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O desenho, o desenhar e o ensino da arquitectura através da corporalidade
Design, drawing and the teaching of architecture through corporeality
Arquitetura Revista, vol. 12, núm. 1, pp. 36-47, 2016
Unisinos

Artigo


Recepção: 22 Junho 2015

Aprovação: 06 Abril 2016

DOI: https://doi.org/10.4013/arq.2016.121.04

RESUMO: Este artigo é uma reflexão sobre o ensino do desenho e projecto arquitectónicos. Ele expõe a realidade do ocularcentrismo e a anulação, quase por completo, dos outros canais sensitivos, inclusivamente da visão háptica, tanto na actuação profissional arquitectónica como na académica. Apresenta dados das ciências cognitivas, abordando, nomeadamente, a importância dos neurónios espelho na problemática exposta, que questionam essa realidade e fundamentam a tese posteriormente defendida. O corpo teórico dirige-se a questões relativas à existência do homem no mundo, à sua relação com o espaço e à sua percepção, evidenciando a corporalidade e a dualidade inseparável do corpo e do espaço na sua existência. Enfatiza a necessidade de transitar entre os estados consciente e inconsciente no processo criativo de que depende o processo projectual arquitectónico, revelando, simultaneamente, o papel fundamental do desenhar e do desenho neste universo. O artigo estimula, assim, a reflexão sobre o desenho, o desenhar, o projecto arquitectónico e, em concreto, sobre o ensino desta profissão que, hoje, pouco atende às questões profundas do ser e do existir na sua vertente corporal. Apresenta exercícios realizados com base nesse corpo teórico.

ABSTRACT: This article reflects upon the teaching of architectural drawing and design. It describes the reality of ocularcentrism and the almost total annulment of the other sensory channels, including haptic vision, in both professional architectural practice and in the academic domain. It presents data from the cognitive sciences concerning the importance of mirror neurons in this matter, which question this reality and support the thesis subsequently presented. The theoretical corpus addresses matters relating to man's existence in the world, his relationship with space and his perception, revealing corporeality and the inseparable duality of body and space in his existence. It emphasises the need to transit between conscious and unconscious states in the creative process upon which architectural design depends, while at the same time revealing the fundamental role played by drawing and design in this universe. The article therefore stimulates a reflection upon architectural drawing and design, and specifically about the teaching of this profession, which at present scarcely considers the deep questions of being and existing in their bodily aspects. It also presents exercises carried out based on this theoretical corpus.

Keywords: drawing, design, architectural project, corporeality, haptic vision, mirror neurons, teaching.

Palabras clave: desenho, desenhar, projecto arquitectónico, corporalidade, visão háptica, neurónios espelho, ensino

Introdução

L'espace visuel. L'espace tactile. L'espace manuel2

(Braque, 1952).

“Novos pilares” de vidro parecem estar a ganhar terreno no ofício arquitectónico. Entre outros factores, esta situação é provocada pelo arrastamento da inércia da escola tradicional e da desumana mentalidade contemporânea assente em novas estratégias educativas e profissionais, priorizando, fundamentalmente, factores económicos e de autopromoção, o que põe em causa questões profundas do ser e do existir.

Igualmente responsável por essa situação é a sobrevalorização da vertente técnica e científica no meio arquitectónico, que, especificamente no campo da percepção, sobrevaloriza o ocularcentrismo e anula quase por completo outros canais sensitivos humanos. Esta postura reduz, ou anula mesmo, capacidades humanas cuja existência e entendimento do mundo dependem da relação corpo-espaço-tempo. Considera a existência humana desintegrada corporalmente ao pôr a visão como principal (e por vezes único) responsável pelo entendimento do espaço e do mundo.

Para as ciências cognitivas e outras afins, o sistema sensório-motor e a percepção incorporada desempenham um papel fundamental na estruturação da existência e compreensão humana. O universo arquitectónico deve considerar o papel do corpo como lugar de percepção, da consciência e do pensamento que dependem da informação da visão, mas também da visão háptica e de todos os sistemas (que garantem o ser humano na sua totalidade), entre os quais se encontra o sensitivo.

Objectivos e metodologia

O objectivo deste trabalho é o de evidenciar a necessidade de actualizar os processos de ensino – aprendizagem do desenho arquitectónico e simultaneamente do projecto arquitectónico. Ele apresenta a realidade da situação no âmbito profissional e académico. Evidenciando a corporalidade e a visão háptica neste contexto, ele expõe o mecanismo de produção do desenho (baseado em dados provenientes de outras áreas cientificas) e a sua contribuição no campo criativo e de ideação arquitectónica. Diferencia o ato de desenhar e o desenho como documento físico. Como metodologia expõe exercicios académicos que se articulam segundo a base teórica defendida.

Corpo de texto

Apesar da consciência háptica pouco se ter sentido no universo ocidental arquitectónico dos últimos tempos, existem arquitectos cujo labor foi e é particularmente significativo nesse aspecto. Entre eles, destacam-se Alvar Aalto, Louis Kahn ou Peter Zumthor. Tanto na sua obra como através das suas teorias, podemos confirmar esse desiderato (Figura 1).


Figura 1
Termas Vals, Graubünden, Suíça. 1996. Arq. Peter Zumthor.

