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Resumo: O presente artigo tem como objetivo discutir os primeiros resultados da pesquisa desenvolvida na área portuária do Rio de Janeiro em torno dos cortiços existentes na região, suas condições de moradia e o perfil de sua população. Diante da situação de informalidade e de ausência de informações a cerca dessa forma de moradia no diagnóstico apresentado pela prefeitura no âmbito da elaboração do Plano de Habitação de Interesse Social, no segundo semestre de 2015, buscou-se suprir essa lacuna em um trabalho realizado rua a rua, identificando os imóveis que funcionam como cortiços em meio a área da Operação Urbana do Porto Maravilha. Pelo levantamento de campo foi possível identificar 54 cortiços na área portuária, e estimar a população residente nestes imóveis em 1120 pessoas, morando em 712 cômodos, distribuídos nos bairros Santo Cristo, Gamboa e Saúde, e também em ruas do Centro, dentro dos limites da Operação. Com isso, buscou-se desconstruir a percepção corrente, que estigmatiza estes espaços – e seus habitantes – como precários e marginais, mostrando que os cortiços são marcados por uma grande heterogeneidade de condições de moradia e de grupos sociais, unificados em sua demanda de viver na área central5.
Palavras-chave: Cortiços, Áreas centrais, Moradia.
Informalidade, Invisibilidade e vulnerabilidade dos cortiços: disputas pela centralidade na área portuária do Rio de Janeiro
Orlando Alves dos Santos Junior1
Larissa Lacerda2
Mariana Werneck3
Bruna Ribeiro4
Resumo
O presente artigo tem como objetivo discutir os primeiros resultados da pesquisa desenvolvida na área portuária do Rio de Janeiro em torno dos cortiços existentes na região, suas condições de moradia e o perfil de sua população. Diante da situação de informalidade e de ausência de informações a cerca dessa forma de moradia no diagnóstico apresentado pela prefeitura no âmbito da elaboração do Plano de Habitação de Interesse Social, no segundo semestre de 2015, buscou-se suprir essa lacuna em um trabalho realizado rua a rua, identificando os imóveis que funcionam como cortiços em meio a área da Operação Urbana do Porto Maravilha. Pelo levantamento de campo foi possível identificar 54 cortiços na área portuária, e estimar a população residente nestes imóveis em 1120 pessoas, morando em 712 cômodos, distribuídos nos bairros Santo Cristo, Gamboa e Saúde, e também em ruas do Centro, dentro dos limites da Operação. Com isso, buscou-se desconstruir a percepção corrente, que estigmatiza estes espaços – e seus habitantes – como precários e marginais, mostrando que os cortiços são marcados por uma grande heterogeneidade de condições de moradia e de grupos sociais, unificados em sua demanda de viver na área central5.
Palavras-chave
Cortiços; Áreas centrais; Moradia.
Informality, Invisibility and vulnerability of the slums tenements: the conflits in the port area of Rio de Janeiro
Abstract
This article aims to discuss the first results of the research developed in the port area of Rio de Janeiro around the existing slum tenements (called cortiços, that are several buildings with common bedrooms where many lower class families live together) in the region, its housing conditions and the profile of its population. Considering the situation of informality and the absence of information about this form of housing in the diagnosis presented by the city hall in the scope of the Social Interest Housing Plan, in the second half of 2015, the aim was to fill this gap in a street-to-street work, identifying real estate which operate as tenements in the area of the Urban Operation of Porto Maravilha. By the field survey, it was possible to identify 54 tenements in the port area, and estimate the resident population in these properties in 1120 people, living in 712 rooms, distributed in the neighborhoods Santo Cristo, Gamboa and Saúde, and also in streets of the Center, within the limits of Operation. The aim was to deconstruct the current perception, which stigmatizes these spaces – and their inhabitants – as precarious and marginal, showing that the tenements are marked by a great heterogeneity of living conditions and social groups, unified in their demand to live in the central area.
Keywords
Cortiços; Central areas; Housing.
Artigo recebido: maio de 2018.
Artigo aprovado: julho de 2018.
Introdução
Desde 2009 está em curso na Cidade do Rio de Janeiro o projeto de renovação da área portuária, implementado por meio da Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha, gerida pela Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP). A Operação Urbana envolve obras e serviços nos cinco milhões de metros quadrados da Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU) da Região do Porto do Rio, no valor de R$ 8 bilhões de reais, implementados por meio uma parceria público privada (PPP), vencida pelo Consórcio Porto Novo (integrado pelas empresas Odebrecht Infraestrutura, OAS e Carioca Christiani Nielsen Engenharia). A análise das intervenções previstas no âmbito da Operação Urbana revela a ausência de investimentos em habitação de interesse social, visando à permanência dos atuais moradores e a ampliação de moradias voltadas para as classes populares. Em outras palavras, não há recursos públicos sendo investidos em habitação, apesar de o aumento populacional e do adensamento demográfico estarem previstos para a região, que, segundo cálculos da Prefeitura, passaria dos atuais 32 mil para 100 mil habitantes até 2020, vivendo nos bairros de Santo Cristo, Gamboa, Saúde e partes do Centro da Cidade.
A ausência de políticas e investimentos em habitação de interesse social fez com que diversas organizações populares pressionassem a Prefeitura Municipal e a CDURP a elaborarem um plano de habitação de interesse social para área portuária, o que ocorreu durante 2015 por meio de audiências públicas e de uma conferência municipal, realizada em agosto de 2015, voltada para a discussão e aprovação do plano de habitação de interesse social da área portuária6.
Chama a atenção o fato do diagnóstico feito para subsidiar a elaboração do referido plano não mencionar nada sobre a existência de cortiços na área portuária7, apesar de ser de conhecimento geral a existência desta forma de moradia na área central. Da mesma forma, é surpreendente o fato de não existirem informações oficiais nos órgãos públicos sobre cortiços, apesar dos indícios de ser expressiva e disseminada esta forma de moradia na área central. A invisibilidade dos cortiços nos diagnósticos oficiais provavelmente também contribuiu para que não fossem discutidas propostas de políticas públicas voltadas para os cortiços e os seus moradores, já que sua existência não era reconhecida.
Esse quadro é ainda mais alarmante se levarmos em consideração as remoções executadas pela prefeitura durante as obras do Porto Maravilha. Segundo dados do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro8, entre 2009 e 2015, pelo menos 535 famílias foram removidas da região portuária, atingindo, notadamente, as ocupações organizadas por movimentos de moradia em edifícios que não cumpriam sua função social, muitos deles abandonados há décadas. Esse quadro retrata a indisposição da prefeitura em garantir a permanência de famílias de baixa renda na região, uma vez que muitos desses prédios permanecem vazios. Além disso, as dificuldades enfrentadas no acesso à informação pública levam a crer que esses números podem ser ainda mais altos e, segundo relatos de alguns moradores da região, durante a pesquisa de campo empreendida, imóveis que funcionavam como cortiços também podem ter sido alvo dessa política de remoção.
Neste contexto, o objetivo deste artigo9 é sumarizar os resultados da pesquisa sobre cortiços na Área Portuária10, realizada a partir de levantamento de campo, rua por rua, visando identificar os cortiços e o perfil dos seus moradores. Os resultados confirmam a presença e expressividade desta forma de moradia na área central. Ao mesmo tempo, procura-se, desde uma perspectiva histórica e da teoria crítica, discutir a importância dos cortiços como forma de acesso à centralidade, as razões para a sua reprodução como moradia informal ao longo do tempo, mesmo não existindo regulamentação destes estabelecimentos pelo poder público, e os sentidos atribuídos pelos seus moradores.
O levantamento foi realizado nos bairros do Santo Cristo, Gamboa, Saúde e parte do Centro, incluídos na área da Operação Urbana do Porto Maravilha.
