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A obsolescência do aspecto político da profissão docente e o tema gerador
Gomercindo Ghiggi; Juliana Batista Pereira dos Santos; Priscila Monteiro Chaves;
Gomercindo Ghiggi; Juliana Batista Pereira dos Santos; Priscila Monteiro Chaves; Sheila de Fatima Mangoli Rocha
A obsolescência do aspecto político da profissão docente e o tema gerador
The obsolescence of the political aspect of the teaching profession and the generative theme
Educação Unisinos, vol. 21, núm. 3, pp. 286-296, 2017
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
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Resumo: A pesquisa teve como objetivo identificar como o Projeto Pedagógico de uma instituição escolar do interior do Rio Grande do Sul oferece subsídios aos seus docentes para seus planejamentos, bem como o modo como é pensado o tema gerador nas suas atividades em sala de aula. Para tanto, por meio de análise documental e entrevista semiestruturada, foram analisados dois instrumentos: o Projeto Pedagógico da escola e as respostas concedidas pelas docentes. O referencial teórico ancorou-se, mormente, nos preceitos de Paulo Freire. Como conclusão, observa-se que há um esfacelamento da compreensão socioantropológica do tema gerador, que se apresenta como consequência da obsolescência do aspecto político da atividade docente.

Palavras-chave: Projeto PedagógicoProjeto Pedagógico,Paulo FreirePaulo Freire,tema geradortema gerador.

Abstract: The research aimed to identify how the Pedagogical Project of a school institution from Rio Grande do Sul assists teachers in the successful accomplishment of their plans, as well as how the generative theme is thought in their classroom activities. Therefore, by means of document analysis and semi-structured interviews, two instruments were analyzed: the school Pedagogical Project and the teachers’ answers to the interview questions. The theoretical framework was mainly based on Paulo Freire’s precepts. In conclusion, it is observed that there is a breakdown in the socio-anthropological understanding of the generative theme, which is a result of the obsolescence of the political aspect of the teaching activity.

Keywords: Pedagogical Project, Paulo Freire, generative theme.

Carátula del artículo

Articles

A obsolescência do aspecto político da profissão docente e o tema gerador

The obsolescence of the political aspect of the teaching profession and the generative theme

Gomercindo Ghiggi
Universidade Federal de Pelotas, Brasil
Juliana Batista Pereira dos Santos
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil
Priscila Monteiro Chaves
Universidade do Oeste de Santa Catarina, Brasil
Sheila de Fatima Mangoli Rocha
Universidade Federal de Roraima. Centro de Educação, Brasil
Educação Unisinos, vol. 21, núm. 3, pp. 286-296, 2017
Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Recepção: 09 Junho 2016

Aprovação: 27 Setembro 2017

Introdução

É possível pensar, com Freire, que somente a aceitação das tensões próprias dos movimentos humanos possibilita a democracia, condição para que as pessoas possam dizer a palavra. “Dizendo a palavra com que pronunciando o mundo os homens o transformam, o dialogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens” (Freire, 2011a, p. 79). Em meio a compreensões diversas do conceito de democracia, o Projeto Pedagógico (PP) de uma escola vem sendo entendido como o mais importante documento da instituição que, construído pelo coletivo, apresenta as finalidades, metas e objetivos a que ela se propõe. Além disso, nele também há o delineamento da trajetória que se entende por adequada para que se possam alcançar as propostas anteriormente assumidas (Lopes, 2010, p. 1). Em suma, a compreensão mais corrente do referenciado documento corresponde à apresentação da instituição para a comunidade e orientação aos professores quanto a essas particularidades que são essenciais para a prática educativa, de forma que se pressupõe o seu constante uso e revisitação para a elaboração dos planejamentos docentes.

Desse modo, se uma escola possui como proposta central o amparo no tema gerador, é verossímil que se possa almejar a presença de referências e orientações sobre como encaminhar esse trabalho no PP da instituição. Isso porque seu conceito carrega em si um conjunto de significados que o torna único, de modo que, quando se identifica seu uso em contextos escolares ou mesmo na literatura, é possível compreender determinadas características que fundamentam e fundamentarão o trabalho daquela instituição.

A pesquisa ora apresentada tem como principal objetivo identificar a maneira como o Projeto Pedagógico de uma instituição oferece subsídios aos seus docentes para refletir sobre e estruturar seus planejamentos bem como o modo que esses pensam e significam o tema gerador nas suas atividades em sala de aula. O estudo se justifica pela ampla - e por vezes bastante híbrida - disseminação dos termos e conceitos defendidos por Paulo Freire, que provoca a suspeita de utilização de tais terminologias, por parte de professores e funcionários, desprovida de seu potencial político, social e antropológico.

Isto posto, é necessário retomar o fato de que meramente o senso comum pode estar sendo usado para compreender o texto de Paulo Freire, do que podem decorrer banalizações. Por isso, é fundamental admitir o necessário combate à leitura dogmatizada e banalizada da sua obra, combate que deve estender-se à dogmatização da leitura banalizada e à banalização da leitura dogmatizada (Ghiggi, 2001).

Do conceito de tema gerador

O conceito de tema gerador é considerado, por grande parte de seus notáveis intérpretes, como um dos mais importantes do legado freiriano, haja vista seu potencial de significação das vivências cotidianas. É alertando para o reino da confusão entre os tão discutidos status de verdadeiro e falso, entre conhecimento e falsa consciência, que Freire busca um universo mínimo temático concreto e vivenciado, em que o real se manifeste como síntese de múltiplas relações, determinações e contradições em um mesmo campo tensivo. De acordo com a proposta freiriana, o tema gerador, por dialogar com as experiências dos sujeitos, é generativo e criador, seus valores são significativos e adquiridos pelas experiências cotidianas que (re)significam e atualizam os signos que parturizam pessoas novas. Ele incide na vivificação das inquietações e intencionalidades das pessoas ditas comuns (Passos, 2010) e é fruto das codificações que, segundo Freire,

[...] são representações de aspectos da realidade; expressam “momentos” do contexto concreto. [...] a codificação pode ser: visual, auditiva, tátil, áudio-visual [...] a visual, por sua vez pode ser: pictórica - pintura, desenho, fotografia; gráfica - linguagem escrita; mímica - expressão do pensamento por meio dos gestos (Freire, 1978, p. 111).

