Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


“Por meio de sua arma que é o voto”: poder local e eleitorado (1947-1959)
Por medio de su arma que es el voto»: Poder local y electorado (1947-1959)
“Your vote is your weapon”: Local and electorate power (1947-1959)
« Grâce à votre arme qu’est le vote » : Pouvoir local et électorat (1947-1959)
“选票即是武器”:巴西地方权力和选民(1947-1959)
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 9, núm. 3, pp. 462-482, 2017
Universidade Federal Fluminense

Artigos


Recepção: 04 Junho 2016

Aprovação: 07 Novembro 2016

DOI: https://doi.org/10.15175/1984-2503-20179305

Resumo: O artigo apresenta resultados e conclusões de pesquisa sobre a mobilização eleitoral em Canoas/RS entre 1947 e 1959. Canoas é um município da região metropolitana de Porto Alegre, emancipado em 1939, que realizou suas primeiras eleições somente após o Estado Novo, e que registrou, nas décadas de 1940 e 1950, um expressivo crescimento populacional, motivado pela migração de trabalhadores do campo para a cidade, fazendo surgir novos bairros – habitados basicamente por famílias de operários. As eleições municipais deste período fazem parte do contexto de incorporação dos trabalhadores urbanos ao cenário eleitoral, de ampliação do corpo eleitoral e de consolidação da experiência democrática brasileira – iniciada em 1945. Necessitando construir uma imagem prestigiosa, partidos e candidatos encontraram um possível canal de comunicação com os eleitores na imprensa local – contando com jornalistas, editores, articulistas e comentaristas mais ou menos identificados com os diferentes grupos políticos. As notícias, os artigos e os anúncios publicados na imprensa foram analisados e compreendidos não apenas como estratégias de conquista do voto, mas também como práticas que suscitam no eleitor um interesse pela competição eleitoral e estabelecem uma relação entre o voto e a vida cotidiana.

Palavras-chave: mobilização eleitoral, experiência democrática, construção do eleitor, voto, demandas locais.

Resumen: El artículo presenta resultados y conclusiones del estudio sobre la movilización electoral en Canoas/Río Grande del Sur entre 1947 y 1959. Canoas es un municipio de la región metropolitana de Porto Alegre, en Brasil, constituido en 1939, que celebró sus primeras elecciones tras el fin del régimen Estado Novo, y que registró, en las décadas de 1940 y 1950, un significativo crecimiento demográfico motivado por la migración de trabajadores del campo a la ciudad que dio pie el desarrollo de nuevos barrios habitados principalmente por familias obreras. Las elecciones municipales de este período forman parte del contexto de incorporación de los trabajadores urbanos al escenario electoral, de ampliación del cuerpo electoral y de consolidación de la experiencia democrática brasileña, que comenzó en 1945. Ante la necesidad de crear una imagen de prestigio, los partidos y candidatos encontraron un posible canal de comunicación con los electores en la prensa local, donde contaban con periodistas, editores, columnistas y comentaristas más o menos identificados con los diferentes grupos políticos. Las noticias, los artículos y los anuncios publicados en la prensa se analizaron y plantearon no solo como estrategias de conquista del voto, sino también como prácticas que suscitan en el elector un interés por la batalla electoral y establecen una relación entre el voto y la vida cotidiana.

Palabras clave: Movilización electoral, experiencia democrática, desarrollo del elector, voto, demandas locales.

Abstract: The following article presents the results and conclusions of research into electoral mobilization in Canoas, in the state of Rio Grande do Sul, between 1947 and 1959. Canoas is a municipality in the Porto Alegre metropolitan region, emancipated in 1939 and to have held its first elections only upon the introduction of the Estado Novo regime. It underwent significant population growth in the 1940s and 1950s thanks to the migration of workers from the countryside to the city, leading to the emergence of new neighborhoods mostly inhabited by working-class families. The municipal elections during the period are part of the context of incorporating urban workers into the electoral scenario, expanding the electoral body, and consolidating the experience of Brazilian democracy, to have been initiated in 1945. In order to establish a prestigious image, parties and candidates located a possible channel for communicating with voters in the local press, with journalists, publishers, writers, and commentators mostly identified with the various political groups. The news, articles, and advertisements published in the press have been analyzed not only as strategies to gain votes, but also as practices stirring voters’ interest in the electoral contest, establishing a relationship between voting and everyday life.

Keywords: Electoral mobilization, democratic experience, shaping of the voter, vote, local demands.

Résumé: Cet article présente les résultats et les conclusions de la recherche sur la mobilisation électorale à Canoas (État du Rio Grande do Sul, Brésil) entre 1947 et 1959. Canoas, une commune de l’agglomération de Porto Alegre, dont elle s’est émancipée en 1939, n’a réalisé ses premières élections qu’après la période de l’État Nouveau et a enregistré entre les années 1940 et 1950 une croissance démographique importante qui, avec la migration de nombreux travailleurs ruraux, a fait surgir de nouveaux quartiers principalement peuplés de familles ouvrières. Les élections municipales de cette époque font partie de ce contexte d’incorporation des travailleurs urbains à la scène électorale, d’élargissement du corps électoral et de consolidation de l’expérience démocratique brésilienne initiée en 1945. Pour se construire une image prestigieuse, les partis et leurs candidats trouvèrent dans la presse locale un canal de communication avec les électeurs et s’appuyèrent à cette fin sur divers journalistes, rédacteurs en chef, éditorialistes et commentateurs plus ou moins apparentés avec tel ou tel groupe politique. Les nouvelles, les articles et les annonces publiés dans la presse ont été analysés non seulement en tant que stratégies de conquête des suffrages, mais également comme pratiques suscitant chez l’électeur un intérêt pour le jeu électoral et établissant un lien entre vote et vie quotidienne.

Mots clés: Mobilisation électorale, expérience démocratique, construction de l’électeur, vote, demandes locales.

