Resumo: O propósito, neste trabalho, é fazer uma análise das consequências para o processo formativo dos estudantes secundaristas, bem como dos prejuízos para o projeto da Geografia Escolar, advindos da desobrigação do ensino de Geografia em todas as séries da etapa final da educação básica, conforme propõe a Lei nº 13.415/2017, que reformula o ensino médio no Brasil. Para tanto, nos empenhamos em compreender a reforma do ensino médio no âmbito da categoria totalidade (SANTOS, 2006). A metodologia aplicada se baseou em pesquisa bibliográfica. Concluímos, a partir dos estudos realizados, que a desobrigação do ensino de Geografia contribuirá para a formação de jovens com menor capacidade de compreensão crítica da realidade social. Certamente, em função da acriticidade juvenil, será produzido, neste país, um cenário ideal para a submissão humana à racionalidade técnica, bem como para a expansão do capital rentista (MOREIRA, 2018). Em relação ao projeto da Geografia Escolar, que tem como meta contribuir para o desenvolvimento do pensamento espacial dos estudantes, com ênfase à sua autonomia para pensar e agir sobre o mundo, esta reforma se traduz em um golpe. Este campo do saber deixará de ser obrigatório na etapa final da educação básica, quando os estudantes, em função da idade mais avançada, possuem maior maturidade para a compreensão da proposta central desta ciência.
Palavras-chave:Geografia EscolarGeografia Escolar, Pensamento Crítico Pensamento Crítico, Reforma do Ensino Médio Reforma do Ensino Médio.
Abstract: The purpose, in this work, is to make an analysis of the consequences for the formative process of secondary students, as well as the damage to the School Geography project, resulting from the release of Geography teaching in all grades of the final stage of basic education, as proposed by Law 13.415 / 2017, which reformulates secondary education in Brazil. Therefore, we strive to understand the reform of secondary education within the totality category (SANTOS, 2006). The applied methodology was based on bibliographical research. We conclude, from the studies carried out, that the release of Geography teaching will contribute to the formation of young people with less capacity for critical understanding of social reality.Certainly, due to not youthful critical view, an ideal scenario will be produced for human submission to technical rationality in this country, as well as for the expansion of rentier capital (MOREIRA, 2018). In relation to the project of School Geography, which aims to contribute to the development of students' spatial thinking, with emphasis on theirs autonomy to think and act on the world, this reform means a blow. This field of knowledge will no longer be compulsory in the final stage of basic education, when the students, due to their advanced age, have greater maturity to understand the central proposal of this science.
Keywords: School Geography, Critical Thinking, High School’s Reform.
Resumen: El propósito, en este trabajo, es hacer un análisis de las consecuencias para el proceso formativo de los estudiantes secundarios, así como de los perjuicios para el proyecto de la Geografía Escolar, provenientes de la desobrigación de la enseñanza de Geografía en todas las series de la etapa final de la educación básica, conforme propone la Ley nº 13.415 / 2017, que reformula la escuela secundaria en Brasil. Para tanto, nos empeñamos en comprender la reforma de la escuela secundaria en el ámbito de la categoría totalidad (SANTOS, 2006). La metodología aplicada se basó en la investigación bibliográfica. Concluimos, a partir de los estudios realizados, que la desobrigación de la enseñanza de Geografía contribuirá a la formación de jóvenes con menor capacidad de comprensión crítica de la realidad social. Ciertamente, en función de la acricidad juvenil, se producirá, en este país, un escenario ideal para la sumisión humana a la racionalidad técnica, así como para la expansión del capital rentista (MOREIRA, 2018)[1]. En relación al proyecto de la Geografía Escolar, que tiene como meta contribuir al desarrollo del pensamiento espacial de los estudiantes, con énfasis en su autonomía para pensar y actuar sobre el mundo, esta reforma se traduce en un golpe. Este campo del saber dejará de ser obligatorio en la etapa final de la educación básica, cuando los estudiantes, en función de la edad más avanzada, tienen mayor madurez para la comprensión de la propuesta central de esta ciencia.
Palabras clave: Geografía Escolar, Pensamiento Crítico, Reforma de la escuela secundaria.