Dialogando com Freire e empreendendo seus temas geradores, é possível considerar as ideias a partir do poder causador da linguagem atrelando-a ao papel da consciência crítica. Por isso, é relevante alvitrar que este conceito está muito atrelado à concepção de linguagem proposta por Freire. Segundo Osowski, Paulo Freire vê a linguagem como algo comprometido com as classes sociais, o que seria permissivo de aceitação e compreensão das diferenças sintáticas5 entre a linguagem dos trabalhadores, “direta e simples como suas vidas e a dos professores em situação de ensino, manifestando-se através de volteios, circunlóquios” (Osowski, 2010, p. 247). Entende-se e qualifica-se a contraposição recém exposta pela autora com as seguintes palavras:

[...] a forma crítica6 de compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo está, de um lado, na não negação da linguagem simples, “desarmada”, ingênua, na sua não desvalorização por constituir-se de conceitos criados na cotidianidade, no mundo da experiência sensorial; de outro, na recusa ao que se chama de “linguagem difícil”, impossível, porque desenvolvendo-se em torno de conceitos abstratos (Freire, 1998, p. 33-34).

Freire acredita que as pessoas ditas comuns, quando interpretam suas próprias experiências, manifestam a complexidade que vão compreendendo através de figuras de linguagem que atrelam seus pensamentos a situações concretas. Por isso, aponta que a maneira crítica de decifrar e de realizar a leitura do texto e a do contexto não suprime nenhuma das duas formas de linguagem ou de sintaxe (Freire, 1998). Isto é, os sujeitos que conhecem as diferentes sintaxes poderão se sentir desafiados pelas mesmas inquietações. Logo, torna-se de extrema relevância refletir como “as pessoas comuns, através de suas formas de expressão peculiares e profundamente éticas, são capazes de tornar explícitos os problemas do mundo” (Freire, 1986, p. 180), codificá-los e fazer deles temas geradores. Essa ponderação é capacitada também pela maneira como Freire pensa a relação significante e significado - ainda que não utilize tal nomenclatura em virtude de sua linguagem acessível - proposta pela dicotomia saussuriana: compreendida como ferramenta para o desenvolvimento da consciência crítica do sujeito. Freire a pensa enquanto ato fundamental da mente, ou oportunidade de recognição perante os temas geradores, fazendo com que os participantes dos Círculos de Cultura7 alcançassem uma distância em relação ao próprio mundo, estranhando-o e, consequentemente, reconhecendo-o.

Como contrapartida à Educação Bancária8, Freire propõe a Educação Libertária que, dentre outras características, implica que a escolha do conteúdo programático da educação parta de problemáticas inerentes ao contexto dos sujeitos envolvidos no processo, como uma forma de significar as aprendizagens em função da realidade dos mesmos. É também mediante essa justificativa que o autor apresenta o conceito de tema gerador, para que ele seja o propulsor de uma estruturação curricular em mais estreita afinidade com a intencionalidade da educação, haja vista sua perspectiva política.

Assim, com essa característica fundamental de emergir da realidade e dos anseios dos envolvidos,9 a escolha do tema gerador requer um percurso de muita pesquisa, análise e diálogo entre alunos, professores e comunidade. Segundo Freire, é nesse momento de busca, de Investigação Temática, que se estabelece o diálogo como prática da liberdade (Freire, 2011a). Nas palavras do autor,

[...] o que se pretende investigar, realmente, não são os homens, como se fossem peças anatômicas, mas o seu pensamento-linguagem referido à realidade, os níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão de mundo, em que se encontram envolvidos seus “temas geradores” (Freire, 2011a, p. 122).

Para Freire (2011a), a escolha do tema gerador deve ser feita mediante uma investigação que transcende o aspecto temático e se realiza em quatro etapas. Essas são nomeadas e simplificadas por Delizoicov (1991) como: (i) levantamento preliminar; (ii) análise das situações e escolha das codificações, (iii) diálogos decodificadores e (iv) redução temática.

É imprescindível ressaltar que, conforme destacaram Torres et al. (2008), Freire sempre enfatizou a necessidade de reinventá-lo, recriando e aperfeiçoando suas propostas pedagógicas. Desse modo, Delizoicov (1991) propõe a Abordagem Temática Freireana, voltada especificamente para a sala de aula formal. Nessa abordagem, o autor parte da investigação temática de Freire, com suas quatro etapas, e acrescenta a quinta etapa nomeada “trabalho em sala de aula” (Delizoicov, 1991, p. 150). É o momento em que há uma retomada da ação educativa, utilizando-se do tema gerador para direcionar as discussões no âmbito da educação institucionalizada.

É possível perceber que a investigação temática “envolve a investigação do próprio pensar do povo. Pensar que não se dá fora dos homens, nem num homem só, nem no vazio, mas nos homens e entre os homens, e sempre referido à realidade” (Freire, 2011a, p. 140). Desse modo, para Freire, no âmbito da constituição do tema gerador, cada participante era incitado a conhecer sua própria comunidade e elaborar um material10 com que o aprendizado ocorreria, buscando o máximo de interferência do povo na estrutura do programa. Ao educador cabe o compromisso de registrar fielmente esse universo e realizar as seleções mediante relevância como significação vivida.

