Resumo: Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso, afirma que o mito de São Tomé é o único mito da conquista de procedência luso-brasileira. Diferentemente do mundo castelhano, que se orientou, desde as primeiras cartas de Colombo, por questões imaginárias relativas à ideia de Paraíso terreal, de fonte da juventude, de amazonas e seus tesouros, do Rei branco e suas montanhas de ouro, o mundo português se nutriu mais modestamente e de forma especial do imaginário em torno da mitologia de São Tomé e de sua passagem pelo mundo. No Brasil, lê-se já nas primeiras cartas de Manuel da Nóbrega o termo “Sumé” para designar a figura de Tomé e fazer referência a pegadas humanas e a um misterioso mensageiro de verdades sobrenaturais que estabelece a comunicação entre Brasil e Índia, e dessas regiões com o mundo católico-português. O mito de Tomé ou Sumé funcionaria, assim, como uma solução histórica ou uma tentativa intelectual e imaginária de ligar o Brasil à Ásia e ambos à cosmologia cristã.
Palavras-chave:mito luso-brasileiromito luso-brasileiro,São ToméSão Tomé,SuméSumé,período colonialperíodo colonial,século XVIséculo XVI.
Resumen: Sérgio Buarque de Holanda, en Visão do Paraíso, afirma que el mito de Santo Tomé es el único que existe de la conquista de procedencia luso-brasileña. A diferencia del mundo español, que se orientó, desde las primeras cartas de Colón, por cuestiones imaginarias relativas a la idea de paraíso terrenal, de fuente de la juventud, de amazonas y sus tesoros, del rey blanco y sus montañas de oro, el mundo portugués se nutrió más modestamente y de forma especial del imaginario en torno a la mitología de Santo Tomé y de su paso por el mundo. En Brasil, ya en las primeras cartas de Manuel da Nóbrega se puede leer el término Sumé para designar a la figura de Tomé y hacer referencia a huellas humanas y a un misterioso mensajero de verdades sobrenaturales que establece la comunicación entre Brasil y la India, y de esas regiones con el mundo católico portugués. El mito de Tomé o Sumé funcionaría, así, como una solución histórica o un intento intelectual e imaginario de conectar Brasil con Asia y ambos con la cosmología cristiana.
Palabras clave: mito luso-brasileño, Santo Tomé, Sumé, período colonial, siglo XVI.
Abstract: In Vision of Paradise, Sérgio Buarque de Holanda affirms the myth of São Tomé as the only conquest myth of Luso-Brazilian origin. Unlike the Castilian world, which was guided – as of the earliest letters penned by Christopher Columbus – by imaginary questions on the idea of Paradise on Earth, the source of youth, the Amazon and its treasures, and the white king and his mountains of gold, the Portuguese world was more modestly and uniquely nourished by a fantasy based on the mythology of São Tomé [Saint Thomas] and his journey around the world. In Brazil, Manuel da Nóbrega’s earliest letters on the term “Sumé” are used to refer to the figure of Tomé, to human footprints, and to a mysterious messenger of supernatural truths establishing communication between Brazil and India, and these regions with the Catholic-Portuguese world. The myth of Tomé or Sumé thus serves as a historical solution or an intellectual and imaginary attempt to link Brazil and Asia and both to the Christian cosmology.
Keywords: Luso-Brazilian myth, São Tomé [Saint Thomas], Sumé, colonial period, sixteenth century.
Résumé: Dans son ouvrage Visão do Paraíso, Sérgio Buarque de Holanda affirme que le mythe de São Tomé est le seul mythe de la conquête d’origine luso-brésilienne. À la différence du monde castillan, qui s’est fondé dès les premières lettres de Christophe Colomb sur un imaginaire lié au paradis terrestre, à la source de jouvence, aux amazones et à leurs trésors, au Roi blanc et à ses montagnes d’or, le monde portugais s’est quant à lui beaucoup plus modestement et essentiellement nourri de la mythologie de São Tomé et de son passage par notre monde. Pour ce qui est du Brésil, on peut déjà lire dans les premières lettres de Manuel da Nóbrega le terme « Sumé » pour désigner la figure de Tomé et faire référence à des empreintes humaines et à un mystérieux messager de vérités surnaturelles établissant des communications entre le l’Inde et le Brésil, puis entre ces régions et le monde catholico-portugais. Le mythe de São Tomé ou Sumé fonctionne ainsi comme une solution historique ou comme une tentative intellectuelle et imaginaire de faire le lien entre le Brésil, l’Asie et la cosmologie chrétienne.
Mots clés: Mythe luso-brésilien, São Tomé, Sumé, période coloniale, XVI. siècle.
