DOSSIÊ (INTERCÂMBIOS)

Recepção: 20 Outubro 2018
Aprovação: 23 Novembro 2018
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2317-9651.v0i17p137-169
Resumo: As vivências da arte contemporânea muitas vezes se produzem em espaços de relação e desvio. Nessa perspectiva, a literatura pode ser lida a partir de múltiplos processos que se contaminam. Essa experiência se manifesta como algo que rompe com a sacralização do objeto artístico para tornar-se rastro e opacidade. A partir dessas premissas, este artigo pretende tratar dos principais aspectos relacionados ao livro Lecciones para una liebre muerta e à performance “Como explicar quadros a uma lebre morta”, para considerar a concepção de arte que está no substrato dos processos artísticos colocados em jogo por Joseph Beuys em 1965 e ressignificados por Mario Bellatin em 2005. A imagem de “Como explicar quadros a uma lebre morta” em Lecciones para uma liebre muerta é imprevisibilidade que se metamorfoseia. Nesse ponto de vista, Beuys surge como vestígio na obra de Bellatin, não é apropriação nem demanda correspondência. Ela aprimora a fissura no interior do conhecimento, se manifesta como sintoma e “signo secreto” que não objetiva esclarecer por meio da lógica de equivalência. O caráter pedagógico das “lições” não propicia o ensinamento em uma relação hierárquica, porém evidencia um apelo ao aprendizado que a arte propicia enquanto expansão das percepções sensitivas do ser humano.
Palavras-chave: Literatura hispano-americana, Arte contemporânea, Mario Bellatin, Joseph Beuys.
Abstract:
						                           The experiences of contemporary art are often produced in spaces of relation and deviation. Under this perspective, literature can be read according to multiple processes that contaminate one another. This experience manifests itself as something that breaks ties with the sacralization of the artistic object in order to become trace and opacity. Based on these assumptions, this article seeks to address the core aspects relating the book “Lecciones para una liebre muerta” with the play “How to explain pictures to a dead hare” in order to analyze the notion of art that appears in the basis of the artistic processes devised by Joseph Beyus in 1965, and which were ressignified by Mario Bellatin in 2005. The imagetic of “How to explain pictures to a dead hare” in “Lecciones para una liebre muerta” is a metamorphosed unexpectedness. In this regard, Beuys emerges as vestige of Bellatin’s work, there is no appropriation of its content nor does it require any correspondence. The fissure within knowledge is improved by it, manifesting itself as symptom and “secret sign” that does not seek to clarify anything through equivalence rationale. The pedagogical character of these “lessons” does not allow for the teaching a hierarchical relationship, instead it depicts a plea for the teaching provided by art as it expands the sensitive perceptions of the human being.
does not enable the teaching of a hierarchical relationship, although it bespeaks a plea for the learning that art enables as it expands the sensitive perceptions of the human being.
Keywords: Hispanic American Literature, Contemporary Art, Mario Bellatin, Joseph Beuys.
La cultura de la máquina destruye aquello que el
conocimiento de la naturaleza, derivado del mito,
había conquistado con grandes esfuerzos: el espacio
de contemplación, que deviene ahora en espacio de
pensamiento.
Aby Warburg
O decisivo não é a progressão de conhecimento em
conhecimento, mas a fissura no interior de cada um
deles. Marca imperceptível de autenticidade que os
distingue de toda mercadoria fabricada em série.
Walter Benjamin
Saber olhar uma imagem seria, de certo modo,
tornar-se capaz de discernir onde ela queima,
onde sua eventual beleza reserva o lugar de um
“signo secreto”, de uma crise inquieta, de um
sintoma.