Esse material era produzido apoiado nas próprias memórias e experiências de vida dos envolvidos. O que era extremamente fecundo pois, como alega Tsé-Tung, citado por Freire, “para estabelecer uma conexão com as massas, devemos estar de acordo com seus desejos. Em todo o trabalho com as massas, devemos começar de suas necessidades, e não dos nossos próprios desejos, ainda que louváveis sejam eles” (2011a, p. 118, tradução nossa).

Através da participação as pessoas começavam a se reconhecer como agentes criadores do mundo de cultura em que viviam, o que somente era possível, uma vez “que os materiais elaborados [...] se caracterizavam por serem materiais desafiadores e não domesticadores” (Freire, 2011a, p. 59). Segundo Freire, essa prática implicaria

[...] que o acercamento às massas populares se faça, não para levar-lhes uma mensagem salvadora, em forma de conteúdo a ser depositado, mas para, em diálogo com elas, conhecer, não só a objetividade em que estão, mas a consciência que tenham desta objetividade; os vários níveis de percepção de si mesmos e do mundo em que e com que estão (2011a, p. 119).

Nesse momento introdutório, era primordial que esses educandos, particulares e concretos, reconhecessem a si mesmos, no transcurso do debate, também como criadores de cultura. Desse modo, compreende-se que o tema gerador é um lugar epistemológico-pedagógico-político, que requer momentos formais e informais em que o pesquisador ou educador ouça e nutra a curiosidade epistemológica do educando, sabendo que não há hierarquia para a ignorância. Isto é, sua escolha demanda interrogação e incitação à manifestação da inteligência do outro que não se reconhecia.

Para finalizar esta seção, justifica-se aqui que, escolhe-se problematizar esse contexto a partir de Freire por sua capacidade em favorecer o reconhecimento que a atividade pedagógica dominante está “[...] acorrentada a uma ordem social liberal-capitalista que reproduz a desigualdade a nível ideológico, [...] pelo qual relações assimétricas de poder são legitimadas sob a bandeira da agência autônoma e da livre competição no mercado capitalista” (McLaren, 1999, p. 28).

Freire porque constrói e teoriza a prática, não reduzida à experiência empírica; porque desconstrói axiomas filosóficos e pedagógicos que, embora, por outros pensadores tematizados, são dimensões fundantes à ação política docente, combatendo absolutismos e relativismos, cujos preconceitos e dogmas são balizas permanentes à demarcação de campos epistemológicos e políticos. Ou, ainda, porque é necessário confrontar a validade de seu texto com as urgências do presente, recolocando em cena o sujeito da educação, não em perspectiva metafísica pura, mas na própria condição histórica em que vive, possibilitando-lhe tornar-se atuante de relações dialéticas de comunhão e confronto com outros sujeitos. Sujeito não na perspectiva ocidental-cartesiana da modernidade - ou fundamento metafísico de todos os entes - mas ser histórico que se vai constituir, sem negar a dimensão metafísico-ontológica que carrega consigo. Diferentemente do modelo cartesiano, Freire não tem por meta a busca da verdade inabalável, mas a sua construção histórica, que inicia com a decisão de não aceitar certezas absolutas e dogmatizadas (Ghiggi, 2001).

Da metodologia adotada

Valendo-se dos preceitos de Minayo (2000), a pesquisa foi dividida em quatro etapas principais, iniciando pela fase exploratória (através de análise de conceitos); depois partiu-se para a interpretação do PP da instituição escolhida (através de análise documental); em seguida, realizou-se o trabalho de campo (entrevistas semiestruturadas) e, por último, foi realizada a análise do material empírico e dos documentos à luz da teoria freiriana.

Na fase apontada como exploratória, realizou-se um estudo sobre o conceito central abordado, ou seja, uma revisão bibliográfica referente ao tema da pesquisa, com a finalidade de qualificar a compreensão do conceito-alvo a ser desenvolvido ao longo do trabalho e de construir o referencial teórico para a própria discussão.

Nas duas fases da pesquisa que ocorreram em campo, foram utilizados dois diferentes instrumentos investigativos: (i) o Projeto Pedagógico da escola, em que se buscou, através de uma análise documental, identificar de que forma o conceito de tema gerador se faz presente e em que medida auxilia os docentes nos seus planejamentos; e (ii) entrevista semiestruturada sobre a prática dos docentes da instituição, que objetivou investigar, junto aos professores, a compreensão dos mesmos acerca do conceito de tema gerador, bem como sua utilização nas atividades e planejamentos. Conjugando ambos os instrumentos, os dados foram contrapostos a preceitos teóricos de Freire (Gil, 2002).

Projeto Pedagógico

A partir da análise documental realizada, observou-se que a escola pesquisada oferece ensino fundamental incompleto (até o 7º ano) e atende, aproximadamente, 200 alunos da periferia de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul.

Considerando que os propósitos desta apreciação estão relacionados ao tema gerador, a análise realizada focou-se nas seções Filosofia, Objetivos, Concepção metodológica e Metodologia da instituição. Entende-se que essa seleção de itens compreende uma análise mínima para o entendimento daquilo que ora se busca. Entretanto, as demais seções foram consideradas de modo menos específico e detalhado a fim de contribuir com a interpretação, quando necessário foi.

Dentre os apontamentos da Filosofia da Escola, destacam-se a intenção de “resgatar valores existenciais e estimular o aluno a encontrar alternativas coletivamente no seu meio social”; “vivenciar o amor no contexto escolar” e “encaminhar o aluno na construção de seu próprio saber, da cidadania e da democracia” (Escola Estadual de Ensino fundamental Dr. Ibis Castilho? 2007, p. 2). Na seção Objetivos, entre “propiciar uma educação inclusiva e libertadora”; e “buscar caminhos na construção do conhecimento, num processo dialógico [...] a partir de um trabalho desenvolvido de forma integrada e participativa”; ressalta-se destoante “fazer com que os alunos desenvolvam o espírito crítico em relação à sociedade que vivem” (2007, p. 3-4, grifos nossos).

