Resumo: O objetivo deste trabalho é investigar as formas pelas quais o cerco militar foi representado no século XVI como espaço de utopia e de contra-utopia. O ponto comum entre os dois cercos analisados está no fato de que ambos foram movidos contra populações religiosamente minoritárias assinaladas por configurações de teor utópico-apocalíptico. Ambos os relatos nos permitem vislumbrar a cidade europeia do Quinhentos como espaço privilegiado para construções utópicas, ao mesmo tempo em que se destacam as mecânicas de rejeição da utopia e de criminalização das tentativas de transformação dos ordenamentos sociais. A investigação pressupõe uma preocupação com o tema da memória histórica e de como sua construção pode se converter em discursos ideologicamente condicionados.
Palavras-chave: Utopia e contra-utopiaUtopia e contra-utopia,Anabatistas em MünsterAnabatistas em Münster,Huguenotes em SancerreHuguenotes em Sancerre.
Abstract: The aim of this study is to investigate the ways in which military siege was represented in sixteenth century as space of utopia and counter-utopia. The common point between the two sieges analyzed is the fact that both were moved against religiously minority populations with utopian and apocalyptic content settings. Both reports allow us to glimpse the sixteenth-century European city as a privileged space for utopian constructions, while the mechanics of rejection of utopia and criminalization of changes in social ordering are underlined. The research presupposes a preoccupation with the subject of historical memory and how their construction can produce ideologically conditioned speeches.
Keywords: Utopia and Counter-Utopia, Anabaptists in Münster, Huguenots in Sancerre.
Articles
CIDADE SITIADA: O CERCO MILITAR NO SÉCULO XVI COMO ESPAÇO DE UTOPIA E DE CONTRA-UTOPIA - OS EXEMPLOS DE MÜNSTER (1534-1535) E DE SANCERRE (1573)
THE CITY BESIEGED: THE MILITARY SIEGE IN SIXTEENTH-CENTURY AS A PLACE OF UTOPIA AND COUNTER-UTOPIA - THE EXAMPLES OF MÜNSTER (1534-1535) AND SANCERRE (1573)
Recepção: 24 Junho 2016
Aprovação: 25 Novembro 2016
Este artigo pretende refletir sobre os espaços urbanos como lugares preferenciais, nos inícios da modernidade, para a produção e difusão de ideários utópicos, e sobre o cerco militar como ocasião especial não apenas para a fermentação desses ideários, mas também para a elaboração da propaganda contra-utópica. Não se desconhece o fato de que o cerco militar ganhou no século XVI uma importância especial por refletir a necessidade, própria dos processos de centralização política, de sufocar as possibilidades de resistência baseadas nas formas municipais de governo. Para tanto, era imprescindível homogeneizar vontades e estruturas de pensamento debaixo da soberania principesca.1 Esta é, grosso modo, a moldura que circunda ambas as narrativas de que nos ocuparemos. Nosso exame incidirá sobre dois relatos de sítios militares conduzidos no século XVI: o cerco mantido por tropas católicas e luteranas, entre 28 de fevereiro de 1534 e 25 de junho de 1535, contra a cidade de Münster, agitada pela pregação alcunhada “anabatista” e pela presença de muitos refugiados que professavam essa fé, e narrado por Hermann von Kerssenbrock em sua obra Anabaptistici furoris monasterium inclitam Westphaliae metropolim evertentis historica narratio2; e o cerco a que a cidade de Sancerre esteve sujeita por sete meses e meio, entre 9 de janeiro e 19 de agosto de 1573, narrado por Jean de Léry em sua Histoire memorable de la ville de Sancerre.3
Tornadas em centros nevrálgicos da vida social nos inícios da época moderna, as cidades não juntavam apenas pessoas, mas igualmente seus medos e esperanças. Já eram, então, locais sumamente complexos: ali era possível viver e, não raramente, mudar de cidade podia significar o início de uma nova etapa na vida, com a tentativa de apagamento dos vestígios da vida anterior; mas ali também, sob determinadas circunstâncias, se morria mais rapidamente. O medo dos cercos e a desconfiança em relação aos recém-chegados, que podiam ser batedores de uma invasão futura ou portadores do juízo de Deus trazendo, a reboque de sua má vida ou de tendências heréticas, o flagelo da peste ou da fome, inspiravam complexos mecanismos de controle do ingresso.4 Ao mesmo tempo, o engenho humano trabalhava no sentido de tornar a vida citadina mais confortável; na Itália, mais do que em qualquer outro lugar da Europa, as cidades eram o próprio coração da existência social, pensada significativamente como existência cívica, e o poder se ocupava em patrocinar nelas melhorias e embelezamentos.5
Não é fortuito, portanto, que a cidade tenha ocupado o centro das diversas formulações utópicas elaboradas e divulgadas durante a primeira modernidade. Isso se liga, igualmente, a uma permanência de longa duração: o imaginário cristão sempre fez da cidade um símbolo fortíssimo e o próprio porvir escatológico foi pensado em termos de uma cidade, a Nova Jerusalém, “a cidade que tem fundamentos, cujo arquiteto e construtor é o próprio Deus”. Curioso resgate de um símbolo cuja aparição, no mito bíblico, é singularmente negativa: a primeira cidade é atribuída ao esforço edificador de Caim, assassino do próprio irmão e renegado da face de Deus. Mas talvez esse percurso complexo faça sentido, de fato, à luz de uma perspectiva binária da vida que, ao fracasso humano, opõe o triunfo final de Deus.6 Por mais de uma razão, portanto, o convívio utópico acabou imaginado, na primeira modernidade, em termos preponderantemente urbanos.
A pesquisa especializada tem feito, em geral, um uso bastante restrito do termo “utopia”, no mais das vezes como um gênero literário que teria recebido suas principais características do texto que lhe deu nome, a Utopia de Thomas Morus. A própria redução a um gênero literário, embora compreensível quando alguns autores se propõem o estudo de determinados textos, limita demais a utilização do conceito; e isso se agrava quando a análise desce a detalhes e argumenta que o enquadramento nessa categoria depende não apenas da existência de um texto, excluindo-se assim formulações não literatizadas, mas também de características mais específicas (que, aliás, variam amplamente de intérprete para intérprete): a necessidade de uma moldura ficcional, a descrição obrigatória de sociedades estáticas, visto que ideais, e a ausência de indicação do caminho pelo qual se poderia chegar da realidade criticada ao modelo defendido.7
Nossa intenção não é polemizar com esse largo campo de estudos cujas investigações têm produzido excelentes resultados. Mas cremos que todas essas tentativas de delimitação conceitual, ao pretenderem extrair de determinados textos as principais caracterizações para o fenômeno, acabam dependentes de uma leitura da “utopia” que deve muito aos hábitos mentais da racionalidade moderna. Assim, o projeto utópico é entendido como aquele que parte do homem e que faz do homem o “mestre de seu destino”; é dotado de credibilidade e verossimilhança, enquanto as concepções do “mundo invertido” possuiriam “inverossimilhança declarada”; não teria qualquer relação com as aspirações de restauração religiosa de um passado mítico, na medida em que tais aspirações se relacionariam “a um mundo dado ao homem e não edificado por ele”.8 Nessa mesma chave, J. C. Davis rejeita estender a qualificação de “utopia” aos sonhos milenaristas que, embora localizando na terra a solução coletiva dos problemas humanos, fazem com que essa solução dependa não fundamentalmente do esforço do homem, mas da intervenção de um deus ex machina.9 Para esse autor seria igualmente inadequada a identificação da Cocanha como utopia, visto que nela a análise da sociedade coetânea, a partir da qual se objetivaria a construção de uma alternativa, é substituída pelas fantasias de plena satisfação.10 Ao privilegiarem uma noção de utopia calcada em determinados modelos literários, essas análises perdem de vista a centralidade que o dado religioso possuía no conjunto das sociedades europeias da primeira modernidade. Isso não apenas minimiza a importância de outras construções utópicas como pode, inadvertidamente, conduzir a interpretações equivocadas dos próprios textos que são tidos na conta de “fundadores” do pensamento utópico.