摘要: 巴西学者,历史学家赛尔吉奥·布阿克·德贺朗德(Sérgio Buarque de Holanda) 在其著作《天堂的视野》(Visão do Paraíso) 指出,圣多美神话是唯一产生于葡裔巴西的征服神话。与西班牙的征服神话有所不同——它从哥伦布的第一封信开始,卡斯蒂利亚的征服世界神话包含了关于地上天堂,不老之泉,亚马逊河和它的宝藏,白色国王和他的金色山脉等等。葡萄牙的征服神话更多是围绕圣多美神话展开其对世界的想象。在巴西,早期殖民时代的曼努埃尔·达·诺布雷加神父(Manuel da Nóbrega) 的头几封通信里,已经使用“Sumé”一词,用以指称圣多美(São Tomé),并且把他当作神秘的超自然真理的信使,从而建立巴西和印度之间的交流以及巴西和葡属天主教世界的纽带。因此,圣托马斯(或写作圣多美,苏姆)的神话可以算作一种历史解决方案,一种将巴西与亚洲以及基督教宇宙学联系起来的一次理性的尝试。
關鍵詞: 葡萄牙—巴西神话, 圣多美(São Tomé), 苏姆(Sumé), 殖民时期, 16世纪.
Artigos
O mito de São Tomé ou Sumé: O nexo teológico-político entre o Oriente e o Ocidente
El mito de Santo Tomé o Sumé. El nexo teológico-político entre Oriente y Occidente
The myth of São Tomé or Sumé [Saint Thomas] and the theological-political nexus between the East and the West
Le mythe de São Tomé ou Sumé. Le lien théologico-politique entre Orient et Occident
圣多美或苏姆的神话:东西方之间的神学—政治联系
Recepção: 11 Agosto 2019
Aprovação: 05 Dezembro 2019
Antes que os esforços e investimentos portugueses se voltassem para a implementação de um Governo no Brasil, as atenções destinavam-se ao Oriente, sobretudo às praças e feitorias da Índia e, pouco depois, à Malaca, considerada a “segunda cabeça do Índico” (COSTA; RODRIGUES, 2017, p. 228). A região dos mares do Sul ou Insulíndia, compreendendo Malaca, na atual Malásia, as Ilhas Molucas, na região da atual Indonésia, as atuais Filipinas, Singapura, Brunei, Timor-Leste e parte de Papua Nova-Guiné, passaria a despertar crescente disputa entre as potências europeias, neste período principalmente Portugal e Espanha.
Da região da Insulíndia, sobretudo das Ilhas Molucas, provinham as árvores da noz-moscada e do cravo-da-Índia, cobiçadas especiarias que fizeram com que a Coroa portuguesa estrategicamente ordenasse a D. Francisco de Almeida o “descobrimento” de Malaca, seguindo-se em 1506 instruções para que ali construísse uma fortaleza porque “a posse nestas coisas dava muita força”.1
Malaca tinha uma localização estratégica, pois funcionava como “plataforma giratória” (COSTA; RODRIGUES, 2017, p. 228) dos produtos que do Índico Ocidental e do golfo de Bengala rumavam à Insulíndia e ao Extremo Oriente e vice-versa. Esta impressão se concretiza quando se observa que, em julho de 1547, ao chegar em Malaca vindo das Molucas, é ali que Francisco Xavier encontra o primeiro japonês convertido ao catolicismo de grande importância para a missão japonesa: Anjirô, batizado Paulo de Santa Fé. De Malaca, partem para a Índia, onde Anjirô se fará cristão no Colégio de Goa. Aos “36 ou 37 anos”, como nos informa Luís Fróis (1549-1564/1976) em sua Historia de Japam, Anjirô encontrava-se vestido como Irmão no Colégio de São Paulo em Goa, preparando-se juntamente com Xavier para a missão japonesa. Ali também chega, via Molucas, o padre espanhol Cosme de Torres, que vinha da Nova Espanha. Encontrando-se em Goa, esta autêntica comitiva global partirá novamente a Malaca, de onde sairá no navio de um pirata chinês gentio que se obrigou junto ao capitão de Malaca, Dom Pedro da Silva da Gama, filho de Vasco da Gama, em 24 de junho de 1549, rumo ao Japão.
Alguns anos antes deste fato, porém, a região da Insulíndia era o epicentro de grandes disputas entre portugueses, espanhóis e os poderes locais, como o sultanato de Malaca. Por volta de 1520, com a chegada de Fernão de Magalhães às Molucas, a serviço da Coroa de Castela, e a iniciativa de Carlos I de colonizar a região, dada a sua importância, terá início a chamada “Questão das Molucas”.2 Será necessário rediscutir o Tratado de Tordesilhas em sua faceta Oriental, com o chamado Tratado de Saragoça, que estipulou, mediante pagamento da Coroa portuguesa de 350 mil ducados de ouro (COSTA; RODRIGUES; OLIVEIRA, 2014, p. 133), a continuação do meridiano de Tordesilhas no hemisfério oposto, a 297,5 léguas a leste das Ilhas Molucas. Especula-se que a posição espanhola no Tratado de Saragoça se deva a três grandes motivos: i) a maior facilidade portuguesa de escoamento das especiarias em rotas comerciais já praticadas havia alguns anos, ligando as praças asiáticas a Lisboa, aliada à inviabilidade econômica de exploração do comércio de especiarias via Estreito de Magalhães (a rota do Galeão de Manila ligando as Filipinas à Nova Espanha, indo de Manila a Acapulco, teria início somente em 1565); ii) a necessidade de fundos, por parte de Castela, para financiar as guerras contra a França de Francisco I; iii) por fim, ao casamento entre Carlos I e Isabel de Portugal, filha do rei D. Manuel, em 1526, estimulando uma aliança entre as potências ibéricas.