A GEOGRAFIA ESCOLAR NO CONTEXTO DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO: UMA ANÁLISE PARA ALÉM DO LUGAR
THE SCHOOL GEOGRAPHY IN THE CONTEXT OF HIGH SCHOOL’S REFORM: AN ANALYSIS TO BESIDES THE PLACE
LA GEOGRAFÍA ESCOLAR EN EL CONTEXTO DE LA REFORMA DE LA ESCUELA SECUNDARIA: UN ANÁLISIS ALTAS DEL LUGAR
Recepção: 24 Julho 2018
Aprovação: 15 Dezembro 2018
A população brasileira acompanhou, no ano de 2017, a aprovação, pelo poder Legislativo, e a sanção, por parte do presidente da República, da Lei 13.415/17, que ficou popularmente conhecida como reforma do ensino médio. De acordo com a referida Lei, o novo ensino médio será dividido em cinco itinerários formativos, a saber: I – linguagens e suas tecnologias; II – matemática e suas tecnologias; III – ciências da natureza e suas tecnologias; IV – ciências humanas e sociais aplicadas; V – formação técnica e profissional (BRASIL, Lei n.º 13.415, 2017). O estudante, ao ingressar no novo ensino médio, deverá fazer a opção por um dos itinerários formativos oferecidos. Somente as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática serão obrigatórias em todas as séries da etapa final da educação básica.
A nova legislação apresentou-se, desde sua tramitação, carregada de polêmicas. No intuito de justificar a necessidade urgente de reformulação das normas que regem a etapa final da educação básica no Brasil, o Governo Federal, por meio dos dirigentes do Ministério da Educação (MEC), alega ser necessário destravar as barreiras que impedem o crescimento econômico do país. A educação, principalmente a educação profissional, é um fator importante para a retomada do crescimento econômico; significa investimento em capital humano, potencializa a produtividade. Há, ainda, a alegação de que o atual currículo do ensino médio é sobrecarregado de disciplinas “inúteis” ou “desinteressantes”, ou seja, pouco atraente aos jovens, o que justifica a grande evasão nesse nível de escolaridade. (MOTTA; FRIGOTTO, 2017)
Por sua vez, em posicionamento oposto à proposta, diversos segmentos sociais se apresentaram para o debate: estudantes secundaristas, que, em protesto, ocuparam diversas escolas nas principais capitais brasileiras, até serem retirados via intervenção policial; professores da educação básica e professores universitários; pesquisadores, especialmente aqueles ligados às ciências humanas; políticos da oposição; cidadãos comuns; dentre outros.
Os opositores possuem diversas análises que justificam seu posicionamento contrário à reforma; dentre elas aquela que questiona a retirada das disciplinas relacionadas às ciências humanas de todas as séries do ensino médio. Conforme mencionado alhures, as disciplinas das humanidades serão obrigatórias somente para os estudantes que optarem pelo itinerário formativo IV, relativo a ciências humanas e sociais aplicadas.
Assim, a proposta, neste texto, é tecer uma análise a respeito das intencionalidades do poder público e das consequências para o processo formativo dos estudantes, advindos da desobrigação do ensino das ciências humanas, especialmente da Geografia, na etapa final do ensino básico. A partir deste introito, alguns questionamentos foram elaborados: qual o real significado da reforma do ensino médio? Quais grupos serão beneficiados com a implementação dessa nova modalidade de ensino? Quais serão as consequências para a Geografia Escolar e para os cursos de Geografia no Brasil? Quais serão os prejuízos para o processo formativo dos estudantes? A reforma do ensino médio sinaliza desvalorização às ciências humanas em detrimento a outras ciências?