A consciência e atitude destes arquitectos perante a corporalidade do existir e do entender constitui uma reduzida postura entre os arquitectos ocidentais. Existem muitos outros aspectos que influenciam a qualidade da arquitectura actual. Isso resulta da complexidade do mundo de hoje e da própria profissão. No entanto, há quem defenda ser essa uma das grandes causas do estado deficitário da nossa arquitectura e das nossas cidades. Pallasmaa (2006) chega a afirmar que “La inhumanidad de la arquitectura y la ciudad contemporáneas puede entenderse como consecuencia de una negligencia del cuerpo y de la mente, así como un desequilibrio de nuestro sistema sensorial”.

Sensação / percepção

Seguidamente exporemos justificações plausíveis para a urgência de uma reflexão do ensino da arquitectura e do desenho, recorrendo ao conhecimento produzido pelas ciências cognitivas e que evidenciam a consideração da corporalidade no campo arquitectónico.

Na relação entre o indivíduo e o mundo que o rodeia, podem destacar-se dois processos essenciais: a sensação e a percepção. A “sensação ” (que acontece primeiramente e sem que intervenha alguma construção intelectual) como sendo o que o indivíduo sente como resposta a um estímulo (Dezcallar, 2012). A percepção (fenómeno posterior) é o resultado da intervenção do cérebro que a organiza e lhe dá sentido. É através deste processo sucessivo que os estímulos sensoriais se vão tornando em experiências organizadas (Figura 2).


Figura 2
Do estímulo ao pensamento.

A percepção resulta, na presença de um estímulo, num processo que recolhe as informações através de receptores sensoriais distribuídos por todo o corpo humano e as envia para o sistema nervoso central, que irá posteriormente reconhecer e identificar o estímulo. A intensidade do estímulo, a representação mental que o indivíduo tem do mesmo, a experiência emocional e os factores socioculturais são alguns dos determinantes na estruturação do processo de recolha, reconhecimento e identificação do estímulo.

Neste complexo processo entra uma propriedade da percepção muito importante que é a atenção. Ela é responsável por seleccionar alguns dos inúmeros estímulos a que um indivíduo está sujeito constantemente, condicionando a sua própria conduta. É também responsável pela escolha do, ou dos canais sensitivos que hão-de responder a esse estímulo. Ela é condicionada diferentemente de indivíduo para indivíduo, seja pela sua vivência / experiência, seja pela sua matriz biológica. Por exemplo, uma pessoa a quem falta um dos canais sensitivos desenvolve outros permitindo, igualmente, que a sua atenção seja focada para as informações provenientes desse mesmo canal.

El bailarín tiene su oído en los dedos de los pies

Friedrich Nietszche (inPallasmaa, 2006).

Estes dados foram replicados noutros territórios do conhecimento como o da arquitectura. James Gibson mudou a maneira de olhar para os sentidos através dos órgãos, introduzindo a vertente espacial/ambiental. Ele considerava que para entender os sentidos não se deveria focar na estructura do organismo (indivíduo), mas sim no ambiente em que ele está imerso, concretamente, na acção dos estímulos sobre os sentidos. Considerava, ainda, os sentidos como mecanismos de busca agressiva e não como meros receptores passivos. Com base nestas premissas e com o intuito de organizar e objectivar o sistema perceptivo, construiu um inventário dos sentidos, focando-se nos tipos de informações do ambiente com que o corpo lida, em vez de na variedade sensorial e respostas do corpo. No fundo, ele reagrupa os sentidos em função do tipo de informação que os indivíduos procuram.

Neurónios espelho / Visualidade háptica

Toda imagen encarna un modo de ver […]

Berger (1972).

Tanto o processo da percepção háptica como o dos neurónios espelho estão implícitos no fenómeno perceptivo do ser humano.

A palavra “háptico ” vem da palavra inglesa haptic, utilizada para definir as recepções tactilo-cinestésicas, ou, por outras palavras, tacto activo. A percepção háptica refere-se à percepção simultânea e coordenada do tacto e movimento, responsáveis pelo trânsito de informações significativas sobre o objecto ao sistema nervoso central, contribuindo para a codificação e entendimento do mundo. No fundo, é a combinação da informação extraída dos sistemas cutâneo e motor.

O neurónio é a célula nervosa. É através dele que se processa a condução do impulso nervoso. É uma célula altamente especializada na transmissão de informações, na forma de impulsos nervosos.

O neurónio espelho é um neurónio que se activa quando o indivíduo realiza uma acção ou movimento, ou quando observa essa mesma acção ou movimento realizado por outro ser (normalmente da mesma espécie). O neurónio espelho não percebe a diferença entre primeira e terceira pessoa. Quando ele se activa, verifica-se um fenómeno mimético. Este neurónio garante o comportamento de imitação de outro ser, como se estivesse, ele próprio, a realizar essa acção. Ele parece espelhar os movimentos que vê, como se o corpo os executasse realmente. Por esse motivo, são designados neurónios espelho. A sua descoberta surgiu de um acaso, quando investigadores liderados por Giacomo Rizzolatti realizavam estudos com primatas. Posteriormente, estudaram o cérebro humano e perceberam que eles também aí existiam e que operavam de similar forma (Figura 3).


Figura 3
O neurónio espelho e o funcionamento cerebral.