Apesar de não existir uma definição precisa e objetiva do que seja um cortiço, em geral, as definições existentes consideram cortiços “imóveis que têm como principal característica a precariedade das condições habitacionais que resultam em condições de vida e moradia sub-humanas...” (SAULE JÚNIOR, ALMEIDA, FONTES e CARDOSO, 2007, p.370). Entre as condições de precariedade, destacam-se as seguintes situações: (i) a segurança física e a subdivisão em vários cômodos alugados ou subalugados; (ii) superlotação dos cômodos, decorrente do número de habitantes desproporcional e incompatível com o tamanho do imóvel; (iii) cômodos sem janelas ou ventilação; (iv) cômodos com multiplicidade de usos; (v) número insuficiente de instalações sanitárias configurando condições higiênicas precárias; (vi) insegurança das instalações elétricas, gerando riscos de incêndio; (vii) sobrecarga do consumo de água e energia elétrica decorrente da superlotação (SAULE JÚNIOR, ALMEIDA, FONTES e CARDOSO, 2007, p.370-371).
Apesar de esta definição ter seu foco nas condições físicas da habitação, Saule Júnior et al (SAULE JÚNIOR, ALMEIDA, FONTES e CARDOSO, 2007, p.371) destacam que “a situação nos cortiços não é somente irregular e precária com relação as condições de habitabilidade. A irregularidade e precariedade também existe na informalidade das relações jurídicas existentes entre os moradores de cortiços e os proprietários destes imóveis urbanos”. Em geral, “os moradores de cortiços, enquanto sublocatários, permanecem em uma relação jurídica precária de locação”.
Partindo desta definição, optou-se por fazer um levantamento mais restritivo dos imóveis considerados como cortiços, centrado nos imóveis de quartos alugados, coabitado por mais de uma família, o que exclui outras formas de habitação coletiva, como as ocupações, que apesar de poderem ter características físicas similares aos cortiços não são caracterizados por relações precárias de locação do imóvel. Desta forma, cortiço no âmbito desta pesquisa caracteriza uma habitação coletiva e uma relação social entre locadores (os proprietários ou administradores dos cortiços) e locatários (os moradores dos cortiços).
Os cortiços são tipicamente habitações de quartos alugados, com banheiros compartilhados, alguns com cozinhas também coletivas, outros sem espaço específico para isso, mas sendo permitido cozinhar no próprio quarto. Os cortiços também são denominados de habitações ou casas de cômodos, ou ainda quartos de aluguel11. De fato, constatou-se que a maior parte dos proprietários, administradores e moradores não utiliza o termo cortiço, talvez pelo caráter pejorativo que figura no imaginário popular, como sinônimo de precariedade, exploração, pobreza e insalubridade, lembrando também o famoso cortiço demolido no início do século XX, o Cabeça de Porco. Assim, em geral, as pessoas desse grupo social utilizam o uso dos termos quartos ou cômodos alugados.
Um pouco de história: da explosão demográfica ao ataque contra os cortiços
O crescimento da população do Rio de Janeiro apresenta um considerável aumento desde o início do século XIX. A vinda da corte portuguesa para a cidade, em 1808, trouxe os transtornos decorrentes da instalação de aproximadamente 15 mil pessoas – dentre nobres, militares, funcionários de alto escalão e a própria família real – num espaço urbano que não abrigava mais que 50 mil habitantes. Logo depois, a abertura dos portos brasileiros às nações amigas, em 1810, intensificaria o movimento comercial na capital, impulsionando um novo ciclo migratório. Como resultado, a população do Rio de Janeiro havia praticamente dobrado em menos de duas décadas, chegando a cerca de 100 mil habitantes em 1822, e atingindo impressionantes 135 mil em 1840 (LAMARÃO, 2006). Os números continuaram a subir na segunda metade do século. A abolição da escravidão, em 1888, provocou um êxodo de escravos alforriados, vindos especialmente da região cafeeira do estado do Rio para a cidade, ao passo que a imigração europeia era estimulada pelo Estado para substituir a mão de obra escrava nas plantações de café e “purificar” a raça brasileira pelo branqueamento da população (GONÇALVES, 2013). Desse modo, entre 1872 e 1890, a cidade assistiu a um novo salto demográfico, passando de 266 mil para 522 mil habitantes, e ainda teria que absorver outros 200 mil chegados na última década do século (CARVALHO, 1987).
Naquela época, o tecido urbano do Rio de Janeiro já se expandia para os arrabaldes da Zona Sul e para os subúrbios. No entanto, era ainda a região central que concentrava os postos de trabalho, reunindo não só comércio e serviços, como grande parte do parque manufatureiro da cidade. Apesar da expansão da rede de transportes públicos a partir dos anos 1860, os custos de transporte, por sua vez, eram penosos para a grande maioria. O mercado de trabalho, por um lado, e a precariedade das relações trabalhistas, por outro, forçaram, assim, a população a aglomerar-se nos bairros de centro, apinhando-se nos cortiços que se multiplicavam. Como reflexo da explosão populacional, os moradores de cortiço dobraram em número entre 1880 e 1890, somando 100 mil pessoas (GONÇALVES, 2013).
Como é sabido e retratado pela literatura (AZEVEDO, 1997 [1890]), a estrutura dos cortiços era precária. Proprietários e locadores auferiam extraordinárias margens de lucro a partir de um pequeno investimento, como a construção de pequenas casas ou a divisão dos cômodos existentes em minúsculos aposentos (GONÇALVES, 2013). As condições de higiene dessas habitações superlotadas rapidamente se deterioraram, transformando os cortiços em focos de infecções sanitárias e epidemias – como a peste bubônica, febre amarela e varíola – que assolavam recorrentemente a cidade. Prainha, Saúde e Gamboa – áreas que não apenas continham cortiços, mas também onde se desenrolavam as atividades portuárias, com intenso fluxo de cargas e pessoas – eram epicentros de irradiação das doenças, motivo que levou à construção do hospital Nossa Senhora da Saúde, instalado no alto do Morro da Saúde, em 1853, e de uma ponte para remoção dos cadáveres rumo ao Cemitério do Caju no litoral da Saúde, logo atrás do hospital, já em 1877 (LAMARÃO, 2006).
Logo, os cortiços, também associados à marginalidade, tornaram-se foco do discurso higienista, que ganhava força após a Proclamação da República em 1889. Médicos e sanitaristas afirmavam que fatores sociais eram capazes de intensificar as causas naturais das moléstias – tais como as condições insalubres do ambiente e a desnutrição –, de modo que era imperioso combater conjuntamente um e outro (GONÇALVES, 2013). Além disso, impunha-se ao regime republicano a necessidade de garantir estabilidade ao novo pacto de poder que se organizava desde o golpe republicano, contra a qual a capital – mobilizada politicamente, heterogênea e fragmentada socialmente, indisciplinada e dividida por conflitos internos – representava perigo, deflagrado nas revoltas militares, nas agitações populares e nas greves operárias (CARVALHO, 1987).
Desse modo, passou a ser implementada uma política de controle sobre o espaço central da cidade cuja execução implicava no banimento das camadas populares (GONÇALVES, 2013). É possível dizer que essa política estava alicerçada em três elementos principais: (a) as restrições ao funcionamento, as interdições e a erradicação progressiva dos cortiços na área central da cidade; (b) a criminalização das atividades econômicas e de práticas culturais próprias das classes populares, indispensáveis à sua reprodução; e (c) o incentivo à construção de casas operárias, erguidas em outros pontos da cidade.
