Resumo: Este trabalho objetiva analisar aspectos da Revolução Liberal do Porto caros ao estudo do constitucionalismo no mundo luso-brasileiro e a apropriação do contratualismo pelos deputados brasileiros nos seis primeiros anos de funcionamento do parlamento brasileiro. Estudaremos as reminiscências do ideário vintista e como os deputados Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Lino Coutinho apropriavam-se do conceito de pacto social (ou contrato social), bem como outros conceitos-chave relacionados a este, como os de nação, soberania e cidadania, presentes no imaginário político do processo de construção da nação brasileira. Nosso recorte cronológico se situa entre 1826 e 1831, período que abarca o início da primeira legislatura do Parlamento Brasileiro e o fim do Primeiro Reinado. Para este trabalho, concentramos nossa análise nos anais das sessões da Câmara dos Deputados Federais no período elencado. Estas fontes são importantes para analisarmos como esses agentes sociais, componentes das elites políticas e intelectuais, pensavam os conceitos aqui destacados.
Palavras-chave:Revolução Liberal do PortoRevolução Liberal do Porto, Vintismo Vintismo, pacto social pacto social, contratualismo contratualismo, constitucionalismo constitucionalismo.
Resumen: Este trabajo pretende analizar aspectos de la Revolución Liberal de Oporto importantes para el estudio del constitucionalismo en el mundo luso-brasileño y la apropiación del contrato social por parte de los diputados brasileños durante los seis primeros años de funcionamiento del Parlamento brasileño. Se centra en las reminiscencias del ideario vintista y en la forma en que los diputados Bernardo Pereira de Vasconcelos y José Lino Coutinho se apropiaron del concepto de pacto social (o contrato social), así como de otros conceptos clave relacionados con este, como los de nación, soberanía y ciudadanía, presentes en el imaginario político del proceso de construcción de la nación brasileña. Examinamos la situación entre 1826 y 1831, un período que abarca el comienzo de la primera legislatura del Parlamento brasileño y el fin del Primer Imperio de Brasil. Para este trabajo, hemos centrado nuestro análisis en los anales de las sesiones de la Cámara de los Diputados Federales de Brasil. Dichas fuentes son importantes para valorar la manera en que estos agentes sociales, componentes de las élites políticas e intelectuales, entendían los conceptos que aquí destacamos.
Palabras clave: Revolución Liberal de Oporto, Vintismo, pacto social, contrato social, constitucionalismo.
Abstract: The following work aims to analyze aspects of the Liberal Revolution of Porto key to a study of constitutionalism in the Luso-Brazilian world and the appropriation of contractualism by Brazilian deputies in the Brazilian parliament’s first six years since its founding. We focus on echoes of the ideology of Vintismo and how deputies Bernardo Pereira de Vasconcelos and José Lino Coutinho appropriated the concept of a social pact (or social contract), as well as other related key concepts, including those of nation, sovereignty, and citizenship present in the political imaginary of the process shaping the Brazilian nation. In order to analyze the period from 1826 to 1831, spanning as it does the earliest legislation for the Brazilian parliament and the end of the Primeiro Reinado, we focus on the annals of the Chamber of Federal Deputies. Such sources are key to an analysis of how these social agents – components of political and intellectual elites – considered the concepts highlighted here.
Keywords: Liberal Revolution of Porto, Vintismo, social pact, contractualism, constitutionalism.
Résumé: Ce travail a pour but d’analyser les aspects de la Révolution libérale de Porto chers aux études du constitutionnalisme dans le monde luso-brésilien et l’appropriation du contractualisme par les députés brésiliens lors des six premières années de fonctionnement du Parlement brésilien. Nous concentrerons notre analyse sur les réminiscences de l’idéal du Vintisme et sur la manière dont les députés Bernardo Pereira de Vasconcelos et José Lino Coutinho se sont appropriés le concept de pacte social (ou contrat social), ainsi que d’autres concepts clés liés à celui-ci, comme ceux de nation, souveraineté et citoyenneté, présents dans l’imaginaire politique du processus de construction de la nation brésilienne. Nous avons analysé la conjoncture entre 1826 et 1831, à savoir une période de qui englobe le début de la première législature du Parlement brésilien et la fin du Premier Empire. Pour ce travail, nous nous sommes particulièrement intéressés aux annales des sessions de la Chambre des députés fédéraux. Ces sources sont importantes pour analyser la manière dont ces agents sociaux, partie intégrante des élites politiques et intellectuelles, interprétaient les concepts en question.
Mots clés: Révolution libérale de Porto , Vintisme , pacte social , contractualisme , constitutionnalisme.
摘要: 本论文的目的是分析葡萄牙的波尔图市自由主义革命对巴西议会的影响,以及巴西议会创立和运行6年以来,国会议员们对契约主义的吸收和运用。作者分析了1820年代的社会思潮,以及国会代表贝尔纳多·佩雷拉·德瓦斯康塞洛斯和约瑟·利诺·科蒂尼奥的言行。他们吸收了契约主义思想 (或者说,社会契约论),以及与此相关的其它关键概念,如民族,主权和公民。作者展示了巴西民族国家建设过程的政治想象。我们关注1826到1831年之间的议会活动及其时代背景,从巴西议会第一届立法会议的开始到巴西第一帝国的结束,并且把分析的重点放在众议院的会议纪要上。这些文件的解读对于分析这些社会,政治和知识精英的言论和行为非常重要。它们有助于我们理解这些巴西精英如何思考并运用这些自由主义概念。
關鍵詞: 波尔图自由革命, 1820年代思潮(Vintism), 社会契约主义, 宪政.