Com o Tratado de Saragoça, assinado 1529, toda a Índia, a Insulíndia e a maior parte do Extremo Oriente ficariam nos limites atribuídos à Coroa portuguesa.
Como afirma Charles Boxer, a característica mais espantosa do império marítimo português, estabelecido no século XVI, foi sua extrema dispersão (BOXER, 2002, p. 66). Cobria uma parte cada vez mais significativa do continente americano, a África, a Índia, a Insulíndia e o Extremo Oriente, circulando o globo terrestre ao buscar capitalizar a Coroa portuguesa. Para calcar politicamente suas possessões e praças ultramarinas, Portugal aliou-se visceralmente à Companhia de Jesus, que forneceu armas ideológicas e retóricas orientadas pelo planejamento colonial de uma conversão global ao catolicismo de corte tridentino, em uma dinâmica ao mesmo tempo colonial, econômica, política e teológica contrarreformista.
Antes, porém, construiu-se uma verdadeira mitologia portuguesa e depois luso-brasileira e americana ao redor do mito de São Tomé, apóstolo direto de Cristo que teria chegado à Índia e à costa do Ceilão em seu percurso evangelizador. A passagem de São Tomé pelo mundo asiático e indiano indiciaria o saber desses povos em relação à queda adâmica e sua remição pela graça da vinda de Cristo ao mundo. Seriam, assim, povos dispersos, filhos de Adão, que, se não se lembravam da Boa Nova, era por motivo de esquecimento e corrupções que deveriam ser desbastadas e reorientadas para a verdade cristã. Tal narrativa vinha a calhar em ambientes sociais fortemente dominados por castas ou por influências emanadas da tradição islâmica, que passariam a ser utilizadas como figura privilegiada do esquecimento da verdade anteriormente trazida por São Tomé.
Portugal utilizou-se de uma narrativa cultivada desde a Idade Média e os primeiros contatos Europeus com o Oriente e com a Índia, quando se soube que representantes da Igreja ortodoxa haviam chegado à península indiana e também quando se começou a falar na possibilidade da passagem de São Tomé3 pela região. A apresentação de sinais de São Tomé começou a surgir para reforçar a narrativa: marcas de pegadas no chão e nas pedras; aparecimento de relicários e entalhes de madeira que seriam da própria cruz de Cristo, levados para a Índia por Tomé; e logo sua possível sepultura na costa do Ceilão passaria a ser lugar de adoração e peregrinação.
Diferentemente do mundo castelhano, que se orientou, desde as primeiras cartas de Colombo, por questões imaginárias relativas à ideia de Paraíso terreal, de fonte da juventude, de amazonas e seus tesouros, do Rei branco e suas montanhas de ouro, o mundo português se nutriu mais modestamente e de forma especial do imaginário em torno da mitologia de São Tomé e de sua passagem pelo mundo.4
Com a chegada lusa ao Brasil, a narrativa em torno de Tomé torna-se mais interessante na medida em que também aí se começa a ventilar a possibilidade de sua passagem por terras brasileiras.
Relatos de viajantes dando conta de pegadas no interior do continente e da presença de um deus entre os índios chamado de Sumé começam a circular e a dar contorno a um mito globalista acerca da figura de São Tomé. Tomando a narrativa como verdadeira para justificar a presença colonizadora, chegava-se à perspectiva de que todos os povos entre a Índia e a América pudessem ter tido um contato com a Boa Nova por intermédio de São Tomé.5 Disto deriva que poderiam ser considerados, ao lado dos europeus, filhos de Adão, esquecidos e perdidos, à espera da recondução ao redil cristão, em um esforço de rememorar a verdade já esquecida. Por outro lado, se insistiam em práticas e em organizações sociais contrárias à forma de vida cristã, isto não se dava exatamente por inocência, mas por serem apóstatas, algo que poderia até justificar a guerra justa.6
A especulação sobre a origem dos povos americanos, por intermédio de Nóbrega, liga-se ao mito de São Tomé e aponta para a tradição judaico-cristã de Noé. Como observa Manuela Carneiro da Cunha:
Porque a humanidade é uma só, os habitantes do Novo Mundo descendem necessariamente de Adão e Eva, e portanto de um dos filhos de Noé, provavelmente o maldito, Cam, aquele que desnudou seu pai – razão, especula Nóbrega, da nudez dos índios –; como camitas e descendentes de Noé, os Tupi da costa guardariam aliás uma vaga lembrança do dilúvio – “sabem do dilúvio de Noé, bem que não conforme a verdadeira história” [...] suficiente no entanto, para atestar sua origem. E por que não poderiam ter ficado à margem da Boa Nova, teriam sido visitados pelo apóstolo São Tomé, que seria lembrado (e cujas pegadas Nóbrega teria ido ver em 1549, na Bahia, gravadas na pedra) sob o nome levemente deturpado de Sumé ou Zomé [...]. Há aí, claramente, toda uma problemática de confluência, em que a mitologia tupi de Sumé e do dilúvio é interpretada como vestígio, confuso e distorcido, de uma origem e de um conhecimento comuns à humanidade (CUNHA, 1990).