A legislação demonstrou-se um instrumento fundamental nesse processo. De fato, a imposição de restrições legais aos cortiços já era observada desde o Império: desde 1856, as normas sanitárias para a concessão de alvarás de construção tornavam-se mais severas, e, a partir de 1880, a Junta Central de Higiene passou a proibir novas construções, exigindo o fechamento de várias casas coletivas (GONÇALVES, 2013). Todavia, o cumprimento da legislação nunca foi firmemente aplicado, em grande medida, devido à atuação dos donos de cortiços, que, organizados em torno da Sociedade União dos Proprietários e Arrendatários de Prédios, recorriam de forma regular ao Poder Judiciário e ao Conselho Municipal para bloquear as iniciativas da Junta Central de Higiene (GONÇALVES, 2013). A partir de 1889, o regime republicano, apoiando-se em novos protagonistas sociais, reforçou a natureza autoritária das medidas higienistas e deu vazão às novas reflexões sobre a gestão do espaço urbano, cerceando, ao mesmo tempo, as possibilidades de participação de grande parte da população na vida política (GONÇALVES, 2013; CARVALHO, 1987). Assim, pouco depois de o governo provisório ser instalado, foi decretado o Código de Posturas de 1890, que concentrava poderes nas mãos da Inspetoria Geral de Higiene, além de impor exigências de ordem sanitária às edificações e ampliar o controle social sobre a população que morava em estalagens e casas de cômodo (GONÇALVES, 2013). A Constituição de 1891, por sua vez, excluiu a esmagadora maioria do direito político do voto ao exigir a alfabetização, além de dissociar o governo municipal da representação dos cidadãos, uma vez que o prefeito, cargo por ela criado, seria nomeado pelo presidente da República ao longo de toda a Primeira República (CARVALHO, 1987). Médicos ou engenheiros em sua maioria, os prefeitos eram trazidos, muitas vezes, de outros estados e eram alheios à vida da cidade. Como constata José Murilo de Carvalho (1987, p.35), “abria-se então, do lado do governo, o caminho para o autoritarismo, que na melhor das hipóteses poderia ser um autoritarismo ilustrado, baseado na competência, real ou presumida, de técnicos”.
Pouco tempo depois, a política de erradicação dos cortiços conseguia a façanha de demolir o célebre Cabeça de Porco, que, segundo relatos dos jornais da época, chegou a abrigar cerca de 4 mil pessoas. A resistência do cortiço às investidas para eliminá-lo, durante o Império, havia feito do Cabeça de Porco – localizado próximo à Estrada de Ferro Central do Brasil, aos pés do morro do Livramento – o cortiço mais famoso da cidade. Corria entre a população o boato de que sua resistência se dava pela influência de seu ilustre proprietário, conde d’Eu, marido da princesa Isabel. Em 1891, entretanto, o município fechou contrato com o engenheiro Carlos Sampaio, que havia proposto prolongar algumas ruas e abrir um túnel através do morro (o atual túnel João Ricardo) com o objetivo de ali construir prédios e explorar uma linha de carris (CARDOSO et al., 1987). Em meio ao agravamento das epidemias no início da década de 1890, o prefeito Barata Ribeiro baixou um decreto em 26 de janeiro de 1893, permitindo a si próprio combater os cortiços, e, naquele mesmo dia, deu início à demolição do Cabeça de Porco a partir de um exército de funcionários da Higiene Pública, policiais, cavalaria, trabalhadores da prefeitura e trabalhadores cedidos por engenheiros como Vieira Souto e o próprio Carlos Sampaio (CARDOSO et al., 1987). Ao final do dia, o cortiço havia desaparecido. Os jornais anunciavam o fato e anunciaram o breve início das obras do túnel que seria concluído apenas trinta anos depois, quando Sampaio era o prefeito da cidade (VAZ, 1986).
Em virtude das repercussões sociais da demolição do Cabeça de Porco, e também buscando posicionar-se frente à opinião pública, Barata Ribeiro baixou o decreto nº 32, de 29 de janeiro de 1893, expandindo os benefícios, sobretudo fiscais, para a produção de vilas operárias, que haviam sido concedidos ainda no Império (GONÇALVES, 2013). A iniciativa contribuiu para desenvolver os setores da construção civil e da incorporação imobiliária; todavia, o número de moradias construídas foi insignificante, e o cerco aos cortiços tornava-se cada vez mais violento.
Os textos da lei foram pouco a pouco aumentando os perímetros de proibição da instalação dos cortiços. Assim, o decreto nº 762, de 1º de junho de 1990, aumentou consideravelmente o perímetro de proibição de habitações coletivas, permitindo sua existência somente nas freguesias da Gávea, Engenho Velho, São Cristóvão, Inhaúma e Irajá (GONÇALVES, 2013). Dois anos depois, o decreto nº 391, de 10 de fevereiro de 1903, baixado quando Pereira Passos já havia assumido o governo municipal, não só proibiu novas construções como impedia qualquer obra, reforma ou conserto que pudesse permitir a manutenção dos cortiços, tolerando somente trabalhos de pintura e caiação (GONÇALVES, 2013). A gestão de Pereira Passos significou uma nova fase de recrudescimento contra os cortiços e as classes populares. Indicado pelo presidente Rodrigues Alves em 1902, Pereira Passos foi nomeado com a tarefa de sanear o porto do Rio de Janeiro, cuja infraestrutura defasada impunha barreiras ao crescimento das trocas comerciais, de embelezar a cidade e de livrá-la das doenças, transformando a capital à luz das cidades europeias. Para tanto, o presidente da República dotou o novo prefeito de plenos poderes, baixando, no dia anterior à posse de Pereira Passos, uma lei federal que reestruturou a administração municipal, adiando por seis meses as eleições para o Conselho Municipal (CARVALHO, 1987). Sem oposição, Pereira Passos usou seus poderes discricionários para colocar em vigor um elenco de decretos destinados a facilitar a implementação das obras da “Reforma Passos”.
Entre 1903 e 1910, o Rio viveu, então, uma transformação radical. De um lado, o governo federal encarregava-se das obras de melhoramentos do porto, que incluíam: o aterro da Prainha, do Valongo e de todo o litoral da área portuária, prolongando o canal do Mangue até o mar; e a abertura de grandes vias para a circulação de mercadorias, a dizer, a Avenida Central, a Avenida do Mangue e a Avenida do Cais (renomeadas, posteriormente, Avenida Rio Branco, Avenida Francisco Bicalho e Avenida Rodrigues Alves, respectivamente). De outro, a administração municipal concentrou seus esforços no alargamento, no prolongamento e na abertura de novas ruas em áreas densamente povoadas – projeto que ficou conhecido como “bota abaixo” –, além de construir praças e monumentos como o Theatro Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes e a Biblioteca Nacional.
Ao final da gestão do prefeito Pereira Passos, em 1906, cerca de 1.700 prédios haviam sido demolidos, e pelo menos 20 mil pessoas foram removidas (GONÇALVES, 2013). As freguesias centrais da Candelária, de Santa Rita (onde hoje estão os bairros Saúde e Gamboa) e do Sacramento (compreendendo as imediações da Praça Tiradentes, do Saara e da Cruz Vermelha) foram as mais sacrificadas (ABREU, 2013). Mas não foram apenas as demolições ostensivas que desabrigaram a população: a valorização e a especulação do solo urbano, e seus efeitos sobre os preços dos alugueis; os novos impostos, decorrentes do fornecimento de novos serviços, como a iluminação pública; as restrições e os parâmetros arquitetônicos exigidos para novas construções; e a proibição de atividades econômicas ligadas à subsistência das classes populares atuaram como uma poderosa força segregadora (BENCHIMOL, 1992). Consolidava-se assim uma divisão espacial na cidade do Rio de Janeiro, baseada na hierarquização dos lugares. Enquanto o centro ficava reservado aos negócios, os bairros próximos da Zona Sul, situados ao longo da orla marítima, eram destinados às classes médias e altas. Aos pobres, restavam os subúrbios.