Os neurónios espelho são activados num estado pré-racional pelos dados fornecidos pelos canais sensitivos permitindo que o significado dos mesmos seja compreendido automática e inconscientemente (sob a forma de conhecimento incorporado / embodied). Essa etapa pode ser seguida, ou não, por outras conscientes, que, por sua vez, poderão levar a uma compreensão mais ampla dos eventos através de mecanismos cognitivos mais sofisticados (conhecimento intelectual).

As informações que irão directamente aos neurónios espelho podem provir de diferentes canais sensitivos. Com frequência se descreve a visão na aproximação aos neurónios espelho, mas outros sentidos como o olfato, a audição ou o tacto podem, de forma similar, activar este processo mimético. Os neurónios espelho são responsáveis, por exemplo, pela activação de saliva ao cheirar comida, tal como se comesse realmente, ou, e até exemplificado por Giacomo Rizzolatti, o caso do primata que activou certa parte do cérebro quando ouviu descascarem amendoins e outros tipos de alimentos (Blakeslee, 2006).

Visualidade háptica

A exposição destes conceitos sugere uma perspectiva da compreensão baseada na percepção e acção, levando, paralelamente, a entender que a percepção e a cognição se encontram incorporadas . Os neurónios espelho vêm realçar a ideia de que o corpo é a primeira forma de estar e de entender o mundo e que o sistema sensório-motor actua antes da cognição/conhecimento consciente. Leva a entender que a atribuição de um sentido consciente das imagens que vemos passa primeiramente pela aprendizagem corporal (sensório-motora). Assim, verifica-se primeiramente um conhecimento incorporado / embodied, podendo, a posteriori, desenvolver-se e gerar-se um conhecimento intelectual onde a consciência do indivíduo é já presente. Esta situação reclama do indivíduo um conhecimento prévio vivido ao nível sensório-motor, dessas ou similares experiências, para compreender a informação proveniente dos sentidos (o que vê, por exemplo). Só nessa altura se opera a partilha dessas experiências e se constrói mais tarde um conhecimento intelectual consciente.

O sistema sensório-motor e a percepção incorporada parecem, assim, constituir a base da existência e da compreensão humana. O papel do corpo como “lugar de percepção”, dos sentidos no armazenamento, na articulação e no processo de ideias sensoriais bem como da consciência e do pensamento é parte essencial de todo o processo da existência humana.

A descoberta dos neurónios espelho, portanto, veio oferecer uma nova forma de abordar a compreensão da visualidade que considera a corporalidade (o sistema sensório-motor presente no gesto) o canal primário para essa compreensão. Assim, a visualidade háptica vê o mundo como se lhe tocasse, um mundo de envolvência onde operam fenómenos físicos e perceptivos (Branco, 2009). A relação do ser humano com as imagens e com o mundo que o rodeia, encontra, assim, o seu primeiro sentido, através da cognição corporal e incorporada – uma relação que encontra no sentido do tacto, na cinestesia e nas sensações físicas espaciais a primeira fase interpretativa. É a memória da experiência táctil e memória háptica que permitem ao ser humano apreciar caracteristicas como a textura, o peso ou a dureza de elementos, mesmo quando apenas visualiza. Na visualidade háptica, para além das experiências próprias de cada indivíduo, inserem-se os ensinamentos socioculturais.

Neste processo, pode observar-se uma operação empática . Como defendem certos autores, as descobertas dos neurónios espelho levam a reduzir, ou mesmo anular, as distinções entre a “compreensão, a percepção e a acção; o visual, o táctil e o motor; o sujeito observador e o objecto observado; o possível e o actual” (Branco, 2009). Pode, assim, inferir-se que a percepção de uma imagem, ou de um dado fornecido por outro sentido, não se baseia no reconhecimento de uma representação abstracta, sistemas simbólicos, geométricos, matemáticos ou artificiais, mas sim na empatia que o indivíduo estabelece com a dita imagem e a aprendizagem sensório-motora que tem do mundo que o formou e o rodeia. Uma compreensão que é construída no corpo e no cérebro.

Neste processo empático, operam-se experiências físicas, mas também emocionais . Vários neurocientistas defendem a ideia de que os neurónios espelho estão também associados a sistemas emotivos. É o caso de António Damásio, cujas descobertas foram fundamentais para o entendimento desta matéria. Ele e a sua equipa mostraram como os sentimentos (que ele define como a consciência das emoções) estão relacionados com os mapas neurológicos do corpo . Eles são activados da mesma forma em diversas áreas do cérebro, seja quando um indivíduo observa uma situação ou a vive em concreto (física ou emocionalmente) (Damásio, 1994). A capacidade de experimentar uma vivência de outro ser acontece ao nível sensório-motor, abarcando também o sistema emocional. Um indivíduo pode entender a manifestação de angústia, alegria, ou qualquer outro sentimento conhecido por ele, quando os neurónios espelho simulam essa situação no observador. Automaticamente, gera-se uma empatia, porque o observador “se pôs” no lugar do outro. Defendem, do mesmo modo, que estes neurónios têm a capacidade de activar o cérebro humano ao enviarem informações para o sistema emocional ou límbico. O ser humano estabelece, assim, ligações emocionais directas com as imagens que vê, ou com outras fontes informativas provenientes de canais sensoriais distintos. Presume-se, assim, que acção e emoção – o sistema motor e o sistema emotivo – estão ligados e igualmente envolvidos na empatia. Esta situação reflecte, paralelamente, as sofisticadas e complexas habilidades sociais do ser humano, ser eminentemente social (Gallese, 2010).