Artigos
A revolução liberal do Porto e as concepções de pacto social no parlamento brasileiro (1826-1831)
La Revolución liberal de Oporto y las concepciones de pacto social en el Parlamento brasileño (1826-1831)
The Liberal Revolution of Porto and the concept of a social pact in Brazilian parliament (1826-1831)
La révolution libérale de Porto et les conceptions du pacte social au sein du Parlement brésilien (1826-1831)
葡萄牙波尔图市的自由主义革命与巴西议会的社会契约观念的形成(1826-1831)

Recepção: 12 Agosto 2017
Aprovação: 18 Dezembro 2017
Na Revolução Liberal do Porto, iniciada em agosto de 1820, as elites políticas, a nobreza e a burguesia que permaneceram em Portugal, ou as que haviam retornado, após a derrota napoleônica, requisitavam o retorno da família real portuguesa ao lugar que seria o legítimo centro do Poder no Império ultramarino português, Lisboa. Além do mais, havia o pensamento que Portugal tinha se tornado “colônia de uma colônia” e queria que a antiga posição de Portugal em relação ao Brasil fosse reconquistada. O Sinédrio – organização secreta que visava articular uma revolta contra o jugo inglês e pelo retorno da monarquia – fez um pronunciamento pela guarnição do Porto no qual foram ressaltados alguns descontentamentos com a Coroa Portuguesa, entre eles o abandono político, a má situação econômica e a interferência dos ingleses nos interesses internos de Portugal. Como afirma Neves (2003), após o dia 24 de agosto de 1820, os acontecimentos que se sucederam geraram vários mal-entendidos entre as elites lusas e brasileiras, mesmo que fossem oriundas de uma mesma cultura política.
Pretendemos, neste artigo, analisar aspectos do ideário político do Vintismo que permaneceram ativos, mesmo após o fim do movimento e que se refletiram na atuação de parlamentares na Câmara dos Deputados do Império do Brasil. É notório que as matrizes ilustradas e vintistas, somadas à experiência francesa influenciaram o pensamento político luso-brasileiro do período referido. Entretanto, escolhemos analisar como a experiência vintista foi apropriada pelos atores políticos elencados neste texto e as leituras sobre o conceito de pacto social que fizeram. Cabe salientar que a discussão em torno do novo pacto social é retomada a partir da Revolução do Porto, no âmbito português, e após a independência do Brasil, essa discussão será estancada e ressignificada para a realidade sócio-política do novo Estado nacional (brasileiro).
O Vintismo surgiu como uma revolta contra o descaso para com Portugal desde a transmigração da família real portuguesa para a América e a crise política que vivia o reino português, além de uma grande rejeição aos estrangeiros que durante doze anos subjugaram a sociedade lusa. Somando-se a isto, como lembra Pereira (2010, p. 61) , percebemos também as influências do movimento liberal espanhol, iniciado em 1808 e retomado em 1820. O movimento vintista, que surgiu no Porto, mas ganhou rapidamente todo o país, propunha a regeneração do reino português, com a recordação das Cortes de Lamego, como marco do pacto político original entre o rei e o povo luso, como também destaca Neder (2012, p. 519) . A revolução projetava um novo pacto que correspondesse à realidade transformada e, para tal, novas Cortes foram convocadas. Entretanto, é preciso salientar que, para Vantuil Pereira, algumas alas mais conservadoras da sociedade portuguesa, que estavam em solo português, de início não coadunavam com o movimento liberal.
O movimento vintista foi singular, pois trouxe à baila uma interseção de tradições e experiências, que mesmo que, por vezes, contraditórias, não poderiam ser escamoteadas. O reformismo ilustrado estava presente nos escritos e nas ações no Vintismo, mas a experiência revolucionária francesa também influenciou o movimento. Para Maia (2002, p. 14) , a Revolução do Porto estreou uma nova experiência histórica que permitiu aos seus participantes a prática de ideais que defendiam e que realmente criam. Mesmo que grande parte dos atores políticos vintistas rejeitassem a ideia de uma revolução radical nas bases da sociedade lusa – e essa ideia, ainda que minoritária, esteve presente –, as tensões existentes entre as distintas experiências não se sobrepõem à realidade sócio-política vivenciada pelos vintistas. Segundo Valdei Araújo, influenciado por Reinhart Koselleck, após fins do século XVIII e, principalmente, a eclosão da Revolução Francesa, o mundo assistiu a uma aceleração do tempo que mudou a forma como as pessoas viam o passado, o presente e o futuro. Desta forma, as ações humanas, sobretudo, as políticas, serão concebidas sobre outras bases. Araújo (2008, p. 99) afirma que “com a experiência da Revolução Francesa e seu desenvolvimento napoleônico e a transferência da Corte para o Rio de Janeiro essa aceleração do tempo começa a fugir de controle; o futuro acelera, mas se distanciando e deslocando-se das experiências do presente”. O autor acrescenta que “a imagem desse futuro é cada vez menos o reflexo do mundo antigo e começa a guardar algo de imponderável” (ARAÚJO, 2008, p. 99). Dessa feita, mesmo que haja muitas continuidades, as rupturas terão um importante papel na sociedade lusa a partir do período que temos analisado.
O movimento vintista, iniciou-se em agosto de 1820, mas suas raízes são mais profundas. A Revolução Liberal do Porto foi muito influenciada pelos ideais ilustrados que vinham se consolidando em Portugal desde as reformas pombalinas a partir de, aproximadamente, a década de 1770. Conforme já tratamos no item anterior, uma das grandes preocupações destas reformas era formar cidadãos capazes e ilustrados para a administração e a burocracia lusas. Estes homens ilustrados estavam à frente do movimento vintista, das Cortes lisboetas e, posteriormente, dos eventos que ocorreriam no Brasil. Lembrando que na América Portuguesa não havia universidades. Assim, grande parte das elites políticas e intelectuais nascidas no Brasil estudavam em Portugal e isto possibilitou o compartilhamento de um imaginário social e político.