Efetivamente, entre os defensores de um conceito estrito de utopia calcado no trabalho de Morus existe a tendência a se evitar a classificação de episódios como o de Münster, bem como construções imaginárias como a da Cocanha, na categoria de “utópicos”, em razão de um apego conceitual ao esforço edificador humano como distintivo das utopias.11 Essa prática embute uma racionalização ilustrada que dificilmente faria justiça à sensibilidade religiosa da sociedade europeia, não apenas no medievo, mas também durante boa parte da modernidade. A leitura medieval do mito edênico, com sua convicção de que a vida monástica representava uma recuperação do Jardim perdido, sublinha-nos a necessidade de relativizar essa ênfase na utopia como algo feito apenas pelo homem. A expectativa por uma consumação escatológica na eternidade não eliminava a possibilidade da utopia: nesse sentido, a vida monástica representava, naquele contexto, um exercício fundamentalmente utópico. Não era por acaso que o locus mais interior do mosteiro medieval, o claustro, era ocupado por um jardim com uma fonte, numa referência explícita ao Éden.12 Assim como o ingresso no Éden definitivo, a eternidade, dependia de certas posturas adotadas pelo homem, o ingresso nessa antecipação do Éden que era a vida monástica dependia de atitudes e ações muito claras por parte do indivíduo (recusa ao saeculum, abnegação, penitência). Ainda que em termos distintos daqueles que predominarão na modernidade mais tardia, fica evidente que no âmbito do medievo e da primeira modernidade esses anseios não excluíam, de uma forma ou de outra, a participação e a agência humanas. O espaço da utopia, portanto, pode ser determinado: o claustro, Münster, Sancerre; seu tempo, igualmente, pode ser o “agora”. Aqui aparecem claramente os limites que uma tipificação exclusivamente literária da “utopia”, a partir de certas formas de leitura do texto moreano, acabou impondo ao uso mais amplo do conceito.
Cremos que, quando devidamente qualificado, o termo “utopia” pode ser descolado do sentido mais específico que os estudos literários têm atribuído a ele e pode, assim, servir para caracterizar movimentos e ideários que possuíam com as expressões religiosas um contato mais íntimo do que em geral se tem considerado apropriado às utopias. Para as finalidades deste artigo, entenderemos “utopia”, de forma ampla, como todo ideário que embute, de maneira mais ou menos clara, um projeto de reformulação das estruturas sociais e das condições de vida no presente. O projeto utópico pode variar do mais visionário ao mais estritamente metódico; pode comportar aspirações quase oníricas, como as da Cocanha, bem como aquelas vazadas numa linguagem que aparenta grande factibilidade. Pode encontrar formulação escrita numa moldura ficcional ou em textos de caráter mais reflexivo e abstrato; pode se apresentar fragmentado em séries de panfletos ou veiculado através de pregações; pode, finalmente, sequer ter sido expresso num texto específico, mas encontrar-se implícito nas entrelinhas de determinados sistemas de pensamento, ou mesmo ter sido dado a conhecer através de seus detratores, numa dinâmica que obriga o historiador a invocar todas as suas capacidades para a leitura “a contrapelo”. Chamaremos de “utopia”, portanto, mais as aspirações fundamentais e as linhas gerais dessas idealizações do que um determinado grupo de características que poderia facilmente ser isolado, mas ao custo de descaracterização arbitrária.
A contra-utopia, por sua vez, pode ser compreendida como o reflexo invertido da utopia, elaborado e divulgado por seus inimigos. Tem a finalidade de evidenciar como mal aquilo que a utopia considera como bem. O exercício utópico possui uma dimensão subversiva, em maior ou menor grau: trata-se, sempre, de questionar elementos presentes no status quo, ainda que esse questionamento não subentenda, para o período que estamos estudando, qualquer referência à ideia de “progresso”. Bem ao contrário, será sempre a tópica do retorno, da recuperação, e não a do “progresso”, que governará a expressão desses ideários na primeira modernidade. Aqui, de fato, destaca-se um elemento útil para compreendermos a distância entre o fenômeno utópico e outra construção mental importante no medievo e na primeira modernidade, aquela do “mundo invertido”. Em suas manifestações mais explícitas, como as festas dos loucos e as inversões carnavalescas, o fenômeno do “mundo invertido” não deixava de representar uma forma de legitimação da ordem vigente no restante do tempo.13 Diferentemente desses períodos de exceção que, de uma forma ou de outra, serviam à ordem, a utopia projeta um mundo às avessas permanente, não mais sujeito a esse caráter temporário legitimador do status quo.14 A atividade contra-utópica prestava-se, como é óbvio, a desfazer tais formulações, indicando seu caráter perverso, sedicioso, herético.
Um esclarecimento importante diz respeito ao termo “anabatista”, empregado nas fontes do período, mas que é um termo elusivo, na medida em que homogeneíza e recobre uma realidade plural e variegada: aquela das simpatias religiosas que, fermentando desde o século XIV em várias regiões do Império, mas com especial intensidade nos Países Baixos e caracterizadas pela insatisfação com as estruturas religiosas vigentes e pelo anseio por uma religiosidade menos dependente de cânones externos, se identificaram a partir da década de 1520 com as ênfases dos grupos “sacramentários” (assim denominados por negarem qualquer realidade à presença de Cristo na Eucaristia) e levaram tais convicções a extremos. O termo “anabatista”, que significa literalmente “rebatizador” e que foi fabricado pelos inimigos desses movimentos, é insatisfatório, mas soluções posteriores, como o uso da designação “reforma radical”, o são em igual medida. Esta última alternativa, endossada por George Williams em sua obra magistral e que continua uma referência incontornável, possui o inconveniente de expressar um juízo de valor: “radical” pode significar também aquilo que se situa “junto à raiz” e, nesse sentido, o termo corroboraria a tese desses movimentos de que sua forma de vivência do cristianismo seria “mais pura”, visto que mais originária. Não foi por acaso que toda uma historiografia sobre os anabatistas, de viés bastante confessional, apropriou-se do termo.15 Manteremos, portanto, o uso tradicional da expressão “anabatista” por conta, inclusive, do peso de sua atestação nas fontes, mas conscientes de todas as suas limitações e das distorções que provoca.