O cérebro humano tem múltiplos sistemas de neurónios espelho que se especializam em diferentes âmbitos: na realização e especialização da acção e movimentos dos outros bem como na previsão das suas intenções, emoções, significado cultural e comportamentos conductais (Gallese, 2010). Estas últimas baseiam-se, também, na apreensão de sentimentos, expressões, práticas e significados culturais, linguagem corporal, mãos, rostos, etc., que estão corporalmente inscritas e operam primeiramente ao nível sensório-motor. Os neurónios espelho permitem entender a mente e o pensamento dos outros, mediante simulação directa, por sentimento, excluindo quaisquer processos conceptuais e conscientes (Gallese, 2010). O neurocientista Marco Iacoboni (Iacoboni, 2008) explica esta situação através do seguinte exemplo: Se me vires puxando o braço para trás com uma bola na mão, automaticamente simularás no teu cérebro essa acção. Os teus neurónios espelho ajudar-te-ão a entender o meu objetivo porque incorporaste essa acção que é conhecida e já foi vivenciada por ti. Saberás, portanto, a minha intenção e qual será o passo seguinte da minha acção. Esta ocorrência surge previamente à consciencialização racional do indivíduo.

Neste contexto teórico, pode-se entender a capacidade de prever a qualidade e as diversas possibilidades que um espaço oferece. Este conceito foi discutido no início do séc. XX por Jakob von Uexküll, que o apelidou de funktionale Tönung . As suas teorias influenciaram o trabalho de outros grandes autores como Maurice Merleau-Ponty ou James Gibson3, que designou este conceito por Affordance, reportando-o às oportunidades de acção objectivamente mensuráveis pelo corpo do observador e que representa um objecto ou um cenário espacial determinado. No fundo, as possibilidades motoras que o espaço ou objecto “oferecem” ao observador. Affordance revela como as experiências do tacto e visão são tão entrelaçadas. Este conceito foi muito influente no campo do design e da ergonomia.

A expressão “Posso ver?” quando um indivíduo solicita tocar / pegar no objecto para melhor o compreender e calcular as suas possibilidades é muito corrente e contribui também para entender esta entrelaçada relação.

Esta visão, que privilegia a simulação e análise de experiências espaciais arquitectónicas, ocorre, igualmente, sobre documentos gráficos, nomeadamente arquitectónicos. Daqui se depreende, também, a eminente relevância do desenho e dos documentos de expressão gráfica para prever as possibilidades que um espaço representado pode oferecer.

Desenhar, desenho e projecto arquitectónico

É através do corpo teórico exposto que este artigo pretende assinalar a importância do conhecimento dos fenómenos perceptivos e visuais do ser humano, no contexto da arquitectura, projecto e desenho arquitectónico, não apenas no exercício dessa profissão, mas também, e não menos importante, no ensino da mesma. Constatamos que certos dados das ciências cognitivas constituem, ainda, um campo desconhecido na arquitectura e no seu ensino.

Panorama pedagógico

Segundo o pensamento moderno, no seio da arquitectura, o triunfo da razão sobre os sentidos teve grande amplitude tanto na postura académica como na profissional. Atitude esta que sobrevaloriza a mente e desconfia do corpo. Esta desvalorização do conhecimento sensorial desincorpora a existencialidade humana. O cartesianismo continua a estar presente em grande parte do discurso contemporâneo sobre a imagem e sobre o entendimento espacial. A percepção da imagem é, assim, entendida como um fenómeno abstracto que se realiza numa mente sem relação com o corpo.

Ao longo da história e no universo ocidental, podemos encontrar, no entanto, outras posturas que não levam ao extremo a razão nem sobrevalorizam certos sentidos humanos na relação e compreensão do homem com o espaço. Edward Hall (Hall, 1972), por exemplo, insistia em comunicar aos estudantes de arquitectura que a experiência espacial é multissensorial e não limitada à visualidade.

A não consideração ou a sobrevalorização de apenas um determinado canal sensitivo, mesmo estando tão culturalmente intrínseca numa cultura ou círculo profissional, não altera a natureza do processo perceptivo humano, onde as informações dos estímulos são captadas simultaneamente por todos os seus canais sensitivos. A visão, ou outro canal isolado, é incapaz de revelar todas as possibilidades dos estímulos exteriores. O corpo não se separa da percepção, e é nesse sentido que se enfatiza a importância da visão háptica, que tem um papel básico em todo o processo perceptivo e também no campo projectual.

O curso de arquitectura, e, em específico, a disciplina de desenho arquitectónico, passa por uma crise, assente em múltiplos factores: o peso e ambição dum sistema que procura o rápido, o fácil e o barato, em desfavor da vivência do próprio ser humano, a pouca relevância (e até hipocrisia) do labor e função arquitectónica no nosso contexto cultural, e a frivolidade da cópia, sem consciência, da imagem arquitectónica de moda. Acresce, ainda, a postura conservadora de algumas academias, pouco permeáveis aos avanços dos novos saberes.