O documento aponta, de modo bem demarcado, que a educação deve incentivar mudanças sociais a partir de um processo participativo, que vise à transformação crítica e dinâmica. Ao passo que a escola necessita ser um lugar onde o aluno se sinta valorizado e respeitado, a fim de que se torne um ser crítico, responsável e capaz de mudar a sociedade. A participação familiar também é destacada no processo de aprendizagem.

Quanto aos docentes, em específico, o documento preconiza a necessária união entre si, estendida à família e à comunidade, para que se possa conscientizar os alunos da importância da justiça e da dignidade. Quanto a sua prática em sala de aula, o Projeto ressalta que o educador deve agir enquanto mediador, estimulando o educando a elaborar suas hipóteses e estratégias, superando a prática tradicional. Nessa mesma vereda, destaca-se a necessidade de o professor considerar as experiências e vivências dos alunos, a fim de enriquecer suas aulas, para que as mesmas se tornem mais significativas.

Por fim, na seção Metodologia, é ressaltado que, com base nos Princípios e Diretrizes para a Educação no Rio Grande do Sul, o caminho metodológico utilizado em toda escola terá como ponto de partida os temas geradores, valendo-se, para tanto, da pesquisa participativa e do trabalho interdisciplinar para a análise da realidade, em que os conteúdos se tornam significativos, pois passam a ser utilizados para a busca de soluções de problemas diários.

Entrevistas semiestruturadas

Em conformidade com Sampieri et al. (2006), a opção pela entrevista semiestruturada se justifica pela sua flexibilidade, que favorece o diálogo e a expressão mais autêntica por parte do entrevistado. O intento foi não permitir a saída muito brusca da temática nem perder a possibilidade de aprofundar algumas das respostas.

As hipóteses acerca de uma possível compreensão do conceito de Tema Gerador pouco comprometida com bases filosóficas e com sua função política, a priori, existiam, mas não causaram o engessamento da entrevista. O mesmo é verdadeiro quanto ao referencial teórico que orientou a coleta de dados, que não limitou a realização e a interpretação da metodologia aplicada. De acordo com a proposta de Lüdke e André (1986), é possível atestar que o desenvolvimento do estudo se aproximou a um funil: no início havia questões ou focos de interesse mais amplos, que no final se tornaram mais diretos e específicos.

A escolha da instituição para realização da pesquisa de base empírica se justifica por dois motivos: (a) declaração de adoção do tema gerador; e (b) ser uma escola de periferia que atende às classes populares.

O corpo docente da escola é restrito, em especial porque nas séries finais do ensino fundamental há casos em que um único professor ministra mais de uma disciplina. Os sete professores do turno da manhã, com mais de quinze anos de experiência docente, foram convidados a participar da pesquisa e três concordaram em responder a entrevista. O instrumento versou sobre a formação, experiência docente e os conhecimentos sobre o conceito de tema gerador.

Sobre a formação e a experiência docente das professoras entrevistadas vale ressaltar que: as três possuem graduação e especialização; têm mais de quinze anos de docência (16, 20 e 25 anos completos em 2015); e mais de dez anos atuando na mesma escola (11, 12 e 18 anos completos em 2015).

Sobre o PP da instituição, todas responderam já terem lido, porém apenas duas responderam de forma afirmativa quando questionadas sobre o uso dos princípios expostos no Projeto em seus planejamentos (Docentes A e B). Entre os materiais mais utilizados, as docentes apontam Livros Didáticos (3), Internet (3), Projeto Pedagógico (2), Revistas (1), Jornais (1) e Livros (1).

A primeira pergunta, que buscou adentrar mais especificamente o campo dos conhecimentos das professoras sobre o conceito foco deste estudo, foi “O que você compreende por ‘tema gerador’?”. A seguir apresentamos a transcrição de alguns extratos obtidos quando da aplicação da entrevista semiestruturada.

Docente A: Tema gerador é o foco em que o processo ensino-aprendizagem se desenvolve. É muito importante, pois permite a interdisciplinaridade, embora seja muito difícil o trabalho devido à resistência dos colegas.

Docente B: É um tema que vai servir pra que todas as disciplinas trabalhem dando ênfase nele.

Docente C: É um tema escolhido através de um problema, de interesses, enfim de algo que venha acrescentar ao educando em termos de conhecimento, de valores, de vivências... e que em cima deste tema o planejamento do professor seja feito.

Ao serem questionadas sobre os autores que abordam ou cunharam o conceito de tema gerador em suas pesquisas, apenas a docente B afirma não conhecer autores. As demais destacaram Paulo Freire e acrescentaram que é por meio de sua vertente que utilizam tal conceito. Complementando, em especial, a docente A também ressalta Delizoicov como uma de suas fontes.

Explorando a aproximação entre PP e as ações da escola, questionamos as docentes sobre a forma como o tema gerador da instituição foi escolhido. Todas as respostas destacaram que a escolha foi feita pelos professores, em reunião no início do ano letivo e, como critérios para a escolha, os professores consideraram aquilo que julgaram ser mais interessante para os alunos, bem como as necessidades e questões/problemas da comunidade escolar, concluídas pela análise do coletivo docente.

As três docentes afirmaram que não têm dificuldades para elaborar suas aulas utilizando o tema, até porque participaram da escolha, e, quando questionadas quanto à frequência com que elaboram suas aulas considerando-o, as professoras dos anos finais afirmam que “em determinadas vezes”, enquanto apenas a professora dos anos iniciais aponta que o utiliza na maioria das vezes.

O Quadro 1 sintetiza outro momento da entrevista e expressa informações sobre o planejamento de atividades conjuntas, bem como as possibilidades que a escola oferece para este planejamento.

Quadro 1
Planejamento docente e o uso de temas geradores.