Para os anabatistas que, em inícios de 1534, assumiram o controle da importante cidade de Münster (a maior da Vestfália e sede de seu bispado-principesco),16 era ali, e não em Estrasburgo, como anunciara previamente seu profeta Melchior Hofmann, que os 144 mil eleitos mencionados pelo Apocalipse seriam reunidos e, após sobreviverem a um cerco terrível, veriam o reino sacerdotal dos santos se congregar sob pastores escolhidos e justos. Esse era o teor da profecia de Hofmann, divulgada em 1526 e que deveria se cumprir, segundo ele, dali a sete anos, com a chegada do fim do mundo após o verão de 1533. Com a única modificação do teatro dos acontecimentos, de Estrasburgo para Münster, todo o restante da profecia foi mantido na expectativa ardorosa desses fiéis.17
As dimensões do sonho desses visionários (seus adversários diriam “loucura”, furor) eram claramente utópicas. Mesmo as pretensões iniciais desses grupos anabatistas, antes das polarizações apocalípticas mais decisivas, já indicavam isso. O questionamento das exterioridades religiosas com base na liberdade cristã, por exemplo, excedia em muito o que seria tolerado pelo status quo religioso, mesmo nos territórios luteranos. Essa interiorização total da verdade escapava à lógica religiosa da época, oferecendo riscos que não deixavam de ser ameaçadores ao próprio ordenamento social, razão pela qual cedo foi combatida não apenas pelos católicos, mas inclusive naquelas regiões do Império germânico onde a reforma luterana se instalou sob os auspícios dos poderes e das magistraturas locais. O anseio religioso por liberdade e interioridade, ao se expressar, não apenas delimitava uma forma de vivência cristã que se considerava melhor e mais pura, como criticava radicalmente a realidade existente.18
O componente apocalíptico pode ser entendido como o cimento que dava liga ao projeto utópico dos anabatistas radicados em Münster. Como documentam não apenas os escritos de seus adversários, mas também os textos sobreviventes de Hofmann e de outros anabatistas ligados ao episódio de Münster, para esses visionários a mediação humana era fundamental para provocar os eventos apocalípticos e instalá-los. Assim, não há razão para excluirmos o elemento apocalíptico desse cenário utópico. Se procurássemos por definições, poderíamos dizer que um projeto utópico não precisa ser necessariamente apocalíptico, podendo mesmo ser, sob circunstâncias outras que não as que nos ocupam aqui, até mesmo totalmente arreligioso. De igual modo, o anseio apocalíptico pode não ser utópico, na medida em que tais expectativas estejam colocadas totalmente numa ruptura da história que marcaria a chegada do eschaton, a consumação escatológica. Mas nada, fundamentalmente, impede que um projeto utópico seja atravessado por expectativas apocalípticas, numa conjunção que as condições específicas da primeira modernidade, com sua concentração exacerbada na esfera religiosa, tornavam quase obrigatória. Tal conjunção se manifesta sempre que o anseio apocalíptico aponta para uma concreção específica na história, ou seja, sempre que o próprio desenlace escatológico é imaginado no interior da história e não num “além” eterno. No caso do cerco sofrido pelos rebeldes de Münster, era esse elemento apocalíptico que comunicava, a esses fiéis, a certeza de que os tempos estavam cumpridos e de que, finalmente, as profecias se realizariam; era ele que permitia enfrentar a própria realidade do cerco, na medida em que o sofrimento dos justos, seguido de sua total libertação e glorificação, era lugar-comum em tais expectativas. Em suma, era esse componente a garantia de que todos os demais itens do ideário utópico encontrariam sua plena realização.19
Entre os principais sinais dessa utopia temos, em primeiro lugar, a comunidade de bens. Aqui, aliás, estamos diante do que pode ser considerado o signo utópico por excelência da experiência dos visionários de Münster e uma indicação clara de seu cariz apocalíptico: seu afã de reviver a igreja dos Atos dos Apóstolos, em especial através da releitura dada a ela pela quarta epístola pseudo-clementina.20 Em Münster, a prática da partilha de bens não respondeu apenas ao difícil momento vivido pela cidade, mas encaixava-se perfeitamente no ideário de diversos desses grupos apocalípticos, cultores da ideia de um retorno ao que teria sido a vivência originária da fé cristã.
A poligamia foi outro elemento de caráter utópico presente no projeto münsterita. Não fez parte do projeto desde o início, sendo implantada a partir de maio de 1534, quando Jan Beukelzs, conhecido como Jan de Leiden, assumiu o controle da cidade em lugar de Jan Mathijs, discípulo de Melchior Hofmann morto em combate; mas não se constituiu em mera esquisitice. Ao contrário, ligava-se a representações bastante antigas, como as tradições de suprimento inesgotável das necessidades presentes na utopia da Cocanha. Ali, a sexualidade aparecia sempre nimbada por grande liberdade, o que parece indicar um anseio recorrente por realização sexual e superação da moral vigente.21
No caso dos anabatistas de Münster, a poligamia ganhava respaldo a partir de outra característica desse projeto visionário: o desejo de recuperar o locus vivencial do Antigo Testamento como ideal para a manifestação da nova sociedade divina. Esse ideal de recuperação do antigo Israel na formação de uma nova “república cristã” pode ser observado já nos inícios de 1534, quando os líderes anabatistas pressionaram os “sem Deus” a aceitar o sinal da aliança (o batismo de adultos) ou então a deixar a cidade. De acordo com Kerssenbrock, Mathijs teria dito nessa ocasião que era desejo de Deus que a “Nova Jerusalém” e seu santuário fossem “purificados da impureza” e que, “matando-se papistas, luteranos, sacramentários e todos que discordavam de sua doutrina”, a cidade fosse estabelecida “um único corpo e república”.22 A medida foi, posteriormente, convertida em permissão para que os discordantes deixassem a cidade (e foi nessa ocasião que o próprio Kerssenbrock, ainda adolescente, viu-se forçado a partir). Mas a perspectiva revela a permanência de um quadro onde o corpo social era representado, em termos religiosos, como realidade homogênea; algo não muito distante das antigas formas medievais de representação do corpus christianum, exceto pelo fato de que, ali, desaparecia completamente a antiga e consagrada distinção entre poder civil e autoridade religiosa.