摘要: 本文介绍了作者对1947年至1959年期间巴西南大河州的卡诺亚市(Canoas/RS)的选举活动的研究结果和结论。卡诺亚是阿莱格雷港(Porto Alegre)大都市区的一个直辖选区,于1939年单独成立市政府。在瓦尔加斯总统独裁统治(Estado Novo, 1937-1946)结束之后,卡诺亚市于1947年进行了首次选举。在20世纪40年代和50年代,因工业发展,大量农村人口迁移到城市,卡诺亚的人口呈现明显增长,产生了新的社区。而这些新社区的居民基本上都是产业工人。该市将城市工薪阶级纳入选举框架,扩大选民构成,巩固了开始于1945年的巴西民主进程。为了建立自己的声望和亲民形象,卡诺亚的各党派及其候选人找到了一种沟通渠道,在当地媒体上与选民进行交流。他们依靠认同和支持己方的记者,编辑,掮客和评论家在媒体上发表选举消息,文章和广告。这些选举活动被公众分析和理解为赢得选票的策略,能够引起选民对竞争性选举的兴趣,由此建立选票与日常生活之间的联系。

關鍵詞: 选举动员, 民主体验, 选民构建, 选票, 地方诉求.

Considerações iniciais

Canoas/RS é um município da região metropolitana de Porto Alegre, emancipado em 1939, e que realizou suas primeiras eleições municipais entre 1947 e 1963, concomitantemente a um acelerado ritmo de crescimento populacional (17.630 habitantes em 1940, passando para 39.826 em 1950 e 103.503 em 1960). Nas eleições de 1959, um articulista da imprensa local, Moisés Machado sentenciou: “O povo que julgue e que dê sua resposta por meio de sua arma que é o voto”.3

Os primeiros pleitos para a escolha de prefeito e vereadores ocorridos nesse município estão inseridos na experiência democrática iniciada no Brasil a partir das eleições de 1945 e da Constituição de 1946. Consideramos que este período foi marcado pela incorporação dos trabalhadores urbanos ao cenário eleitoral, pela alteração nas relações entre candidatos e eleitores – com a ampliação do corpo eleitoral4 e com a criação de partidos políticos nacionais – e pela consolidação de um sistema político competitivo que deixou marcas de identificação e de aprendizado da democracia.5

Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstram um expressivo crescimento demográfico e a alteração das categorias predominantes na população economicamente ativa, o que transformou o município em um núcleo majoritariamente operário e suburbano. O processo de migração de trabalhadores do interior do Rio Grande do Sul para a capital e arredores não passou despercebido pelas elites políticas locais, forçando a elaboração de estratégias de conquista do voto e, consequentemente, elaborando no campo simbólico relações entre o voto e as demandas desta população instalada, em sua maior parte, em loteamentos com infraestrutura precária – alvo constante deste trabalho de mobilização eleitoral.

Partindo da definição de Michel Offerlé,6 entendemos como mobilização eleitoral o resultado de um conjunto de incitações por meio das quais os empreendedores políticos trabalham para criar o costume do voto e atuam para a produção de agentes capazes de reconhecer um interesse na competição eleitoral. Esta perspectiva destaca o papel da mobilização eleitoral no processo de construção da cidadania cívica a partir da experiência francesa. Entretanto, aceitamos o argumento de Antônio Lavareda,7 ao concluir pela correspondência do período entre 1945 e 1964, no Brasil, com o início do século XX em boa parte dos países europeus: trata-se da consolidação de um sistema político-eleitoral competitivo. Porém, Offerlé não considera o eleitor como passivo, mas como um agente que aprende também a apropriar-se da relação eleitoral com certa autonomia, fazendo uso da condição de eleitor e pressionando os candidatos.8 Retornando ao contexto brasileiro, é importante salientar que os candidatos passaram a estar sujeitos, a partir da democratização iniciada em 1945, muito mais do que nos regimes anteriores, ao veredito popular, não podendo ficar aprisionados às regras de seu próprio mundo.9

Se, conforme lembra Michel Offerlé, as técnicas de conquista do voto tornam perceptível a íntima relação entre “fazer o eleitor e fazer-se elegível”,10 os registros da mobilização eleitoral promovida pelos candidatos e partidos poderão fornecer indicativos desse trabalho de construção do eleitor, que passa por incentivar a população ao voto e relacioná-lo com as demandas da vida cotidiana. A perspectiva centrada nas práticas de mobilização nos permitiu a compreensão do papel exercido pelos diferentes atores deste processo: partidos, candidatos, governo, Justiça Eleitoral e, com efeito, articulistas, comentaristas, jornalistas e editores dos periódicos de circulação local. As estratégias de mobilização eleitoral empreendidas por tais atores, e que envolveram as demandas locais, são objeto do presente artigo.

“Massa humana desafortunada”

Entre a emancipação, em 1939, e as primeiras eleições municipais, em 1947 e 1951, Canoas passou por transformações no seu perfil populacional. A abertura de diversos loteamentos entre as décadas de 1930 e 1960 fez com que a cidade ampliasse sua mancha urbana, havendo a ocupação de zonas alagadiças e próximas aos rios (Sinos e Gravataí): “De 1941 a 1945, Canoas teve 450 hectares de terras loteadas; de 1946 a 1950, teve 365 hectares loteados; e de 1951 a 1955, teve 1.140 hectares de terras loteadas”.11

O crescimento populacional do município é explicado pela grande migração de trabalhadores, pelos diversos loteamentos abertos no período, pela industrialização, como já referimos na parte anterior, atestando um processo de crescimento horizontal da cidade, com a instalação de novos bairros. É possível perceber o expressivo índice populacional dos novos bairros, vilas e loteamentos, através dos censos demográficos de 1940 e 1950, com a distribuição da população canoense entre as zonas urbanas, suburbanas e rural:

Tabela 1
Canoas: população por localização em 1940 e 1950

Tabela elaborada pelo autor. Fonte: Censos Demográficos de 1940 e 1950 (FEE-RS).

Enquanto a população rural permaneceu praticamente a mesma, com um crescimento de 7,24%, a população urbana cresceu 58%. Na mesma década, a população suburbana obteve um crescimento de 339%. A zona suburbana correspondia basicamente aos bairros Niterói e Rio Branco. Ao contrário das cidades cujo crescimento ocorre a partir de um núcleo central, a urbanização de Canoas caracterizou-se por um centro que, até os anos 1970, não era o setor urbano mais denso. Na zona sul do município, próximos ao Rio Gravataí, nasceram dois bairros habitados basicamente por operários: Niterói e Rio Branco, que se tornaram as áreas mais densamente povoadas da cidade.12