Além de reminiscências das reformas pombalinas e marianas, o modelo revolucionário francês e o exemplo espanhol estavam muito presentes no Vintismo e nas experiências em torno das Cortes. Um exemplo disto é o conceito de soberania, que não mais passava pelo rei, mas sim pelos cidadãos; destes emanava o poder, como afirma Koselleck (1992) . A sociedade civil, composta pela união dos cidadãos/súditos – por meio do pacto social – transfere o poder político para o Estado. O rei seria o primeiro dos cidadãos, o executor do interesse comum, mas não mais o único soberano.
Neves (2003) destaca que o vocabulário político constitucional rapidamente se difundiu no reino português e suas possessões. Segundo Neves (2003), a nova linguagem se politizava, principalmente por meio das influências da Ilustração. Para Vantuil Pereira (2010, p. 64), a “contribuição do constitucionalismo para a cultura política brasileira transpassou os limites da proposta de autonomia, transformada em proposta de Independência”, muito em razão da prática política resultante deste movimento embasar os grandes temas a serem levados em consideração no sistema representativo brasileiro como a nação, as liberdades e a cidadania.
Antes mesmo do Rio de Janeiro aderir ao movimento constitucional, nas capitanias do norte da América Portuguesa esta adesão já acontecia, algumas vezes em alternativa aos líderes oficiais portugueses, como o movimento constitucionalista em Goiana, apresentado por Bernardes (2006) . Pará, Pernambuco, Maranhão e Bahia são exemplos de uma maior integração entre as Cortes de Lisboa e o norte da colônia americana, o que gerará alguns problemas na formação do Estado nacional brasileiro para o Imperador e seus ministros após a independência. Em muitos documentos desta região, é possível notar a fidelidade às Cortes e ao rei de Portugal e a oposição ao Rio de Janeiro. Contudo, D. João VI, como afirma Célia Barreto, mesmo temendo perder a Coroa portuguesa, não se interessava pelo retorno a Portugal, principalmente ao ser informado sobre a revolução liberal no Porto. Entretanto, além da pressão externa havia pelo menos três grupos de interesses no Brasil que defendiam suas posições acerca da revolução e do regresso do rei. O primeiro estava vinculado aos comerciantes portugueses, que queriam o fechamento dos portos brasileiros aos estrangeiros e a retomada do status anterior do Brasil. O segundo grupo defendia ideias mais democráticas, eram defensores da liberdade e da independência, mas além de ser fraco econômica e numericamente, não tinha uma posição una em relação à figura de D. João VI. O terceiro grupo, que pode ser chamado de partido brasileiro, era muito heterogêneo e incluía os defensores da permanência da Corte no Brasil e da derrota da revolução vintista. Mesmo com o apoio deste terceiro grupo, D. João VI teve que retornar a Portugal em 21 de abril de 1821, jurando antecipadamente a constituição que seria elaborada pelas Cortes, que foram convocadas e se reuniriam em Lisboa, e deixando seu filho D. Pedro como regente do Brasil.
Segundo Slemian (2006) , a “nova ordem constitucional moderna” somente se consolidou em Portugal a partir da Revolução Liberal do Porto, quando subjugou o arranjo político-institucional remanescente do Antigo Regime, reformulado pelo pombalismo e que tornou possível seu afloramento a partir das reformas ilustradas do século XVIII. A princípio, as eleições para as Cortes de Lisboa seriam feitas com base no regulamento indicado pelas Primeiras instruções para as Cortes portuguesas publicadas em 31 de outubro de 1820. Estas instruções abrangiam não só o Reino de Portugal, mas também os domínios ultramarinos. Contudo, as “instruções” geraram grande descontentamento e pediam a aplicação dos parâmetros eletivos estabelecidos em Cádis. Depois de um levante militar e da demissão de representantes do Porto no governo, em novembro de 1820 foram publicadas novas instruções seguindo rigorosamente os critérios de Cádis e assim as Cortes puderem ser instaladas.
Para Jancsó e Pimenta (2000) , a “nação brasileira” referida à ideia de Estado, torna-se pensável a partir da elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. Com este movimento, o Reino do Brasil passou a ser uma “comunidade política imaginável” (JANCSÓ; PIMENTA, 2000, p. 419). Contudo, isso não se deu de maneira homogênea e linear. Jancsó e Pimenta (2000, p. 422) sugerem que os movimentos de 1817 e 1820 – citados anteriormente – eram “movidos pela perspectiva de nova ordem social e política que emergiriam (pela via da revolução)”. Os autores afirmam que a nação brasileira não se formou logo após a ruptura do pacto político. Além deste aspecto, também se deve atentar para o fato de que “o Brasil era tido por um conjunto disperso, um agregado de ‘Províncias [que] são outros reinos que não tem ligação com os outros” (JANCSÓ; PIMENTA, 2000, p. 431). Para além das diferenças entre os “brasileiros”, a união das províncias americanas (com problemática adesão do Norte posteriormente), respondendo ao centro de poder no Rio de Janeiro, se tornou a alternativa mais viável. Após a independência, a influência vintista não cessou e a discussão em torno do pacto social, envolto em uma aura constitucional estava em discussão nos primeiros anos dos trabalhos parlamentares brasileiros.