De fato, grande parte da população expulsa acabou se mudando para as freguesias suburbanas mais próximas do Centro, como Engenho Novo e Inhaúma (ABREU, 2013). No entanto, as despesas com transporte e o alto custo dos materiais de construção dificultavam o deslocamento dos trabalhadores para o subúrbio (BENCHIMOL, 1992). Muitos, então, acabaram subindo os morros – em especial, o Morro da Providência, que, na época, já era ocupado por famílias de escravos libertos e soldados egressos da Guerra do Paraguai – dando origem às favelas. É nesse sentido que Lilian Vaz (1994, p. 592) diz que “a favela tem na sua origem a ação do mesmo processo socioespacial que determinava o fim dos cortiços”. Mas muitas famílias continuavam a alugar cômodos. Os cortiços continuavam a existir, acobertando os sinais de sua existência para sobreviver à perseguição e às inúmeras transformações e reorganizações urbanas pelas quais a cidade se viu atravessada desde então.
Visibilizando os cortiços na paisagem urbana do Rio de Janeiro
A invisibilidade urbana e social é um elemento constitutivo da história dos cortiços no Rio de Janeiro e um elemento central para compreender as dinâmicas que atravessam e constituem esses espaços. Esta invisibilidade parece estar associada ao que Wacquant denomina, discutindo o caso da segregação racial nos Estados Unidos, de nexo entre o estigma territorial, a falta de segurança e o abandono pelo Estado, tornando os moradores dessas áreas os “proscritos da cidade” (WACQUANT, 1995). A primeira expressão da invisibilidade dessa forma de moradia está na total ausência de informações acerca dos cortiços nos órgãos públicos municipais. A prefeitura do Rio de Janeiro não possui qualquer levantamento dos imóveis que funcionam alugando quartos ou sobre o perfil socioeconômico de seus moradores.
Uma vez constatada a ausência de informações públicas, a estratégia para a realização do levantamento foi identificar, rua a rua, os imóveis que funcionam como aluguel de quartos. Mas, durante o trabalho de identificação, esbarrou-se em uma primeira dificuldade prática: a maioria dos imóveis que funciona como cortiço não é identificável pela fachada, nem possui, na maioria dos casos, qualquer tipo de placa ou anúncio de aluguel de quartos. Em geral, quando os imóveis exibem alguma identificação se intitulam como hotel ou hospedagem, mesmo quando servem de moradia permanente para parte de seus “hóspedes”. Como poderá ser observado no decorrer deste artigo, a questão coloca-se aqui na fluidez entre o que é considerado moradia permanente ou temporária para os moradores de cortiços.
Dada a dificuldade em identificar os imóveis por suas características físicas ou anúncios, o trabalho de campo foi organizado de forma a garantir que as equipes percorressem todas as ruas da área que compreende o Porto Maravilha. De maneira geral, a estratégia utilizada para identificar os cortiços baseou-se nas indicações dadas por trabalhadores de comércios locais e informais da região e pelos próprios moradores de cortiços já identificados – dada a rotatividade de alguns moradores entre os cortiços disponíveis, muitos sabem apontar outros imóveis onde é possível alugar um quarto. Além disso, em alguns casos, proprietários e/ou administradores eram responsáveis por mais de um cortiço na região.
Com esta metodologia, conseguiu-se identificar 54 cortiços situados na área portuária da operação urbana, distribuídos nos bairros Santo Cristo, Gamboa e Saúde, e também em ruas do Centro, envolvendo, conforme estimativas da pesquisa, um mínimo de 712 quartos, onde habitam, cerca de 1.120 pessoas (Figura 1). Do universo total de cortiços identificados, conseguiu-se entrevistar 25 administradores ou proprietários dos imóveis, que concederam informações sobre o funcionamento dos estabelecimentos. Nos demais casos, quando foi possível, buscou-se informações com vizinhos, comerciantes locais ou moradores. Simultaneamente, com o objetivo de traçar o perfil da população dos cortiços, foram realizadas entrevistas com seus moradores(as) – o que demandava o retorno ao imóvel depois de um primeiro contato em que se explicava os objetivos do levantamento. Assim, conseguiu-se entrevistar 105 moradores(as) vivendo nos cortiços identificados na área portuária, o que pode ser considerada uma amostra bastante significativa do universo total dos moradores nestas condições. Cabe registrar que nem sempre foi possível realizar entrevistas com os(as) moradores(as), fosse pela dificuldade de acesso a alguns locais controlados pelo tráfico local, fosse pela desconfiança junto à equipe. Isso porque a situação de vulnerabilidade e informalidade desta forma de moradia também traz insegurança, uma vez que não existe contrato que assegure aos moradores sua permanência nas habitações – um quadro agravado nos casos em que estes são imigrantes, principalmente se viverem de forma ilegal no país.
Figura I – Localização dos Cortiços na Operação Urbana Porto Maravilha, 2016.
Fonte: Observatório das Metrópoles, 2016
Durante as visitas de campo e entrevistas com os moradores de cortiços fica clara a existência de redes de informação por meio das quais as pessoas acessam essa forma de moradia, no geral, trabalhadores vindos de outros estados do Brasil, marítimos, imigrantes – alguns deles podendo estar em situação irregular no país – e famílias de baixa renda. Assim, vão se constituindo redes de contatos entre pessoas que moram ou já moraram em cortiços, por meio das quais são transmitidas informações acerca das melhores alternativas de aluguéis de quarto na região central do Rio de Janeiro, a depender das necessidades e possibilidades de quem procura.
Ainda no que se refere à invisibilidade, a situação dos imigrantes parece sustentar uma particularidade em relação aos demais grupos sociais. Em muitos dos casos, a invisibilidade dos cortiços pode ser utilizada como estratégia de sobrevivência. Ou seja, para muitos dos imigrantes vivendo em situação irregular no país, os cortiços e sua invisibilidade social e urbana apresentam-se como um meio estratégico, tendo em vista que eles também estão, de certo modo, invisíveis no país. Também por isso, as entrevistas foram mais difíceis com esse grupo.
Mas essa invisibilidade tem um preço. Em um primeiro momento, podemos entender a invisibilidade na paisagem urbana dos cortiços como uma estratégia para driblar a sua ilegalidade, permitindo a reprodução do seu funcionamento. No entanto, com a inexistência de leis que regulamentem e fiscalizem o funcionamento desses imóveis, somada a vulnerabilidade característica da maioria de seus habitantes, muitos deles funcionam em condições precárias, sem garantir as condições mínimas de uma moradia digna para seus habitantes.
Em geral, é comum associar os cortiços à precariedade e às péssimas condições de higiene e de moradia, visão esta que remonta o início do século, como mostrado anteriormente. O levantamento realizado buscou superar esta representação fortemente difundida na sociedade e identificar as condições concretas dessas moradias, de forma a avaliar as possibilidades dos cortiços se converterem em alternativas habitacionais dignas no centro da cidade. Como já registrado anteriormente, o levantamento de campo encontrou diversas dificuldades para obter informações sobre as condições de moradia dos cortiços, tendo em vista a indisponibilidade de muitos proprietários e administradores em conceder entrevistas e a impossibilidade dos pesquisadores de campo de entrarem em diversos cortiços para constatarem diretamente essas condições. Mas com base nas entrevistas concedidas por 25 administradores ou proprietários12, e também, por moradores, foi possível traçar um quadro bastante representativo das condições de moradia dos cortiços.