Semelhante ideário mobilizou boa parte da população de Münster numa dinâmica de grande teatralidade. Esse aspecto foi muito observado pelos adversários dos anabatistas; Kerssenbrock fala diversas vezes de Jan Beukelzs como um “rei teatral” e o faz de forma evidentemente pejorativa;23 mas há aqui uma dimensão muito mais séria a ser considerada. Estudos recentes têm frisado o caráter retórico presente no testemunho anabatista e, em especial, na maneira como tais grupos suportavam o martírio e não raramente o procuravam. O representante da verdade, advogado da causa veritatis, via a si próprio no desempenho de um papel importantíssimo: o testemunho a ser dado e do qual ele devia se desincumbir.24 Para tanto, serviam os aparatos cênicos que deveriam reforçar, nos que assistiam, a compreensão de que estavam diante da manifestação da verdade. Em última análise, o próprio martírio se convertia em encenação cujo objetivo era oferecer a própria vida como a prova mais contundente possível da verdade do que se declarava. Uma atitude que se queria simples e transparente quando, de fato, era inteiramente retórica.25
É preciso lembrar que, nos inícios da fermentação religiosa que deu origem a esses anabatistas e a outros diversos movimentos (entre os quais, vários que nunca romperam com a Igreja católica), estavam as “câmaras de retórica” (rederijkerskamers) características dos Países Baixos: associações organizadas por vizinhos para as celebrações dos santos de uma localidade ou de outras datas do calendário litúrgico, em especial a festa de Corpus Christi, onde se escreviam e montavam peças teatrais e se declamavam produções literárias (daí o designativo “retórica”). Muitos sacramentários e anabatistas foram, primeiramente, rederijkers ou membros dessas câmaras, e o fato de Jan Beukelzs, antes de vir a Münster, ter sido membro de câmara de retórica e ator (além de alfaiate) torna essa ligação ainda mais nítida.26
Não há dúvida de que essa atitude retórico-teatral esteve presente entre os visionários de Münster. Beukelzs se fez coroar como “rei de justiça” em setembro de 1534 e procurou adotar um esplendor de corte digno do “reinado de Davi” que ele pretendia encarnar e que seria prévio ao reinado “salomônico” do Messias em seu retorno. Kerssenbrock fez pouco da teatralidade explícita da corte de Beukelzs, como forma de frisar sua ilegitimidade; mas, para os próprios anabatistas, obviamente a perspectiva era outra. Em outubro de 1534, Beukelzs ordenou a celebração de um grande festim que, no imaginário popular, assumiu as feições das Bodas do Cordeiro. Tratava-se, para os anabatistas, de mais uma instância onde a representação, longe de parodiar de forma ilegítima uma realidade (como pensava Kerssenbrock), se constituía em veículo para sua manifestação concreta. Em suma, a presença do elemento teatral não significa que os atores desse drama não estivessem convictos do que criam e do que faziam. Tanto “retórico” quanto “teatral”, para os anabatistas, não significavam falsidade ou representação no sentido dado a este último termo pelo senso comum. Tratava-se, sim, de “representação”, mas no sentido clássico do termo, no qual seus atores tornavam presente uma realidade ausente; ao assumirem a execução dos propósitos divinos, eles entendiam que se tornavam os veículos através dos quais o reino escatológico finalmente se concretizava.27
Cabe lembrar, de resto, que não apenas para os anabatistas de Münster, mas para aquela sociedade como um todo, a representação era uma dimensão importantíssima da existência. A necessidade de tornar público cada ato e o recurso às gestualidades rituais eram generalizados. Basta pensar na execução dos três líderes da revolta de Münster que sobreviveram à retomada da cidade em 25 de junho de 1535: Jan Beukelzs, Bernardo Knipperdoling e Bernardo Krechting foram torturados em praça pública com tenazes em brasa e, após executados (22 de janeiro de 1536), foram colocados em gaiolas de ferro que permaneceram suspensas na torre da igreja de São Lamberto; ali os corpos apodreceram e, mesmo depois de terem desaparecido os ossos, as gaiolas continuaram penduradas como forma de lembrança e aviso.28 O suplício público era prática corrente e incluía esse âmbito de representação catártica: os condenados eram supliciados concretamente, mas a ocasião servia para a purificação de todo o corpo social. No caso de Münster a teatralidade alcançou proporções inauditas, com o recurso tradicional à exposição dos corpos dos condenados empregado de forma totalmente nova: os cadáveres não foram removidos após algum tempo; em 1888, as gaiolas, já deterioradas pela exposição às intempéries, mas ainda penduradas na torre, foram substituídas por cópias exatas que ainda podem ser vistas no Stadt-Museum de Münster. Outras réplicas, feitas em 1898, ainda podem ser vistas na torre da igreja de São Lamberto.29
Diante dos arroubos visionários presentes no episódio de Münster, haverá quem duvide de que a designação “utopia” possa ser aplicada ao episódio do cerco sofrido pela cidade de Sancerre entre janeiro e agosto de 1573, descrito no texto sóbrio de Jean de Léry. Mas, como veremos, a aparente e por vezes trágica sobriedade do texto de Léry oculta de nós aspectos importantes e, por isso, merece ser sondada criticamente.
O texto, publicado em Genebra no ano de 1574 e que experimentou ampla divulgação, traduzido para o alemão e para o neerlandês em 1575 e para o latim em 1576, começa louvando a firmeza dos habitantes de Sancerre na fé huguenote; em consequência disso, a cidade teria se tornado alvo do ódio dos católicos quando, entre agosto e outubro de 1572, as tensões religiosas explodiram nas turbulências da “saison de la Saint-Barthélemy”.30 Os massacres provocaram a ida de muitos refugiados calvinistas para Sancerre, entre os quais o próprio Léry, então pastor da comunidade huguenote em La Charité-sur-Loire. A cidade recebeu vários ultimatos do rei ordenando o imediato abandono da fé calvinista e o estabelecimento, nos limites urbanos, de uma guarnição militar comandada por um lugar-tenente do rei; note-se que esta última exigência contrariava os privilégios forais adquiridos por Sancerre. A recusa terminante da cidade de atender às ordens reais causou o início do cerco propriamente dito, a 9 de janeiro de 1573. Em abril a fome já grassava na cidade totalmente isolada; ponto culminante do relato de Léry, essa fome é descrita em detalhes, com ênfase para o caso de canibalismo ali perpetrado e que foi julgado pelos magistrados locais.31
O cerco terminou, finalmente, em agosto de 1573, com a capitulação de Sancerre após as negociações, nas quais Léry desempenhou papel importante. Ele teve, aliás, sua saída da cidade garantida pelo representante do rei, após a rendição; todavia, os termos do acordo não foram totalmente honrados e vários dos líderes da cidade durante o cerco foram posteriormente executados. A fé huguenote restou proibida e o clero católico foi restabelecido.32
O que nos permite afirmar que, nesse ambiente, desenvolveu-se um projeto utópico? É preciso considerar, em primeiro lugar, que o calvinismo a que se atinham Léry e os reformados de Sancerre possuía uma dinâmica interna que merece ser caracterizada como utópico-apocalíptica e cujas diferenças de tom e de configuração em relação aos apocalípticos de Münster não pode ocultar as semelhanças de fundo. Mais do que qualquer outro projeto de reforma da igreja no século xvi, o calvinismo visou uma reforma da sociedade. “Trazer o mundo à ordem” era o que Calvino concebia como sendo a tarefa dos ministérios ordenados na Igreja.33 Se identificarmos “utópico” com “ingênuo e irrealizável”, como faz frequentemente o senso comum, certamente desistiremos de encontrar qualquer sinal de utopia no ideário calvinista, que considerava naturais as distinções sociais, não abominava as riquezas (apesar de advertir muitas vezes sobre seus perigos), sabia ser inevitável a passagem para a sociedade urbana e a economia mercantil e manifestava tamanho senso prático ao ponto de defender o uso de enganos e estratagemas nas guerras.34 Nada disso elimina de seu sistema, todavia, a presença de fermentos utópicos, evidentes na sua intenção de promover, na sociedade, um reordenamento que obedecia a diretrizes escatológico-apocalípticas: é como “nova Jerusalém”, como modelo de convívio humano para o resto do mundo, que a cidade reformada deve se colocar.