Algumas características são comuns no desenvolvimento histórico dos bairros Rio Branco e Niterói. Nos três casos, eram áreas alagadiças utilizadas principalmente para o cultivo de arroz. Mais tarde, com os loteamentos de Niterói e Harmonia, famílias de operários foram atraídas pelos baixos preços dos lotes, pagos de forma facilitada. Todos passaram por diversas dificuldades, incluindo as enchentes e a falta de infraestrutura. As enchentes fizeram parte da história dos bairros Niterói e Rio Branco. No caso do bairro Rio Branco havia menos estrutura ainda. Terreno plano em área alagadiça, era impróprio à moradia até a construção dos diques de proteção contra as cheias, ocorrida no final dos anos 1960. Se o excesso de água, pelas enchentes, causava diversos transtornos, a falta de água potável era outro problema presente e persistente. Até o início dos anos 1960, somente uma pequena parte de Canoas era provida de sistema de água potável. As enchentes e a ausência de saneamento tornavam os poços contaminados. Somente a partir de 1965 a água encanada começou a chegar nas comunidades mais periféricas de Niterói e Rio Branco.13

O perfil dos moradores que deram origem aos bairros Niterói e Rio Branco é bastante similar: de forma geral, eram famílias de operários que migraram de outras regiões em busca de emprego na capital ou na região metropolitana, e encontraram nos terrenos vendidos em regiões alagadiças a possibilidade da construção de seus lares. As dificuldades foram praticamente as mesmas: enchentes, alagamentos, falta de saneamento, de iluminação pública, de segurança, de energia elétrica, de água potável, de transporte público, de calçamento.

Retomando os censos demográficos de 1940, 1950 e 1960, o que tais dados podem nos revelar sobre a população, além de confirmar em números o grande crescimento populacional registrado em poucas décadas? Os vários documentos pesquisados nos trazem falas acerca da principal característica da população residente em Canoas nas décadas de 40, 50 e 60: eram basicamente operários. O que os censos demográficos de 1940, 1950 e 1960 têm a nos dizer sobre isso? Possuímos informações mais completas dos anos de 1940 e 1950, vejamos:

Tabela 2
Canoas: população de 10 anos e mais por ramo de atividade principal exercida (1940-1950)

Tabela elaborada pelo autor. Fonte: Censos demográficos de 1940 e 1950 (FEE-RS).

Os dados sobre as principais ocupações da população canoense em 1940 e 1950 nos indicam o crescimento da fatia operária nesse período, consequência de fatores anteriormente tratados: a industrialização e a migração de trabalhadores para a capital e região metropolitana. Podemos observar melhor a presença da classe operária no gráfico abaixo:


Gráfico 1
Canoas: comparativo das principais atividades exercidas pela população economicamente ativa (1940 – 1950)
Gráfico elaborado pelo autor. Fonte: Censos demográficos de 1940 e 1950 (FEE-RS).

Podemos perceber a expressiva diminuição da participação das atividades agropecuárias no universo das ocupações principais da população canoense. Em compensação, as atividades industriais obtiveram grande crescimento, assim como a prestação de serviços. Outro fator ligado à urbanização e industrialização, o comércio obteve crescimento – mas em menor proporção. Dois dados são especificidades: a ampliação da categoria Defesa Nacional se dá pela implantação gradual da Base Aérea em Canoas; a reduzida porcentagem na categoria Administração Pública revela uma máquina pública municipal ainda em implantação e com poucos recursos.

O aumento da população gerava novas demandas para a polícia civil instalada no município, entre elas o combate à “vadiagem”. Segundo o relatório, a delegacia de polícia local “desenvolveu intensa campanha contra a vadiagem, embriaguez e jogos de azar”. O delegado salientou que tal “campanha moralizadora” contou com apoio dos poderes Executivo, Legislativo e “até das correntes partidárias deste município”. O relatório do ano seguinte é revelador quanto ao aumento do serviço para a polícia:

É de salientar, também, que o aumento da criminalidade em Canoas, tem sua razão de ser pelo fato de, motivado pelo alto custo de vida e especialmente dos preços das casas de aluguel em Porto Alegre, a massa humana desafortunada, embora trabalhe na capital, se evade para os lugares mais próximos à Metrópole Gaúcha, ou seja, Canoas, município dotado de eficiente meio de transporte coletivo, onde se instalam em vilas e loteamentos.14

Alguns anos antes, o médico Tiago Würth havia publicado no jornal O Democrata artigo no qual ressaltava a pobreza material da população canoense: “Todos que aqui aportaram vindos dos ambientes os mais diversos, vieram porque o sofrimento para cá os tangeu, vieram por que tiveram a esperança ou a ilusão que aqui viveriam melhor ou mais felizes”.15 Os prefeitos nomeados por decreto, entre 1940 e 1951, bem como seus sucessores eleitos entre 1951 e 1963, tiveram de formular iniciativas para enfrentar as diversas dificuldades, percebidas e abordadas também por outras lideranças políticas. Os problemas giraram em torno da crescente migração, da abertura de loteamentos, da falta de infraestrutura, além de recursos públicos insuficientes para dar conta de tantas demandas.

Dessa forma, podemos considerar que o processo de migração de trabalhadores do interior para a região metropolitana, incluindo Canoas, que acarretou a alteração do perfil populacional do município – e, consequentemente, do perfil dos eleitores – não passou despercebido pelas autoridades locais. Além disso, com o regime democrático – iniciado nas eleições de 1945 e confirmado pela Constituição de 1946 – a prática do voto passou a envolver um número de cidadãos nunca antes visto, e a necessidade de mobilizar um número cada vez maior de eleitores exigiu que uma série de práticas e concepções fossem colocadas em movimento. O eleitor passou a ser alvo, como veremos a seguir, não somente no sentido de escolher entre uma ou outra sigla: candidatos e partidos buscaram definir e apresentar – especialmente por meio da imprensa local – o ato de votar como algo compatível com a gama de interesses dos potenciais eleitores.

O eleitor como alvo

Notícias, notas, anúncios, artigos e entrevistas publicados na imprensa, seja por iniciativa dos editores, do governo municipal, dos partidos ou dos candidatos (ou de todos eles conjugados) foram veiculados para serem facilmente visualizados e lidos pelo público da época, sem que se imaginasse seu uso enquanto fonte histórica muitas décadas mais tarde. Sua leitura, hoje, auxilia na tentativa de reconstituição dos acontecimentos e dos temas políticos debatidos no período estudado, mas também, ou principalmente, na indicação de práticas de mobilização eleitoral e conquista do voto, muitas vezes implícitas ou incutidas nos detalhes. Isto se considerarmos os textos não somente como testemunhos intencionais, mas também como “rastros involuntários de uma atividade que os ultrapassa”.16 O historiador francês Antoine Prost destaca a noção de “estratégias discursivas”: “A atenção aos personagens do discurso se completa com o estudo da maneira como um sujeito falante tenta se apoderar do papel que lhe convém e atribuir aos seus interlocutores os papéis que escolheu para eles”.17

Governantes, partidos políticos, candidatos e Justiça Eleitoral buscaram, tanto por meio de práticas cotidianas – que deixaram poucos registros – como através das páginas da imprensa – onde tiveram a concorrência de jornalistas, editores, articulistas, comentaristas, com maiores ou menores graus de vinculação partidária – estabelecer um papel a ser cumprido pelo eleitor, situado entre a retirada do título de eleitor no Cartório Eleitoral e a escolha final em frente à urna, papel ao qual foram atribuídos vários sentidos e do qual a definição foi marcada pela disputa entre diferentes projetos políticos e visões de mundo.