Entre outros autores, Burgaleta (2008) refere que parece querer-se manter vigentes os modos de desenhar da velha Academia no mundo actual. Refere ter-se consciência há pelo menos 150 anos que esse método académico de repetição de modelos, quando se trata, até, de formar a criatividade de um estudante, é inadequado.

Importa referir, no entanto, a existência de estudos e escolas que procuram evoluir e se posicionam à margem do tradicionalismo académico. Na Alemanha, durante a segunda metade do séc. XIX, fizeram-se vários estudos sobre as artes visuais e a relação corporal do indivíduo frente a obras de pintura, escultura e arquitectura (Etlin, 1998).

A escola experimental Black Mountain College (s.d.) foi um exemplo claro da necessidade de avançar sobre metodologias experimentais, cujo conceito e métodos se posicionavam à margem também do tradicionalismo académico da época. Esta escola aspirava a considerar plenamente as questões profundas do ser, do existir e do criar. Aberta em 1933 em North Carolina, EUA, foi fundada por John Andrew Rice e orientada pelos princípios de educação de John Dewey. Foram introduzidos novos métodos educativos experimentais cujos objectivos assentavam, sobretudo, em acelerar a maturidade emocional e intelectual dos estudantes, mais do que encorajar e fomentar a importância de um conhecimento teórico e “superficial” da matéria. As novas ideias incluíam: a centralidade de experiências artísticas como suporte em todas as disciplinas, a valorização da aprendizagem experimental, a práctica da governamentação democrática entre professores e alunos, a valorização dos esforços sociais e culturais fora da sala de aula e, finalmente, a eliminação da supervisão de curadores exteriores. Esta escola e estas teorias atraíram importantes artistas tais como: John Cage, Robert Creeley, Willem de Kooning, Robert Rauschenberg e Franz Kline. Também se incluíram profissionais do campo da neurologia como, por exemplo, Erwin Straus, cuja área de interesse se expande a diversas áreas das ciências e humanidades.

Embora estes estudos e teorias tivessem sido muitas vezes respeitados, não constituíram alvo de atracção por parte dos campos teóricos, profissionais e académicos, até aos dias de hoje. Ainda assim, tanto as teorias como este tipo de escola (que infelizmente apenas funcionou durante 24 anos – 1933-57) continuam a influenciar, actualmente, o pensamento e modelo pedagógico e didático de alguns profissionais do campo.

Arquitectura / corporalidade

Vitalmente hablando, lo propio de la experiencia arquitectónica es sentirse inmerso, sentirse envuelto por lo construido, tanto corporal como psicológicamente

(Sloterdijk inBurgaleta, 2010, p. 144).

À margem das disciplinas académicas arquitectónicas, há quem defenda que a arquitectura se aprende vivendo, experimentando. Um desses autores, L. Muntañola (2003), dá como exemplo a práctica do teatro, o dançar, o tocar ou ouvir música, assistir a festas e outros rituais colectivos, actividades e vivências que permitem experimentar a dialógica social.

Esta situação inscreve-se no corpo teórico inicial, que considera toda a experiência vivida uma importante ferramenta para o processo perceptivo e significativo de um indivíduo, porque, só nessa altura, se opera a partilha dessas experiências e se constrói, a posteriori, um conhecimento intelectual consciente. No fundo, L. Muntañola propõe o crescimento do número de experiências de cada indivíduo. Experiências que se guardam na memória (incorporada/embodied e racional) e que, inconsciente ou conscientemente, se revelam fundamentais no processo perceptivo. O fenómeno affordance, aliás, apenas poderá ser efectivado, se um indivíduo tiver determinadas experiências que o ajudem a prever e imaginar possibilidades de uso do espaço e alimentar a sua imaginação espacial. Assim, quantas mais experiências tiver o arquitecto, mais ferramentas tem para actuar.

Não menos importante e já mencionado é o factor sociocultural, aquele que forja cada indivíduo e participa igualmente no processo perceptivo. Segundo L. Muntañola, a arquitectura reside na experiência colectiva de interacção onde a questão espacial está eminentemente presente, revelando referências significativas. Estas experiências mobilizam a imaginação dialógica. Outra questão importante do conhecimento cultural, social e de disciplinas da psicologia e antropologia é o reforço da capacidade empática que o projectista, deverá adquirir, para melhor prever o que os outros poderão sentir e experimentar, nesta ou naquela situação espacial / opção projectual.

Esta empatia pode e deve trabalhar-se, também, ao nível do documento gráfico – desenho, onde é importante pôr-se no lugar do leitor/receptor e perceber de que forma a mensagem chega a ele.

Criatividade – inconsciente / consciente

Neste contexto, pode entender-se o labor arquitectónico, a acção de projectar, como uma actividade complexa de antecipação de usos, vivências e emoções em futuros contextos espaciais. Projectar a vivência espacial / embodied .

Projectar exige situar-se num presente futuro, imaginado, sendo a criatividade uma componente fundamental nesse processo. Só pode entrar no campo imaginário e criativo aquele que sente corporeamente um espaço. O projectista deve viver os espaços, senti-los, respirá-los, entendê-los e, a partir daí, passar a uma fase, consciente, mais técnica, para efectivar o projecto e orientar a construção real desse espaço.