Nóbrega demonstra certa obsessão com o tópico de São Tomé, ao chegar à Bahia, em 1549. Das cinco cartas escritas em seu primeiro ano em terras brasileiras, três mencionam São Tomé. Na primeira delas, endereçada a Simão Rodrigues, escreve:
tambem me contou pessoa fidedigna que as raizes que cá se faz o pão, que S. Thomé as deu, porque cá não tinham pão nenhum. E isto se sabe da fama que anda entre elles, quia patres eorum nuntiaverunt eis. Estão d’aqui perto umas pisadas figuradas em uma rocha, que todos dizem serem suas.7
Em carta posterior, endereçada a seu mestre em Coimbra, Martín de Azpilcueta Navarro, Nóbrega escreve:
Sabem do dilúvio de Noé, bem que não confirme a verdadeira historia; pois dizem que todos morreram, excepto uma velha que escapou em uma arvore.
Têm noticia egualmente de S. Thomé e de um seu companheiro e mostram certos vestigios em uma rocha, que dizem ser delles, e outros signaes em S. Vicente, que é no fim desta costa. Delle contam que lhes dera os alimentos que ainda hoje usam, que são raizes e hervas e com isso vivem bem.8
O termo “Zomé” aparece somente na carta posterior, enviada provavelmente aos padres e irmãos do Colégio de Coimbra em 1549. Nela, Nóbrega articula o mito de São Tomé ao termo utilizado pelos índios:
Dizem elles que S. Thomé, a quem elles chamam de Zomé, passou por aqui, e isto lhes ficou por dito de seus passados e que suas pisadas estão signaladas juncto de um rio; as quaes eu fui ver por mais certeza da verdade e vi com os proprios olhos, quatro pisadas mui signaladas com seus dedos, as quaes algumas vezes cobre o rio quando enche; dizem também que quando deixou estas pisadas ia fugindo dos Indios, que o queriam frechar, e chegando ali se lhe abrira o rio e passara por meio dele a outra parte sem se molhar, e dalli foi para a India.9
Nesta terceira e última carta de 1549 mencionando São Tomé, como que fechando os fundamentos catequéticos-teológicos-geopolíticos do mundo português quinhentista, Nóbrega ao mesmo tempo reconhece a passagem de São Tomé pelas terras brasileiras com um significante nativo próprio e dá notícia de sua ida do Brasil diretamente para a Índia de acordo com uma mitologia local. Esta mitologia local estava curiosamente articulada com outras histórias do mesmo período acerca de São Tomé e a extensão do território ultramarino português. É revelador que Nóbrega articule a ida de São Tomé para a Índia “sem se molhar” e depois de atravessar um rio, insinuando que Tomé tenha tomado a direção rumo ao interior do continente. Teria o santo chegado à Índia por terra?
Antes da criação da Companhia de Jesus, já se pode ler na Nova Gazeta Alemã, de 1515, notícias sobre São Tomé no Brasil.
Trata-se de notícia de uma expedição de dois navios enviados pelo rei de Portugal para reconhecer e descrever a terra do Brasil. A análise do documento é interessante pois fica clara a especulação sobre uma possível aproximação geográfica de Brasil e Índia articulada ao mito de São Tomé:
O piloto, isto é, o comandante ou capitão, que navegou neste navio, é meu optimo amigo. Elle é tambem o mais afamado (piloto) que tem o rei de Portugal. Esteve tambem em algumas viagens na India e diz-me e opina que desse Cabo do Brasil, isto é, um começo da terra do Brasil, não ha mais de seiscentas leguas para Malacca. Pensa tambem que em curto tempo com tal viagio, isto é, caminho ou viagem, (será possível) ir e voltar de Lisboa a Malacca, o que trará ao rei de Portugal, com a especiaria, grande auxilio. Acham também que a terra do Brasil se extende até Malacca [...].
Nessa mesma costa ou terra há ainda memoria de São Thomé. Quizeram tambem mostrar aos Portuguezes as pegadas no interior do paiz. Mostram igualmente a cruz que ha terra a dentro. E quando falam de São Thomé dizem que ele é o deus pequeno. Pois ha outro deus que é maior. É bem crivel que tenham lembrança de São Thomé, pois é sabido que São Thomé realmente está por traz de Malacca na costa de Siramatl no golfo de Ceylão (NOVA GAZETA..., 1911).
O mito de São Tomé é, essencialmente, uma tentativa intelectual e especulativa, imaginária, de ligar o Brasil à Ásia e ambos os continentes à cosmologia cristã, representada por Portugal, o qual, a partir do indício presente na Nova Gazeta Alemã, por volta de 1515 acreditava na possibilidade de ligação por terra entre Brasil e Malaca.