O jornal O Democrata – ligado ao Partido Social Democrático (PSD) – deu ênfase, nas edições de 20 de maio e de 15 de julho de 1950, à reorganização dos subdiretórios pessedistas de Canoas, atestando a presença do partido e de suas lideranças por todos os bairros da cidade.18 Os subdiretórios serviam de ponto de referência na relação entre as comunidades e as lideranças partidárias, sendo locais de encontros políticos mas também postos de qualificação eleitoral. A mesma edição de 15 de julho trazia vários anúncios, de cada um dos subdiretórios, divulgando os endereços e seus horários de funcionamento (ver figura 1). Era, portanto, um chamamento para quem desejasse habilitar-se ao exercício do voto nas eleições seguintes e também aos eleitores que necessitassem de transferência ou de segunda via do título de eleitor. A proximidade com os eleitores via subdiretórios, bem como a publicação na imprensa, sugere um trabalho de mobilização eleitoral: o resultado do conjunto de incitações por meio das quais os empreendedores políticos trabalham para criar o costume do voto.19


Figura 1
Publicação a pedido do diretório municipal PSD
Fonte: O Democrata, Canoas, 15 jul. 1950. Capa.

Fatores como a ampliação do eleitorado e as transformações no perfil dos integrantes do corpo eleitoral, juntamente com a democratização iniciada após o Estado Novo, implicaram na reformulação, por parte dos candidatos dos partidos, das práticas de mobilização eleitoral e de conquista do voto. Esse grande contingente de trabalhadores abrangido, a partir de então, pelo corpo eleitoral, passou a ser alvo das elites dirigentes dos partidos políticos e dos candidatos a prefeito e vereadores, não somente no sentido de apreendê-lo discursivamente, mas também com o objetivo de mobilizá-lo eleitoralmente.20

Fazendo uso da pergunta formulada por Michel Offerlé, podemos pensar em como foi possível levar os cidadãos a “se tornarem cidadãos, a se inscrever e votar”.21 Lidando com um corpo eleitoral mais amplo do que no passado, a partir de 1945 candidatos e partidos políticos perceberam a necessidade do empreendimento de práticas para atrair os possíveis eleitores ao exercício do voto.

Vários articulistas, jornalistas, comentaristas e políticos registraram na imprensa concepções e sentidos acerca do voto. Além disso, os periódicos locais também serviram como canais de comunicação entre a Justiça Eleitoral – por meio do Cartório Eleitoral da 66ª Zona, que correspondia ao município de Canoas – e os eleitores. A edição de 25 de outubro de 1947 do jornal O Democrata combinava um pouco de tudo isso: na capa, havia uma lista com todas as mesas eleitorais, com endereço e presidente, daquela que seria a primeira eleição municipal de Canoas. Ao lado, notícia dava conta aos leitores de que os títulos de eleitor estavam à disposição dos inscritos no cartório eleitoral. No rodapé da página, um grande anúncio conclamava os eleitores ao voto nos candidatos do PSD. Também no jornal Canoas em Marcha, a edição de 20 de outubro de 1951 combinava anúncios dos vários candidatos com informações sobre a retirada dos títulos de eleitor, naquela que seria a segunda eleição para a Câmara Municipal de Canoas e a primeira para escolha do prefeito (ver figura 2).


Figura 2
Anúncios dos candidatos a prefeito Sezefredo Vieira (PRP) e Hugo Lagranha (PSD) nas eleições de 1951
Fonte: Canoas em Marcha, Canoas, 21 out. 1951. P. 05.

O jornal Gazeta de Notícias, que circulou entre 1959 e 1961, também cumpriu o papel de incentivar a população à inscrição eleitoral. Aos que haviam se inscrito e não retirado o título de eleitor, o jornal informava o horário do Cartório Eleitoral, citando, inclusive, os nomes dos eleitores nesta situação. A edição de 24 de outubro de 1959 trouxe uma lista com todas as seções eleitorais do município e seus endereços, com o sugestivo título: Onde votar a 8 de novembro. Na véspera da eleição repetiu-se a mesma lista, dessa vez publicada na capa do semanário. Um mês antes do pleito, o jornal trouxe nota, na parte superior da capa, cujo título era Atenção eleitores: “O cartório eleitoral comunica que estão à disposição dos interessados as transferências e segundas vias de títulos eleitorais, bem como novos títulos, atendendo pela manhã das 9 às 12 horas”.22

Assim, a imprensa local cumpria um papel importante na incitação de um interesse pelas eleições, para que os cidadãos legalmente aptos se alistassem e para que os alistados comparecessem à votação. Com laços mais ou menos estabelecidos com os diferentes grupos políticos locais, os jornais eram vistos pelos partidos e pelos candidatos como um dos meios possíveis de mobilização do eleitorado. Os jornalistas e os articulistas, com ou sem vínculos partidários, contribuíam para tornar as eleições municipais algo interessante aos leitores, como sugerem os títulos das matérias jornalísticas nos períodos pré-eleitorais: há chamadas como Apontam os primeiros candidatos, O que vai pela política e Aproximam-se as eleições, do jornal O Momento, em 1955; ou Prefeitura: quem será o novo ocupante?, Movimenta-se a política municipal, e Expectativa: eleições municipais amanhã, do jornal Gazeta de Notícias em 1959.

