO, 2013, p. 03), na qual a qualificação profissional constitui a referência mais imediata, seguida pelas iniciativas de promoção do empreendedorismo individual, microcrédito produtivo orientado, fomento e apoio à economia solidária (BRASIL, 2013b). No entanto, em geral, as ações voltadas à inclusão socioprodutiva em destinos turísticos brasileiros têm se limitado apenas ao primeiro passo (qualificação profissional), deixando lacunas substanciais no processo de inclusão socioprodutiva (ALMEIDA, 2009).
Muitos obstáculos inerentes às tentativas de inclusão socioprodutiva já foram destacados em trabalhos técnicos e estudos pretéritos (BRASIL, 2011; CAPELLESSO; CAZELLA, 2013; IABS, 2008; ISPN, 2011; MERJIN, 1989; TASSO, 2014; USHIZIMA, 2017; VINH, 2013). [A1] Os principais obstáculos destacados foram: recorrente dependência de atravessadores; falta de regularidade e de cumprimento de prazos na oferta de produtos; baixo valor agregado à mercadoria; fragilidades técnicas, administrativas e gerenciais; dificuldades no acesso ao crédito; falta de capital de giro; produção em escala insuficiente; dificuldades de manutenção da padronização.
A observação in loco permitiu verificar que, em grande parte dos casos, o consumo de pescados, de frutas e de verduras, por hotéis, pousadas, barracas de praia, resorts e restaurantes, se dá pela compra destes em grandes mercados localizados nas capitais dos estados (com maior evidência para São Luís – MA e Fortaleza – CE), excluindo, dessa forma, a produção local.
Contudo, o turismo sustentável é visto como uma oportunidade de mitigação desse cenário, por meio da inclusão social, pela prudência na utilização dos recursos naturais, com respeito à capacidade de carga (COOPER, 2008; LICKORISH; JENKINS, 1997); pela distribuição equitativa dos benefícios e aumento da qualidade de vida da população residente (BENI, 2007; COSTA, 2013; CLARKE, 1997; IRVING, 2002; SWARBROOKE, 1999); pelo respeito à identidade cultural local, e incentivo à participação e ao reconhecimento das comunidades receptoras (OMT, 2010; RUSCHMANN, 2006); pela incorporação de princípios e valores éticos em suas práticas (GARROD; FYALL, 1998; FRANCE, 1998); pela garantia da satisfação e da conscientização do turista a respeito da natureza, criando melhores lugares para se visitar (GOODWIN, 2012; SHARPLEY, 2009).
A implantação dos projetos de desenvolvimento local, nas regiões selecionadas, primou, em todas as suas etapas, por atividades em que os grupos de atores envolvidos participaram das discussões. O foco esteve na integração, na abertura de espaços de diálogo entre o trade turístico e os pescadores e pequenos produtores rurais.
A identificação dos obstáculos inerentes aos processos de comercialização direta foi possível graças à estrutura metodológica de intervenção (TOURAINE, 1978), coleta e tratamento de informações, que acompanharam o processo de implantação do projeto. Grosso modo, os procedimentos metodológicos seguiram por nove etapas.
A primeira etapa visou o conhecimento dos aspectos econômico, social, biofísico, cultural, histórico e político-institucional, dos destinos turísticos tratados por meio de revisões bibliográficas e o levantamento de informações documentais. A segunda consistiu na aplicação de questionários e realização de entrevistas semiestruturadas com representantes do trade turístico local, relacionados com o sistema produtivo de turismo. Na terceira etapa realizaram-se oficinas participativas para validação dos dados obtidos, com mobilização de representantes dos grupos da oferta e da demanda turística. Nelas foram debatidas as informações levantadas e as propostas de trabalho, assim como, identificaram-se grupos produtivos e estabelecimentos turísticos interessados em participar do desenvolvimento do trabalho.