Dentre os parlamentares brasileiros, elencamos dois para analisar seus discursos, em razão de sua relevância como agentes sócio-políticos do período em tela e pela maneira como utilizam o conceito de pacto social. São eles: Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Lino Coutinho. Os dois deputados que escolhemos, além de suas especificidades de vocabulários, leituras e atuações, vinculam a noção de pacto social com a de Constituição, algo já iniciado no movimento vintista. Estes parlamentares, cada um a sua medida, apropriam-se de conceitos contratualistas e constitucionalistas e os usam como instrumentos cruciais para as suas atuações como sujeitos políticos de um período peculiar da história do Brasil, o pós-independência e o início dos trabalhos parlamentares. Cabe neste artigo refletir sobre como os dois deputados articulam o conceito e a discussão sobre ele na Câmara dos Deputados. A aplicação do conceito de pacto social é muito importante para nós, pois torna possível uma análise sobre os alcances e conexões entre o constitucionalismo e o contratualismo no período estudado. Por isso, analisaremos como os deputados Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Lino Coutinho trataram esse assunto.
O deputado Bernardo Pereira de Vasconcelos foi eleito por Minas Gerais para a primeira e a segunda legislaturas. Nasceu em Vila Rica (Ouro Preto) em 27 de agosto de 1795 e viveu em Congonhas do Campo, em Mariana e em Vila Rica até ingressar nos cursos de Direito e Filosofia em 1814 na Universidade de Coimbra. Bernardo de Vasconcelos era filho de D. Maria do Carmo Barradas, nascida no Brasil, e de Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, nascido em Portugal e criado no Brasil. O pai de Bernardo de Vasconcelos estudou Leis na Universidade de Coimbra reformada, formando-se em 1782. Outro fato interessante sobre o pai de Bernardo de Vasconcelos é que ele chegou a ser preso entre 24 e 29 de maio de 1789, como um dos suspeitos da Inconfidência Mineira. Posteriormente foi solto, mas Sousa (2015) aponta que havia indícios de seu envolvimento e de sua relação com acusados no processo.
Após a conclusão de seus estudos em Coimbra, Bernardo de Vasconcelos retornou de Portugal e atuou como advogado até ser eleito como deputado para a primeira legislatura em 1826. Durante o período que estudamos, Vasconcelos, cuja atuação pode se caracterizar como moderada, destacou-se como um dos principais expoentes da oposição ao Imperador D. Pedro I. Vasconcelos também era reconhecido pela sua oratória, era combativo e zombador, conquistando, por isso, muitos inimigos. Sousa ressalta que Vasconcelos aprendeu mais sobre o liberalismo depois de Coimbra. O deputado, inclusive, era muito crítico a sua formação na universidade coimbrã.
Após conhecermos um pouco sobre a biografia de Bernardo Pereira de Vasconcelos, analisaremos fragmentos de sua atuação a fim de refletir acerca de sua apropriação do conceito de pacto social que nos é caro neste trabalho. Vasconcelos, no dia 1º de junho de 1826, em uma discussão sobre o juramento da Constituição como procedimento para a concessão de direitos de cidadania, defende que:
Não se pode dizer que o juramento da constituição não seja necessário para qualificar o cidadão brazileiro. Isto é um principio de direito publico: é o pacto, pelo qual o homem obriga todos os outros, por consequência indispensável em uma sociedade que se organiza debaixo de uma nova forma: esta é a sua lei primaria; porque por ella é que se obriga os cidadãos a virem prestar o seu consentimento (BRASIL, 1 jun. 1826, p. 11).2
Vasconcelos complementa sua argumentação nos parágrafos seguintes, em resposta ao deputado Manuel de Souza França, onde diz que, para ele, “não deve passar o princípio de que são cidadãos, os que tendo nascido no Brazil, não tem jurado a constituição” (BRASIL, 1 jun. 1826, p. 12). Mais adiante acrescenta que “é pois evidente a necessidade de que o pacto social seja expressamente adoptado por todos os brasileiros e os poucos que tem deixado de jurar, tem mostrado que não o querem e por isso perderam os foros de cidadãos brasileiros” (BRASIL, 1826, p. 12). Ou seja, o deputado Vasconcelos condiciona o exercício da cidadania à aceitação e juramento do contrato social – que aqui aparece como sinônimo da Constituição. Bernardo de Vasconcelos explicita, mais de uma vez, que a Constituição, cunhada em uma sociedade organizada em uma “nova forma” (caso brasileiro) obrigaria todos os cidadãos a jurarem e darem seu consentimento. Para Vasconcelos, os que não o fizessem estariam excluídos do pacto. Diferentemente do seu interlocutor imediato nesta discussão, Souza França, que afirma que, sendo a Constituição aceita e jurada pela maioria dos brasileiros, aqueles que não o fizessem também estariam sujeitos à sua jurisdição.
Vasconcelos continua defendendo que haja uma unanimidade no juramento à Constituição e aqueles que não seguissem esse preceito deveriam ser renegados. O deputado ao defender suas ideias se apoia em autores com posicionamentos distintos sobre os assuntos em discussão, como por exemplo Jean-Jacques Rousseau e Benjamin Constant.3 Entretanto, em relação ao pacto social, a visão da necessidade de unanimidade defendida por Bernardo Pereira de Vasconcelos se assemelha ao que defende Rousseau (1978, livro IV, cap. II, p. 120) – mesmo que este não se refira ao pacto social como uma Constituição escrita, pois para ele “existe uma única lei que, pela sua natureza, exige consentimento unânime – é o pacto social, por ser a associação civil”. Contudo, “se, quando surge o pacto social aparecem, pois, opositores, sua oposição não invalida o contrato, apenas impede que se compreendam nele” (ROUSSEAU, 1978, livro IV, cap. II, p. 120). Ou seja, a unanimidade é necessária, mas sua inexistência não pode paralisar o Estado. Nesse caso, a vontade geral e da maioria coincidem. Os que não participassem do pacto seriam renegados, como afirma Vasconcelos.