Esta perspectiva americano-asiática do mito de São Tomé parece-nos o leitmotiv original de sua presença nos discursos portugueses do século XVI. Seria interessante aqui fazer a referência ao importante trabalho de Sérgio Buarque de Holanda sobre as repercussões dos mitos na América colonial em Visão do Paraíso.
Sérgio Buarque de Holanda, com efeito, refere-se ao mito de Sumé como o único mito cuja procedência luso-brasileira no período da conquista é bem assentada, ao afirmar que “pode-se, quando muito, apontar um mito da conquista cuja difusão no continente esteve a cargo dos portugueses e, em contraste com os demais, foi do Brasil que se expandiu para o Paraguai, o Peru e o Prata”, para logo depois observar que “já era imemorial nas partes do Extremo Oriente, quando atingidas pelas naus de Vasco da Gama e seus sucessores lusitanos, a lenda que associa os cristãos da Índia, ramo dos nestorianos, à prédica de São Tomé” (HOLANDA, 2010, p. 172).
Da conexão de São Tomé com o Oriente há já notícia em escrito de Gregório de Tours, do século VI, das comunidades cristãs do Oriente ou os “cristãos de São Tomé”, notícia que chega muito cedo à Inglaterra, cujo rei envia, em 883, embaixada com muitos presentes, tendo à frente o bispo Sigelmus de Sheborne (HOLANDA, 2010, p. 172).
Os lusitanos seriam, neste sentido, construtores e fiadores de uma espécie de nexo especulativo entre os “cristãos de São Tomé” do Oriente e os índios brasileiros e de modo geral americanos, como bem observa Holanda, em um mito veiculado e ventilado pelos mesmos portugueses a partir do Brasil.
A amplificação do sentido cristão através da narrativa do mito de São Tomé simplifica e globaliza uma visão de mundo e uma ideologia a respeito do Novo Mundo e dos povos ignotos submetidos às contingências das explorações ultramarinas que a Igreja ia, ela também, adaptando estruturalmente de acordo com a imagem de mundo que se descortinava. Mas a circulação e difusão do mito tomista supre de sentidos a prática colonizadora, mormente a que se voltava à conversão, de modo mais ágil e talvez eficaz, nos primeiros anos de contato, diante de uma mais lenta e gradual mudança da ortodoxia católica. Neste sentido, Sérgio Buarque de Holanda (2010, p. 201) define a confluência do mito de São Tomé e o de Sumé entre os nativos brasileiros como uma “solução”:
[...] enquanto a Igreja se via impelida a uma ampla revisão de suas antigas posições, buscando renovar a própria estrutura ideológica de acordo com a imagem do mundo que se começava, pela primeira vez, a descortinar, a simples tentativa de identificação de um herói mítico ancestral dos índios do Brasil com o apóstolo das Índias deveria simplificar as dúvidas, fornecendo uma solução concreta e “histórica” para o problema. Solução coincidente, aliás, com as teses a que permaneciam fiéis muitos dos mais ilustres teólogos da Contrarreforma, como Belarmino, ainda aferrados à ideia da universal pregação dos apóstolos, que teria chegado às remotíssimas ilhas do Mar Oceano onde, perdida mais tarde a lembrança delas, ia sendo reavivada agora pelos novos apóstolos.
Difundido desde o Brasil com precedentes colhidos da Índia, a narrativa em torno do apóstolo Tomé serviu ideologicamente para interligar os domínios portugueses e castelhanos no Novo Mundo, sobrepondo-se às rotas indígenas que se ramificavam pelo interior do continente americano. A mais famosa dessas rotas, que ia do litoral sul do Brasil, com entradas a partir de São Vicente e Cananeia, até o Paraguai e de lá, dizia-se, até o Peru, conhecida pelos locais como Peabiru, ganhou o nome de Caminho de São Tomé, ou Pay Zumé, como era conhecido o personagem na mitologia peruana, associado ao Sumé dos índios da costa do Brasil. A figura do herói da mitologia indígena intercalou-se e por fim fundiu-se à do herói da mitologia cristã, de modo que por todo o continente americano se ouviram variações fonéticas, possivelmente já existentes, entre os vocábulos Tomé e Sumé: Pay Zumé, Pay Tumé, Zomé.
Cruzes de uma madeira encontrada no Brasil, chamada pelos naturais de jacarandá e pelos espanhóis de pau-santo, com resiliência e peso que lembravam o ébano, espalhavam-se pelo continente americano. É o caso, citado por Holanda, da cruz de Carabuco, aldeia situada nas imediações do lago Titicaca. Os nativos e os padres concentravam-se em esmiuçar as origens da cruz e da pesada madeira de que era feita: “teria sido transportada de muito longe, e que a não fez em Carabuco, pois toda aquela comarca é falta não só de madeira de proveito para qualquer lavor, mas até mesmo de paus para lenha comum” (HOLANDA, 2010, p. 191).