A quarta etapa foi a do reconhecimento dos sistemas produtivos dos agricultores e pescadores, selecionados (a partir do grau de organização coletiva de trabalho) pela equipe técnica dos projetos. Foram analisados os modos de produção, as ferramentas de trabalho, as formas de organização, os aspectos logísticos, o perfil das famílias, os aspectos culturais, e suas principais limitações técnicas e produtivas. Da mesma forma, foram analisados os perfis dos estabelecimentos do trade turístico que manifestaram interesse em participar da proposta, considerando-se suas estruturas físicas; capacidade de suporte; perfil dos clientes; logística de compra e aspectos da culinária típica local.
A quinta etapa consistiu em elaborar Planos de Negócios de inserção produtiva, com informações sobre oferta e demanda, planos de intervenção, comercialização, marketing e projeções futuras de mercado. Em seguida, na sexta etapa, realizaram-se duas modalidades distintas de cursos. A primeira, destinada aos produtores rurais, com aprendizado de técnicas sustentáveis de beneficiamento dos produtos, entre outras. A segunda modalidade foi direcionada aos chefes de cozinha e cozinheiros dos estabelecimentos, na elaboração de novos pratos, criados a partir dos produtos potenciais das comunidades.
A sétima etapa concentrou-se na elaboração de selos promocionais e de briefings de apresentação do projeto, como ferramentas estratégicas para sua divulgação. A finalidade foi criar uma identidade socioambiental dos estabelecimentos participantes, para sensibilizar e conscientizar os turistas e demais empreendedores locais, quanto à importância de apoiar as comunidades locais e preservar o meio ambiente. Na oitava etapa, foram criados espaços de diálogo entre os representantes do trade e os pescadores e produtores rurais, intitulados “tours de vivência”, que ocorreram nas comunidades rurais, nos hotéis, pousadas e restaurantes. Dentre outros pontos de discussão, trataram-se da comercialização, de preços justos e o fortalecimento de parcerias corresponsáveis, éticas e solidárias.
Na última etapa foi realizado um evento de integração entre os atores locais, com a participação de entidades públicas. O evento marcou o início do processo de comercialização direta, por meio de assinaturas de termos de parceria que estabeleceram o modelo de prestação de serviços: os produtos que seriam comercializados e seus valores; formas de pagamento; obrigações e direitos de cada grupo, dentre outros.
Dos projetos desenvolvidos nos locais supracitados, três deles, intitulados Produção de Base Comunitária Associada ao Turismo (PBCAT)[3], resultaram de um acordo de cooperação entre o Ministério do Turismo (MTur) e a Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (Aecid). O quarto projeto, Pescando com Redes 3G, decorreu de uma parceria entre a Qualcom (Fundação Telefônica Vivo) e a Agência Americana para Desenvolvimento Internacional (USAID). A sua execução ficou sob responsabilidade do Instituto Ambiental Brasil Sustentável (IABS) e, no caso do PBCAT/Lençóis Maranhenses, também do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB).
Desenvolvidos em distintos contextos, os projetos tinham objetivos comuns: promover a inclusão socioprodutiva de pequenos produtores (pescadores e agricultores) no sistema produtivo local de turismo, por meio de sua participação nos benefícios econômicos da atividade turística, a valorização da biodiversidade e da identidade cultural local. As ações focaram os produtores que se apresentassem formalmente organizados (organização coletiva de trabalho). Os projetos, e seus respectivos grupos de atores, estão destacados no Quadro 3.
A produção agrícola nos quatro municípios é rica. Feijão, milho, banana, coco da baía e mandioca são comuns às localidades. Castanha de caju, carnaúba e carvão vegetal são identificados em Parnaíba, Barreirinhas e Jijoca de Jericoacoara. Arroz e melancia têm expressão em Parnaíba e em Barreirinhas e a produção de manga em Parnaíba e em Jijoca de Jericoacoara (IBGE, 2017a). Outras produções agrícolas ganham destaque de forma individualizada: Parnaíba (goiaba); Barreirinhas (laranja, açaí e buriti); Jijoca de Jericoacoara (batata-doce), e, Santa Cruz Cabrália (borracha, cacau, café, mamão, maracujá, pimenta do reino, abacaxi e piaçava) (IBGE, 2017a).