A partir da análise dos trechos acima e de pressupostos da história dos conceitos, podemos entender que os conceitos são como elos que unem a linguagem e o mundo extralinguístico, a realidade social. Koselleck ainda afirma que a história dos conceitos pode ser reconstruída pela análise da recepção ou tradução destes conceitos que são usados pela primeira vez no passado e que são apropriados e ressignificados por gerações posteriores. O registro da utilização de um conceito, com seus sentidos mantidos e transformados pode se denominar de história dos conceitos e não somente o estudo dos significados formais ou dicionarizados. O uso dos conceitos também é relevante, pois a partir dele podemos entender como um conceito utilizado por diferentes intelectuais dos séculos XVII e XVIII, pode, a partir de fins deste século e inícios do século XIX, ser ressignificado e modificar seu emprego. Podemos pensar, assim, como um acordo pode transformar-se em uma Constituição, ou até como este pacto se tornou uma etapa para as constituições. Entretanto, Bödeker (2013. p. 21) ressalta que a análise não deve se ater radicalmente ao uso do conceito, sem levar em conta a sua validade comunicativa e o conhecimento do significado do termo linguístico empregado.
Em outra discussão sobre as condições de cidadania atreladas ao pacto social, como Constituição, o deputado Bernardo Pereira de Vasconcelos se posiciona contrário a um requerimento de Joaquim Ignacio de Lima, o qual reivindicava a concessão de cidadania brasileira. Lima continuou servindo ao exército português após a ruptura política entre Brasil e Portugal. Vasconcelos defende que como este soldado não atendeu à proclamação de D. Pedro I aos brasileiros e não retornou imediatamente ao Brasil – fazendo-o somente após o juramento da Carta Constitucional de 1824 – este não teria o direito de ser cidadão brasileiro. O deputado Paula Cavalcante, que havia discursado antes de Vasconcelos, disse que não haveria provas de que o soldado ignorou as convocações do Imperador, recomendando a concessão dos “direitos de cidadão brazileiro” (BRASIL, 8 maio 1829, p. 25). Vasconcelos, respondendo a Cavalcante, defende que “ele recorra ao poder judiciário, e mostre que nunca faltou a nenhuma das condições do pacto social, e que por consequência é injustamente expelido do gremio da sociedade brasileira, e se o poder judiciário lhe faltar à justiça, então requeira, e será attendido” (BRASIL, 8 maio 1829, p. 25). O deputado Vasconcelos ainda comenta o fato do soldado só ter retornado ao Brasil após a outorga e o juramento da Constituição. O deputado põe em dúvida o retorno de Lima, caso a outorga da Constituição não tivesse ocorrido. Vasconcelos ainda afirma que o militar teria continuado a trabalhar para um governo em guerra em decorrência da ruptura política. Como podemos perceber, o deputado Vasconcelos, além de defender a Constituição com afinco, possuía uma fidelidade ao simbolismo que o pacto social representava.
No dia 22 de maio de 1830, em outra discussão sobre as condições para a dotação do título de cidadão brasileiro, Bernardo Pereira de Vasconcelos continua destacando requisitos para esta concessão, como a residência no momento da formação do pacto social, mesmo que preferisse também o nascimento em solo brasileiro como requisito imprescindível:
Não se faria nenhuma injustiça quando se dissesse: vós não sois cidadão brazileiro, só quem tem direito de ser cidadão brazileiro são aquelles que nascerão no Brazil, quando ele tratou de formar seu pacto não se oppuzerão a ele, porém os que são cidadãos brazileiros por uma graça da constituição do Imperio, e para se considerar cidadão brazileiro é porque habitava no Brazil, para que os outros estrangeiros não se considerassem cidadãos brasileiros (BRASIL, 22 maio 1830, p. 204).
Para Vasconcelos, estavam bem claras estas condições: ser brasileiro nato, estar no Brasil e não se opor à “causa brasileira”. Segundo Vasconcelos, no caso de a primeira faltar ao requerente, as outras duas eram indispensáveis. Em suas falas, Vasconcelos evidencia um forte antilusitanismo, como apontado por Ribeiro (2002) em seu livro A liberdade em construção, onde, entre outras questões, aclara como era o discurso em torno da figura do português no contexto da independência política e posteriormente a esta.
Vasconcelos tinha uma contínua participação nos debates na Câmara dos Deputados, com seu posicionamento firme sobre os assuntos em pauta e, por vezes, gerava acaloradas discussões. Ele não se esquivava de temas polêmicos, como o do dia 22 de maio de 1828 que discutia a justificativa do bispo do Maranhão, Marcos Antonio de Sousa (eleito pela Bahia), para a sua ausência nas sessões da Câmara por ter compromisso com sua ocupação (religiosa) no Maranhão. Pereira de Vasconcelos defende que se ele não podia ou não conseguia exercer o cargo de representante de sua província no Parlamento, para o qual foi eleito pelos cidadãos, não deveria exercer a função que possuía onde radicava-se, ou seja, ser bispo da Igreja Católica no Maranhão. No debate disse que “do contrato social resulta a todo cidadão a obrigação de contribuir para a prosperidade de sua pátria, por consequência todo aquelle cidadão que falta a esta obrigação deve ser punido” (BRASIL, 22 maio 1828, p. 137) e que “nenhuma das razões dos Sr. Deputados tem abalado os meus argumentos fundados no pacto social, que é a constituição do império” (BRASIL, 22 maio 1828, p. 142). O deputado evoca o pacto social – mais uma vez como correspondente à Constituição – defendendo sua tese de que “não se prestão a servir os seus empregos aquelles, que não se prestão a servir no honroso emprego de deputados da nação” (BRASIL, 22 maio 1828, p. 142). Para Vasconcelos, o interesse comum, representado pelos votos dos cidadãos estaria acima dos interesses individuais e/ou setoriais do Bispo do Maranhão e da Igreja.