A utilização de São Tomé como solução de aproximação especulativa entre os povos atinge seu máximo alcance com Francisco Xavier (2006, p. 277), que busca encontrar o herói apóstolo na China:
De Malaca, vão todos os anos muitos navios de portugueses aos portos da China. Eu tenho encomendado a muitos, para que saibam dessa gente, pedindo-lhes que se informem muito das cerimónias e costumes que entre eles se guardam, para por elas se poder saber se são cristãos ou judeus. Muitos dizem que S. Tomé Apóstolo foi à China e que fez muitos cristãos; e que a Igreja da Grécia, antes de os portugueses senhorearem a Índia, mandava bispos para que ensinassem e baptizassem os cristãos que S. Tomé e seus discípulos nessas partes fizeram. Um destes bispos disse, quando os portugueses chegaram à Índia, que, depois que veio da sua terra à Índia, ouviu dizer aos bispos que na Índia achou, que S. Tomé foi à China e que fez cristãos.10
Com a ideia da passagem de São Tomé pela China, Francisco Xavier aludiria ao fato de que a memória de São Tomé poderia ter chegado ao Japão, ou ao menos pudesse funcionar como denominador cultural comum em relação à missão japonesa.
Poucos anos depois, Xavier escreveria, desde o Japão, acerca das confluências culturais e ideológicas das tradições sino-japonesas, seja com respeito à forma da escrita, seja em relação aos costumes e à religião, afirmando claramente que, ao menos quanto ao budismo, tratou-se de formação cultural transplantada desde a China. Ao morrer às portas da China fechada então aos portugueses, Francisco Xavier indiciava um planejamento de, iniciada e consolidada a missão chinesa, conseguir, de forma mais eficaz e desde a raiz, converter o Japão.
No entanto, chama atenção, na busca dos rastros de São Tomé na Ásia, a falta de menção à passagem do herói apóstolo pelo Japão, como ocorrera em relação à Índia, ao Brasil e mesmo à China.
Pode-se arriscar uma talvez precipitada conclusão a partir das epístolas de Xavier: quando se analisa o aparecimento dos “nativos” nas cartas jesuíticas brasileiras, sobretudo as de Nóbrega, e nas japonesas, como, por exemplo, em Xavier e também nos escritos de Fróis, percebe-se que no Japão o nativo funciona como um personagem do relato, com nome e identidade pessoal, atributos e descrições de traços mais ou menos bem definidos.
Ora, a missão japonesa tem sua inauguração com a comitiva liderada por Xavier, da qual fazia parte um importante personagem da narrativa jesuíta acerca do Japão: Anjirô ou Paulo de Santa Fé, um japonês convertido ao cristianismo que dominava os fundamentos da língua portuguesa, tendo já escrito uma missiva para Inácio de Loyola, enviada a Roma (ANJIRÔ, 1598, p. 50-51). Convertido no circuito que vai de Malaca a Goa, Paulo de Santa Fé funciona como personagem e também como uma espécie de modelo ou paradigma da capacidade de conversão dos nativos japoneses. Como expressa Xavier (2006, p. 489) em carta escrita de Malaca, dois dias antes da partida para o Japão, ou seja, 22 de junho de 1549, já ventilando certas narrativas ouvidas de Paulo de Santa Fé e, portanto, já “reverberando” sua voz no próprio discurso:
Uma coisa me disse Paulo de Santa Fé, japão, nosso companheiro, de que fico muito consolado: e é que – me disse – no mosteiro de sua terra, onde há muitos frades e Estudo, entre eles têm um exercício de meditar, o qual é este: o que tem cargo da casa, superior deles, que é o mais letrado, chama-os a todos e faz-lhes uma prática à maneira de pregação; e, então, diz a cada um deles que medite pelo espaço de uma hora. Sobre este ponto: quando um homem está expirando e já não pode falar, quando a alma se despede do corpo, se então em a tal separação e apartamento da alma pudesse falar, que coisas diria a alma ao corpo? E assim por conseguinte, se os que estão no purgatório ou inferno a esta vida tornassem, que diriam? Depois, passada a hora, pergunta o superior de casa a cada um deles o que, na tal hora que meditou, sentiu: se algumas coisas boas diz, gaba-o; e, pelo contrário, repreende-o quando diz coisas que não são dignas de memória. Dizem que estes Padres pregam ao povo, de quinze em quinze dias, e acode muita gente às suas pregações, assim homens como mulheres; e que choram nas pregações, principalmente as mulheres; e que, o que prega, tem pintado o inferno e seus tormentos e mostra aquelas figuras ao povo. Isto me contou Paulo de Santa Fé.11
Aparece de forma clara a tópica da transmissão da voz nativa (“me disse”): de um discurso, de práticas curiosas e ao mesmo tempo muito familiares e próximas aos europeus: “há muitos frades e Estudo”; “estes Padres pregam ao povo”; e também uma espécie de maravilhamento curioso que se expressa pelas perguntas a respeito de aspectos envolvendo as meditações zen-budistas: é como se a especulação se deslocasse do ponto de vista do saber cristão-europeu sobre o outro, para o ponto de vista reflexivo e oposto do eu-mesmo em relação ao saber do outro.