Para Calvino, os âmbitos da igreja e da magistratura eram distintos35; reis piedosos deveriam deixar à igreja o controle dos assuntos eclesiásticos. Os magistrados, por sua vez, estavam investidos de uma autoridade derivada da própria realeza de Cristo. Por isso, deveriam promover a glória de Deus através da policia, a manutenção de uma ordem prática na sociedade. Assim, a um objetivo final de caráter teológico (a glória de Deus, servida pela constituição de corretas relações entre os homens) subordinavam-se todas as instâncias do corpo social; embora distinta da magistratura, a igreja se constituía na sua “consciência”, por assim dizer, e assumia o encargo de encaminhar o projeto teológico-político de construção da sociedade.
O projeto calvinista parece dotado de maior respeito pelas dinâmicas jurídico-políticas próprias da cristandade latina, em especial a separação entre as esferas civil e religiosa,36 sobretudo quando comparado às reformas conduzidas em Zurique e Estrasburgo. Nessas cidades, como Prodi observa, nota-se “uma ligação maior e, às vezes, uma fusão entre a magistratura civil e a religiosa: nas novas Jerusaléns citadinas, o sistema de representação impede já desde a base uma separação entre o corpo da Igreja e o corpo da sociedade civil”.37 Mas a solução calvinista ocultava um golpe fatal no dualismo de esferas, na medida em que a Igreja, como consciência da magistratura, efetivamente ditava “os princípios da convivência social”.38 Aquele “caminho de uma colaboração orgânica, no plano de igualdade, entre a estrutura eclesiástica e civil”, que para Prodi teria sido adotado em Genebra e que, conquanto “mais difícil” que os de Zurique e Estrasburgo, teria sido o de “mais sucesso”,39 parece render-se de fato à preponderância do elemento religioso. Se, como pretende Prodi, o “mito de Florença como nova Jerusalém”40 teria exercido uma influência importante sobre essas reformas citadinas, ao fornecer a elas um modelo de religião cívica, parece claro que é a figura de Calvino, com sua defesa da tutela da magistratura pela Igreja, e não a de Zwinglio, com sua aceitação da submissão eclesiástica às autoridades citadinas, aquela que mais se assemelha ao perfil de Savonarola.
É essa perspectiva, desenvolvida numa direção ainda mais nitidamente utópica, que encontraremos em Léry. As disposições de autogestão dos cidadãos de Sancerre ficam claras em diversas passagens do texto (o que, mais uma vez, estava de acordo com as práticas forais e as estruturas polissinodais), mas aparecem especialmente no capítulo vi;41 vemos aqui a preocupação com a ordem, característica da perspectiva calvinista, conjugada à busca da correta policia que deveria espelhar a santidade da fé. É sintomática, nesse sentido, a preocupação com a eliminação dos vícios e de práticas consideradas nocivas, como o juramento indiscriminado e as blasfêmias.42 Também é digno de nota que, a darmos crédito ao testemunho de Léry, mesmo em meio às dificuldades do cerco a cidade tivesse mantido um nível elevado de organização. Promulgavam-se medidas sempre que necessário e os magistrados não se furtavam ao exercício de seus deveres: os pais acusados de devorar o cadáver da filha, exemplo supremo do desespero do cerco e que Léry narra com tenso dramatismo, foram executados apenas após o julgamento. Ao mesmo tempo, a dimensão religiosa também se encontrava ordenada, independentemente das magistraturas seculares, e ocupada em julgar os assuntos ligados à igreja: era esse o papel do consistório. Léry nos dá um exemplo dessa sanha controladora ao mencionar a relação traçada pelo consistório de Sancerre entre o “comportamento desordenado” do casal acusado de canibalismo e o próprio ato que teriam praticado: oriundo de outra cidade, o casal não seria legitimamente casado; na ausência de comprovação da morte do ex-marido da mulher, a igreja reformada recusara-se a legalizar a união e o casal teria ido se casar “à la papauté”, demonstrando não apenas inconstância moral mas, também, instabilidade religiosa. O fato de, pouco antes da ocorrência do episódio de canibalismo, esse casal ter recebido ração extra de alimento, indicaria também o desordenamento de suas paixões. O episódio, emblematicamente, nos mostra a superposição entre as esferas religiosa e civil: são os magistrados da cidade, e não o consistório, que condenam os acusados de canibalismo à morte; mas o consistório acompanha o processo, julga a conduta dos acusados, fornece a explicação religiosa para a transgressão e, por assim dizer, “guia a mão” do carrasco civil. Ainda que, evidentemente, a crônica do cerco não possa ser tomada como reflexo cristalino da situação que se passava em Sancerre, ela nos fornece exemplo marcante de como, de acordo com as concepções de Léry, as relações entre magistratura, Igreja e povo deveriam funcionar.43
O caráter utópico é reforçado, no caso do relato de Léry, pela identificação que ele enxerga entre a igreja reformada e o antigo povo de Israel. Para Léry (e ele dava expressão a uma convicção tipicamente calvinista, como se percebe pela recorrência desse topos noutros locais), a igreja encontrava-se na continuidade em relação ao antigo Israel e era alvo da atenção especial de Deus, por conta de sua vocação a agir como testemunha das obras divinas em toda a terra; daí porque ela seria objeto de livramentos operados pela providência.44 Ainda que numa forma algo transfigurada, reencontramos no calvinismo a mesma obsessão pelo Antigo Testamento que observamos entre os anabatistas de Münster; efetivamente, teologia, imaginário religioso, formas de devoção e projeto teológico-político dos calvinistas foram muito marcados pela maneira como eles compreendiam e procuravam recuperar o locus vivencial dos antigos israelitas.45
Em Léry, todavia, essa dinâmica utópica, que reencontraremos alhures em diversas formulações ligadas de uma forma ou de outra ao calvinismo, aparece numa luz muito particular. As próprias condições do cerco levaram esse autor, como veremos, a uma reflexão sobre o fracasso do projeto no qual estava envolvido. Nutridas nos espaços urbanos, tanto em Münster quanto em Sancerre, as utopias são postas à prova pela dura realidade do cerco.