Georges Didi-Huberman
A leitura crítica como paradoxo e desafio
Escrever sobre Mario Bellatin e Joseph Beyus representa um paradoxo para a análise crítica, pois como tratar de pensar sobre suas propostas artísticas sem pretender explicá-las? Que seja, então, capaz de levar adiante ideias para trazer à vida os pensamentos mortos, como entendeu Beuys, no sentido de que o ser humano é capaz de elaborar pensamentos criativos assim como a abelha de fornecer o mel. Coloca-se como um desafio para este artigo levantar os principais aspectos relacionados ao livro Lecciones para una liebre muerta e à performance Wie man dem toten Hasen die Bilder erklärt, ou “Como explicar quadros a uma lebre morta”, realizada na Galeria Schmela em Düsseldorf, para discutir a concepção de arte que está no substrato dessa materialização efetivada pelos processos artísticos colocados em jogo por Beuys em 1965 e ressignificados por Bellatin em 2005. Partimos do princípio de que a relação entre ambos processos artísticos não é necessariamente explícita ou temática, como se deduz pelo título e por algumas menções ao artista alemão no livro do escritor mexicano, antes remete ao procedimento criativo e a uma visão da arte que se apresenta como substrato. De modo que não parte de um sentido predeterminado, pelo contrário, se insere em uma dinâmica de significância, como entende Jean-Luc Nancy, decorrente de uma prática de “excrita” que não produz significados, mas um tato do sentido, enquanto órgão sensível e expropriação, para “manter o passo do pensamento suspenso sobre este sentido que já nos afetou” (Nancy, 2003, 28). Assim, Bellatin não congela a imagem de Beuys, porque ela não é representação (reprodução dos fatos ocorridos 40 anos antes) nem conteúdo de verdade ou saber absoluto. A imagem de “Como explicar quadros a uma lebre morta” em Lecciones para uma liebre muerta é imprevisibilidade que se metamorfoseia, aparece e desaparece, como observa Raul Antelo em prefácio de A imagem queima, de Georges Didi-Huberman (2018, 13), porque está em movimento, inacabada, como a obra de arte em geral, ou as “obras” específicas que são objeto desta reflexão. Nesse ponto de vista, Beuys aparece como vestígio na obra de Bellatin, não é apropriado nem exige uma credulidade a respeito da sua correspondência. Sua imagem potencializa um espaço de contemplação por meio da narrativa, aprimora a fissura no interior do conhecimento, se manifesta como sintoma e “signo secreto”.
Deste modo, equivale a um espaço de ação não produtivista, que critica o materialismo do “capital” e da “razão” e não pretende esclarecer ou ser entendido intelectualmente por meio de uma lógica de causalidade. O tom pedagógico das obras, evidente enquanto “lição” e “explicação”, não propicia a transmissão de conhecimento em uma relação hierárquica, porém evidencia um apelo ao aprendizado que a arte viabiliza enquanto expansão das percepções sensitivas do ser humano, para desenvolver sua imaginação e seu potencial criativo. Essa é a sua condição natural, observa Beuys em entrevista gravada para o programa Club 2 em 27 de janeiro de 1983, a tarefa mais importante da arte seria conectar o ser humano com a sua natureza. A criatividade, a emoção e a consciência lhes são inerentes, os animais, as plantas, os minerais, a natureza em geral, são seus órgãos externos, sem os quais não pode viver, mas com os quais já não estabelece relações afetuosas, porque são mortos por ele. Assim, a lebre morta equivale a um vestígio desse processo, um rastro do que foi, ou suas cinzas (para adotar a terminologia proposta por Georges Didi-Huberman), que evidencia o potencial de sobrevida na arte, mensageira entre o mundo material e o mundo sensível, se considerado o ritual da serpente dos índios Pueblo como metáfora para a arte, conforme avalia Aby Warburg (2004). A arte é capaz de dar forma ao pensamento e apontar para uma realidade mais profunda que o mundo dado e o conhecimento científico são capazes de oferecer. A arte dos sentidos sensíveis, não a arte como propriedade e obra de um sentido substantivo. A arte da imagem dialética, não tautológica nem transcendental, como problematiza Didi-Huberman em O que vemos, o que nos olha(2010). A máscara, resultante da aplicação de mel e ouro no rosto do artista, contribui para dar expressão à natureza humana e ao pensamento criativo, estabelecendo a ponte entre o mundo sensível que vemos e o mundo real que nos olha.