Em relação à pesca extrativa marinha, Bahia, Maranhão e Ceará ocupam posição de destaque entre os estados pesqueiros no Brasil (BRASIL, 2013a). Em Barreirinhas, a pesca se enquadra entre as quatro atividades econômicas mais importantes, junto com agricultura familiar, artesanato e turismo. Por sua vez, Jijoca de Jericoacoara, reconhecida como uma vila de pescadores, não apresenta a mesma produção. Nela, os pescadores migraram ou passaram a se dedicar a outras atividades vinculadas ao turismo (IABS, 2009a). Mesmo com uma reduzida extensão litorânea (0,98% do litoral brasileiro), o Piauí é importante em pesca. Parnaíba está entre os quatro principais municípios da costa, englobando 11 comunidades que vivem unicamente da pesca extrativa, principalmente nos Rios Parnaíba e Igaraçú (IABS, 2009b). A produção pesqueira é também importante em Santa Cruz Cabrália, juntamente com o Turismo.
Foram selecionados alguns produtos de cada município, em função da natureza e número dos produtores, como objetos dos projetos, apresentandos no Quadro 4.
A metodologia supracitada possibilitou o reconhecimento dos obstáculos de ordem técnica, logística, jurídica, social e econômica na comercialização. Obstáculos esses que reduzem, quando não suprimem, as oportunidades de inclusão socioprodutiva e distanciam os pequenos produtores rurais e pescadores do mercado turístico. Dez desses obstáculos ganharam destaque:
Emissão de nota fiscal: embora grandes redes hoteleiras e estabelecimentos gastronômicos tenham se interessado pela produção local, a exigência da emissão de notas fiscais não estava ao alcance dos produtores, mesmo quando organizados.
Condições de recebimento-pagamento: as grandes redes hoteleiras demandam prazos para a efetivação do pagamento que chegam a uma média de 20 dias, enquanto com os atravessadores os pescadores recebem o pagamento imediato do produto e, até mesmo, antecipadamente. O pagamento apenas por transferência bancária, praticado pelos grandes hotéis, dificultou também a comercialização, pois alguns não têm conta.
Capital de giro: ausência de um alicerce econômico para cobrir os custos no processo produtivo. Pescadores, mesmo com embarcações próprias, não possuem renda suficiente para arcar com gastos como iscas, gelo, óleo diesel, comida para a tripulação, dentre outros. Agricultores não têm recursos para a compra de embalagens, caixas térmicas para manter o frescor das frutas, gás de cozinha ou pagamento de transportes.
Estrutura de beneficiamento e local de estocagem: a preferência por produtos já beneficiados, como pescados eviscerados apresentados em filés e postas, ou frutas em forma de doces e polpas, é uma demanda do trade turístico, mas são produtos que demandam por estruturas físicas com equipamentos específicos para sua correta produção e acondicionamento do produto beneficiado que os agricultores não possuem.
Adequação da produção à sazonalidade do turismo (regularidade de fornecimento): o descompasso entre a sazonalidade do turismo e a de algumas espécies de pescados e de frutas típicas das regiões é outro obstáculo para a inclusão socioprodutiva. Períodos de alta temporada turística frequentemente coincidem com períodos de defeso de pescados ou de estiagem nas lavouras. Dessa forma, não há como garantir a regularidade no fornecimento dos produtos ao longo do ano.
Volume e qualidade dos produtos: provisão da quantidade necessária e a manutenção do padrão de oferta de produtos e serviços são exigências que os grupos não puderam cumprir. Períodos de alta temporada turística demandam uma produção em grande escala, para a qual os produtores não estão preparados.