Propomos, para responder a tais questionamentos, o entendimento deste fenômeno em sua totalidade e não por meio de análises parciais ou superficiais. Isso significa ir além da aparência e buscar apreender o fenômeno em sua essência. Para tal, nos fundamentamos em Kosic (2002), que, a esse respeito, afirma:
A dialética é o pensamento crítico que se propõe a compreender a “coisa em si” e sistematicamente se pergunta como é possível chegar a compreensão da realidade. Por isso, é o oposto da sistematização doutrinária ou da romantização das representações comuns. O pensamento que quer conhecer adequadamente a realidade, que não se contenta com os esquemas abstratos da própria realidade, nem com suas simples e também abstratas representações, tem de destruir a aparente independência do mundo dos contados imediatos de cada dia. O pensamento que destrói a pseudoconcreticidade para atingir a concreticidade é ao mesmo tempo um processo no curso do qual sob o mundo da aparência se desvenda o mundo real; por trás da aparência externa do fenômeno se desvenda a lei do fenômeno; por trás do movimento visível, o movimento real interno; por trás do fenômeno a essência (KOSIC, 1976, p. 20).
De acordo com o filósofo, o fenômeno se apresenta imediatamente, no entanto, a sua essência, que o autor denomina de “a coisa em si”, se oculta, não aparece imediatamente ao homem. Para alcança-la é preciso exercitar o pensamento crítico e questionar as representações imediatas, abstratas, superficiais. É nesse sentido que propomos empreender a análise e o pensamento crítico, no intuito de compreender a reforma do ensino médio em sua essência, em sua concretude.
Encetamos a análise por uma questão basilar: no intuito de angariar apoio popular, o Governo Federal tem veiculado, por meio dos principais instrumentos midiáticos, que 72% (setenta e dois por cento) da população brasileira, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE)[2], são favoráveis à reforma do ensino médio. De acordo com o Ministério da educação (MEC), esse resultado foi obtido mediante o seguinte questionamento ao pesquisado: "O(A) senhor(a) é a favor ou contra a reformulação do ensino médio que, em linhas gerais, propõe ampliação do número de escolas de ensino médio em tempo integral, permite que o aluno escolha entre o ensino regular e o profissionalizante, define as matérias que são obrigatórias, entre outras ações?" Diante do modelo de pergunta, que foi elaborado e direcionado ao pesquisado pelo IBOPE, algumas indagações são possíveis: não seria essa pergunta um tanto tendenciosa? De imediato já se menciona a intenção em ampliar o número de escolas em tempo integral, o que, certamente, será interpretado positivamente pelo entrevistado. As escolas públicas brasileiras em tempo integral, normalmente, possuem melhores estruturas físicas, são mais bem equipadas e apresentam melhores resultados no processo de ensino e aprendizagem. Grande parte dos brasileiros almeja matricular o filho em uma escola dessa modalidade. Outros questionamentos são possíveis: qual a possibilidade real de ampliação do número de escolas em tempo integral em um contexto de implementação de políticas públicas que visam a austeridade fiscal? Pensemos na Emenda Constitucional 95/2016, a lei do teto dos gastos públicos, que limita as despesas primárias do Governo Federal, inclusive os investimentos na educação pública nos próximos vinte anos. Não teria, essa proposta, um teor paradoxal?
No entanto, o resultado dessa pesquisa, que, embora duvidoso, sinaliza o apoio popular à reforma do ensino médio, é de fundamental importância ao criar as condições necessárias para a sua aprovação legal pelo poder público. Nenhuma política pública realiza-se sem o mínimo de aprovação popular. Tais inferências podem ser respaldadas teoricamente pelas palavras do professor Everaldo Costa[3], para quem a valorização subjetiva do espaço gera uma ideologia popular que conduz à normatização concreta do território.
Outro aspecto, nessa mesma linha de análise, pode ser destacado: a proposta de alteração na lei foi apresentada, ao Legislativo, em forma de Medida Provisória(MP) (MP nº 746, de 22 de setembro de 2016). Essa modalidade de encaminhamento de proposta de lei, por parte do poder executivo, não oportuniza o amplo debate no âmbito do Poder Legislativo, o que ocorreria caso a proposta fosse encaminhada em forma de projeto de lei. Nota-se, nessa “manobra”, um tácito autoritarismo, uma negação ao princípio básico da democracia. Ora! Em um cenário de 72% de aprovação popular, conforme resultado da pesquisa apresentada alhures, o que poderia justificar a modalidade de MP? Que evita o debate popular? Eis a contradição.