Pode-se dizer que muitos aspectos vinculam o projeto estético de Mario Bellatin à prática artística de Joseph Beuys, como abordado pelos trabalhos críticos que propuseram leituras dessa relação: suas visões do fluxo criativo e da obra como processo; a coincidência arte-vida, em que aspectos da experiência disparam simbologias recorrentes nas obras (como a gordura e o feltro, para Beuys; a talidomida e as deformações para Bellatin); a relação entre a arte e a reflexão sobre ela, manifestado nas várias ações discursivas de Beuys, que compõem seu arquivo audiovisual (guardado no Museum Schloss Moyland, de Düsseldorf, e no Hamburger Bahnhof Museum, de Berlim), expresso nos textos em que Bellatin considera seu fazer literário, como Underwood portátil modelo 1915 e “Escribir sin escribir”, entre outros escritos e entrevistas; o deslocamento da criação artística para a ação performática, que envolve o público diretamente, na “escultura social” de Beuys e nos chamados “acontecimentos literários” de Bellatin; os diferentes animais que aparecem em várias performances do artista alemão e em diversos textos do escritor mexicano. Héctor Hoyos (2015, 158) destaca que Beuys oferece elementos-chave para pensar sobre o vocabulário expressivo de Bellatin, assim como inscreve o escritor nos circuitos literários internacionais como visão crítica da globalidade. Nesse sentido, podem ser considerados como cruzamentos entre as obras dos dois artistas, o uso de meios de comunicação como forma de circulação de ideias, que marcam sua excepcionalidade em oposição aos dogmas institucionais, enquanto parâmetros legisladores e excludentes.
Na encruzilhada dessas relações possíveis, certamente está a valorização da pedagogia como desenvolvimento do processo criativo do ser humano, aspecto que conecta a Free International University (FIU), criada por Beuys em 1973, à Escuela Dinámica de Escritores (EDDE), fundada por Bellatin em 2001. Em Beuys, segundo Dalia Rosenthal (2011), “tudo que ele queria era sair […] para fora das antigas concepções artísticas e para longe das concepções acadêmicas tradicionais”. Nos dois casos, o sistema educacional proposto não se dividiria em disciplinas específicas, mas permitiria que a arte se desenvolvesse livremente. Para Bellatin, a proposta da EDDE era a de um espaço de trânsito que buscou promover “formas de colaboración entre creadores que asocia durante tiempos prolongados a un número determinado de individuos provenientes de ámbitos diversos para la invención de mecanismos que permitan articular procesos artísticos que modifiquen ese estado de cosas”, a EDDE “es una obra de arte conceptual que necesita del constante movimiento de ideas y de personas para expresar su razón de ser” (apud Colares, [201-], 4-5). Para o pesquisador argentino, a concepção pedagógica da EDDE evidencia que existe uma consonância com a busca de novos métodos de ensino promovida por Beuys, pela negação das regras artísticas e pela afirmação de uma prática transdisciplinar.
Joseph Beuys e Wie man dem toten Hasen die Bilder erklärt
Joseph Beuys (1921-1986) é considerado como um dos artistas mais influentes da segunda metade do século XX por desafiar os limites tradicionais da arte, constituindo-se na maior lenda individual desde Duchamp, observa Alain Borer (2001, 12). Sua obra foi bem variada, incluiu o desenho, a escultura, a performance, a instalação e a pedagogia como processo de reflexão sobre a arte. Como Beuys (1983) afirmou na entrevista para Club 2 mencionada anteriormente, certos dados biográficos marcaram sua produção artística e determinaram o uso de alguns materiais recorrentes, incorporados à expressão artística, como o feltro, a gordura, a cera, o mel, passando a estar vinculados a um processo simbólico de renascimento, enquanto potencial de cura do trauma vivido na Segunda Guerra Mundial e de seu acidente na Crimeia.
A prática artística de Beuys passou pela materialidade dos elementos usados, que guardavam uma “energia potencial”[1] como caminho de articulação de ideias. Sua arte procurava sensibilizar o expectador, de modo a desenvolver a consciência da capacidade inerente do ser humano. A reflexão sobre a arte, que se apresentou pela atividade pedagógica do artista, “arte como ensinamento”, como avalia Borer (2001, 14-20), pressupõe três ideias principais que norteiam seu processo, chamadas “postulados de reversão”: primeiro, o artista está presente na obra, porque sua “fala é escultura”; segundo, a perda do sentido da vida e das relações com o mundo produz o desnorteamento do ser humano, seu projeto propõe um retorno a um saber que se perdeu; por último, a concepção de que toda pessoa é um artista, porque é capaz de produzir pensamentos criativos. Desde os anos 1950, o artista alemão se interessava pela transformação dos elementos naturais, que eram capazes de retirar o caráter estático da obra. A partir de 1963, conforme considera Dália Rosenthal (2011), quando Beuys usa a gordura pela primeira vez, outros componentes como o feltro, o mel, o cobre, passam a ser inseridos nas obras para demonstrar a passagem dessas forças materiais orgânicas em movimento para formas ordenadas (associado a estados psicológicos do ser humano, como desejo, enquanto fluxo de energia, e intelecto, que daria forma ao desejo por meio de palavras e das estruturas sociais).