Questionadas quanto à aceitação do tema pelos discentes, duas professoras afirmaram que há diferença quanto ao interesse do aluno pela aula quando essa é planejada utilizando o tema gerador. Como justificativa, a docente A destaca que, em outros anos, quando a escolha do tema incluiu a participação dos alunos, eles participavam de forma mais assídua às aulas. Ela também atesta ter notado uma melhora na autoestima da maioria. A docente C destacou que, além do entusiasmo em querer aprender, os alunos também colaboram com sugestões de atividades envolvendo o tema quando há participação na indicação do mesmo, por resgatar em suas respostas momentos outros de trabalho com o tema gerador.

Em relação ao desempenho dos alunos, novamente as docentes A e C destacaram que percebem diferenças. Porém, a docente A aponta que, na escola pesquisada, não percebe significativo envolvimento dos alunos. Nessa mesma perspectiva, questionamos as docentes sobre a diferença entre o trabalho com e sem o uso de tema gerador. A docente B não reconhece benefícios no trabalho com os temas. Porém, as docentes A e C destacam que há muitos benefícios, por elas não indicados, quando o tema é escolhido do modo correto, apesar de não explicitar o que entende por tal adjetivação quando questionadas. Além disso, as docentes A e B pensam que grande parte de sua realização condiz à escola e não julgam coerente a maneira como a instituição conduz seu trabalho em relação ao que conhecem do assunto.

Para finalizar, as docentes foram questionadas sobre o suporte do PP para a elaboração dos planejamentos e se teriam sugestões de mudança. Apenas a docente C acha suficiente e, entre as justificativas apresentadas pelas docentes A e B, destaca-se a necessidade de trabalho coletivo pela precária compreensão do que devem fazer.

Da interpretação dos dados e do contraponto teórico

Ainda que a amostra da pesquisa seja relativamente restrita, diante do fato de que as professoras são atuantes tanto nos anos iniciais, como nos finais e de que o tempo de atuação na instituição é superior a dez anos, percebe-se que elas conhecem, com propriedade, as características do corpo docente e discente, bem como da instituição. Isto nos permite inferir que o conjunto de suas respostas possibilita compreender as características do tipo do trabalho que vem sendo desenvolvido na escola. Isto é, atuam como porta voz do universo pesquisado, compreensão derivada de acordo com a acepção de Marcuse (1973, p. 183):

[...] elas não apenas expressam a si mesmas, os seus próprios conhecimentos, sentimentos e aspirações, mas também algo diferente delas mesmas. Ao descreverem ‘por si mesmas’ a situação política, seja a de sua cidade natal, seja a do cenário internacional, elas (e o termo ‘elas’ também inclui a nós os intelectuais que conhecemos a situação e a criticamos) descrevem o que ‘seu’ meio de comunicação em massa lhes diz - e isso se funde com o que elas realmente pensam, vêem e sentem.

Como percebemos ao longo da análise do Projeto Pedagógico e por meio das respostas concedidas pelas docentes às entrevistas, há consideráveis afastamentos entre o anunciado, expresso no PP, e o que vem se realizando. E, ao que a literatura indica, essa não é uma característica exclusiva dessa escola pesquisada.

Retomando os objetivos, chama atenção a inusitada articulação entre “educação libertadora” e “processo dialógico” para “fazer com que os alunos desenvolvam o espírito crítico”. O trecho em destaque é interessante pela não consonância: libertadora e dialógico impostos, implícita a ideia de que é alguém que deve libertar (fazer com que), e não que o próprio sujeito é agente do processo de libertação, em comunhão com os outros. O discurso é arremedado de Freire, mas o fazer, em última instância, é pautado em concepções individuais e díspares da proposta freiriana, nas quais o outro precisa ser “salvo”. É latente, nessa forma de entender a educação e o mundo, que o excluído, o oprimido, é o outro; alguém com capacidade limitada, reduzida ou anulada. E com isso pretendemos evidenciar um equívoco fatal para aqueles que almejam superar o modelo de educação bancária: a desconsideração de uma condição primordial do diálogo, a fé nos homens. Sem fé nos homens o diálogo é uma farsa. E nesse sentido Freire é categórico, “um falso amor, uma falsa humildade, uma debilitada fé nos homens não podem gerar confiança” (2011a, p. 82). Somente pode existir confiança quando a palavra coincide com os atos.

O documento reconhece, entre outras facetas, a necessidade de transformar o processo de ensino e aprendizagem em um momento de construção dialógica para ultrapassar os traços do tradicional e a importância do trabalho interdisciplinar, da consideração da realidade imediata dos alunos e da participação familiar no contexto escolar. Todos estes quesitos apontados, além de comporem um vocabulário pedagógico que se consagrou ao longo do tempo, ainda que se apresentem desprovidos de reflexões sócio-histórico-filosóficas, são bem próximos ao que Freire defende. Isso demanda dois movimentos: o primeiro deles de compreender que há diversas influências de um conjunto de autores que reforçaram propósitos da educação pública cujos discursos constituíram as proposições curriculares; o segundo de refletir em que medida Freire e seus continuadores embasaram as colocações expostas pelo Projeto escrito.

Esse fato ganha profundidade quando a referência ao conceito de tema gerador é feita na seção Metodologia, apresentando-se como resultado de uma pesquisa participativa, dialógica, interdisciplinar e de análise da realidade. Todavia, ainda que expressos no Projeto os preceitos teóricos freirianos, verificamos que, além do notório enfraquecimento de um cunho político, social, antropológico e filosófico para o termo, não há preocupação com o apontamento de metodologia e dos critérios utilizados para a proposta do tema pelos envolvidos no processo, o que nos recoloca em análise das respostas concedidas pelas professoras.