É sumamente importante considerar a existência dos universos consciente e inconsciente no labor criativo e profissional do arquitecto, bem como a capacidade de circular entre eles. A capacidade de habitar, inclusivamente, na sua fronteira . Estes dois universos são mencionados por alguns autores, nomeadamente Burgaleta, como o não mundo e o mundo (Burgaleta, 2010). Outros autores classificam-nos como o mundo interior e o mundo exterior. Para o projectista, o trânsito do consciente e do inconsciente, no processo projectual, é obrigatório quando se pretende um exercício responsável.

O desenho deve ser considerado como uma das vias mais efectivas, no campo arquitectónico para circular entre os dois universos ou mundos: o imaginado e o real (o inconsciente, sensitivo imaginado e o consciente perceptivo, racional, mais tarde construído). Ele contruibui para a exploração da criatividade, porque entra no mundo sensitivo / inconsciente, uma acção primária no labor arquitectónico e em todo o campo artístico. Segundo inclusivamente ideologias de John Andrew Rice de Black Mountain College, o desenho como linguagem artística e o acto de desenhar levam a que o estudante apure a sua sensibilidade, tanto individualmente como na sua relação com o mundo, evidenciando-se a impossibilidade de a apurar por meio do esforço intelectual apenas.

Desenhar e desenho são conceitos distintos

Desenhar constitui uma ferramenta essencial para se projectar. Desenhar é uma acção, uma acção corporal que explora, é sentir, é viver no imaginário, livre, sem a participação do consciente. É um veículo, até, de desinibição da consciência – todo o conhecimento racional e pautas socioculturais que limitam, muitas vezes, o processo criativo. Desenhar faz-se de forma inconsciente, numa estrutura cognitiva a priori . Ele permite o acesso ao universo inconsciente, facilitando e provocando a criação . O desenho constitui um veículo importante, também para a aprendizagem e consciencialização da visualização háptica.

O desenho é um documento bidimensional estático, responsável por comunicar e transferir informação. No âmbito arquitectónico o desenho pode surgir de diferentes fases projectuais e assumir também diferentes expressões gráficas condicionando a leitura do receptor. O desenho técnico arquitectónico (aquele que finaliza a etapa ideológica e oferece a possibilidade construtiva) pode igualmente levar o observador a experimentar um espaço imaginado, através, também, da visualidade háptica. Esta peça representa o passo intermédio entre o criar e o construir - ela processa e representa tecnicamente as ideias trabalhadas através de mecanismos rigorosos, geométricos e simbólicos, baseados em dados conscientes, perceptivos, racionais. Especificamente, podemos encontrar o que se denomina por plantas, cortes, alçados, perspectivas, esquemas, gráficos, etc.

Existem, portanto, duas fases concretas e essenciais do desenho arquitectónico. A primeira, que corresponde à acção de desenhar e que compromete plenamente as questões criativas do projecto. Uma disciplina exploratória, sensitiva, livre e espontânea. A segunda, que corresponde ao documento bidimensional que é o desenho, consequente da primeira fase, e que compromete a expressão e definição formal e técnica do projecto. Nesta retórica, está implícita a aprendizagem da geometria descriptiva, gramática e simbologias arquitectónicas e outros meios de expressão gráfica que podem auxiliar todo o entendimento do projecto e execução da obra e que, igualmente, não devem ser descurados no ensino desta profissão.

Nesta perspectiva, pode entender-se a necessidade de, primeiramente, trabalhar e amadurecer sobre a primeira fase – desenhar e, posteriormente, (ou intercalando conforme programa pedagógico) seguir para a aprendizagem das técnicas representativas da arquitectura – desenho .

Estes conceitos devem ser aclarados e considerados como entidades distintas no ensino. Caso contrário, como por vezes acontece, restringir o processo de projecto ao plano visual poderá levar a arquitectura a ser considerada como uma mera prática gráfica sofisticada. A disciplina de desenho deve assumir estas duas realidades, sem cerimónia. Nos cursos de arquitectura actual, nem sempre se contempla a primeira fase. É nesse ponto, também, que urge a mudança .

Metodologia - Exercícios

Como referido, ainda que com insignificante repercussão no plano de ensino da arquitectura ocidental, vão sendo realizados exercícios muito interessantes e que permeiam a aprendizagem e o amadurecimento do desenhar. Experiências que seguem as linhas de pensamento focadas na essência do ser humano, enquanto ser espacial, e na potencialidade da criatividade como ferramenta básica da arquitectura. Alguns exercícios têm vindo a ser expostos em congressos sobre a aprendizagem, a arquitectura e o desenho arquitectónico.

De forma muito breve passaremos a expor outros exercícios, que pretendem desinibir o inconsciente, provocar a criatividade e estimular o aprendiz a desenhar, para melhor projectar. Estes trabalhos foram realizados por alunos universitários da área de arquitectura e do design. Foram criados e orientados por Renata Gomes tentando responder às directrizes expostas neste artigo.

A sequência de imagens transcreve o processo do exercício (1) (ver Figura 4).


Figura 4
Desenvolvimento do exercício (1).