O deputado José Lino Coutinho foi eleito pela Bahia para a primeira e a segunda legislaturas. Nasceu em 24 de março de 1784, em Salvador, filho de pai nascido em Portugal e mãe nascida no Brasil. Neves (2003, p. 63) e Kraay (2006, p. 305) afirmam que Lino Coutinho estudou Medicina na Universidade de Coimbra. Segundo Pereira, ele também se formou na França, na Universidade de Montpellier, inclusive tendo ficado mais conhecido como médico do que como político. Pereira (2012) diz que Lino Coutinho era um “ilustrado”, possuindo uma biblioteca com cerca de 150 livros.
O deputado Lino Coutinho liderava, juntamente com Bernardo Pereira de Vasconcelos, a oposição a D. Pedro I. Lino Coutinho, liberal formado na Europa, procedeu “a uma leitura sobre a política, a representação e os direitos do cidadão nos quais ao Estado cabia agir para resguardar as garantias fundamentais” (PEREIRA, 2012, p. 66). Foi um deputado arrojado, muito erudito e considerado o mais atuante da primeira legislatura por Pereira. Destacava-se por sempre defender os interesses baianos, como muitos outros que se alinhavam aos interesses provinciais, devido à nação nesse período ainda estar em formação. Assim como Bernardo de Vasconcelos, foi membro da comissão de Constituição durante grande parte do período em que foi deputado. Coutinho era aliado de Bernardo de Vasconcelos, dificilmente contrariando-se, e Antonio Pereira Rebouças era seu conterrâneo.
Em discussão sobre o currículo dos cursos de direito que seriam fundados no Brasil em 1827, na sessão do dia 7 de agosto de 1826, o deputado José Lino Coutinho defende que o “corpo legislativo”, ou seja, a Câmara dos Deputados, aprove os compêndios que serão utilizados nos cursos jurídicos, assim como os lentes (professores) destes cursos. Neste ponto fica evidente a tensão ou luta por poder entre a Câmara e o Imperador, como afirma Pereira (2010).
Na mesma fala, ao fazer sua proposta do programa do curso de direito, no quarto ano, Lino Coutinho cita como cerne o estudo do pacto social, aqui como sinônimo de Constituição:
No 4º anno, direito publico, explicado pelas constituições dos diversos povos, e a analyse da nossa constituição. Reservo para o 4º anno estes estudos, porque desejo que o estudante, que nelles entrar, venha preparado com os preliminares necessários. Toda a sociedade supõe um pacto ou expresso ou tácito pelo qual se julgão ter dado os membros, que a compõe, o seu consentimento, para sujeitarem-se aos encargos que dela lhe provêm juntamente com os commodos. Logo nada há mais natural, do que examinar qual é esse pacto, quaes as obrigações dos súbditos e os seus direitos, e quaes os direitos e obrigações dos que mandão. Devem pois os cidadãos instruir-se das suas leis, do seu pacto social; entendêl-o bem, decoral-o e nunca esquecêl-o (BRASIL, 7 ago. 1826, p. 68).
No dia 31 de agosto de 1826, ainda discutindo sobre os cursos de direito, ele destaca que o direito natural deveria ser ensinado desde o início dos estudos, ou seja, no primeiro ano, e aponta ainda a importância deste para o estudo do direito pátrio, que depende do primeiro. Sobre o segundo, Coutinho ainda defende que:
Nada é mais próprio do que estudar-se o direito publico universal e pátrio: no 1º, abrangem-se todos os princípios geraes do direito publico das nações; e no 2º, compreende-se esta sciencia aplicada às nossas leis políticas, ao nosso pacto social. Logo, não é preciso declarar-se a analyse da constituição pátria, por que, dizendo-se direito publico nacional, diz-se direito constitucional pátrio. Qual é o compendio do nosso direito publico? A constituição pela qual deve ser explicado (BRASIL, 31 ago. 1826, p. 327).
O deputado Lino Coutinho, nos trechos supracitados de sua fala, apresenta um conhecimento, mesmo que básico, da teoria do contrato social, pois afirma que “toda a sociedade supõe um pacto ou expresso ou tácito”, umas das amostras da interseção entre contratualismo e constitucionalismo no período estudado. O pacto social, além de possuir por vezes o mesmo significado, sendo utilizado como sinônimo, ou seja, tido como “pacto constitucional”, também está presente em falas que versam sobre a origem das sociedades e nações e, neste caso, não como imediato sinônimo, mas como etapa para a elaboração de uma Constituição política, “pacto originário”. Outro detalhe da fala de Lino Coutinho é sua argumentação sobre o consentimento “para sujeitarem-se aos encargos que dela lhe provêm juntamente com os commodos”, o que pudemos analisar acima ao apresentarmos o “pacto de sujeição”, que demonstra a necessidade de sacrifício em prol do pacto que remete ao interesse comum (público). Um aspecto que não poderíamos deixar de salientar é o uso do termo súdito em similitude a cidadão, evidenciando a transição das mudanças conceituais do período, no qual aquele, gradativamente, vai perdendo espaço para este.4
Lino Coutinho, no dia 22 de junho de 1826, em uma discussão sobre um projeto vindo do Senado, que versava sobre a cidadania, apresenta um entendimento próximo ao de Bernardo Pereira de Vasconcelos sobre requisitos para a cidadania brasileira. Ele afirma que:
Quando nós temos um artigo tão amplo na constituição, quando naquela lei fundamental, no nosso pacto social, se declara que são cidadãos brasileiros, todos os nascidos no Brasil, quer estejão, quer não residindo no Império, como é que se póde duvidar, que aquelle artigo revogou todas as leis e ordens anteriores e igualou a todos os cidadãos para participarem dos direitos que ella nos outorgou [...] (BRASIL, 22 jun. 1826, p. 223).