Aliás, as imposições sutis parecem não estarem contidas, exclusivamente, na forma de encaminhamento da Lei. A formação secundária estará dividida em itinerários formativos e caberá ao aluno definir em qual deles irá se matricular, conforme mencionamos ao iniciar este texto. A maioria dos municípios brasileiros, por serem pequenos, possui uma ou duas escolas públicas. Portanto, o estudante terá, na mesma proporção, apenas uma ou duas opções de áreas de formação a escolher, uma vez que cada escola será especializada em um único itinerário formativo. Acrescenta-se a isso o peso da responsabilidade atribuída ao estudante, que, aos quinze anos, deverá escolher a área de formação e profissionalização na qual, teoricamente, atuará a vida toda.
Libâneo (2012) afirma que existe no Brasil uma dualidade no sistema de ensino: escola do conhecimento para os ricos e escola do acolhimento social para os pobres. Os apontamentos do autor parecem se reafirmarem com a atual reforma do ensino médio. As escolas privadas, nas quais estudam os filhos da elite, certamente continuarão a oferecer uma formação ampla, que abranja conteúdos relativos a todos os itinerários formativos, com vistas a uma formação propedêutica. O mesmo não ocorrerá nas escolas públicas, frequentadas pelos filhos dos mais pobres. Estes últimos, quiçá, irão optar, em maior proporção, pela formação profissionalizante, em função das demandas criadas pelas condições materiais de sobrevivência.
Advogamos que todas as reflexões até aqui empreendidas, contribuem para o avanço na compreensão da reformulação das normas que regem o ensino médio brasileiro em sua concretude. Entretanto, são insuficientes. Para tanto, propomos uma análise para além dos elementos que se apresentam no Lugar: propomos a compreensão deste fenômeno por meio de sua totalização, conforme nos ensina Santos (2006)
Em nosso ponto de vista, um caminho seria partir da totalidade concreta como ela se apresenta neste período de globalização – uma totalidade empírica – para examinar as relações efetivas entre a Totalidade-mundo e os Lugares. Isso equivale a revisitar o movimento do universal para o particular e vice-versa, reexaminando, sob esse ângulo, o papel dos eventos e da divisão do trabalho como uma mediação indispensável. (SANTOS, 2006, p. 115)
As transformações propostas para a reformulação do ensino médio não podem ser compreendidas a partir de um recorte da totalidade em si mesma, no Lugar. As reais motivações estão contidas em um sistema mais amplo: na Totalidade-mundo. Essas mudanças ocorrem em atendimento aos grupos hegemônicos mundiais, representados por organismos multilaterais internacionais, tais como o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), mais conhecido atualmente como Banco Mundial. Este organismo, representado pelos países ricos, atua no sentido de direcionar as políticas públicas a serem desenvolvidas pelas nações subdesenvolvidas, inclusive aquelas relacionadas à educação. No documento intitulado “Estratégia 2020 para a Educação – Aprendizagem para Todos”, elaborado pelo Grupo Banco Mundial e publicado em 2011, estão as orientações que se materializaram na reforma do ensino médio brasileiro. De acordo com aquele documento
No nível social, pesquisas recentes mostram que o nível de competências de uma força de trabalho – medido pelos resultados de avaliações internacionais de estudantes, como o Programa Internacional para a Avaliação de Alunos (PISA) e as Tendências Internacionais no Estudo da Matemática e das Ciências (TIMSS) – preveem taxas de crescimento económico muito mais elevadas que as médias de escolaridade. (BIRD, 2011, p. 3)
Justifica-se, a partir das orientações fornecidas pelo Banco Mundial, a definição dos referenciais adotados para reformular o sistema de ensino brasileiro: capacitar os estudantes a participarem, eficientemente, dos sistemas de avaliação internacional e nacional, tais como o Índice de Desenvolvimento da Educação (IDEB) e do Programa Internacional para a Avaliação de Alunos (PISA), ambos, baseados nos critérios de qualidade definidos pela Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE). As avaliações do PISA acontecem a cada três anos no Brasil e abrangem três áreas do conhecimento: Leitura, Matemática e, mais recentemente, Ciências. Daí a manutenção do ensino de Matemática e Língua Portuguesa em todas as séries do ensino médio. Evidencia-se, assim, a valorização da educação no âmbito produtivista, com vistas em resultados objetivos, eficientes.