A localização também é destacável: as “Notas políticas” do jornal O Democrata, que enfocavam as movimentações partidárias visando às eleições de 1947, eram sempre publicadas na capa. As notícias relacionadas aos partidos e aos eventos da campanha eleitoral de 1955 também tinham a capa, do jornal O Momento, como seu lugar corriqueiro, tal qual viria a ocorrer com a Gazeta de Notícias nas eleições de 1959. Na propaganda política, que também encontrava seu espaço muitas vezes na capa ou na contracapa dos periódicos, se destaca um modelo imperativo de comunicação entre os candidatos e/ou partidos e o eleitor/leitor. “Para vereador votai, elege, vote em, sufrague”: termos veiculados por jornais como O Democrata, Canoas em Marcha e Correio de Canoas, e que nos trazem indícios não somente da relação entre candidatos e eleitores, mas da própria construção do eleitor – sobre quem o candidato deve fazer despertar um interesse pelo processo eleitoral.

Em 1947, a coligação formada entre o Partido Libertador (PL) e o Partido de Representação Popular (PRP) publicou nota no jornal O Democrata, dedicada “ao povo de Canoas” e na qual apresentava seus candidatos à vereança. Tratando-se da eleição da primeira legislatura da Câmara Municipal, tornava-se imperioso incluir uma pequena lição sobre o trabalho a ser exercido pelos vereadores e sobre o papel do legislativo para a vida da comuna:

À Câmara de Vereadores caberão as elevadas e complexas atribuições de redigir as leis, discutir e votar os orçamentos do município. E, naturalmente, não é de esperar que se redijam leis, rigorosamente de acordo com a técnica jurídica e dentro dos limites constitucionais, sem a assistência de um bacharel de direito, que conheça a matéria; do mesmo passo que não se compreende o debate construtivo, eficiente, dos problemas concretos da administração, relativos à instrução, à higiene, a estradas ou às finanças, sem a experiência do comércio, da agricultura, das profissões liberais, e sem o conselho de peritos em economia.

Conforme o argumento redigido pelos dois partidos – ao se apresentarem ao eleitorado como alternativa elegível – as atribuições dos vereadores eram complexas e consistiam em “redigir leis, discutir e votar os orçamentos do município”. Instrução, higiene, estradas e finanças: diversos seriam os temas que passariam pela deliberação dos legisladores municipais. Entretanto, o objetivo fundamental dizia respeito ao “progresso de Canoas” e seu potencial de beneficiar a “população em geral”:

Apoiar, portanto, com entusiasmo, os candidatos que proclamamos, levá-los à VICTÓRIA, é um imperativo para quantos almejam o progresso de Canoas, - imperativo cujo cumprimento beneficiará à população em geral e, ipso facto, a cada um de seus componentes em particular, pois, dos serviços que aqueles elementos, uma vez eleitos, prestarão ao município, haveremos de aproveitar, direta ou indiretamente, todos os que aqui nascemos ou vivemos.23

Tais partidos não eram os únicos inseridos naquela disputa. Em 12 de novembro de 1947, três dias antes do pleito, o PSD publicou nota “ao eleitorado canoense” na capa de O Democrata. O apelo via civismo marca tal nota, que é, simultaneamente, convocatória ao exercício do voto pelo eleitor e meio de promoção das candidaturas do partido, ato incentivador da produção do eleitor e tentativa de constituição de um eleitorado. Enquanto texto escrito para ser lido pelo público eleitor/leitor, não é arriscado afirmar que a nota publicada pelo PSD tinha a pretensão de despertar o interesse pelo processo eleitoral. A frase entende como inevitável o encontro dos eleitores com a cédula, a urna e a cabine eleitoral: o eleitorado “comparecerá às urnas”, não para simplesmente depositar seu voto, mas para cumprir seu “dever cívico”:

Ao se aproximar o dia 15 do corrente, no qual o criterioso eleitorado canoense, mais uma vez comparecerá às urnas para cumprir o dever cívico do voto, e, nessa ocasião, para a escolha dos legisladores da nossa futura Câmara Municipal, sentindo-nos com o dever e com o direito de nos dirigirmos ao culto eleitorado deste município, conclamando-o a que sufrague nas urnas de sábado próximo, os candidatos do PARTIDO SOCIAL DEMOCRÁTICO, cujos nomes são a mais sólida garantia do progresso futuro da nossa comuna.

Aquilo que pode passar, num primeiro e rápido olhar, como um elogio nem tão desinteressado dirigido ao eleitorado, pode também ser considerado uma tentativa de atribuir significado ao voto. Ao qualificar o eleitor, ao conceder-lhe os adjetivos “criterioso” e “culto”, pode estar expresso o padrão de eleitor que partidos e candidatos desejavam produzir. Por outro lado, mas ainda do seu ponto de vista, uma escolha criteriosa não poderia recair, senão, no partido cuja nominata era “constituída e integrada por antigos e honrados canoenses”. Quanto ao tema do progresso, este parece ter sido o principal mote do PSD naquela eleição:

CANOENSE: Do teu voto dependerá o futuro e o progresso da nossa terra. Comparece sábado próximo à tua mesa eleitoral e vota em um dos candidatos do Partido Social Democrático, essa pujante agremiação política que já elegeu o Presidente da República e o Governador do Estado, e que agora elegerá os vereadores que indicamos acima para a felicidade de Canoas e bem estar de seu povo. [Seguem os nomes de dezenas de signatários].24

“Do teu voto dependerá o futuro e o progresso da nossa terra”: foi este o sentido que o PSD atribuiu ao voto, buscando comover o eleitor com o estabelecimento de uma relação entre o seu voto e destino de sua terra. Tal noção já havia sido afirmada no anúncio publicado em 25 de outubro daquele ano: “Eleitor canoense: auxilia o progresso de Canoas votando nos candidatos do Partido Social Democrático”. Porém, de forma muito mais clara, destaca-se o papel a ser exercido pelo eleitor na legitimação de um projeto político: pede-se que ele compareça; pede-se que ele vote; pede-se que ele pense no futuro; pede-se que ele deseje o progresso; incita-se ele a votar; conclama-se ele a eleger.