Para Lino Coutinho, a adesão ao pacto social se dá pelo nascimento, ou seja, uma ligação natural com o Brasil, ou pela residência no momento da independência ou logo depois. Sua visão é mais abrangente que a de Vasconcelos, mas não foge aos outros parâmetros que definiam a cidadania no Brasil. Lino Coutinho possuía, também, uma posição crítica ao simples juramento da Constituição (pacto social) como parâmetro para a concessão de cidadania brasileira a estrangeiros, como na sessão de 1º de junho de 1826 (BRASIL, 1 jun. 1826, p. 11), na qual criticou que, ainda naquele ano, estrangeiros, principalmente portugueses, estavam assinando os livros das câmaras municipais, jurando adesão à “causa do Brasil”, como afirmam Gladys Ribeiro e Iara Souza, e alcançando direitos de cidadão. Para Coutinho, este direito deveria caber aqueles que no Brasil se encontravam no contexto da independência ou os que imediatamente para aqui vieram, a fim de aderir à causa brasileira.
É importante ressaltar que Lino Coutinho não perde de vista a ideia de um pacto originário para a fundação do pacto constitucional. Coutinho pensa o pacto social para além de ser a Constituição escrita. O ato fundacional da nova nação seria muito importante em seus apontamentos sobre o sistema constitucional. Por vezes, ao lermos suas falas podemos pensar em pacto social e Constituição como unidades diferentes, mas um olhar mais atento nos permite perceber que o segundo representa e parte do primeiro. Como podemos analisar quando Coutinho diz que “cada um de nós interpretou a constituição pela sua hermenêutica, porém eu interpretei a constituição pela hermenêutica dos deputados, que é aquella de se entender a constituição literalmente, aquella de não se afastar dos fundamentos do nosso pacto social” (BRASIL, 16 maio 1828, p. 87).
Podemos notar no trecho abaixo, três ideias que temos trabalhado e que estão em torno da noção de pacto constitucional: “Como é que o ilustre deputado quando discorre em matérias politicas admite o pacto social? Porque admite essa lei fundamental como convenção? Ora nós devemos respeitar a opinião publica, e até os costumes do povo” (BRASIL, 15 set. 1830, p. 513). Estes conceitos, pacto social, lei fundamental e convenção, demostram a grande interseção entre o contratualismo e o constitucionalismo no período em tela. Eles aparecem como sinônimos de uma Constituição escrita. Contudo, por vezes, representam mais do que esta, remetendo a um acordo firmado entre os brasileiros, acordo este que se constituiu na ruptura com Portugal e na fundação de uma nova nação. Já ressaltamos o grande simbolismo inerente ao conceito de pacto e aos demais conceitos aqui elencados, mas esta ênfase se torna necessária, pois para estes atores políticos, o discurso em torno deles fazia muito sentido. Seus discursos diziam muito sobre o projeto de nação de cada um. No dia 21 de maio de 1831, já depois da abdicação de D. Pedro I, em um debate sobre a Regência, Lino Coutinho desenvolve seu argumento sobre a delegação de poder do povo aos deputados, também utilizando os conceitos de pacto social e lei fundamental:
Não era necessário voltar ao princípio do pacto social, entregando ao povo as atribuições que se tiravam à regência, porquanto o pacto social está feito, e a constituição dá a assembleia geral o poder de tirar à regência as atribuições que lhe parecer a este poder, que a constituição dava, era concedida pela nação; porque a lei fundamental era a vontade escripta da nação (BRASIL, 21 maio 1831, p. 75).
Mesmo com a abdicação de D. Pedro I, para Coutinho, o pacto social não estava abalado, ele era testificado pela Constituição. Coutinho, neste debate sobre a Regência,5 usa o argumento de que o pacto estaria intacto para defender que, no caso debatido, não seria necessário retornar ao “princípio do pacto social”, ao acordo fundador, pois aquela situação estaria prevista na Constituição, “lei fundamental”, e, como ela ainda era válida, seria atribuição da Assembleia tirar o poder da Regência.
Em um debate sobre a possibilidade de dissolvição do Parlamento, Lino Coutinho reconhece que isso foi “incluído nos pactos sociais” pelos reis durante a história. Contudo, usa como exemplos distintos a Constituição inglesa, consuetudinária, e a brasileira, escrita. Coutinho avança ao dizer:
Que o rei da Inglaterra para não perder este direito [de dissolver o Parlamento], na segunda sessão sempre o dissolve: que havia diferença entre o pacto social do Brazil e a constituição inglesa; pois o do Brazil era escripto, e declarava que os poderes todos dimanão da nação, não podendo, portanto, dar-se maior valia ao chefe da nação do que a qualquer outro poder (BRASIL, 26 maio 1831, p. 105).