Durante a década de 1960, Beuys apresentou esses materiais em trabalhos de grande escala, mais complexos, observa Rosenthal (2011), relacionados a suas atuações no grupo Fluxus.[2] Para o artista alemão, os pensamentos estáticos, de caráter dogmático, deveriam ser eliminados pelo trabalho artístico, entendido como um momento de morte. Porém, isso significava um recomeço, a “reencarnação” para uma nova vida. A lebre morta, portanto, pode ser vista como um símbolo da renovação de ideias, ao guardar a potência da natureza para a reconfiguração da mentalidade a partir da ação performática. O mel e o ouro da máscara que o artista aplicou no rosto expressavam a transformação da matéria natural e caótica do pensamento na capacidade natural que constitui o ser humano.
A lebre, em seu potencial de renascimento como força natural, ganha forma pela ação do artista, não oferece resistência, segundo ele, por isso deixa de ser a função lebre, um animal hierarquicamente inferior ao homem – do ponto de vista do “conhecimento” –, passando a ser um veículo de comunicação com o mundo circundante – do ponto de vista “mágico”. A lebre morta aparece na primeira ação de Beuys no grupo Fluxus, chamada Sinfonía siberiana 1ª parte, em 1963. “Como explicar quadros para uma lebre morta”, depois disso, caracteriza um momento de articulação de seus materiais e seu processo de reflexão sobre a arte, um momento de expansão de seu projeto artístico. Nessa perspectiva, a obra de arte não é o objeto ou o produto, um sentido explicável, mas está composta pelo conjunto de elementos que inscrevem sua singularidade no tempo passageiro. Os meios para alcançar essa percepção são propiciados pela arte, que desloca a consciência para modos de sensibilidade e pensamento destoantes da realidade cotidiana, fora do hábito e de concepções fixas e explicáveis.
A serpente como metáfora relevante para a literatura e a arte
O animal nas ações de Joseph Beuys caracteriza o meio de conexão com a natureza. Em Mario Bellatin (2014, 109) é ponte de conexão com outras dimensões de realidade, como o autor observa nos cachorros que dormem em seu quarto, em Disecado. Para pensar sobre o simbolismo do animal e sua relação com a arte, nas obras em questão, a reflexão de Aby Warburg é pertinente. O historiador escreveu O ritual da serpente em 1988, a partir de fotografias que ele mesmo coletou 26 anos antes, em uma viagem pelo sudoeste dos Estados Unidos, com a intenção de registrar impressões sobre as culturas indígenas sedentárias em vias de extinção e de considerar historicamente as características “essenciais” da humanidade primitiva e pagã. Nessa obra, observa o material coletado e tece considerações em torno da simbologia do uso de animais durante os rituais mágicos dos índios Pueblo nos EUA para influenciar os fenômenos naturais, com o objetivo de que eles pudessem facilitar a funcionalidade da vida cotidiana para os índios, ao estabelecer uma relação entre o ser humano e o mundo circundante (Warburg, 2004, 10-11).
Independente da sua presença na cultura ocidental desde a antiguidade, a serpente faz parte da iconografia indígena dessa região dos EUA. Ela evoca a relação com o relâmpago, por isso participa das práticas mágicas para se tornar mensageira e intermediadora entre o mundo real e o espiritual, especialmente para pedir a chuva, fenômeno necessário à sobrevivência dos Pueblo naquela região árida (Warburg, 2004, 17, 47, 49). Por outro lado, a formulação estilística da natureza, observada nos desenhos indígenas, chega ao abstracionismo, solicitando que as imagens não sejam mais contempladas, mas lidas como um estado intermediário entre a imagem da realidade e o signo, entre o reflexo da realidade e a escrita, que demonstra o surgimento de uma ideografia simbólica, para o historiador de arte. Esse registro da serpente pelos Pueblo leva Warburg a destacar as propriedades da serpente que a tornariam uma metáfora relevante para a literatura e a arte: primeiro, o ciclo fisiológico da letargia à vitalidade; em segundo lugar, a capacidade de trocar de pele e permanecer igual; em terceiro, mesmo sem poder caminhar, o potencial de impulsionar o corpo com velocidade, carregando uma arma letal como defesa e ataque; por último, sua invisibilidade para o olho humano que agrega um potencial do mimetismo ou capacidade de se esconder (Warburg, 2004, 53). Ao entender a literatura como um ente vivo, metamórfico, letal e mimético, capaz de ocultamento e revelação, atribui também a ela um espaço intermediário entre a magia e o domínio do conhecimento. Warburg considera a literatura e a arte como corpo simbólico que pode estabelecer conexão com o entorno natural e social, quando as associa à serpente simbólica dos rituais mágicos, mensageira dos seres humanos para o mundo sensível.