Aliás, a tendência a uma educação produtivista não se restringe ao ensino básico no Brasil. Este modelo de educação está presente em cursos de ensino superior das diversas áreas do conhecimento, inclusive nas instituições públicas. A produção intelectual, materializada por meio das pesquisas científicas, desenvolvidas nas universidades brasileiras (e demais países do mundo) não é desenvolvida, exatamente, de acordo com o interesse ou desejo do pesquisador, mas, muito comumente, no sentido de atender demandas estabelecidas pelas agências de fomento, tais como: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundações estaduais de Apoio a Pesquisa (FAPs) e outras.
Além do direcionamento temático das pesquisas, há uma espécie de estímulo tácito à competição entre os programas de pós-graduação das várias instituições de ensino superior no Brasil (e no mundo). Essa disputa acaba por seguir uma lógica mercadológica, uma vez que, o que está em jogo não é a qualidade, mas, sim, a quantidade final da produção. Esse quesito possui a capacidade de definir o quantitativo de recursos possíveis de se angariar, junto às diversas agências de fomento, a pesquisa.
Criou-se, assim, uma espécie de ranqueamento das instituições de ensino superior, baseadas em suas produções científicas. Essas classificações ocorrem em diversos níveis escalares, do local ao global. A esse respeito, Sousa Neto (2016) faz as seguintes considerações:
O que chama a atenção nos ranqueamentos é o modo como qualificam a produção mundial do conhecimento a partir da língua franca da ciência, no caso a língua inglesa, seguindo um receituário que privilegia a produção e a circulação desse conhecimento com base em periódicos qualificados mediante seus índices de impacto e estabelecendo uma forma de fazer ciência completamente vincula á logica de uma competição de mercado.
Estes rankings foram criados a partir dos anos 2000, ou seja, já no nosso cronológico século XXI, acompanhando um processo que visa transformar o conhecimento em commodity e criar uma espécie de bolsa de valores a partir de onde se controla o que é importante produzir como conhecimento, o que pode ser publicizado como mercadoria e o tipo de atividade intelectual que se deseja diretamente vinculado à capacidade de obter financiamento no mercado. (SOUSA NETO, 2016, p.88-89)
Infere-se, então, que haja uma relação entre a lógica produtivista já adotada no ensino superior, nas universidades brasileiras, e aquela proposta na reformulação do ensino médio. Os estudantes da educação básica deverão possuir uma carga horária ampliada nos estudos de Matemática e Língua Portuguesa, por serem as disciplinas capazes de lhe render uma boa classificação nos exames nacionais e internacionais, como o IDEB e o PISA, que são usados para aferir a aprendizagem e ranquear, respectivamente, as escolas brasileiras e os países membros da OCDE.
Ainda, em relação aos financiamentos das pesquisas nas universidades brasileiras, vale destacar a prioridade dada aos estudos relacionados ao desenvolvimento tecnológico, as ditas “ciências duras”, que despertam o interesse do mercado. Estas recebem a maior fatia dos recursos oriundos das agências de fomento. Por outro lado, as denominadas “ciências moles”, aquelas ligadas ao estudo das humanidades, que se dedicam à análise crítica da realidade social, ficam com a menor parcela desses recursos.
Para completar o rol de ações que demonstram a desvalorização dos cursos ligados às ciências humanas, elencamos a recente proposta, apresentada por Thiago Turetti, que propõe a extinção destes cursos (Filosofia, História, Geografia, Sociologia, Artes e Artes Cênicas) das universidades públicas. Essa proposta foi encaminhada, via Ideia Legislativa[4], e aguarda, na página do senado, os votos de apoio popular (a data limite para apoiar a ideia é 07/06/2018). O texto que justifica a Ideia Legislativa afirma que são cursos baratos que poderão ser realizados facilmente em universidades privadas e que a medida consiste em focar em cursos de linha, como: medicina, direito, engenharia e outros (IDEIA...)[5].