O que, o como, o porquê e o para que do voto

A proximidade do pleito de 1947 – no qual os eleitores canoenses elegeram seus primeiros vereadores – motivou a colocação em pauta das expectativas em torno da futura Câmara Municipal. Artigo publicado pelo Dr. Thiago Würth apontava para uma série de demandas do município, especialmente problemas relacionados ao transporte público, estradas e iluminação. O artigo de Würth estabelecia uma conexão entre as demandas da histórica comissão pró-emancipação dos anos 1930 e as realizações então recentes, remetendo, assim, à administração do prefeito Nelson Paim Terra (PSD). Estabelecendo uma relação entre estas demandas e o voto, o articulista completava: “Caberá ao eleitorado, saber escolher estes vereadores, capazes de sugerir, de estudar, de propor e de realizar. Conforme, ganharão a gratidão ou o menosprezo do povo de Canoas”.25

Em Canoas, as eleições de 1947 e 1951 foram marcadas pelo ineditismo: uma, por ter sido o primeiro pleito municipal – para formação da Câmara Municipal – e, a outra, por ter sido a primeira votação para prefeito. Assim, os diferentes grupos políticos – organizados em partidos políticos a partir de 1945 – além de lidar com o crescimento da população e do eleitorado, tiveram de sintetizar suas crescentes demandas e formular respostas e propostas que a partir de então seriam apresentadas aos eleitores.

Considerando o partido como o lugar em que se opera a mediação política, importa destacar que o homem, sozinho ou em sociedade, sente necessidades e aspirações ligadas à existência cotidiana; e que a passagem de tais necessidades à expressão de um pensamento político não é algo natural e evidente. Há uma distância considerável entre um programa político e as circunstâncias que o originaram. A mediação política se dá, conforme este autor, no espaço entre o problema concreto e o discurso político, sendo obra das forças políticas que buscam articular, numa linguagem própria, as “aspirações das populações”.26

Em discurso pronunciado na Assembleia Legislativa, o então deputado estadual Sezefredo Azambuja Vieira (PRP) identificou e sistematizou uma série de problemas relacionados ao município de Canoas. Segundo o político, dez mil trabalhadores canoenses saíam todos os dias da semana de Canoas para Porto Alegre, exercendo na capital suas atividades, se suprindo do necessário e, portanto, gastando seus salários também lá. Disso, expressava sua conclusão: “O Município de Canoas quase nada ganha da maioria de sua população. Acresce que, residindo em Canoas, todos os problemas de saúde, higiene, instrução e assistência desses contribuintes devem ser enfrentados em Canoas e às expensas de Canoas”. A solução, na sua visão, seria uma ajuda do Estado ao município, especialmente no que concernia ao transporte coletivo (barato e eficiente) e à assistência social.

No plano da assistência e da saúde, destacava a presença, em Canoas, da Associação Beneficente de Canoas – cujo principal objetivo era a construção do hospital. Porém, sem o efetivo auxílio do Estado, argumentava que o hospital não seria concluído com a urgência que a situação requeria. Outro problema citado por Sezefredo era o escoamento de água, especialmente na vila Niterói:

Constitui esse problema que a muitos tem impressionado, e para cuja solução, permito-me afirmar, a administração municipal pouco tem feito de eficiente. Verdade é que para atacá-lo de forma definitiva são necessários recursos de que a Prefeitura não dispõe.27

A “questão” das enchentes e dos alagamentos explicava-se pelo já mencionado processo de loteamento de áreas alagadiças, principalmente nas proximidades do Rio Gravataí, e que aos poucos foi se tornando um “problema” a ser formulado e equacionado pelos partidos e candidatos locais. Houve, já na metade dos anos 1940, projeto de construção de uma vila popular para remover as famílias das áreas alagadiças, no governo do prefeito nomeado Aluízio Palmeiro de Escobar. Em 1945, Escobar foi substituído no governo municipal por Nelson Paim Terra, havendo a partir de então uma grande “febre de loteamentos”.28

Os problemas de Canoas foram destacados pelo jornal Canoas em Marcha em 23 de dezembro de 1953. Artigo, assinado por Zlatopolski, trazia, mais uma vez, a causa e suas consequências: “Toda essa gente que aqui aporta, vinda de mares e portos distantes, traz em seu coração a ansiedade de encontrar um lugar de paz e de trabalho e, temos certeza, aqui encontrou”. Em seguida: “Este agrupamento, trouxe entretanto, como é natural, uma soma de compromissos para a administração, relativas a sua comodidade, exigindo água potável, ruas em condições de trânsito, escolas, transportes, força e luz, etc”. No início daquele ano, o prefeito Sady Fontoura Schivitz (PTB) havia pronunciado um discurso na homenagem recebida pelo seu primeiro ano de administração. Na ocasião, ressaltou que Canoas era um município fértil em problemas de ordem pública, alguns deles já atacados, outros ainda por serem resolvidos. Sobre isso, lançava uma justificativa: “Contando com um orçamento apoucado, para o vulto das obras a serem executadas, só Deus sabe a angústia em que tenho vivido, sabendo do que se exige e não podendo nem sequer remediar o que se necessita”.29

Em 1955, novas eleições se aproximavam, e a imprensa novamente promovia uma sistematização dos principais problemas de Canoas: “O nosso município está cheio de problemas e os aspirantes ao Poder Público Municipal devem tomar posição firme, pelo menos a respeito dos mais graves”. O jornal O Momento destacava as demandas referentes ao transporte coletivo, bem como melhoria das estradas, assistência médica e hospitalar (terminar as obras do hospital) e saneamento das zonas populosas. Tal síntese estava vinculada à proximidade das eleições municipais: “A cada dia que passa, mais próximos estamos do dia em que teremos de escolher os nossos representantes. A responsabilidade é enorme, tanto no plano municipal como no nacional”. Os editores do semanário dotavam de sentido o pleito então vindouro, e atribuíam um papel aos eleitores presumidos dentre os leitores:

As eleições que se aproximam se revestem de um caráter sumamente importante. O povo não pode continuar à margem das discussões que dizem respeito à solução dos problemas nacionais e municipais. O povo deve participar, ativamente, votando em quem merece governar.30

O jornal O Momento foi também o promotor de uma sabatina entre os candidatos a prefeito, durante a campanha eleitoral de 1955. Compareceram ao encontro, realizado no Cine Rex, os candidatos José João de Medeiros (PSP) e Sezefredo Azambuja Vieira (PRP), para serem arguidos acerca dos problemas que afligiam o município – segundo os jornalistas que conduziram as perguntas.31 Junto à notícia que descreveu a tal evento, o periódico publicou artigo de José Ferreira Netto (candidato a vereador pelo PSB), comentando o desempenho dos candidatos na sabatina. Em determinado momento, o texto torna-se uma convocação: “Devemos todos, sem distinção de classe social ou cor partidária, tomar parte ativa na vida política do Município, do Estado e do País, para evitarmos que políticos oportunistas, estimulados por nosso desinteresse, envergonhem a democracia”.32

Jornalistas, articulistas e políticos dos diferentes partidos expressavam pequenas variações em suas concepções sobre o voto, mas os principais problemas da cidade e a responsabilidade do Poder Público na sua resolução, foram aparecendo como um denominador comum. Em 15 de novembro de 1958, quando José João de Medeiros (PTB) e Hugo Simões Lagranha (PSD) eram cotados como candidatos a prefeito, o jornal Folha de Canoas reafirmava o sentido do voto e da ligação entre governantes e governados: “Aguardamos, portanto, que nossos prognósticos sejam coroados do mais completo êxito e que a escolha do povo seja o reflexo da sua vontade para a sua felicidade. Um velho axioma francês nos lembra a sua felicidade: Todo povo é digno do governo que tem”.