Como objectivo principal temos a estimulação do trânsito entre o consciente e o inconsciente. O aluno é confrontado com uma imagem real, que constitui a base para, sem intervenção do cognitivo, eleger alguns elementos do cenário, sintetizá-los e geometrizá-los. Ele recorta os elementos (em papel), muda de escala, posição, multiplica-os, joga com as peças – abstrai-se. Num determinado momento, decide parar, e, sobre um papel, existe uma composição feita com as peças com que jogou – jogo que lhe permite entrar no inconsciente.

Posteriormente, passa-se à leitura da composição, do plano abstracto – o salto para o plano consciente. Sobre a composição abstracta realizada abre-se um debate, livre, sem prejuízos, e ouve-se o que, sem motivo, parece ser – “a tua composição parece um sapato”, “a tua parece um rosto”, “o teu trabalho é muito estático e o teu muito mais dinâmico”… Neste fórum, os alunos empregam termos abstractos, mas também se nota a tendência para consciencializar formas e relacioná-las com objectos, espaços e vivências experimentadas.

Após este período, seguem-se as perguntas intencionais do professor, introduzindo matéria existencial e arquitectónica. Também se estimulam os alunos para que se questionem e questionem da mesma forma a que o professor refere.

- “Imaginem que esta composição é uma planta onde um indivíduo tem esta escala. Que cenário poderia ser? Sentiam-se bem aqui? Poderia ser um espaço de recreio? Poderiam dançar aqui? Ou um espaço intimista, labiríntico que fomentasse medo e desconfiança? E se aumentassem a escala e um indivíduo fosse deste tamanho? E se fosse um objecto? Para quê e como funcionaria? E se fosse uma secção? Imaginem, agora, que esta outra composição representa uma secção e aqui se realizam festas? Quem levariam para vos acompanhar a esta festa? Que cores e texturas parece suscitar este espaço? Ou que cores e texturas poriam, se quisessem que o evento fosse muito formal? Ou informal? E a que soa? E a que cheira? Faz frio? etc.

Inúmeras são as perguntas e cenários possíveis de criar com as composições realizadas pelos alunos, e muitas e interessantes foram as reacções, perguntas e respostas que surgiram desse debate. Foi uma aula estimulante, onde os alunos mostraram indícios de ter entrado e circulado entre o consciente e o inconsciente e terem dado conta disso.

O exercício (2) tem uma base teórica e intencional similar. Foi adaptado de um breve exercício realizado enquanto aluna. Agora mais extenso e desenvolvido com as pautas expressas nesta investigação (ver Figura 5).


Figura 5
Imagens do exercício (2) realizado pela aluna Merce Lucchetti (2011). (a) Bidimensional – exercícios exploratórios (Imagem base: Kazimir Malevich). (b) Do bidimensional ao tridimensional. (c) Do tridimensional ao bidimensional – exercícios exploratórios. (d) Provas de cor.

Os alunos partem de uma imagem bidimensional – um quadro abstracto de um artista moderno, uma tapeçaria africana, um desenho de uma criança, documentos de preferência não figurativos, para, num estado livre e inconsciente, transitarem entre os planos bi e tridimensionais. O facto de serem imagens abstractas condiciona menos a identificação racional de um cenário, ajudando a que a consciência não prevaleça e absorva o lado inconsciente, que é, precisamente, o que se quer trabalhar. A sensação de envolvimento corporal e emocional, bem como o estímulo à simulação e imaginação, não ocorre somente em resposta a imagens figurativas.

Através da imagem fornecida, o aluno abstrai-se, vive a imagem e de forma inconsciente selecciona o que considera dela mais relevante. Com os elementos seleccionados joga “de olhos fechados”, compõe bidimensionalmente, descobre, experimenta, imerso num estado irracional. Decide concluir a composição, quando ela lhe parecer mais próxima e satisfatória.

Com a composição bidimensional concluída, constrói com as mesmas directrizes um objecto tridimensional. Concentra-se em formas, composição, escala, repetição, textura, etc. (também de forma livre, abstracta, inconsciente).

Repete o exercício, embora, desta vez, passando do plano tridimensional ao bidimensional. Trabalha formas, cores, texturas, sombras, e procura vários cenários abstractos. Elege o, ou os com que mais se identifica, sem motivo consciente ou racional. Após este período, à semelhança do exercício anterior segue-se para a fase de debate.

Outro exercício que se manteve no plano bidimensional, mas que permitiu, também, atingir os objectivos estabelecidos (ver exercício (3) – Figura 6).


Figura 6
Imagens do exercício (3) realizado por Merce Lucchetti (2011). (a) Exercícios exploratórios: linha, mancha, textura, luz, sombra, etc. (Imagem base: Tapeçaria: tribu Kuba, Zaire). (b) Provas de cor / experimentação + atribuição de palavras que reflectem o sentimento que a imagem estimula na autora.

Numa perspectiva similar, mas com o intuito de traduzir os sentimentos percebidos de uma visita a um espaço ou zona da cidade, temos os exercícios que se realizam na disciplina Caminar Barcelona, lecionada actualmente por Estanislau Roca, Inés Aquile e Renata Gomes. Uma disciplina que pretende conhecer e analisar a cidade por meio, precisamente, da visão háptica e de todos os sentidos que o corpo visitante pode absorver e transformar (Roca et al ., 2014a, 2014b).