Não menos impactante que o teor da referida Ideia Legislativa, é o resultado de uma pesquisa, publicada pelo jornal Folha de São Paulo[6] em abril deste ano e ratificada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), segundo a qual a inclusão das disciplinas de Filosofia e Sociologia como obrigatórias no ensino médio, desde 2009, são responsáveis pela queda na aprendizagem de Matemática dos jovens brasileiros de baixa renda. De acordo com os pesquisadores[7], tal constatação se deu por meio da análise do desempenho dos estudantes no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) no ano de 2012, exatamente três anos após a inclusão de Filosofia e Sociologia na grade curricular da educação básica.
Advogamos que a veiculação midiática do teor da referida Ideia Legislativa, juntamente com o resultado da pesquisa citada alhures, possui intencionalidades. O objetivo é criar, junto à sociedade brasileira, a concepção de que as matérias escolares relacionadas às ciências humanas, dentre elas a Geografia, possuem menor grau de importância no processo formativo dos estudantes secundaristas e, portanto, poderão ser oferecidas na modalidade optativa, conforme propõe o texto da Lei da reforma do ensino médio.
Aliás, análises e propostas que tendem a não reconhecer, deslegitimar ou que desvalorizam as ciências humanas não são exclusividades da contemporaneidade. Em uma discussão sobre a essência das ciências, no livro Introdução à Filosofia, Heidegger (2009), afirma que:
Os predicados exato e universal foram atribuídos desde há muito ao conhecimento intrínseco à ciência. Assim, podemos dizer: ciência é conhecimento metódico, sistemático, exato e universalmente válido. Justamente os dois últimos predicados valem desde sempre como determinações insignes da ciência. As pessoas reportam frequentemente a Kant, que disse certa vez: “Afirmo, contudo, que em toda doutrina particular da natureza só se consegue encontrar tanta ciência propriamente dita quanto se puder encontrar aí matemática”. Uma ciência só é científica na medida em que for matematizável. Dessa forma, as ciências humanas de modo algum são ciências, uma vez que se opõe por princípio à matematização (HEIDEGGER, 2009, p. 45).
Nota-se, por meio da leitura do fragmento do texto de Heidegger, a dificuldade histórica enfrentada pelas ciências humanas, na busca do reconhecimento enquanto ciência. Em tempos atuais, por meio da análise das políticas públicas, a exemplo da Lei da reforma do ensino médio, evidenciam-se os esforços por sua desvalorização.
Vale lembrar, nesse caso, a dimensão estratégica da desobrigação do ensino de Geografia no ensino médio: é exatamente nesta etapa da educação básica que os estudantes, por possuírem mais idade, estão mais aptos à compreensão do mundo e, consequentemente, à elaboração do pensamento crítico. Ruy Moreira vincula, ainda, em sua análise, a reforma do ensino médio a uma necessidade para a expansão do capital rentista[8] no Brasil. Com a redução da criticidade produzida nos estudantes secundaristas, por meio do ensino de Geografia e, consequentemente, na sociedade brasileira, quiçá representará um destrave ao rentismo. Uma sociedade acrítica absorve com mais facilidade os conteúdos midiáticos propulsores do consumo, mecanismo central de reprodução do capital rentista[9].
A capacidade de realização da crítica social, que tende a se fragilizar com a desobrigação do ensino de Geografia, em virtude da reformulação do ensino médio, conforme análise do professor Ruy Moreira, é, também, elemento definidor no mecanismo de apropriação da técnica para fins de dominação social, ou seja, do uso político que se faz da técnica, pelos grupos hegemônicos locais e globais, na sociedade brasileira. Aliás, para fins desta análise, é pertinente que se esclareça o nosso entendimento relativo ao conceito de técnica, que, em conformidade com Ortega y Gasset (1963):
[...] é o conjunto das habilidades cujo auxílio permite aos homens o aproveitamento da natureza para fins humanos; como tal, é uma autêntica característica do homem e só do homem, nascendo com ele graças ao seu espírito inventivo. Por isso a técnica progride e tem uma história... (ORTEGA Y GASSET, 1963, p. 16)
O progresso histórico da técnica, ao qual se refere o autor, produziu, nas últimas duas décadas, o maior desenvolvimento tecnológico da história da humanidade. Com isso, assistimos, no Brasil, no respectivo período, a imensa ampliação da oferta de produtos industrializados. O desenvolvimento e massificação da tecnologia da informação e comunicação, também produto da técnica, se encarregaram em criar, entre nós, a necessidade de consumir tais mercadorias. Automóveis, TVs, geladeiras, smarthphones, dentre outros, passaram a compor a seara dos sonhos de consumo dos brasileiros. Nesse contexto, questiona-se: que tipo de uso político se faz técnica no Brasil?