Neste sentido, se São Tomé figurava como uma tópica no discurso português e jesuíta de modo geral para que especulativamente por meio dele se aproximassem povos e regiões do orbe terrestre, pela via do suposto contato com a Boa Nova cristã, com as narrativas japonesas a aproximação se dá pela própria realidade e pela comparação de estruturas normativas e comportamentais: o outro distante começa a adquirir contornos de um próximo que, se pode ser descrito de forma pitoresca e invertida, não deixa por isso de ser destinatário de curiosidade e admiração: “Paulo de Santa Fé, japão, nosso companheiro”. O fato de Paulo de Santa Fé ter sido recebido como companheiro e ter iniciado a missão japonesa ao lado dos inacianos indica outra abordagem com relação ao gentio japonês, se comparado, por exemplo, aos nativos do Brasil.
O próprio Xavier não esconde sua grande admiração pelos japoneses em sua extensa primeira carta escrita desde o Japão. Após narrar a turbulenta viagem de Malaca ao Japão, Xavier (2006, p. 511) faz elogios aos costumes da população, observa estruturas semelhantes às da Europa: em relação ao campo religioso, observa a existência dos bonzos, “que andam à maneira de frades, vestidos de hábitos pardos, todos rapados”,12 relata diálogos com os sábios locais, como o caso de um sábio chamado Ninxit que segundo Xavier “é entre eles como bispo” (XAVIER, 2006, p. 513), e depois de observar que a ilha do Japão está muito disposta para “nela se acrescentar muito nossa santa fé”, pede aos companheiros que se empenhem no aprendizado da língua japonesa, única maneira de lograr o sucesso da missão: “agora, compete-nos ser como meninos, em aprender a língua” (XAVIER, 2006, p. 522).
No entanto, Xavier (2006, p. 538) explicita em suas cartas que a missão japonesa seria talvez a mais difícil para os inacianos, tanto por seu isolamento quanto pelos rigores do ambiente: “Os Padres que vierem, venham bem providos de vestidos de panos de Portugal e de calçado, porque aqui morremos de frio”.13 Em relação à dureza do clima, Xavier (2006, p. 578 et seq.) em carta posterior, escrita a Inácio de Loyola, recomendaria o envio de missionários habituados ao frio, talvez nórdicos.14
Estava claro também que os inacianos não poderiam contar com incursões militares da Coroa portuguesa para auxiliar os esforços missionários, como passou a acontecer no Brasil.
Alcir Pécora observa que, no Brasil, Manuel da Nóbrega passou a se aproximar de Sepúlveda em relação ao método de ação missionária, adotando o medo à doutrina para que os índios se apartassem de costumes considerados maus. Ao fazer observações sobre um escrito do jesuíta José de Acosta, De procuranda indorum salute, de 1576, Pécora (1999) identifica três métodos de ação missionária: o primeiro deles seria o apostólico ou orientado pelo amor, aproximando-se dos primeiros apóstolos de Cristo, segundo o qual a pregação apostólica se faz sem qualquer uso de aparato militar. O segundo método referido por Acosta se restringiria aos povos já sujeitos aos príncipes cristãos, sendo útil para a “colonização” de territórios já ocupados e não para a “exploração” de novos territórios e nações. Neste método seria decisivo não se opor à jurisdição civil dos príncipes. O terceiro método de evangelizar, anunciado por Acosta como um “novo método” adaptado a um “novo gênero de homens” e já praticado por Nóbrega no Brasil, propõe que a pregação a novas nações seja acompanhada de tropas de soldados para defesa da vida dos missionários, “dados os costumes brutais dos índios” (PÉCORA, 1999, p. 404). Uma união de soldados e missionários que formaria uma solução híbrida de evangelização, religiosa e militar, envolvendo a sujeição política como pressuposto e reforço da evangelização.
A solução híbrida de evangelização aplicada no Brasil teria muitas dificuldades no caso do Japão, em razão da distância do arquipélago e do investimento que a Coroa portuguesa deveria realizar em tempos de crise econômica e diminuição de seu poder geopolítico. No Japão, segundo a categorização de Pécora, parece ter vigorado uma solução também híbrida de evangelização, entre o primeiro método, apostólico, e o segundo, embora neste caso não houvesse sujeição a príncipes cristãos. Talvez por isso, no Japão, e também na China, os inacianos tenham buscado realizar a estratégia da acomodação, ou accomodatio, aos costumes locais.15
Assim, a ausência da menção da passagem de São Tomé pelo arquipélago japonês poderia indicar uma manifesta dificuldade de extensão da influência portuguesa e ao mesmo tempo o reconhecimento de um contexto distinto de outros lugares de colonização portuguesa, caso da Índia, Malaca e Brasil.