Do mesmo modo, aquilo que atestam as docentes, em diversos momentos, aponta para o fato de que, a maneira como vem sendo conduzido o trabalho na instituição pouco considera as principais características que sustentam e justificam a utilização dos temas geradores na escola. Os principais indícios que nos fazem aproximar o referencial teórico a essa hipótese são os seguintes: (a) o tema não é escolhido a partir de uma investigação do universo significativo temático em conjunto com os alunos e a comunidade; (b) o planejamento das atividades não é realizado por meio do trabalho conjunto e interdisciplinar; (c) a escola quase não oferece condições para o diálogo entre os professores e ignora a condição política que lhes permite atuarem como intelectuais transformadores; (d) as experiências mais significativas dos alunos bem como a luta política vivenciada por eles é pouco considerada.

Assim, a capacidade mimética do tema de ser emerso de um corpo pensante, capacidade na qual reside seu maior potencial, tem sido corroída. Fatores esses que o esfacelam em sua radicalidade, pois o trabalho em torno do tema gerador, bem como seu potencial de dialogicidade, se manifesta em um momento bastante anterior, quando o educador se pergunta em torno do que vai dialogar com os alunos. “Esta inquietação em torno do conteúdo do diálogo é a inquietação em torno do conteúdo programático da educação” (Freire, 2011a, p. 83). É bastante provável que tais apontamentos contribuam para que os docentes não reconheçam a virtude e a distinção do trabalho realizado na escola via tema gerador, como averiguado na entrevista, uma vez que é possível perceber outros modos de compreensão da proposta de Freire que são influenciados por correntes pedagógicas variantes que, por vezes, trazem consigo propósitos adversos.

Dentre as professoras questionadas, percebemos que a docente C utiliza com mais frequência o tema em seus planejamentos, possivelmente pela característica demarcada da unidocência dos anos iniciais. Todavia, tanto nas respostas das demais quanto nas respostas fornecidas por essa, percebe-se uma compreensão bastante híbrida e pouco engajada do conceito, uma vez que ele tem sido tomado enquanto método, um meio neutro, uma metodologia que se utiliza pragmaticamente de temáticas mais centrais para atrair a atenção dos discentes, como se o universo temático fosse uma estratégia mediadora inocente (Passos, 2010). Esse é um dos engodos mais correntes da teoria freiriana, pois quando Freire assevera a necessidade de rigorosidade, não se refere ao tratamento do objeto, à rigorosidade metódica, e sim à rigorosidade na produção de condições para um aprender criticamente, como defende:

Uma de suas tarefas primordiais é trabalhar com os educandos a rigorosidade metódica com que devem se “aproximar” dos objetos cognoscíveis. E esta rigorosidade metódica não tem nada que ver com o discurso “bancário” meramente transferido do perfil do objeto ou do conteúdo. É exatamente neste sentido que ensinar não se esgota no “tratamento” do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito, mas se alonga à produção das condições em que aprender criticamente é possível (Freire, 2002, p. 14).

Consequentemente, reconhece-se que, se quase não há a compreensão política que a proposta apresenta, resta obsoleto também o entendimento acerca da participação de um projeto social e político do qual o educador é partícipe e, conforme ressalva Gadotti, não é possível “entender o pensamento pedagógico de Paulo Freire descolado de um projeto social e político. Por isso, não se pode ‘ser freiriano’ apenas cultivando suas idéias. Isso exige, sobretudo, comprometer-se com a construção de um “outro mundo possível” (Gadotti, 2008, p. 100, grifos nossos). Especialmente no âmbito da Filosofia da Educação, essa é uma discussão importante, uma vez que a ela compete a função de clarificar, “para os próprios atores, a dependência de seu agir e de suas convicções teóricas, em relação ao contexto de seu mundo objetivo que, longe de ser apenas determinado por eles, orienta sua própria vida profissional” (Flickinger, 1998, p. 17).

Ancorando-se em Moraes (2009), é possível perceber que essa obsolescência do caráter político e ideológico do fazer docente não configura um caso isolado, uma vez que o fascínio do modo de agir e operar do ato educativo nos diversos cotidianos escolares vêm transformando as experiências docentes “em limite da inteligibilidade”. Isso pode ser ratificado quando nas pesquisas “são comuns uma supervalorização da subjetividade do trabalho docente e as célebres ‘histórias ou relatos do cotidiano escolar’, narrativas subjetivas e/ou descritivas, quase sempre prescritivas, eivadas de ‘dever-ser’” (Moraes, 2009, p. 590), conforme as expectativas das professoras manifestadas pelas respostas, para que possa ser atraída a atenção dos alunos. Supervalorização essa que, segundo a autora, dificulta a capacidade constitutiva de decifrar os densos desajustes sociais e educacionais como consequência das próprias relações sociais.

Em contraponto, é necessário reafirmar a convicção de que o sistema escolar constitui a mais importante ferramenta de resistência e decifração dos enigmas que permeiam o sistema capitalista e, pertencente a esse conjunto de enigmas, a “faculdade” que o ser humano tem de estranhar o fato de este mesmo sistema ser produzido e alimentado pelos próprios homens (Mészáros, 2008). Contudo, ainda citando István Mészáros, em extrema afinidade com a proposta freiriana, somente o acesso ao contexto escolar “é condição necessária mas não suficiente para tirar das sombras do esquecimento social milhões de pessoas cuja existência só é reconhecida nos quadros estatísticos” (2008, p. 11), visto que a democratização do ensino e a expansão dos meios de comunicação não propiciam a difusão “qualitativa” do saber. A preocupação em decifrar os enigmas recém citados precisa se fazer presente quando da elaboração dos temas geradores e demanda um questionamento crítico acerca da estrutura de valores que cooperam para a imortalização da concepção de mundo baseada no sistema social mercantil que, dificilmente, um professor ancorado em uma perspectiva cética ou relativista o fará. E isso não quer dizer que a utilização da teoria freiriana seja condição sine qua non haverá engajamento político do professor, e sim que esse documento, que consiste muitas vezes em uma reinterpretação coletiva de documentos oficiais, necessita expressar mais que elementos depreendidos e avulsos de um discurso pedagógico híbrido. Também não é o fato de propostas freirianas restarem inviabilizadas. A emergência é que se tenha maior protagonismo e engajamento do professor, tanto nas atividades que demandam esforços individuas quanto coletivos, que vão muito além de mera lista de aspectos mais burocráticos do seu cotidiano.