Registros de Serviços de Inspeção Federal, Estadual e Municipal: o Selo de Inspeção Sanitária (SIS) é um sistema nacional de avaliação e controle da produção de alimentos de origem animal, implantado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Brasil - MAPA (BRASIL, 2013a), que atesta a qualidade sanitária e a conformidade do produto com a legislação. As condições que permitem a obtenção do SIS, ainda estão distantes da realidade dos pequenos produtores, pois são solicitados documentos que eles não possuem, tais como: vistoria do terreno; alvará de funcionamento; análise laboratorial, fiscal e de monitoramento da qualidade das matérias-primas, insumos e produtos; além da presença de um responsável técnico (BRASIL, 2013b).
Logística para o escoamento da produção: a falta de meios de transporte para escoamento dos produtos até os estabelecimentos turísticos também se configura como um notório obstáculo. Os grupos não dispõem de veículos para acondicionamento e entrega dos produtos, dificuldade maior nos períodos de chuva. O sistema de comunicação normalmente é falho, o que prejudica o contato com os compradores.
Capacitação profissional, técnica e gerencial: mesmo com a oferta de cursos de beneficiamento de produtos, boas práticas de fabricação e higiene pessoal, ainda foram identificadas várias lacunas técnicas e gerenciais, a serem preenchidas pelos produtores. O gerenciamento da produção, dos gastos, do estoque, das receitas, é realizado sem o suporte de ferramentas técnicas e informatizadas, com um sistema organizacional arcaico. Os processos de beneficiamento dos produtos, para manter uma padronização exigida pelo mercado, são difíceis de serem assimilados. A ausência de acompanhamento técnico em todas as etapas, desde o manejo até a entrega, resulta no desagrado dos compradores.
Organização coletiva do trabalho: este obstáculo tem um caráter essencialmente cultural e, por vezes, político. Tomadas de decisões sem um número expressivo de cooperados, ausências nos cursos técnicos oferecidos, falta de comprometimento e de sensibilização com o projeto são algumas das muitas características dessa fragilidade da autogestão, além da associação do projeto com ações e campanhas políticas, afastando cooperados que se mostravam contrários aos projetos.
Deve-se somar aos obstáculos supracitados, o papel crucial dos atravessadores no processo de dinamização da cadeia produtiva. Primeiro, pelas relações informais (laços de amizade ou vínculos familiares) que se estabelecem entre os pescadores e os atravessadores, caracterizadas como ciclo de dependência econômica (TASSO, 2014). Esta dependência se dá pelo fato de que os atravessadores são responsáveis por fornecerem apoios providenciais, como combustível, isca, gelo, equipamentos de pesca e mecânicos, alimento para a tripulação, além de recurso financeiro para reforma e aquisição de embarcações (CAPELLESSO; CAZELLA, 2013; MERJIN, 1989; VINH, 2013; TASSO, 2014). Junto aos produtores rurais eles compram, à vista, as mercadorias na terra dos agricultorese, às vezes, antes da colheita, o que caracteriza uma intrincada rede de financiamento (BRASIL, 2011).
Em segundo lugar, os atravessadores se apresentam ao mercado turístico como pessoas jurídicas, capazes de vencerem muitos dos obstáculos citados: emitem notas fiscais; possuem meios próprios de transporte; pagamento à vista. Além disso, detêm estruturas físicas de acondicionamento e beneficiamento de produtos; e conseguem, junto aos bancos, financiamento facilitado, dentre outros. Por fim, em períodos de baixa temporada turística, quando a demanda por produtos, pelos meios de hospedagem e restaurantes, é notoriamente reduzida, são eles os responsáveis por manter a comercialização ativa com os pequenos produtores, canalizando a produção para outros mercados.