Na campanha eleitoral que se seguiu, os candidatos, confirmados por suas coligações, concederam entrevista, publicada em 09 de agosto de 1959 pelo jornal Gazeta de Notícias, pela qual podemos apreender as principais propostas que os candidatos a prefeito pretendiam ver divulgadas. Lagranha (PSD) sintetizou seu plano de governo: “Merecerão tratamento: transporte urbano, assistência social, saneamento pluvial, iluminação pública, assistência ao horticultor e diversas etapas, no que tange a Diretoria de Obras e Viação”. O candidato pessedista complementava que daria atenção especial ao transporte público, evitando que o trabalhador tivesse de caminhar longas distâncias para embarcar nos ônibus. Respondendo sobre o mesmo tema, Medeiros (PTB) ressaltou:

Uma equipe de técnicos, juntamente comigo, e em colaboração com os órgãos da administração estadual, está preparando desde já, o esquema administrativo da futura governança trabalhista no município. As reivindicações e os problemas das diversas vilas de Canoas estão sendo carinhosamente estudados para que se encontrem uma solução mais imediata possível.

Em 1955, quando se candidatou pelo Partido Social Progressista (PSP) em coligação com o Partido Socialista Brasileiro (PSB), o diretório municipal deste último apresentou um programa mínimo a ser defendido por José João de Medeiros. Um dos pontos do programa era lutar por um transporte público eficiente e com preços acessíveis aos trabalhadores.33 Alagamentos, transporte público, policiamento, construção do presídio, iluminação pública: temas comuns quando se tratava de expressar os problemas a serem enfrentados pelos representantes sufragados pelo eleitorado canoense, embora abordados de formas variadas por partidos e candidatos.

Considerações finais

Ao eleitorado de Canoas foi possível, a partir de 1947, eleger seus representantes para a Câmara Municipal. A ampliação do corpo eleitoral impôs a formulação de noções e práticas novas na relação entre candidatos e eleitores. O expressivo crescimento populacional e a transformação do perfil do município geraram novas demandas que tiveram de ser traduzidas por governantes, partidos políticos e candidatos. Estes, buscaram meios de mobilizar os eleitores e criar um interesse pela competição eleitoral, que a partir de 1951 passou a incluir também a eleição para prefeito.

O crescimento rápido e desordenado gerou uma série de demandas às autoridades municipais, especialmente os problemas relacionados às enchentes, ao transporte público e à falta de água potável. Esta população, em sua maior parcela formada por trabalhadores pobres e necessitados de serviços públicos, tornou-se alvo de partidos e candidatos na busca de mobilizá-la em torno das eleições. Nos períodos eleitorais, articulistas, jornalistas, editores, dirigentes partidários e candidatos manifestaram concepções sobre o voto e tentativas de apreender discursivamente os anseios dos eleitores. Em outras palavras, na tentativa de “atingir o coração do eleitor”, eles construíram uma interpretação acerca do eleitorado e formaram uma representação idealizada do eleitor.

A imprensa local cumpriu um importante papel na construção de um interesse pela competição eleitoral, divulgando o alistamento, as convenções partidárias, as listas de candidatos, bem como propostas, anúncios, entrevistas e notícias relacionados à campanha eleitoral. Por meio dela, candidatos e partidos buscaram mobilizar os possíveis eleitores, estabelecendo relações entre o voto e as demandas da população.

O estudo da mobilização eleitoral permite atingir um grau de compreensão maior acerca das práticas pelas quais os candidatos buscaram lidar com a expansão do sufrágio, sendo possível compreender as notícias, os artigos e os anúncios publicados na imprensa, bem como o instrumental de mobilização das campanhas eleitorais, não apenas como estratégias de conquista do voto, mas também como práticas que suscitam no eleitor um interesse pela competição eleitoral e estabelecem uma relação entre o voto e a vida cotidiana, demonstrando a íntima relação entre a construção do eleitor e o fazer-se eleito.

Fontes

FUNDAÇÃO DE ECONOMIA E ESTATÍSTICA. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul: censos do RS (1803-1950). Porto Alegre: FEE, 1981.

Unidade de Patrimônio Histórico e Arquivo Municipal (UPHAM)/ Prefeitura Municipal de Canoas:

DEPARTAMENTO DE POLÍCIA CIVIL. Delegacia de Polícia de Canoas. Relatório de 1952. Canoas, 1953.

DEPARTAMENTO DE POLÍCIA CIVIL. Delegacia de Polícia de Canoas. Relatório de 1953. Canoas, 1954.

O Democrata (1947-1950).

Canoas em Marcha (1951-1955).

O Momento (1955-1958).

Folha de Canoas (1958-1959).

Gazeta de Notícias (1959-1961).

Referências

ANGELI, Douglas Souza. Como atingir o coração do eleitor: partidos, candidatos e mobilização eleitoral em Canoas/RS (1947-1963). 2015. Dissertação (Mestrado em História)-Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2015.

BERSTEIN, Serge. Os partidos. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 57-94.

CANÊDO, Letícia Bicalho. Herança na política ou como adquirir disposições e competências necessárias às funções de representação política. Pro-Posições, Campinas, v. 13, n. 3, p. 169-198, 2002. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643945. Acesso em: 2 maio 2016.

CANÊDO, Letícia Bicalho. Aprendendo a votar. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2010. p. 516-543.

FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

FRENCH, John D. Los trabajadores insdustriales y el nascimiento de la República Populista en Brasil, 1945-1946. In MACKINNON, Maria Moira; PETRONE, Mario Alberto (Org.). Populismo e neopopulismo en América Latina: el problema de la Cenicienta. Buenos Aires: Eudeba, 1998. p. 59-77.

GOMES, Angela de Castro. Jango e a República de 1945-64: da República Populista à Terceira República. In: SOIHET, Rachel et al. Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 35-50.