Para o deputado, como a soberania era da nação e foi esta que elegeu os parlamentares, o monarca, por sua vontade própria, não poderia fazê-lo. Coutinho ainda continua sua fala questionando quem poderia dizer quem tem mais autoridade, o executivo ou o legislativo. Segundo Coutinho, os poderes são iguais. Sendo assim, um não poderia dissolver o outro, mas para o deputado se alguém pudesse dissolver o Parlamento deveria ser o próprio “corpo legislativo” (BRASIL, 26 maio 1831, p. 105), pois se este poder for “conferido ao monarca, ele o não empregará para benefício da nação, mas, na maior parte das vezes, [será] para deixar de cumprir com as suas obrigações” (BRASIL, 26 maio 1831, p. 105).
Esse debate remete à questão do Poder Moderador e do Poder Executivo, ambos exercidos pelo Imperador, sendo este último através de seus ministros. Barbosa (2002) , afirma que durante a análise do projeto de Constituição que seria outorgado em março de 1824 como Constituição do Império do Brasil e nos trabalhos da Câmara dos Deputados este assunto esteve em voga. O Poder Moderador, que não constava no projeto de Constituição de 1823 (“Constituição da Mandioca”), foi aplicado como uma adaptação do poder neutro ou poder real de Benjamin Constant e seria a “chave de toda a organização política” (BRASIL, 1824, tít. 5°, cap. I). Servindo para “manter a independência, equilíbrio e harmonia entre os demais poderes políticos” (BRASIL, 1824, tít. 5°, cap. I), este poder poderia intervir nos outros três poderes, nomear senadores (vitalícios), suspender magistrados, entre outras prerrogativas (BRASIL, 1824). Constant afirmava que o poder neutro tinha como finalidade promover a harmonia entre os outros três poderes e tinha relação com a ideia de estabelecer limites ao poder, a fim de que não ocorressem arbitrariedades por parte do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário. Constant defendia que o monarca, no exercício do poder real, era irresponsável. Dessa feita, o Poder Moderador não seria culpabilizado por atos cometidos por este poder, já os ministros de Estado responderiam pelo Poder Executivo. Entretanto, estes sim poderiam ser responsabilizados e punidos. É importante salientar que muitas atribuições que posteriormente (e atualmente) passaram a ser do Executivo eram divididas pelos dois poderes (Moderador e Executivo), como a nomeação de ministros de Estado e a sanção de leis, o que na Constituição de 1824 era atribuição do Moderador.
A Carta Constitucional também previa a dissolução da Câmara como atribuição do Poder Moderador e é este ponto que Lino Coutinho ataca acima, o que revela muito da tensão entre os poderes ocupados pelo monarca e pela Câmara antes da Abdicação. Coutinho questiona a soberania do rei para executar esse ato, pois a soberania reside na nação, por meio de seus representantes e não na figura de um monarca. Segundo Barbosa, essa falta de legitimidade já aparecia em debates antes mesmo da outorga da Constituição, em Câmaras municipais como de Itu e Recife. Frei Caneca, por exemplo, criticava os atos como dissolução da Assembleia Geral Constituinte e a convocação de um Conselho de Estado para redigir a Constituição, cometidos pelo Imperador. Para Caneca, ao fechar a Assembleia, o Imperador rompeu o pacto que tinha sido instituído a partir da ruptura com Portugal. A Constituição que deveria ser a “ata do pacto social” (BERNARDES, 1997, p. 162), sendo realizada a partir de um ato que destituía a soberania nacional, não mais representava o consenso. Para Caneca, e também Coutinho, a soberania nacional está acima do princípio monárquico e do poder real, ainda que os respeite.
O constitucionalismo e o contratualismo ganharam espaço no ideário e no vocabulário político luso-brasileiro, concomitantemente, mesmo que este já estivesse presente a partir de leituras jusnaturalistas dos escolásticos ou pelas obras de autores como Samuel Pufendorf e Emer de Vattel e, também, através das experiências revolucionárias na França e nos Estados Unidos (sem falar na Espanha a partir de 1808). É a partir do Vintismo e seus desdobramentos, que ambas concepções vão se estabelecer no sistema político-social luso-brasileiro, imiscuindo-se, por vezes. As apropriações do conceito de pacto social, e outros a ele relacionados, nos mostram como contratualismo e constitucionalismo estão imbricados na nova ordem constitucional iniciada com a Revolução Liberal do Porto e consolidada com a implantação do sistema legislativo no mundo luso-brasileiro.
Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Lino Coutinho participaram das duas primeiras legislaturas do Império Brasileiro e fizeram parte da fundação e consolidação do sistema parlamentar brasileiro. A primeira legislatura (1826-1829) apresentou-se como momento de conhecimento do sistema representativo por parte dos parlamentares. Entretanto, também foi palco de importantes e intensos debates que começaram a apresentar o quadro político do Império nos anos que seguiram a 1829. Na segunda legislatura (1830-1833 – nos limitamos a 1831), passaram a fazer parte, os conflitos e tensões se acirraram, o lócus do poder passou a ser cada vez mais disputado e o panorama político entrou em um novo momento – que resultará na Abdicação de D. Pedro I. Os dois deputados que destacamos estavam no centro de poder e participaram de debates que apontavam as tensões que existiam, principalmente, entre a Câmara e o Imperador. Estes agentes políticos faziam parte da chamada oposição ao Imperador, mesmo que interesses e circunstâncias os fizessem, por vezes, mudar de posição. Uma preocupação que tivemos foi pensar como cada um destes parlamentares articulava a ideia de pacto social e a de Constituição, o que podemos perceber como uma de suas marcas. Interessou-nos também mostrar como, mesmo em um momento de certa instabilidade conceitual, estes atores políticos – com suas particularidades – compartilhavam as noções de constitucionalismo e contratualismo.