Inferimos que, o tipo de uso que se faz da técnica seja um recurso com potencial, tanto para “libertar”, ou seja, para facilitar a vida cotidiana e esclarecer, aos homens, sobre o mundo; quanto para “aprisionar”, por meio da submissão dos menos esclarecidos e disseminação de ideologias dominantes, a depender do uso que se faça dele. Enquanto possibilidade de libertação, cabe argumentar que nunca se teve tanta facilidade em acessar informação e conhecimento. Um smarthphone, que cabe na palma da mão, conectado à internet, nos abre o mundo. É possível, a partir dele, acessar a produção científica em qualquer área do conhecimento a nível planetário e interagir, remotamente, com grupos de interesse. Por meio desta e outras perspectivas semelhantes, a técnica, certamente, se concretizaria enquanto promotora do conhecimento e intelectualidade humana, portanto, libertadora das trevas da ignorância humana.
Outras possibilidades, no entanto, são possíveis: o desejo incontrolável de consumir as mercadorias, oriundas do desenvolvimento da técnica, podem gerar angústia e outros tipos de sofrimento ao homem; o consumo, sem controle, das respectivas tecnologias, pode levar ao endividamento, que também produz o sofrimento; os potenciais recursos das tecnologias de informação, materializadas, muito comumente, nos computadores e smarthphones, podem ser subutilizadas: redes sociais, pornografias, banalidades... . A técnica, nesse caso, intensifica a ignorância humana, aliena, “aprisiona”.
Nessa perspectiva, o centro do debate não é a técnica em si, mas o uso político que se faz dela. Ortega y Gasset (1963), ao discutir a influência da técnica na sociedade humana, afirma:
A técnica representa enorme papel na racionalização. É a técnica que empresta a força que racionaliza a vida em sociedade. Ora, a técnica é, ela também, uma força irracional; ela é desprovida de alma e indiferente ao homem. Por exemplo, a tecnificação e racionalização da indústria criam um fenômeno inumano e irracional: o desemprego. A racionalização pode prejudicar o homem e se tornar irracional. (ORTEGA Y GASSET, p. 27-28)
De acordo com a análise do autor, então, vê-se que a técnica não é promotora, unicamente, de benefícios ao homem. Ela traz, em si, potencialidades para o bem e para o mal da humanidade. A técnica que produz equipamentos hospitalares para salvar vidas é a mesma que se utiliza para produzir armas que as ceifam. Reafirmamos, portanto, que tão importante quanto o desenvolvimento da técnica é o uso que se faz dela.
Advogamos, assim, que uma sociedade capaz de realizar a crítica social possa fazer melhor uso da técnica. Não é nossa intenção afirmar que pessoas preparadas para interpretar criticamente a sociedade se livrem completamente das influências do uso político da técnica. Passar um dia sem fazer uso do telefone celular, por exemplo, seria difícil para qualquer pessoa, nos dias de hoje, independentemente do seu nível de esclarecimento em relação à sociedade. Mas, certamente, os mais esclarecidos possuem menores chances de serem alcançados pelos conteúdos ideológicos disseminados graças ao desenvolvimento técnico midiático, bem como se submeterem, acriticamente, à racionalidade técnica.
Dessa forma, entendemos que a desobrigação do ensino de Geografia na educação básica, conforme propõe a Lei da reforma do ensino médio, com o consequente prejuízo para a produção da criticidade na juventude estudantil, seja um instrumento facilitador para a intensificação da disseminação de conteúdo midiático ideológico; para a submissão da sociedade brasileira ao desenvolvimento técnico, por meio do consumo desenfreado de mercadorias; enfim, para a produção de uma realidade de poucos questionamentos ao papel da racionalidade técnica, ou, ao uso político que se faz da técnica no Brasil.