Hermann von Kerssenbrock compôs seu texto, provavelmente, a partir de 1564, quando já era reitor da escola catedralícia de Münster desde 1550. Tendo retornado a essa cidade logo após sua retomada, ele sempre foi um homem profundamente comprometido com a Igreja Católica e foi a partir dessa perspectiva que escreveu sua obra.
É preciso ter em mente não apenas esse fato, mas também seus desdobramentos, para que possamos entender o papel que a Narratio de Kerssenbrock desempenhou em termos de contrapropaganda; ou, ao menos, o papel que seu autor teria desejado que ela desempenhasse. O livro obedece a duas diretrizes básicas: a primeira é demonstrar como o escândalo de Münster não foi causado apenas pelo delírio anabatista; esse delírio é que teria sido provocado pela simpatia demonstrada pelo Conselho da cidade em relação ao luteranismo durante a década de 1520. Quando Kerssenbrock iniciou a escrita de sua obra, o luteranismo voltara a contar com muitos simpatizantes na cidade, tal como ocorrera antes da rebelião; daí porque o autor insiste em afirmar que foi dos “distúrbios que precederam o rebatismo” (ou seja, das tentativas feitas ao longo da década de 1520 em prol de uma reforma de cunho luterano) que a subversão de Münster emergiu “como que de um cavalo de Troia”.46
A segunda diretriz relaciona-se com as intensas disputas pelo poder travadas entre, de um lado, o príncipe-bispo apoiado pelo capítulo catedralício e, de outro, as instâncias municipais de poder, representadas pelo Conselho sob o controle das guildas e dos grêmios comerciais existentes na cidade. Que o desejo do príncipe-bispo era fortalecer seu poder em detrimento desses outros foros fica claro pelo que se seguiu à retomada da cidade: em 1536, uma guarnição foi estabelecida em seu interior e várias medidas foram adotadas para prevenir qualquer futura sedição e desobediência.47 Tais medidas cerceavam liberdades e privilégios tradicionais da cidade, dando ocasião a disputas entre o Conselho e o príncipe que só foram resolvidas, com mediação imperial, em 1553.48
De um lado, portanto, a propaganda contra-utópica de Kerssenbrock estava comprometida com a religião católica em luta não apenas com formas religiosas “extremas”, como os movimentos anabatistas, mas com a “ameaça luterana” de modo bem específico. Isso situa o esforço de Kerssenbrock no ambiente da confessionalização católica pós-Concílio de Trento. De outro lado, Kerssenbrock posicionava-se a favor de dinâmicas políticas novas, como é o caso das tentativas principescas de centralizar o poder, contra as formas tradicionais, corporativas, de gestão política (representadas pelo Conselho citadino e pelas guildas e grêmios). Foram esses os fatores que compuseram o quadro social, complexo, no qual se desenvolveu a leitura que Kerssenbrock fez da rebelião em Münster, mais de trinta anos depois dos eventos.
O esforço contra-utópico de Kerssenbrock se articula no texto, primeiramente, pela tentativa de desqualificar o que se passava em Münster a partir do recurso aos topoi do descontrole, da devassidão e do orgulho (a desmedida, hybris). São emblemáticas as descrições que Kerssenbrock faz do descontrole das mulheres anabatistas, que corriam pelas ruas com os cabelos soltos e em desalinho, os corpetes dos vestidos abertos, as bocas espumando, presas de reações emocionais contraditórias que as levavam a rir, chorar, gritar, revolver-se no solo e aplaudir.49 É significativo que Kerssenbrock retrate especificamente o comportamento das mulheres: para os parâmetros daquela sociedade, seriam elas, justamente, as que deveriam ser protegidas pelos homens, dada sua condição de fragilidade; assim, a loucura dos pregadores anabatistas era responsável pela loucura, ainda mais desenfreada, de suas discípulas.
Ao procurar descrever a devassidão que atribui aos anabatistas, Kerssenbrock superou a si mesmo na reprodução de estereótipos: alcunhada de “batismo de fogo”, a “orgia”, conduzida numa casa particular para onde eram levados os recém-batizados, acontecia à noite, com as luzes apagadas e após um discurso destinado a excitar as paixões dos ouvintes.50 O topos da licenciosidade do herege, lembremos, é tão antigo quanto o cristianismo; de fato, foi usado pelos romanos contra os cristãos e, depois, empregado por estes contra praticamente todos os movimentos heterodoxos posteriores.51
A desmedida aparece sob formas mais sutis que o descontrole feminino e a devassidão: Kerssenbrock se lembrou de afirmar, com relação a Jan Beukelzs, já então autodenominado “rei de justiça”, que ele, “esquecendo completamente sua origem e primitivo modo de vida, diariamente procurava novas formas de ressaltar sua dignidade real, sendo cruel e selvagem para com seus súditos”.52 Impossível uma referência mais cristalina ao topos clássico da hybris: o abandono de sua própria posição no organismo social, por conta da loucura suscitada pelo orgulho. A falsidade das alegações de Beukelsz restaria sublinhada pela referência à maneira pela qual ele tratava os súditos, contrária ao que tradicionalmente se esperava do príncipe. Ao descrever a morte de Jan Mathijs num confronto com os sitiadores, Kerssenbrock associa-a também ao orgulho: convencido de que Deus lhe daria vitória, Mathijs aventurou-se numa incursão temerária e terminou varado pela lança de um soldado.53
Essas alegações se prestam a colocar a utopia sub judice; a partir delas, Kerssenbrock desenvolve seu argumento acerca dos perigos de uma vitória dos anabatistas. Descrevendo os esforços do príncipe-bispo Francisco de Waldeck em busca de apoio militar dos demais príncipes do Império contra os anabatistas, Kerssenbrock mostra como esse perigo foi pintado pelos representantes do bispo com cores fortes diante da Dieta Imperial reunida em Koblenz (dezembro de 1534): os anabatistas pretendiam subverter não apenas a diocese de Münster, mas toda a Germânia e, se fossem deixados livres, submeteriam a si, pelo fogo e pela espada, todos os príncipes cristãos;54 em razão disso, suplicava-se aos demais príncipes do Império que avaliassem diligentemente essa terrível e perigosa situação e não permitissem que um novo reino Turco deitasse raízes no meio da Cristandade.55 O cerco precisava ser entendido como medida profilática, como a única maneira de impedir o avanço de um câncer terrível sobre a totalidade do Império e do restante da Europa cristã.