Segundo os moradores informantes, existem 712 quartos nos 54 cortiços identificados, sendo que em dois casos não se conseguiu obter esta informação, o que indica que o total de quartos é ainda um pouco superior a este dado. Levando-se em conta o universo de 52 cortiços nos quais foi possível obter esta informação, constata-se que na maioria dos casos (56%) trata-se de habitações pequenas compostas de um a dez cômodos (29 casos), existindo também um número significativo (17 casos, correspondendo a 33%) de estabelecimentos médios, compostos de 11 a 25 cômodos. Os grandes cortiços, com mais de 25 cômodos, são minoritários (apenas seis casos, correspondendo a 11%), mas incluem um cortiço com 60 e outro com 70 quartos.
Figura II - Fachadas de cortiços identificados na Área Portuária, 2016.
Fonte: Acervo Observatório das Metrópoles, 2016.
O tamanho dos cômodos e o número de pessoas que compartilha cada quarto parecem ser muito variáveis, inclusive em um mesmo cortiço, que pode ter cômodos com diferentes tamanhos. Levando-se em consideração as informações dos 25 administradores e proprietários, complementadas por informações recolhidas junto aos moradores, pode-se chegar a um quadro razoavelmente preciso, no qual se evidencia que são poucos os cortiços com cômodos compartilhados por mais de duas pessoas. De fato, constatou-se que em 22 cortiços (42%) vive apenas uma pessoa por cômodo, enquanto que em outros 23 cortiços (44%) vivem até duas pessoas por cômodo. São sete cortiços (14%) onde os cômodos são compartilhados por mais de duas pessoas, na contramão, cinco são os casos em que o quarto é compartilhado por três pessoas, um caso, compartilhado por cinco pessoas, e outro em que o mesmo cômodo é compartilhado por até 12 pessoas. Neste último caso, trata-se de um cortiço com um único quarto de mais de 12 m².
Assim, considerando o número de pessoas que compartilha cada cômodo, ter-se-ia um quadro que indicaria condições de moradia nos cortiços que não corresponderiam exatamente à representação social em vigor, marcada pela vulnerabilidade, superlotação e péssimas condições de vida. No entanto, a situação torna-se mais complexa quando se analisa outras condições fundamentais para uma habitabilidade aceitável: a existência de janelas, o número e as condições dos banheiros e a disponibilidade de cozinhas coletivas. Dado o universo de 45 cortiços onde se obteve esta informação, percebe-se que o número de cortiços onde todos os quartos possuem janelas, uma exigência da legislação, é muito pequeno, alcançando apenas nove estabelecimentos (o que representa 20% do universo considerado). Em outros 13 cortiços (29%), admite-se que a maior parte dos cômodos tem janelas. Em suma, percebe-se que, na maioria dos cortiços, as condições dos cômodos são bastante precárias, uma vez que em 21 cortiços (47%) a minoria dos cômodos tem janelas e, em outros dois deles (4%), nenhum cômodo possui janelas.
Praticamente todos os cortiços tinham banheiros coletivos, com exceção de dois imóveis que tinham banheiros nos cômodos13, sendo que em alguns dos casos foi possível encontrar cômodos com ou sem banheiro individual em um mesmo cortiço, variando o valor do quarto. A partir da informação sobre o número total de banheiros em cada cortiço, fornecida por 22 dos administradores e proprietários entrevistados, pode-se traçar uma relação entre o número de moradores dos cortiços por banheiros disponíveis. Deste universo, nove cortiços tinham entre 1 a 5 moradores por banheiro; seis cortiços tinham entre seis a 10 moradores por banheiro; e sete cortiços tinham entre 11 e 17 moradores por banheiro, constituindo-se, pelo menos aparentemente, nos casos mais graves de acesso à boas condições de higiene. No entanto, durante o levantamento de campo, registrou-se o depoimento de 14 moradores, de três cortiços diferentes, que declararam morar em habitações com uma média de mais de 20 pessoas por banheiro, o que pode sugerir que o acesso a boas condições de higiene pode ser ainda mais dramático. Mas, para além da quantidade de banheiros, os problemas também se referem às condições infraestruturais dos banheiros disponíveis. Constatou-se no levantamento de campo cortiços com banheiros em péssimas condições, a grande maioria sem água quente, e em alguns casos, sem água encanada, conforme pode ser evidenciado na Figura 3.
Com relação ao acesso a cozinhas coletivas, a situação também se revela muito precária. Dos 51 cortiços onde conseguiu-se esta informação, constatou-se que 28 cortiços (55%) possuíam cozinhas coletivas, mas um número bastante significativo, de 23 cortiços (45%) não, obrigando seus moradores a fazerem suas refeições fora de casa (muitos relataram comer no restaurante popular da Central do Brasil), e/ou utilizarem o ambiente dos quartos, com pequenos fogareiros, com ou sem permissão dos administradores, para fazerem pequenas refeições. Apesar de alguns moradores reconhecerem o risco de cozinhar em instalações improvisadas, diziam que a economia faz diferença no fim do mês, permitindo ao morador até mesmo enviar dinheiro para a família, que, muitas vezes, mora em outras cidades ou em outros estados do país.
Figura III – Imagens de banheiro e cozinha coletivos de cortiço na Área Portuária do Rio de Janeiro, 2016
Fonte: Acervo Observatório das Metrópoles, 2016
A invisibilidade dos cortiços e o seu funcionamento informal, sem reconhecimento da legislação municipal, certamente alimentam a situação de precariedade verificada em grande parte dos imóveis. Mas os moradores dos cortiços ainda sofrem com mais dois problemas: a inexistência de contratos que deem o mínimo de segurança a sua permanência nos cômodos e o preço do aluguel, relativamente alto tendo em vista as condições de moradia oferecidas.
Dos 25 administradores ou proprietários que deram informações sobre estes temas, a grande maioria, 20 deles, não estabelece nenhuma forma de contrato com os moradores. Os demais afirmaram assinar algum tipo de contrato com seus inquilinos, podendo variar entre 12 e 30 meses. A ausência de contrato dificulta a comprovação de endereço, alguns moradores relataram ter problemas para abrir contas no banco, obter serviços de cartório, e até para inscrever-se em programas sociais, como o Bolsa Família.
Por fim, complementando este primeiro quadro sobre as condições de moradia dos cortiços, buscou-se fazer uma avaliação do estado de conservação dos imóveis a partir da percepção dos pesquisadores de campo, que deveriam indicar se os mesmos apresentavam condições ruins (com problemas estruturais que apresentem riscos aos moradores, como paredes escoradas, madeiras comprometidas e coberturas improvisadas), boas (sem problemas estruturais aparentes) ou médias (com problemas estruturais leves, como infiltrações, fiações e canos aparentes). Neste caso, a amostra corresponde a 48 imóveis onde foi possível aos pesquisadores realizar essa avaliação.
Chama a atenção o fato de apenas cinco cortiços (11% do total) terem sido considerados em boas condições de conservação. Mas também merece destaque o fato de metade dos imóveis visitados, totalizando 24 cortiços (representando 50%), ter sido considerado em médio estado de conservação, o que significa que com algum investimento na sua infraestrutura poderiam se transformar em uma boa opção de moradia digna. De qualquer forma, isso não elimina a gravidade de se encontrar 19 cortiços (39%) em péssimas condições de moradia. A análise sobre as condições dos cortiços indica, contrariando a percepção corrente, um quadro de muita heterogeneidade, que de forma simplificada poderia ser dividida na existência de dois grupos de cortiços. Um primeiro grupo constituído de cômodos individuais e coletivos que apresentam boas condições de infraestrutura e se constituem em uma alternativa habitacional interessante para alguns grupos sociais que demandam residência na área central da cidade. E um segundo grupo, constituído por cômodos em péssimo estado de conservação e que se constituem em moradia para diversos grupos sociais por ausência de alternativa habitacional na área central da cidade. Há que se registrar que grande parte dos cortiços, talvez a maioria, se situa em uma posição intermediária entre estes dois grupos, com potencial de se constituir em boa alternativa habitacional caso fossem realizadas reformas e instituídas regulamentações que assegurassem certas garantias, incluindo contrato de permanência e algum controle sobre o preço dos aluguéis.