Adicionamos, ainda, ao conjunto de consequências negativas para a sociedade, advindos de uma formação acrítica dos estudantes secundaristas, em função do não ensino de Geografia, o retrocesso para o atual projeto da Geografia Escolar, que, como assevera Cavalcanti (2017), tem como objetivo contribuir para o desenvolvimento do pensamento espacial dos estudantes, com ênfase à sua autonomia para pensar e agir sobre o mundo. Vale ressaltar que a Geografia Escolar, em seu propósito central, contribui profundamente para o cumprimento do papel social da escola, que consiste em:
... preparar os indivíduos para a vida, isto é, para viverem neste mundo, segundo os seus complexos arranjos organizacionais. Com isso, ela deve primar pela justiça, criticidade, ética, solidariedade e pela transformação social, de forma que o indivíduo contribua na construção de um mundo menos desigual e mais democrático (SILVA; SOBRINHO; LEITE, 2017).
A Geografia Escolar, portanto, possui um projeto de ensino para além dos espaços escolares, ao propor uma formação para a vida, uma formação para a construção de um mundo com mais justiça social.
Prevemos, também, que a reforma do ensino médio possa colocar em xeque algumas conquistas importantes da ciência geográfica no Brasil, especialmente a expansão dos cursos de licenciatura em Geografia. A maior parte dos estudantes de Geografia, nas universidades brasileiras, opta pelos cursos de licenciatura, em detrimento aos cursos de bacharelado. A razão é simples: as maiores oportunidades no mercado de trabalho, para os egressos dos cursos de Geografia, surgem na docência da educação básica, em função da obrigatoriedade dessa disciplina em todas as séries do ensino fundamental e médio. Com a desobrigação do ensino desta ciência na etapa final da escolarização básica, certamente, irá diminuir as oportunidades no mercado de trabalho, e, na mesma proporção, o interesse dos jovens pelos cursos de licenciatura em Geografia.
A reforma do ensino médio, instituída pela Lei 13.415/17, estabelece, dentre outras medidas, a divisão do ensino médio em cinco itinerários formativos: I – linguagens e suas tecnologias; II – matemática e suas tecnologias; III – ciências da natureza e suas tecnologias; IV – ciências humanas e sociais aplicadas; V – formação técnica e profissional. Os estudantes deverão escolher, de acordo com suas aptidões pessoais e disponibilidade nas escolas, um dos respectivos itinerários para se matricular. Todos os itinerários contarão, ao longo de todo o curso, com Matemática e Língua Portuguesa. As demais disciplinas, dentre elas Geografia, serão ofertadas na modalidade optativa.
O ensino de Geografia, de acordo com a referida proposta, se restringirá, enquanto obrigatório, ao itinerário formativo IV, relativo a ciências humanas e sociais aplicadas. Entendemos que essa nova estrutura organizacional do ensino médio trará consequências ao projeto da Geografia Escolar, com prejuízo na formação dos estudantes. Estes, certamente, deixarão de ter acesso a um tipo de conhecimento, característico da ciência geográfica, que os permita realizar, de maneira crítica, a leitura espacial, do âmbito local ao global.
A perda de potencial da escola em oferecer ao estudante uma formação pautada no pensamento crítico, em função da não obrigatoriedade do ensino de Geografia nas séries finais da educação básica, atende às orientações dos grupos hegemônicos mundiais, dentre eles o BIRD e o OCDE. Tais instituições hegemônicas exigem, especialmente dos países subdesenvolvidos, um modelo de formação escolar pragmática, aferível, de cunho produtivista.
Entendemos que o atual modelo de ensino médio (e de todo o sistema de educação básica), precisa ser repensado no Brasil. No entanto, defendemos uma reformulação construída a partir diálogo entre o poder público os profissionais docentes. Defendemos, também, que qualquer proposta de reformulação do ensino básico deve possuir, como eixo central, a valorização dos estudantes enquanto sujeitos no processo de ensino e aprendizagem, bem como a sua cultura juvenil. Por fim, defendemos a manutenção do ensino de Geografia ao longo de toda a formação básica, por entender que seja a ciência capaz de desenvolver, no aluno, o pensamento crítico e contribuir para a construção de um mundo mais justo.