Francisco Xavier (2006, p. 569) escreve em carta de 1552 que não conseguiu encontrar indícios de que os japoneses tivessem notícia de Deus e de Cristo:
Muito trabalhei no Japão para saber se em algum tempo tiveram notícia de Deus e de Cristo; mas, segundo as suas escrituras e dito do povo, achei que nunca tiveram notícia de Deus. Em Cangoxima, onde estivemos um ano, achamos que o duque da terra e os seus parentes tinham por armas uma cruz branca, mas não era por conhecimento que de Cristo Nosso Senhor tivessem.16
Uma possível razão, teológica, para este fato, talvez se deva também à exterioridade dos japoneses em relação ao laço camita, que ligaria os africanos, os indianos e os nativos brasileiros, todos chamados de forma mais ou menos homogênea de negros (no caso dos brasileiros, “negros da terra”). Supôs-se que os índios brasileiros tivessem notícia de São Tomé e também do dilúvio, e de que pudessem ser descendentes de Cam,17 como observa Manuela Carneiro da Cunha:
Com o Novo Mundo, descobre-se também uma Nova Humanidade. Resta o problema crucial de inseri-la na economia divina o que implica inseri-la na genealogia dos povos. Para isso, não há outra solução senão a da continuidade, senão abrir-lhe um espaço na cosmologia européia. Por que a humanidade é uma só, os habitantes do Novo Mundo descendem necessariamente de Adão e Eva, e portanto de um dos filhos de Noé, provavelmente do maldito, Cam, aquele que desnudou seu pai – razão, especula Nóbrega, da nudez dos índios –; como camitas e descendentes de Noé, os Tupi da costa guardariam aliás uma vaga lembrança do dilúvio [...] (CUNHA, 1990, p. 102).
Uma constante pode ser percebida entre o aparecimento do laço camita e o aparecimento de São Tomé: se Cam foi biblicamente reconhecido como patriarca das nações do sudeste africano e de regiões do Oriente Médio englobando cananeus e filisteus, por exemplo, é dessa região de onde parte o mito de São Tomé em direção à Índia.
Como dito acima, as pesquisas arqueológicas que noticiaram o encontro, no Alto Egito, de códices de papiro em copta formando um conjunto de escritos gnósticos do cristianismo primitivo18 com a descoberta do Evangelho de Tomé podem sugerir que daquela região se construiu uma tradição ao redor do apóstolo que pode ter se irradiado pelo Oriente Médio e chegado à Índia, onde foi recepcionada e impulsionada pelos portugueses na direção do Novo Mundo.
Se a população japonesa não teve notícia de Deus e de Cristo, a estratégia de Xavier para inseri-la na economia divina e na genealogia dos povos, ao contrário da solução adotada no Brasil por Nóbrega, isto é, de suplementação de uma língua da falta falada por um ser imperfeito e incônscio de sua participação na Causa Primeira, foi a de analogia com a civilização europeia. O Japão, assim, não faria parte do circuito camita, no sentido dos povos que descenderiam de Cam, o filho maldito de Noé.
Francisco Xavier (2006, p. 583), ao descrever os chineses em carta para Inácio de Loyola, aproximando-os dos japoneses, os descreverá como “engenhosos”, “dados a estudos” e “brancos”: “Estes chineses são muito engenhosos e dados a estudos, principalmente às leis humanas sobre a governação da república: são muito desejosos de saber. É gente branca, sem barba, os olhos muito pequenos”.19 Em contraposição ao valor semântico de “negro”,20 aplicado aos nativos da Índia, da África e do Brasil, Xavier denotava com sua observação a aproximação dos provenientes do ambiente sino-japonês aos europeus, assim como Valignano se esforçará por mostrar, anos depois, em relação aos japoneses, definindo-os como “um povo nobre e racional” (MORAN, 1993, p. 192). No entanto, diante da impossibilidade de abarcá-los em uma genealogia comum, os jesuítas se verão diante de uma espessa barreira: tanto linguística quanto cultural, religiosa e política.
A solução talvez seja fornecida pela obra de Luís Fróis (1549-1564/1976), tanto em sua Historia de Japam quanto em seu Tratado das contradições e diferenças entre a Europa e o Japão, isto é, uma aproximação invertida em um espelhamento de semelhança e diferença, tornando os japoneses na mesma medida avessos e próximos quando comparados ao mundo católico-europeu (BROCCO, 2019).
Incorporando e tornando inteligíveis os japoneses e seus costumes e crenças a partir de descrições minuciosas dos mesmos, Fróis operaria a reflexão sobre o “estatuto do alheio” (CUNHA, 1990, p. 103) e do dessemelhante; não, porém, utilizando categorias teológicas como fez Nóbrega ao especular sobre a nudez dos índios como efeito de sua descendência de Cam, mas descrevendo sua estrutura social e comportamental como que a partir de dentro, bem como narrando uma história com personagens e vozes nativas, pertencentes ao “campo do dessemelhante”,21 as quais, no entanto, contrariamente ao nativo do Brasil, cuja alma aparece como falta,22 falam.23
http://www.revistapassagens.uff.br/index.php/Passagens/article/view/277/259 (pdf)