Infelizmente, no entanto, a situação corrente, que alimenta o círculo vicioso entre invisibilidade, ilegalidade, vulnerabilidade e precariedade torna o espaço dos cortiços um martírio, uma violação do direito à moradia, para grande parte da população que necessita morar e viver no centro da cidade.
O perfil dos moradores dos cortiços e suas condições de vida
Quem são os moradores dos cortiços? Como vivem nestes espaços? Tal como no caso das condições de moradia, é corrente uma percepção social que associa o morador à marginalização, que vincula estas pessoas aos estratos mais pobres da sociedade. Com poderá ser observado, a pesquisa revela um perfil social heterogêneo, de grupos sociais diversificados, que demandam o acesso ao centro da cidade.
Vale registrar que a pesquisa não teve a intenção de fazer um censo dos moradores, mas traçar um perfil geral a partir de uma amostra definida aleatoriamente, com base na disponibilidade dos moradores em conceder entrevistas. Evidentemente isso coloca algumas limitações, já que possivelmente o levantamento não conseguiu incorporar os moradores que viviam em condições irregulares, seja pela sua nacionalidade (imigrantes sem visto permanente), seja pelo seu envolvimento com atividades ilegais, como o tráfico de drogas, por exemplo. Assim, deve ficar claro de que se trata do perfil de uma amostra de moradores de cortiço, mas que revela informações importantes sobre este universo social.
A amostra deste levantamento está constituída por 105 moradores, o que representa cerca de 9,4% da população total estimada como moradora de cortiços na área portuária. Dos 105 moradores entrevistados, 77 eram homens e 28 mulheres, o que talvez expresse o fato dos homens serem maioria entre os que alugam os cômodos, até porque, como foi dito anteriormente, muitos cortiços alugam quartos apenas para homens. Dos 77 homens entrevistados, 51 eram pais, mas apenas quatro (cerca de 10,5% da amostra) moravam com seus filhos. No caso das 28 mulheres, 23 eram mães e a maior parte, totalizando 13 mulheres (72,2% da amostra) viviam nos cômodos com seus filhos.
A situação de paternidade e maternidade se reflete na faixa etária da amostra, constituída relativamente por menos jovens do que adultos. Um pouco mais da metade (54%) da amostra de moradores entrevistados tinha entre 30 e 59 anos de idade. A outra parte era constituída por moradores na faixa de 16 a 29 anos de idade (27%) e na faixa de mais de 60 anos (19%). Apesar de a maior parte dos 105 entrevistados ser brasileiro, foi possível incorporar na amostra dez pessoas com nacionalidade de outros países latino-americanos (4 peruanos, 2 argentinos, 2 uruguaios, 1 chileno e 1 venezuelano) e quatro de países africanos (3 congoleses e 1 senegalês). Mas é preciso registrar a dificuldade encontrada para entrevistar moradores de outras nacionalidades, provavelmente em razão da insegurança em relação a sua permanência no país.
Entre 91 brasileiros, a maior parte da amostra era de fora da cidade do Rio de Janeiro. Tirando os 30% que se declararam oriundos da própria cidade, percebe-se o peso dos estados do Nordeste, do qual vieram 47% dos moradores. Outros 20% se declaram naturais de outros estados do Sudeste e apenas 1% de estados do Sul do país.
Uma dimensão importante para compreender o perfil dos moradores dos cortiços diz respeito à sua ocupação atual. Com base nas categorias utilizadas pelo Observatório das Metrópoles (RIBEIRO e RIBEIRO, 2013), percebe-se que a maioria dos moradores (35% da amostra) tem ocupações vinculadas ao terciário não especializado, envolvendo ambulantes (a maioria da amostra, com 16 pessoas nesta ocupação), prestadores de serviço não especializados (10 pessoas), e trabalhadores domésticos (seis pessoas). Outro grupo bastante expressivo é composto de inativos e aposentados, compreendendo 21% da amostra (19 pessoas). Além disso, destacam-se os trabalhadores do terciário especializado (18% da amostra), envolvendo os trabalhadores do comércio (seis pessoas) e prestadores de serviços especializados (11 pessoas, sendo 10 garçons ou cozinheiros); ocupações médias (12% da amostra), envolvendo artistas e similares (nove pessoas) e ocupações de escritório (duas pessoas); e trabalhadores do secundário (11% da amostra), compreendendo trabalhadores de serviços auxiliares (sete pessoas, das quais cinco são marinheiros) e operários da construção civil (3 pessoas). Por fim, existe um pequeno grupo de desempregados (3% da amostra correspondendo a 3 pessoas).
Percebe-se que, em grande parte, são ocupações cujas oportunidades de trabalho se encontram fortemente concentradas na área central da cidade, como no caso do comércio ambulante, do trabalho em cozinha e restaurantes, do comércio em lojas e dos marinheiros. Mas também chama a atenção a presença dos aposentados e inativos, que provavelmente optam por morar em cortiços por estarem em uma área bem infraestruturada com boa oferta de serviços.
Além de traçar o perfil dos moradores da amostra, buscou-se caracterizar as condições de vida experienciadas nos cortiços a partir de algumas variáveis.
Inicialmente, buscou-se identificar se os cortiços se constituíam como moradia permanente para os próprios moradores ou se estes consideravam sua estadia como provisória, o que também pode ser confrontado com o tempo em que habitavam os cômodos.
De forma generalizada, os cortiços são considerados pelos próprios moradores como formas permanentes de moradia, conforme declararam 98 dos 105 moradores da amostra. Apenas sete moradores afirmaram estar nos cômodos de forma provisória, até encontrarem uma solução definitiva ou durante um período determinado (como um dos moradores que disse que estava vivendo no cômodo somente durante o período da Olimpíada 2016 e que depois iria sair dali). Mas constata-se também que o tempo de residência no atual cômodo de moradia era bastante variado, o que talvez possa ser explicado pela grande rotatividade nos diferentes cortiços, já que 53 moradores (representando 52% da amostra) disseram que já tinham morado anteriormente em outras casas de cômodos. De maneira geral, os centros das cidades são áreas mais bem infraestruturadas, com redes elétricas, de abastecimento de água e de coleta de esgoto já consolidadas. O cenário encontrado nos cortiços parece confirmar esta proposição: todos os 105 moradores da amostra assinalaram que os imóveis possuem energia elétrica e acesso à rede de abastecimento de água. Como já visto anteriormente, a maioria dos cômodos não tem banheiro individual e cozinha, o que implica que o acesso à água é coletivizado. No entanto, isso não impede que ocorram problemas no fornecimento dos serviços, muito provavelmente decorrentes da informalidade das ligações ou da precariedade das infraestruturas existentes, como foi explicitado por 40% dos moradores da amostra que disseram que sofriam, ou às vezes ou frequentemente, problemas no abastecimento de água.