LAVAREDA, Antonio. A democracia nas urnas: o processo partidário eleitoral brasileiro. Rio de Janeiro: Rio Fundo; IUPERJ, 1991.

OFFERLÉ, Michel. A nacionalização da cidadania cívica. In: CANÊDO, Letícia Bicalho (Org.). O sufrágio universal e a invenção democrática. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. p. 343-361.

OFFERLÉ, Michel. Perímetros de lo político: contribuiciones a una sócio-historia de la política. Buenos Aires: Antropofagia, 2011.

PENNA, Rejane. Canoas para lembrar quem somos: Rio Branco. Canoas: La Salle, 2004a.

PENNA, Rejane. Canoas para lembrar quem somos: Niterói. Canoas: La Salle, 2004b.

PROST, Antoine. As palavras. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história do político. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 295-325.

VIEGAS, Danielle Heberle. Entre o(s) passado(s) e o(s) futuro(s) da cidade: um estudo sobre a urbanização de Canoas/RS (1929-1959). 2011. Dissertação (Mestrado em História)-Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.

Notas

1 O presente trabalho é fruto da dissertação de mestrado intitulada Como atingir o coração do eleitor: partidos, candidatos e mobilização em Canoas/RS (1947-1963), defendida na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), em julho de 2015, sob orientação da Dra. Marluza Marques Harres.
2 Doutorando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista do CNPq. Mestre em História pela UNISINOS. E-mail: douglasangeli@hotmail.com
3 MACHADO, Moysés. Política municipal. Gazeta de Notícias, Canoas, 24 out. 1959, p. 6.
4 FRENCH, John D. Los trabajadores insdustriales y el nascimiento de la República Populista en Brasil, 1945-1946. In MACKINNON, Maria Moira; PETRONE, Mario Alberto (Org.). Populismo e neopopulismo en América Latina: el problema de la Cenicienta. Buenos Aires: Eudeba, 1998. p. 59-77; CANÊDO, Letícia Bicalho. Aprendendo a votar. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2010. p. 516-543.
5 LAVAREDA, Antonio. A democracia nas urnas: o processo partidário eleitoral brasileiro. Rio de Janeiro: Rio Fundo; IUPERJ, 1991; FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013; GOMES, Angela de Castro. Jango e a República de 1945-64: da República Populista à Terceira República. In: SOIHET, Rachel et al. Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
6 OFFERLÉ, Michel. A nacionalização da cidadania cívica. In: CANÊDO, Letícia Bicalho (Org.). O sufrágio universal e a invenção democrática. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. p. 343-362; OFFERLÉ, Michel. Perímetros de lo político: contribuiciones a una sócio-historia de la política. Buenos Aires: Antropofagia, 2011.
7 LAVAREDA, 1991.
8 OFFERLÉ, 2005, p. 356; 2011, p. 156.
9 CANÊDO, Letícia Bicalho. Herança na política ou como adquirir disposições e competências necessárias às funções de representação política. Pro-Posições, Campinas, v. 13, n. 3, p. 169-198, 2002. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643945. Acesso em: 2 maio 2016.
10 OFFERLÉ, 2005, p. 355-356.
11 PENNA, Rejane. Canoas para lembrar quem somos: Rio Branco. Canoas: La Salle, 2004a; PENNA, Rejane. Canoas para lembrar quem somos: Niterói. Canoas: La Salle, 2004b.
12 PENNA, 2004a, p. 18.
13 PENNA, 2004a, 2004b.
14 DEPARTAMENTO DE POLÍCIA CIVIL. Delegacia de Polícia de Canoas. Relatório de 1953. Canoas: 1954. Unidade de Patrimônio Histórico e Arquivo Municipal de Canoas/RS (UPHAM).
15 WÜRTH, Tiago. População: quase todos pobres. O Democrata. Canoas. 5 jul. 1947. (UPHAM).
16 PROST, Antoine. As palavras. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história do político. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 311.
17 Ibidem, p. 321.
18 PARTIDO Social Democrático. Restabelecimento dos subdiretórios. O Democrata, Canoas, 20 mai. 1950. Capa; PARTIDO Social Democrático. Restabelecidos, ainda, outros subdiretórios. O Democrata, Canoas, 15 de julho de 1950. Capa.
19 OFFERLÉ, 2011, p. 156.
20 No período abrangido pela pesquisa, ocuparam o cargo de prefeito em Canoas: Nelson Paim Terra (PSD)– nomeado (1945-1951), José João de Medeiros (PTB)- nomeado (1951), Arthur Pereira de Vargas (PSD) – interino (1951), Sady Schivitz (PTB) – eleito (1952-1955), Sezefredo Azambuja Vieira (PRP) – eleito (1956-1959) e José João de Medeiros (PTB) – eleito (1960-1963).
21 OFFERLÉ, 2005, p. 353.
22 ATENÇÃO eleitores. Gazeta de Notícias, Canoas, 10 out. 1959. Capa.
23 AO POVO de Canôas. O Democrata, Canoas, 25 out. 1947. p. 02.
24 AO ELEITORADO canoense (publicação do PSD). O Democrata, Canoas, n.º 10, 12 nov. 1947. Capa.
25 WÜRTH, Thiago. A Câmara de Vereadores e as aspirações do povo canoense. O Democrata, Canoas, 21 jun. 1947. Capa.
26 BERSTEIN, Serge. Os partidos. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 60-61.
27 DISCURSO do Dr. Sezefredo. Correio de Canoas, 18 nov. 1950. Capa; p. 4.
28 VIEGAS, Danielle Heberle. Entre o(s) passado(s) e o(s) futuro(s) da cidade: um estudo sobre a urbanização de Canoas/RS (1929-1959). 2011. Dissertação (Mestrado em História)-Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
29 O 1º ANO da administração. Canoas em Marcha, Canoas, 24 jan. 1953, p. 7.
30 APROXIMAM-SE as eleições. O Momento, Canoas, 24 set. 1955. Capa.
31 O QUE foi a sabatina. O Momento, Canoas, 24 set. 1955. Capa.
32 NETTO, José Ferreira. Bilhete. O Momento, Canoas, 24 set. 1955. Capa.
33 OS SOCIALISTAS vão apoiar o major Medeiros. O Momento, Canoas, 02 jul. 1955. Capa.

Autor notes

douglasangeli@hotmail.com



Buscar:
Ir a la Página
IR
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por