Como parte da mesma estratégia propagandística, a tragédia de Münster, especialmente os sofrimentos da população por conta da fome, foi mostrada por Kerssenbrock, com o emprego dos referenciais clássicos adequados (em especial, o uso do cerco de Jerusalém, retratado por Flávio Josefo), de forma a sublinhar os resultados terríveis da “loucura anabatista”. O relato vai num crescendo, da matança de animais como cavalos e potros para alimentação, passando por camundongos, ratos e arganazes, pelos cães (cuja ingestão já é referida com estranheza), pelo consumo de couros de sapatos e capas de livros, pelas tentativas de se comer excremento, até chegar ao topos, também clássico, do canibalismo.56 “Muitos bebês morriam nos braços de suas mães e muitos, tremo só de dizer isto, eram mortos à espada por seus próprios pais para servirem de alimento, e após a captura da cidade, não só em um, mas em vários locais, os ossos desses bebês foram encontrados em salmoura”, escreve Kerssenbrock, que acrescenta: “Ao não se refrear de comer sua própria ninhada, esse povo ultrapassou todos os animais em selvageria e desumanidade”.57
A esse quadro Kerssenbrock liga, diretamente, o tema da decepção. Segundo ele, alguns,
dando crédito às promessas do rei [Beukelzs], estavam confiantes de que o Pai celestial transformaria as pedras do calçamento em broas de pão, antes que eles morressem de inanição. Por isso, quando se viam atormentados pela fome, tentavam morder essas pedras, mas ao perceberem pela experiência que nenhuma modificação se operara nos acidentes ou na substância das mesmas, sua fé começava a vacilar e silenciosamente, em lágrimas, lamentavam-se por terem sido tão terrivelmente desencaminhados.58
A decepção era um importantíssimo argumento para a propaganda contra-utópica, permitindo assinalar o equívoco cometido pela população e suas consequências cruéis. Em contraste com a ênfase na crescente decepção entre os habitantes sitiados, podemos incluir as menções que Kerssenbrock faz ao renovado zelo da população pela fé católica após a retomada da cidade. Kerssenbrock observa: “Depois, clero e cidadãos competiram entre si para reparar as igrejas e restaurar o serviço divino com esforços muito maiores do que aqueles despendidos pela gente deplorável que os destruíra e abolira”.59 Ao mencionar a reconsagração da catedral de São Paulo, em dezembro de 1538, ele acrescenta: “o culto divino e todas as cerimônias católicas foram revividos com zelo sem paralelo por parte dos cidadãos”.60 Ao tumulto infernal causado pela “loucura” anabatista era preciso contrapor o zelo enfático, conquanto estável e sereno, que teria marcado a restauração da fé católica.
A obra de Kerssenbrock, concluída para publicação em 1573, permaneceu inédita, tendo sido proibida pelo Conselho de Münster, que se sentiu indevidamente representado na narrativa por conta da maneira como o autor descreveu os conflitos entre os cidadãos e o príncipe; sua primeira impressão antes da edição crítica de Detmer (1899-1900) ocorreria apenas em 1771, numa tradução alemã bastante deficiente.61 Mas restam da obra original diversos manuscritos completos, o que mostra que ela experimentou relativa divulgação sob essa forma.
Todavia, mesmo considerando os percalços da publicação e essa circulação limitada, não se deve duvidar da força potencial dessa propaganda contra-utópica. Escrita décadas após o evento que narra, mas dentro de um contexto onde a polêmica católica teria como fazer bom uso de sua descrição, ela se tornou referência para outras tentativas de exaltação do status quo religioso e social contra quaisquer propostas de transformação. Em 1853, um nobre francês, católico ferrenho e igualmente conservador em matéria de política, Marie-Théodore Renouard, visconde de Bussierre, profundamente assustado com os impactos das revoluções de 1848, serviu-se largamente da obra de Kerssenbrock, lida por ele na tradução alemã de 1771, para escrever sua obra Les Anabaptistes: Histoire du Luteranisme, de l’Anabaptisme et du regne de Jean Bockelsohn a Munster.62 Enquanto para Kerssenbrock o luteranismo fora a matriz de onde emergira a desgraça anabatista, para o conservador visconde de Bussierre desse mesmo ventre brotara, séculos depois, a ameaça comunista. “Os inovadores do século XVI”, escreveu ele, “abriram a porta a todas as desordens e aos mais monstruosos excessos, no dia em que se libertaram do jugo tutelar da Igreja”63. Ele concluiu: “a aplicação ampla e completa do sistema que se chama hoje comunismo e socialismo foi o resultado imediato dessas doutrinas ímpias e insensatas; ele surgiu pela primeira vez na capital da Vestfália”.64
Enquanto para os anabatistas de Münster o isolamento provocado pelo cerco era o caminho difícil a se atravessar até a realização plena dos eventos apocalípticos, para os calvinistas franceses o isolamento era uma realidade mais ambígua. Jean de Léry percebeu claramente que aquela situação de insularidade, provocada pelo cerco, se constituía no principal obstáculo para a implantação da nova ordem. Para ele, Sancerre repetia, no nível micro, a realidade dos huguenotes em território francês: eleitos por Deus, mas minoritários e cercados de inimigos por todos os lados. Porque, se de fato a “insularidade” acabava sendo uma condição recorrente na expressão literária de muitas utopias (em geral descritas como ilhas, ou como montanhas retiradas, ou como planetas, ou simplesmente como cidades com seus limites bem definidos), aqui a insularidade se tornou o elemento que inviabilizava o projeto utópico: o drama da fome, que obrigou os moradores da cidade a consumirem as coisas menos consumíveis e, finalmente, a praticarem o “curto-circuito” representado pela ingestão da carne humana, serve como símbolo para esse isolamento que enfraquece os homens e inviabiliza a realização de seus projetos.65
Mas a ambiguidade do isolamento se mostra no fato de que, dadas as condições específicas enfrentadas no território francês, a insularidade também representava a força que os calvinistas podiam, naquele contexto, possuir: em menor número e incapazes de enfrentar as tropas do rei em campo aberto, dependiam de fortificar as cidades que controlavam; de igual modo, essa circunscrição ao espaço urbano bem delimitado oferecia a possibilidade de um controle mais estrito das consciências, pela pregação e pela vigilância. “C’est dans la ville close”, escreve Frank Lestringant, “que le protestantisme a son lieu naturel” e onde, de mais a mais, “la prédication évangélique a le plus d’efficacité”.66
Essa força que dependia da insularidade era, contudo, bastante incerta. O que transparece com muita clareza do texto de Léry é a percepção de que, a essa pressão de natureza externa constituída pelo cerco e que impunha as dificuldades do isolamento, era preciso juntar outra, de natureza interna. Para Léry, foram os vícios dos homens, dos seus próprios correligionários calvinistas, que atraíram sobre eles o juízo de Deus. O povo teria tido todas as chances de implementar uma existência piedosa naquela cidade, mas abrira mão dessa oportunidade por causa da indolência; além disso, mesmo sob a provação do cerco eles davam lugar à avareza: em meio aos sofrimentos e à penúria quase total, e apesar das tentativas, sempre frustradas, do governo da cidade para tabelar os alimentos, os habitantes de Sancerre vendiam a preços exorbitantes qualquer coisa que pudesse ser comida.67 Na leitura providencialista do pastor Léry está clara a noção de que, tivessem os calvinistas de Sancerre agido de forma menos egoísta, a mão divina os teria ajudado; a ameaça externa teria sido vencida com o auxílio divino - expectativa que, de resto, era sustentada pela matriz providencialista do próprio cerco de Jerusalém pelos babilônios, apresentado no texto bíblico como castigo divino contra as prevaricações dos judeus e cujo relato, ao lado da história do cerco de Jerusalém pelos romanos, narrada por Flávio Josefo, constituiu um dos interdiscursos de que Léry lançou mão.68
Na Histoire memorable, Jean de Léry não se preocupa apenas em sinalizar o projeto utópico, sugerido por seu relato das dinâmicas organizativas da cidade; preocupa-se também em dar conta das causas do fracasso desse projeto, não apenas em Sancerre, mas no território francês como um todo. Vamos encontrar na Histoire memorable uma clara percepção da fraqueza e da depravação humanas, convicções típicas do calvinismo que os eventos calamitosos associados à saison de la Saint-Barthélemy certamente agudizavam. Como sabemos, a leitura huguenote dos violentos massacres que tiveram início em Paris, no domingo 24 de agosto de 1572, procurou explicá-los a partir de dois vetores fundamentais, a incontornável depravação humana provocada pela Queda (e que a violência católica, feita em nome de Deus, ilustraria de forma bastante marcada) e o controle absoluto de Deus sobre a história, capaz de se servir dos piores atos praticados pelos seres humanos.69 Em sua reflexão, Léry aprofunda de forma bastante melancólica esse diagnóstico sombrio; a Queda não teria mostrado seus efeitos apenas no partido católico, refletindo-se em sua prática violenta do cerco à cidade, mas deixou seus vestígios também entre os que, isolados em Sancerre, afirmavam pautar suas vidas pelos códigos reformados. Presente no ser humano mesmo após sua regeneração pela verdade evangélica, o pecado seria força que se precisava levar em conta na feitura de qualquer projeto cívico.