Como já foi possível observar, apesar dos cortiços compartilharem a mesma situação de informalidade, percebe-se que as condições de conservação dos imóveis, bem como a sua infraestrutura de serviços, eram muito variáveis e isso se reflete na variação dos aluguéis pagos pelos moradores, o que confirma de certa maneira a informação fornecida pelos proprietários e administradores. Tendo em vista as faixas de preços cobradas pelos cortiços, percebe-se que a maioria dos moradores pagava valores intermediários. Assim, identificou-se que 59% dos moradores da amostra (representando 60 pessoas) pagavam entre R$ 301,00 e R$ 500,00 enquanto 28% dos moradores (28 pessoas) pagavam valores na faixa mais baixa, entre R$ 150 e 300 por mês. Na faixa de pagamento de valores mais elevados, entre R$ 501,00 e R$ 800,00, estavam apenas 13% dos moradores da amostra, ou seja, a minoria. Os valores dos aluguéis refletem diversas variáveis: a localização na área central, as condições de conservação dos imóveis, a infraestrutura de serviços, mas também a informalidade dos contratos de aluguel. De fato, constatou-se que quase a totalidade dos moradores da amostra, correspondendo a 94% das pessoas, não possuía contratos de aluguel.
Este quadro das condições de vida dos moradores dos cortiços reforça a ideia de heterogeneidade e diversidade como características principais deste grupo social, tornando impossível e incorreto construir um tipo ideal do morador do cortiço. Dentro deste grupo social poderá distinguir diversos subgrupos.
Alguns são aposentados e inativos, muitos longe de suas famílias de origem, que encontram no espaço dos cortiços não apenas a acessibilidade a rede de serviços oferecida pelo centro da cidade, mas também conexões, uma comunidade afetiva, uma rede de sociabilidade que oferece novas possibilidades para a reprodução social e que protegem seus integrantes dos riscos da desfiliação (CASTEL, 1998). Seu Florindo, 70 anos, estava nesta situação. Bailarino, aposentado e solteiro sem filhos, fazia 25 anos que morava neste cortiço da Rua Cunha Barbosa, na Gamboa, que alugava nove quartos individuais para solteiros. Seu Florindo contou com orgulho sua história como bailarino negro, das suas viagens pelo mundo, afirmando: “eu gosto deste lugar, eu me sinto bem acolhido”.
Outros são camelôs, trabalhadores informais ou por conta própria (SANTIAGO e VASCONCELOS, 2017), sem especialização, muitos vivendo sozinhos ou longe das suas famílias, que buscam sobreviver no trabalho das ruas do centro da cidade, e que encontram nos cortiços uma alternativa de moradia próxima da sua área de trabalho. Nesse sentido, pode-se estabelecer uma relação entre a informalidade do trabalho e a informalidade da moradia. Um bom exemplo que ilustra a situação deste grupo é a história de Leandro, 21 anos, solteiro. Há dois anos é morador de um cortiço na Rua Senador Pompeu, no Centro, onde morava sozinho. Leandro veio do Espírito Santo, onde deixou um filho, para trabalhar como ajudante de cozinha. Conforme ele relata: “eu ganho 1.300,00 por mês, pago R$ 400,00 de aluguel, envio R$ 600,00 para o meu filho, e vivo com o restante. Assim que for possível, eu quero voltar para a minha cidade”.
Outros ainda são trabalhadores, nem tão jovens, nem idosos, mas que ainda estão em uma fase da vida de construção e consolidação do seu espaço profissional, trabalhando no comércio, como garçons ou cozinheiros, muitos ainda solteiros, e encontram nos cortiços uma alternativa habitacional condizente com a sua renda e próxima do seu mercado de trabalho potencial. A história de Kátia é bem ilustrativa deste grupo. Kátia tem 34 anos, sem filhos, e faz três anos que mora em um cortiço na Rua João Homem, na Saúde, em um quarto sozinha. Natural do Nordeste, nas suas próprias palavras ela diz: “pretendo juntar dinheiro para voltar e comprar uma casa no Maranhão, o Rio é muito violento”.
Mas também existem famílias, domésticas e trabalhadores em diferentes ramos não especializados, vivendo com seus filhos, esposos e esposas, em quartos pequenos e sem condições para abrigar uma família, para quem a moradia nos cortiços pode ser uma experiência de marginalização, estigma e exclusão social. Dona Laura, 47 anos, estava trabalhando como camelô, era casada e fazia dois anos que estava morando com seus três filhos no cortiço da rua Senador Pompeu, no Centro. Ela já tinha se inscrito no programa Minha Casa Minha Vida, mas, segundo ela, “nunca foi chamada”. Como ela disse, “meu sonho é conseguir uma moradia maior para abrigar minha família, mesmo que seja na Zona Oeste, e mesmo que eu continue trabalhando no centro”14.
Esse grupo social pode ser considerado parte das famílias que compõem o déficit habitacional, tendo em vista demandarem o acesso a novas unidades habitacionais que sejam capazes de suprir a necessidade dos seus diferentes arranjos familiares. A situação na qual vivem pode ser definida como de coabitação familiar, entendida como: “a convivência de mais de uma família no mesmo domicílio (por isso, denominadas famílias conviventes, diferenciando-se as principais e as secundárias) ou o aluguel de quartos ou cômodos para a moradia de outras famílias dentro do mesmo domicílio” (CARDOSO, 2004, p. 96); situação na qual se encontram nos cortiços.
Do ponto de vista demográfico, vale destacar que, tomando a amostra identificada na pesquisa, pode-se inferir que o perfil etário dos moradores dos cortiços não acompanha o perfil etário da população brasileira moradora de domicílios alugados. Cardoso e Motta (2017, p. 92), discutindo a relação entre arranjos familiares e habitação no Brasil, concluem que “a análise da proporção de domicílios alugados por corte mostra que a taxa de domicílios alugados é decrescente com o aumento da idade do responsável pelo domicílio, o que aponta para uma tendência da população brasileira de migrar para domicílios próprios com o aumento da idade.” Evidentemente, os próprios autores reconhecem que a aquisição de um imóvel próprio depende de outros fatores, dentre os quais a renda é um dos principais componentes mais importantes. No entanto, no caso dos cortiços, parece ser mais significativo ser solteiro, independente da faixa etária, ou pertencer a diferentes arranjos familiares, como, por exemplo, morar no cortiço e ter uma família em outra cidade ou estado. O fundamental é reconhecer, como afirmam Cardoso e Motta (2017, p. 100), que “os indivíduos têm diferentes necessidades, que mudam conforme diversos fatores, como a renda, o tipo de trabalho e o tipo de arranjo.”
A realidade dos cortiços é complexa não apenas por causa do conjunto diversificado de condições de moradia encontradas entre os cômodos, muitas delas marcadas pela precariedade e vulnerabilidade, mas também pelas condições de exploração do trabalho, os altos custos e a precariedade do sistema de mobilidade na cidade, o que torna a moradia longe do trabalho um grave problema. Tudo isso torna o aluguel de cômodos, mesmo em condições precárias, uma alternativa de moradia nas regiões centrais para diferentes grupos sociais.
Dessa forma, esses diferentes grupos sociais que compõe a população que habita os cortiços no Rio de Janeiro se unificam em torno da demanda de viver no centro da cidade. De fato, esta forma de moradia faz parte historicamente da paisagem de diversas cidades brasileiras e latino-americanas, e segue sendo uma das opções dos setores populares para residir nos centros urbanos, mesmo que vivendo em condições de vulnerabilidade e conflito (KOWARICK, 2013; TOSCANI, 2016). De acordo com Lefebvre (2008), se, por um lado, o fenômeno urbano supera a antiga contradição entre campo-cidade, ele faz emergir a contradição entre centro e periferia e é a partir dessa contradição que podemos compreender a questão da centralidade. Para Lefebvre, as regiões centrais seriam aquelas que reúnem o poder, a cultura, a qualidade de vida e o consumo, não se limitando, necessariamente, ao centro geográfico.