Neste sentido, Henry Giroux (1997, p. 29) desenvolve a ideia de professor como intelectual, considerando que “[...] os professores enquanto intelectuais precisarão reconsiderar e, possivelmente, transformar a natureza fundamental das condições em que trabalham”. Dessa reconsideração faz parte a tomada de decisões de modo bastante rigoroso, não somente acerca do que ensinam, como também acerca de seu próprio caminho formador e profissional nos espaços em que laboram. Segundo Almeida (2005, p. 4), isso consequentemente acarreta o rompimento paulatino “com a cultura de isolamento profissional, a partir da ampliação da convivência com colegas em horários de discussões coletivas e nos trabalhos em projetos, a debater e reivindicar condições que permitam viabilizar a essência do próprio trabalho”. E isso não pode ser realizado se não por meio de uma compreensão do mundo da vida e das condições de existência em que vivem.

“Para que serve o sistema educacional - mais ainda, quando público -, se não for para lutar contra a alienação”, questiona Mészáros (2008, p. 17)? E, buscando uma tentativa de resposta para o pleito, é possível lançar mão de uma outra contribuição de bastante valia para os fundamentos educacionais, abordada por Freire: a tamanha distinção que há entre o fazer para e o fazer com, visto que, em tal dicotomia reside a diferença de sentido que há entre o pensar para e o pensar com. Quiçá, tal distinção venha configurando uma das maiores carências da escola pública também manifestada pela pouco politizada compreensão do conceito de tema gerador por parte das entrevistadas, que ainda se manifestam bastante vinculadas à função paternalista e assistencialista que o campo educacional vem adotando. Isto é, devido ao perverso quadro social atual, torna-se ainda necessário desvincular-se da ideia de pensar por e para, porquanto assim, se está pensando contra (Freire, 2011a).

Disso resulta que a ordem estabelecida na sociedade atual preconize o desenvolvimento de indivíduos flexíveis, que tenham desenvolvido, inclusive através de propostas interdisciplinares, como manifestou a Docente A, e em voga nas políticas públicas, as habilidades e competências necessárias à sua formação enquanto profissional apto a disputar uma vaga no mercado de trabalho, com níveis de exigência cada vez maiores. Mas isto está longe de coincidir com a formação do humano.

A partir dos dados analisados, é possível perceber que a organização escolar, no momento atual, (sobre)vive aos impactos que a Escola Nova lhe impôs ao disseminar a “ideia de fundamentar o ato pedagógico na ação, na atividade da criança”. Na esteira dessa máxima, “este vigoroso movimento de renovação da educação depois da criação da escola pública burguesa” (Gadotti, 2001, p. 142) pôs a Pedagogia a dialogar de forma mais próxima com a sociologia educacional e com a psicologia do desenvolvimento, o que, de certa forma, lhe distanciou do seu próprio objeto - o pedagógico -, bem como se encaminhou para uma cisão com a filosofia, uma vez que se centrou nos processos de aquisição dos objetos de conhecimentos e nas formas com que o currículo poderia se rearticular em torno deste novo diálogo (Ghiggi et al., 2017). Em síntese, distanciou-se dos fins do fazer pedagógico, centrou-se no puro fazer (Freire, 2011a) - que engloba a compreensão dos temas geradores enquanto mero método -, pouco instaurou condições de questionamento das situações profissionais instituídas (Dalpiaz, 2015) e se divorciou da busca pela direção e pelo porquê do seu quefazer (Freire, 2011a).

Desse modo, duas das questões centrais que cabem ao diálogo com os fundamentos da educação, com vistas à compreensão dos temas geradores, são: compreender de que modo alguns enunciados foram legitimados pelo vocabulário pedagógico e a produção de sentidos que eles produzem quando integram com frequência proposições curriculares; entender que consequências esses encontros e desencontros produzem na atividade docente dos professores enquanto intelectuais, considerando não somente os ganhos pragmáticos e utilitários que os temas geradores podem ocasionar, mas também os prejuízos, para assim ponderar, por meio do movimento praxiológico, os movimentos que os professores realizam em torno dos objetos.

Considerações finais

Este texto foi concebido como forma de encetar um diálogo com aqueles que se identificam e ainda buscam trabalhar a partir das propostas de Freire. No entanto, pelos atravessamentos por que passam a constituição coletiva de um fazer docente, não se teve a pretensão de afirmar que apresentar como proposta temas geradores somente é possível pela vertente freiriana. Do mesmo modo, não se objetivou defender que a pedagogia freiriana está sofrendo uma espécie de desvirtuação. Mais do que apontar as fragilidades de uma experiência equivocada, buscou-se a reflexão sobre a prática docente e sobre o cogente engajamento político do professor a partir da relação anunciado/realizado. Grafamos o termo experiência equivocada porque, ainda que sob a égide do nome desse educador (que, apesar dos desgastes, é bem recebido) exista uma prática diversa das propostas educacionais freirianas, é necessário que se discuta a responsabilidade pela busca de questões sérias da atuação dos professores, sem deixar de considerar as dinâmicas transformações por que passam tal profissionalização. Isso dialoga com o comprometimento não somente com o como se ensina, mas com o que ensinam, e com os objetivos maiores para os quais conduzem suas ações. Além da transformação pessoal, no âmbito da conscientização, são também capazes de provocar mudanças sérias na ordem social que se apresentam no mundo da vida. “Isto significa que eles devem assumir um papel responsável na formação dos propósitos e condições de escolarização. Tal tarefa é impossível com uma divisão de trabalho na qual os professores têm pouca influência” (Giroux, 1997, p. 161).