O aluno é estimulado a reflectir corporeamente, pensar nas emoções vividas numa visita a uma zona da cidade, um edifício, um jardim… e traduzi-lo por meio gráfico – a expressão visual como representação da experiência sensorial. Na acção de desenhar, o aluno revive a visita realizada, sente-a e representa-a. Através de um fórum, os alunos têm igualmente a oportunidade de discutir os diferentes sentimentos e interpretações de cada colega bem como a forma como foram expressos graficamente.


Figura 7
Desenhos realizados na disciplina Caminar Barcelona (2013-14 e 2014-15). (a) Bairro Eixample. Realizados por Anna-Mi Karlsud (2015) e Ross Perez (2015), respectivamente. (b) Sarriá-Pl. España. Realizados por Anna-Mi Karlsud (2015) e Anna-Maria Tiedemann (2015), respectivamente. (c) Collserola. Realizados por Liangliang Chen (2015), Liangliang Chen (2015), Claire Peucelle (2013), Anna-Mi Karlsud (2015) e Barbara Mleczek (2013), respectivamente.

Estes documentos gráficos transmitem o que mais ênfase teve para o aluno / autor bem como os sentimentos resultantes dessa visita pela cidade. Estes exercícios estimulam o aluno a questionar e questionar-se, permitem introduzi-lo no campo criativo, na visão háptica, na experiência básica da arquitectura, de viver espaços, objectos e experiências, sentindo-se envolvidos, protegidos, desprotegidos, prevendo movimentos, gestos, sentindo calor, frio, sensasões agradáveis ou desagradáveis, a explorar as experiências memorizadas, racional e corporeamente, pisar fronteiras. Entender que se pode circular, entre diferentes realidades imaginárias, sensitivas, desenhando, explorando, sentindo.

O desenhar e o desenho permitem explorar campos sensitivos distintos da visão, que são suportados pela memória corpórea e consciente do indíviduo. No fundo, permitem trabalhar a visão háptica. A propósito desta ideia, artistas como John Cage, por exemplo, referem que um quadro pode ser uma partitura e uma partitura pode ser um quadro. Portanto, um desenho pode ser a representação ou a sugestão de som, também de temperatura, de movimento, de cheiro, de paladar, etc.

Estes e outros exercícios podem ser responsáveis pela maturação das capacidades criativas do aluno. A criatividade é uma habilidade comum a todo o indivíduo, podendo ser desenvolvida e aprimorada de diferentes formas. Vários pesquisadores, nomeadamente Paul Torrance (Torrance, 1987), mostram que as diferenças de níveis de criatividade estão associadas a distintas condições que tendem a favorecer em maior ou menor extensão o desenvolvimento e expressão dessas mesmas habilidades criativas.

O curso de arquitectura deve, assim, potenciar e orientar, correctamente, o desenvolvimento da criatividade dos aprendizes, sendo o desenho e o desenhar uma imprescindível ferramenta para esse desiderato. Seria importante, também, criarem-se mais grupos de investigação com vista a desenvolver este corpo teórico, a desenvolver estratégias pedagógicas exploratórias e replicá-las, de modo sistemático, no ensino actual.

Conclusão

Percebe-se hoje, através das ciências cognitivas, a importância do conhecimento do processo perceptivo na concepção da obra arquitectónica. Ele permite entender a corporalidade como um aspecto primário da existencialidade e compreensão do mundo. Nesta base teórica, percebe-se a relevância da visão háptica . Esta visão está integrada no processo criativo, que assume peça fundamental na profissão arquitecónica.

O desenho e a expressão gráfica, constituem a representação mais institucionalizada do pensamento arquitectónico. Essa plataforma permite que uma obra seja devidamente expressa e, portanto, também realizada. Desenhar é uma acção corporal, é um acto de procura. Ele permite circular no meio criativo, possibilitando a experimentação e a procura projectual, potenciando, desta forma, a criatividade. É uma ferramenta muito necessária na pedagogia criativa e arquitectónica e no entendimento da visualização háptica.

As questões profundas do ser e do existir devem ser consideradas no labor arquitectónico, já que garantir a qualidade de vida de um indivíduo em sociedade, na sua vertente espacial, é seu exercício responsável. Para tal, é necessário considerar a existência humana espacial, assumindo, igualmente, que o sistema sensório-motor e a percepção incorporada constituem a base da existência e da compreensão humana.

As escolas de arquitectura devem ter presente esta realidade e considerar a disciplina do desenho uma clara ferramenta para potenciar a qualidade do aprendiz no seu labor profissional futuro. Com esta consciência e uma postura assertiva do papel do desenho e do desenhar, contribuirão, até, para minimizar a tendência para reduzir a arquitectura à visualidade, tão presente ainda e tão desajustada com o fundamento arquitectónico. Contribuirão, também, para alicerçar hábitos e estratégias projectuais que melhoram a arquitectura e, consequentemente, a qualidade da vida humana.

Insiste-se, igualmente, na necessidade de regeneração das academias e estratégias pedagógicas que estejam em sintonia com o seu tempo e com a informação proveniente de outras áreas do conhecimento.

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Notas

2 Tradução: O espaço visual. O espaço táctil. O espaço manual.
3 Foi exposto em 1977 no seu artigo “The Theory of Affordances”.

Autor notes

renataespg@gmail.com



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