Sendo assim, podemos entender a necessidade de acesso à centralidade como uma demanda unificadora dos diferentes grupos sociais que sustentam a manutenção dos cortiços nos centros das cidades. Isso pode ser bem ilustrado pelas principais motivações dos moradores pela opção de morar no Centro do Rio de Janeiro. As motivações mais assinaladas pelos moradores da amostra pela opção por viver nesta região da cidade foram o fato de gostarem, porque é perto do centro e por ser uma área bem infraestruturada, com 42% das respostas (46 pessoas) e por trabalharem na região, com 41% (43 pessoas). Mas também foram citadas como motivações gostar da região pelas pessoas, sua história e seus lugares, citado por 13% dos moradores (14 pessoas) e possuir identidade com a região por terem familiares ou amigos na área, com 9% das citações (9 pessoas). Por fim, chama a atenção o fato de apenas 10% dos moradores (11 pessoas) terem dito que estavam na área central por necessidade, pelo fato do aluguel ser barato ou pela falta de opção, o que indica um alto grau de satisfação com a localização das moradias na área central. Isso é confirmado, ainda, pelo fato de 70% dos moradores da amostra (71 pessoas) terem dito que gostavam de morar nos cortiços onde viviam, enquanto que apenas 25% dos moradores (26 pessoas) disseram que não gostavam ou detestavam morar ali, tendo ainda um número muito pequeno, representando 5% da amostra de moradores (5 pessoas), que manifestou como mais ou menos seu sentimento em relação a gostar ou não de morar nos cortiços onde residiam15.
Considerações finais
O levantamento realizado revela que os cortiços estão presentes, são expressivos e disseminados nas ruas do Centro do Rio de Janeiro, se constituindo em alternativa habitacional para diversos grupos sociais na área portuária, não tendo desaparecido da paisagem da cidade mesmo após as sucessivas reformas urbanas implementadas desde o início do século XX e de sua proibição como estabelecimentos comerciais regulados. Sua reprodução ao longo dos anos ocorreu a partir da combinação de informalidade, invisibilidade e precariedade.
Informalidade dada pela não regulamentação desta forma de moradia, pelo “fato de estar em desacordo, de alguma maneira, com a legislação ou os procedimentos de controle urbanístico.” (CARDOSO, 2003, p. 11). No caso, a informalidade contratual estabelecida entre locador e locatário é decorrente da irregularidade da edificação, definida por Cardoso (2003, p. 12) “por sua inadequação à legislação urbanística (e que também pode ser diferenciada entre edificações clandestinas – aquelas que não contam com processo de licenciamento na Prefeitura; e irregulares – aquelas que apresentam problemas na tramitação do processo de licenciamento).”
Invisibilidade em razão do não reconhecimento dessa forma de moradia pelo poder público e pela ausência de indicadores e dados oficiais relativos aos cortiços, o que torna seus moradores “invisíveis”, não residentes, uma modalidade que Agier define como “fora do lugar” (AGIER, 2015, p. 33). Ao mesmo tempo, é sua invisibilidade que torna possível sua reprodução no centro da cidade e a permanência dos seus moradores nesta área, ou seja, que torna possível estar “no seu lugar”. Mais uma vez inspirado pelas reflexões de Agier, poder-se-ia dizer que é esta invisibilidade que torna possível os cortiços se constituírem nos abrigos e refúgios dos que “não tem lugar”, apesar dos cortiços não se constituírem em guetos de migrantes e refugiados nos termos da pesquisa empreendida pelo autor em diversos campos de refugiados e acampamentos de migrantes autoestabelecidos (AGIER, 2015). No entanto, o preço social deste refúgio é sua precariedade.
Precariedade, como resultado das condições físicas dos cômodos e das habitações alugadas, que permite aos seus proprietários auferir lucros sem investirem e garantirem as condições adequadas de habitabilidade aos cortiços. Essa situação condena os moradores a viver em espaços precários, seja pela necessidade de morar no Centro da cidade, seja pela possibilidade de pagar preços de aluguel relativamente mais baratos, ou ainda pela combinação desses dois fatores.
Reconhecendo o entrelaçamento perverso entre informalidade, invisibilidade e precariedade, pode-se indicar a necessidade desta forma de moradia ser visibilizada e reconhecida pelos poder público municipal, por meio da regulamentação dos cortiços, tal como ocorreu em São Paulo, onde uma legislação específica regula o funcionamento do aluguel de cômodos16. No entanto, esta regulamentação deve levar em conta diversos fatores de forma a atender as necessidades dos seus moradores de residir no centro em condições adequadas.
Nesta pesquisa, buscou-se exatamente desconstruir a percepção corrente, que estigmatiza estes espaços como informais, precários e marginais, mostrando que os cortiços são marcados por uma grande heterogeneidade de condições de moradia e de grupos sociais, unificados em sua demanda de viver na área central.
O reconhecimento desta diversidade de condições habitacionais e da heterogeneidade de grupos sociais vivendo nos cortiços indica a necessidade de políticas púbicas que considerem a pluralidade das situações encontradas. Em geral, pode-se dizer que os cortiços são a expressão de diferentes necessidades habitacionais, seja de déficit entendido como “a necessidade de reposição total de unidades habitacionais precárias e o atendimento à demanda reprimida, através da construção de novas unidades habitacionais” (CARDOSO, 2004, p. 95), seja de inadequação, definida como “a necessidade de melhoria de unidades habitacionais que apresentem certo tipo de carências, mas que não impliquem a reconstrução total das unidades” (CARDOSO, 2004, p. 95). Famílias com crianças vivendo em cortiços pertencem ao primeiro grupo, são expressão do déficit, não podem viver em um quarto e é preciso pensar alternativas habitacionais que satisfaçam suas necessidades de reprodução social com dignidade. Mas, para os demais grupos sociais aqui identificados, os cortiços, mesmo sendo a expressão da inadequação, podem ser uma boa alternativa, desde que sejam estabelecidos e garantidos os requisitos de qualidade desta forma de moradia, com um padrão mínimo das condições de habitabilidade, que incluem o tamanho mínimo do cômodo, a exigência de janelas, o limite no compartilhamento dos quartos, o acesso regular e de qualidade a rede de abastecimento de água, coleta de esgotos e a luz elétrica, a infraestrutura de funcionamento dos cortiços como banheiros e cozinhas em quantidade suficiente e de qualidade, contratos de alugueis e preços acessíveis para a população de baixa renda.
As ocupações exercidas por grande parte dos moradores desses cortiços, atreladas as suas condições de moradia, permite ainda acionar algumas ideias formuladas por Castel em sua discussão sobre a “crise da sociedade salarial” (CASTEL, 1998). Nas atuais condições de entrelaçamento entre informalidade, invisibilidade e precariedade, a invisibilidade dos cortiços parece alimentar a constituição de uma “periferia precária” no seio da centralidade do Rio de Janeiro. Inspirados em Castel (1998, p. 527), poder-se-ia dizer que a reprodução dessa periferia precária expressa nos cortiços deva ser interpretada contemporaneamente a partir de alguns processos: (i) a “desestabilização dos estáveis”; (ii) a “instalação na precariedade”; e (iii) no “déficit de lugares” sociais e espaciais (os “fora do lugar”) oferecidos para as classes populares.
Seja como for, o conjunto de políticas públicas pensadas para os cortiços deveria ter como estratégia central, a garantia do direito destas populações à área central da cidade. Como foi visto, o que unifica a diversidade de situações é a demanda pela centralidade.
Tendo em vista a informalidade e invisibilidade dos cortiços no diagnóstico habitacional da área portuária e a ausência de propostas no Plano de Habitação de Interesse Social da Área Portuária, também se torna necessário rever este plano, de forma que este tipo de moradia seja reconhecido, e que sejam incorporadas propostas que tornem os cortiços uma alternativa habitacional digna na região Portuária.
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