Não cair na falácia que disjunta teoria e prática - de se pensar que pode não haver relação entre aquilo que é anunciado nos documentos oficiais ou declarado pelos docentes e o que é realizado na escola ou sala de aula - permanece como desafio. Embora possível, não tem sido fácil fazer educação popular dentro da escola pública, muitos perderam a capacidade de sonhar e se acomodaram, até mesmo sob o pretexto do fim das utopias. E, como denunciado por Freire, a acomodação representa uma escolha e expressa a desistência da luta pela mudança.

Desse modo, “falta a quem se acomoda, ou em quem se acomoda fraqueja, a capacidade de resistir” (Freire, 2000, p. 41), adotando aqui o conceito de resistência também como uma retomada da função política do educador enquanto intelectual transformador da sua profissão (Giroux, 1997). “É mais fácil a quem deixou de resistir ou quem sequer foi possível em algum tempo resistir aconchegar-se na mornidão da impossibilidade do que assumir a briga permanente e quase sempre desigual em favor da justiça e da ética” (Freire, 2000, p. 41).

Logo, observa-se um esfacelamento da compreensão sócio-antropológica do tema gerador, que se apresenta como consequência da obsolescência do aspecto político da atividade docente. Dessa maneira, resta ainda referir a contundente denúncia de Freire quanto àquilo que neste sentido sim pode ser chamado de contradição: declarar os preceitos de uma educação libertária sem acreditar nos alunos que desejamos livres e sem acreditar na função política dos educadores enquanto intelectuais. Resta também, como tarefa, a efetivação de uma proposta de educação associada a um projeto de sociedade, sob pena do uso do tema gerador representar somente uma forma de organização curricular não centrada em disciplinas, esvaziada da participação de todas as pessoas envolvidas, minguada na possibilidade de transformação social radical, cerne das contribuições teórico-metodológicas de Paulo Freire.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
5 Sintaxe, na preleção de Paulo Freire, é melhor compreendida em seu sentido lato sensu, uma vez que o mesmo não fala de uma ciência que se limita a examinar a estrutura dos períodos, analisando os processos generativos e combinatórios das frases nas línguas naturais, este configuraria seu sentido stricto sensu.
6 O conceito de crítica, como os demais notados até aqui, não traz uma sistematização por ele elaborada, mas é possível tomar seu significado como interpretação da própria interpretação, o ato de repensar os contextos, reinventando diversas definições. Não somente tolerando, mas reconhecendo e contrapondo as ambiguidades, de maneira que, a partir dessa competência, seja viável a tentativa de resolver as contradições, questionando os discursos pré-estabelecidos.
7 De acordo com Freire (2011b), nos Círculos de Cultura os alfabetizandos pensam sobre sua prática, em termos cada vez mais críticos, substituindo uma visão focalista da realidade por outra mais abrangente. Esclarece ainda que a consciência não se transforma a não ser na práxis, de forma que o contexto concreto, a quotidianeidade, não pode ser atrelado a um contexto teórico “desinteressado”, indicando uma ação política. Para Freire, ao dizer sua palavra, o alfabetizando representa sua leitura específica da realidade. “A proposta do Círculo de Cultura coloca o educando na posição de investigador. É a partir da curiosidade epistemológica que o move que ele vai descobrindo aquilo que lhe era velado. É por meio das discussões, da problematização da realidade, que o educando vai avançando na sua própria aprendizagem (Feitosa, 2011, p. 62). Há que se destacar que o educador permanece imprescindível nesse processo educativo proposto por Freire, entretanto não mais como um doador de conhecimentos, característica do educação bancária. É uma proposta dialógica, consciente e solidária. Conforme sintetizado por Brandão (2010, p. 69) “no círculo de cultura o diálogo deixa de ser uma simples técnica de ação grupal e passa a ser a própria diretriz de uma experiência didática centrada no suposto de que aprender é aprender a dizer a sua palavra”. E dizendo sua palavra as pessoas transformam o mundo.
8 Em face a uma tentativa de reatualização do conceito, chama-se bancária as diversas formas de educação que tolhem o educando em sua expressão enquanto ser humano, que reforçam a estratificação das classes sociais, uma vez que o ensino é tomado como treinamento para a formação de massa de trabalho.
9 Nesse sentido, significativas são as palavras de Freire, em Pedagogia da Esperança, ao estabelecer a crítica ao “excesso de certeza com que aqueles educadores ‘modernos’ faziam seu discurso, sua declaração de fé inabalável: ‘Aqui, não. Nós sabemos o que os estudantes devem saber. Esta é, sempre, a certeza dos autoritários, dos dogmáticos, de que sabem o que as classes populares sabem, de que sabem o de que elas precisam, mesmo sem falar com elas. Por outro lado, o que as classes populares já sabem, em função de sua prática na prática social, é de tal maneira ‘irrelevante’, ‘desarticulado, que não faz sentido para autoritários e autoritárias. O que faz sentido para eles e para elas é o que vem de suas leituras, e o que escrevem em seus textos. É o que já sabem em torno do saber que lhes parece fundamental e indispensável e que, em forma de conteúdos, deve ser ‘depositado’ na ‘consciência vazia’ das classes populares” (Freire, 2015, p. 161).
10 Esse material era elaborado a partir de uma pesquisa do universo vocabular e do universo temático dos sujeitos, a fim de que os temas por eles estudados fossem prenhes de significado para todos, que dissessem coisas que de fato davam sentido a suas vidas, do mundo imediato.
Autor notes

Universidade Federal de Pelotas. gghiggi@terra.com.brPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. juhbpereira@gmail.comUniversidade do Oeste de Santa Catarina. priscila.chaves@unoesc.edu.brUniversidade Federal de Roraima. sheilamangoli@gmail.com

Quadro 1
Planejamento docente e o uso de temas geradores.


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