Reuniões participativas com produtores elucidaram a figura do atravessador como um ator-chave (CAPELLESSO; CAZELLA, 2013; MERJIN, 1989; VINH, 2013) na cadeia produtiva do sistema turístico local. A sua posição na cadeia de distribuição pôde ser identificada claramente, como financiadores do capital de giro e intermediários na comercialização.
As características da comercialização de produtos de base comunitária, intermediada por atravessadores, comum em muitos destinos turísticos brasileiros, indicam que o cenário é complexo. Ainda que as tentativas, por meio de projetos técnicos, tenham sido válidas, na busca pelo estabelecimento de uma relação de comercialização direta entre pequenos produtores rurais e o trade turístico, pouco demonstraram efetiva mudança nos cenários. Dois contextos insistem em se manter concretos, mesmo tangenciados por iniciativas de inclusão socioprodutiva.
De um lado, vítimas do isolamento comercial imposto por um modelo excludente de mercado, os pequenos produtores rurais se encontram em uma posição desfavorável na luta pela participação nos benefícios econômicos da atividade turística. As suas práticas tradicionais de produção – pesca artesanal e agricultura familiar – não lhes permite uma inserção produtiva consistente no mercado turístico. Sem alternativas que permitam o rompimento com a dependência dos atravessadores e a sua emancipação socioeconômica, continuam recebendo os chamados apoios “providenciais” iniciais, em troca de baixos rendimentos finais. As iniciativas de inclusão socioprodutiva implantadas nas regiões, esbarraram em múltiplos obstáculos de ordem técnica, logística, jurídica, financeira e cultural, conforme constatado. Mas “todos”, superados pelos atravessadores.
De outro lado, o trade turístico encontra-se encruzilhado por duas vias de acesso aos produtos necessários: (a) arcar com os valores abusivos impostos pelos atravessadores, porém, tendo suas exigências (logísticas, jurídicas, técnicas, etc.) cumpridas; (b) se deslocar até às capitais dos estados para adquirir, em grandes mercados, os produtos necessários. Ao optar pela comercialização com o mercado externo, o trade turístico deixa de valorizar e de incentivar a própria produção local.
Está-se diante de um ciclo, visto que as possibilidades são: ou se realizam as vendas por intermédio dos atravessadores ou não se faz nada. Essa é, talvez, a maneira mais direta e objetiva de concluir a análise realizada e de se definir o cenário que se observou nos quatro destinos turísticos em tela, no que diz respeito ao aproveitamento das potencialidades produtivas locais.
As estratégias de inclusão socioprodutiva no sistema turístico, adotadas pelo governo brasileiro, restritas à qualificação profissional, merecem reformulações que primem por englobar formas de superar os obstáculos aqui identificados. São necessárias políticas públicas que:
reconheçam a importância e o papel primário e indissociável das comunidades de pequenos produtores no sistema produtivo de turismo;
busquem mitigar as barreiras impostas por uma legislação (fiscal, tributária, ambiental, sanitária, creditícia, trabalhista, etc.) que não reconhece as particularidades dos modos de produção familiares e artesanais;
contemplem formas facilitadas de acesso a crédito e a investimentos, possibilitando a disponibilização de capital de giro aos produtores;
contribuam com a criação de estruturas produtivas (físicas e gerenciais) adequadas, com logística de distribuição e com capacidade de gestão coletiva e de atendimento ao volume e à regularidade de fornecimento;
permitam acesso à assistência técnica, à tecnologia de produção apropriada e a planos de divulgação e marketing dos produtos.
Sem medidas desse porte o cenário de exclusão social nos destinos turísticos brasileiros tende a persitir. É digno de nota que estratégias pautadas nos pressupostos da economia solidária – como o comércio justo, ético e solidário - se configuram como uma alternativa capaz de mitigar muitos dos obstáculos apresentados, e de combater o quadro de marginalização de pequenos produtores rurais.
separadas por ponto-e-vírgula, em ordem alfabética.