Esse olhar desencantado pode ter impedido que os calvinistas endossassem algumas leituras otimistas quanto à bondade humana, presentes em outras formulações utópicas; mas não podemos concluir, como faz Lestringant, que essa perspectiva, reforçada por tais acontecimentos sombrios, tenha incentivado no calvinismo a postergação das expectativas utópicas exclusivamente para o futuro escatológico.70 Sem dúvida, para a teologia calvinista somente a eternidade revelaria os nomes dos eleitos e inauguraria a possibilidade de uma existência sem mal. Mas essa mesma teologia continuava a dar espaço, na história, para a edificação do projeto teológico-político calvinista; um projeto não desprovido de matizes utópico-apocalípticos. Para os calvinistas, esse mal interior ao ser humano, para o qual a eternidade traria a superação definitiva, poderia ser minorado no contexto das sociedades humanas através de estrita vigilância; e, graças às impressionantes microrredes de poder operadas pelos consistórios calvinistas, essa dinâmica do controle se espalharia e deixaria sua marca na prática política do Ocidente.71
Quanto à pressão exterior, aquela exercida pelos inimigos e que era responsável pela insularidade forçada da utopia, essa seria superada apenas pela busca de um novo lugar para o projeto utópico. Veterano de duas experiências extremas de insularidade, aquela vivida em Sancerre e aquela vivida em anos anteriores, durante as tentativas de implantação da colônia francesa na América do Sul, Léry deixou-nos relatos de ambas. O sonho de edificar uma sociedade nova na chamada França Antártica, iniciado por Nicolas Durand de Villegagnon em novembro de 1555 e ao qual Léry se juntou em 1557, teria sido inviabilizado, de acordo com Léry, pela presença do “inimigo interno”, um Villegagnon cripto-papista que traíra seus companheiros calvinistas; o contraponto a esse inimigo interno foi, no âmbito “externo”, a atitude amiga dos tupinambás, não obstante os costumes chocantes dos indígenas. Já o sonho de efetuar a criação da nova Jerusalém em solo propriamente francês encontrou, do lado de fora, a dura muralha da realidade de um poder central cada vez menos disposto a se curvar às liberdades municipais, a par da violência quase canibalesca de seus conterrâneos; e, do lado de dentro, o “inimigo interno” representado pela cobiça e pela avareza dos próprios correligionários huguenotes. É extremamente significativo que, tendo perdido as anotações que fizera de sua experiência americana, Léry as tenha reescrito e publicado somente após compor a narrativa sobre Sancerre: os dois relatos encontram-se profundamente inter-relacionados e foi a partir das lentes da vivência do sítio de Sancerre que as experiências de estranhamento, privação e fome narradas na Voyage foram evocadas por Léry.72
Embora os textos de Léry permaneçam elusivos quanto à possibilidade de se construir novos ordenamentos sociais fora do continente europeu, parece claro que, sopesadas as dificuldades, a América se mostrava no pensamento do autor como propícia à edificação de uma sociedade nova, desde que os elementos humanos empregados nesse projeto estivessem expurgados de membros duvidosos e de apóstatas como Villegagnon. Assim, nem o pessimismo de Léry frente a qualquer possibilidade de conversão dos indígenas, nem sua denúncia das pretensões ibéricas de ocupar a terra sob pretexto missionário, significariam fundamentalmente uma recusa do potencial utópico de que o além-mar estava dotado.73
E será, em maior ou menor grau, essa mesma semente utópica que encontraremos nas tentativas colonizadoras empreendidas por calvinistas franceses e ingleses nos territórios americanos, na medida em que era recorrente em seus realizadores a noção de eles próprios não eram outra coisa senão um “novo Israel”.74 De cidade sitiada, pretendiam tornar-se uma cidade edificada sobre um monte, num espaço livre de inimigos. O ermo, por sua vez e para mencionar outra tópica bastante familiar aos leitores da Bíblia, deveria ser transformado em cidade. Como não considerar utópico - e, nesse contexto, apocalíptico - tal projeto?75
Münster e Sancerre - dois cercos, dois ideários diferentes, mas marcados por anseios de natureza utópico-apocalíptica. No primeiro, os relatos do cerco se prestaram, especialmente, a possibilitar a contra-utopia, o desancamento das pretensões utópicas e sua neutralização. Contrariamente ao que dirão os que, no futuro, se considerarão herdeiros dos “anabatistas”, o projeto de Münster era teológico-político e incluía uma reconstrução violenta da “república cristã” em termos de sociedade homogênea. Tratava-se do reinado utópico de Beukelzs, precursor do reino de Cristo na terra; mas desde já um reino destinado unicamente aos santos e que, apesar de anular a separação, consagrada na cristandade ocidental, entre as esferas secular e religiosa, reproduzia aspectos importantes do velho modus de existência proposto pela noção de respublica christiana. No segundo, as difíceis circunstâncias do cerco obrigaram os próprios assediados (ou pelo menos o próprio Léry) a repensar as condições de sua utopia e as razões de seu fracasso. No calvinismo não havia apenas um projeto teológico-político sereno, passavelmente racional, como se procurou ressaltar posteriormente, mas uma orientação utópico-apocalíptica que, talvez, a recusa fortíssima aos anabatistas e suas práticas apenas tentasse mascarar. Em ambos os casos, a cidade sitiada aparece como o locus onde a utopia surge e, também, onde ela é inviabilizada.
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