A máscara também faz parte das práticas ritualísticas dos índios Pueblo, por meio da qual o ser humano se transforma e se confunde com o objeto de desejo, para obter sua presa ou o “fruto da terra”. A máscara serve para aproximar o ser humano do âmbito extrapessoal, o mundo selvagem, com o intuito de submeter-se à entidade estranha, modificando sua condição humana pela metamorfose (Warburg, 2004, 29). O animal é um ser superior para o indígena, frente a ele o ser humano é frágil. Entretanto, a máscara estabelece um vínculo entre as forças da natureza e o humano, passando a ser um elemento de conjunção, propiciado pelo rito mágico, que permitiria ao homem participar dos poderes sobre-humanos da natureza. Nesse caso, Warburg (2004, 27) considera que a magia e a técnica se encontram no mesmo ponto: “los Pueblo viven entre el mundo de la lógica y el de la magia, y su instrumento de orientación es el símbolo. Entre el hombre salvaje y el hombre que piensa, está el hombre de las interconexiones simbólicas”. No estágio intermediário entre a magia e o pensamento, entre a fé e a razão, o imaginário e a realidade, encontra-se a linguagem, também ela um elemento de conjunção. Para Warburg (2004, 61), o salto da adoração “pagã” pelos animais passa pelo simbolismo em direção à devoção como prática mental que une o ser humano e a entidade estranha, processo em que o ser adorado perde a sua materialidade monstruosa e se converte em um símbolo espiritual invisível. Diferente desse processo característico da religião, por outro lado, não há unidade possível na mitologia, no ritual simbólico “primitivo” ou “pagão” ou ainda “selvagem”, a natureza não pode ser reduzida a um agente único e invisível, pois seu simbolismo é corpóreo e tangível.
El indio contrapone su voluntad de comprensión a la ininteligibilidad de los procesos naturales, transformándose a sí mismo en la causa de los fenómenos percibidos. Instintivamente reemplaza al efecto incomprendido con la representación más concebible e intuitiva de su causa. La danza de las máscaras es la causalidad danzada (Warburg, 2004, 60).
Em Como explicar quadros para uma lebre morta, Joseph Beuys cria uma máscara com mel e ouro aplicados no rosto. De acordo com sua compreensão de arte, comentado anteriormente, sobrepostos no rosto esses componentes naturais adquirem uma forma, uma organização definida pela intenção humana, o pensamento criativo, não lógico. Ao mesmo tempo, como máscara, essa forma simboliza o que existe de natural no ser humano, a capacidade de pensar. Do mesmo modo, pode-se entender a simbologia dos animais nas suas ações artísticas como pontos de conjunção com o entorno, com a natureza e suas forças espirituais. A lebre morta demonstra o sacrifício do animal pelas mãos humanas, como nos rituais, submisso à ação do artista que a conduz pelo pequeno espaço do museu diante dos quadros estáticos. Beuys se despersonaliza ao conduzir mascarado a lebre morta pelo museu, exibindo o potencial de sacrifício humano e animal, mas também a possibilidade natural de vida e renascimento pela transformação. Nessa relação que se estabelece entre o ser humano e o animal, a linguagem artística é encruzilhada para o plano sensível também em Lecciones para una liebre muerta. A lebre morta do zoomorfismo quéchua articula o humano, o deforme e o animal com outras dimensões da realidade e da sensibilidade.
A imagem não é a mesma coisa, é cinza e sintoma
Na performance de Beuys na Galeria Schmela em Düsseldorf, o corpo morto é o que restou da lebre, sua imagem plena de sentido associativo e simbólico. Por isso, a imagem é arquivo, lacuna que dá conta daquilo que falta, resultante de censuras e destruições, e daquilo que sobrevive, no pensamento que Georges Didi-Huberman desenvolve em A imagem queima (2018). Ela coloca também a questão da cisão do que nos olha no que vemos, evidenciando a perda e o resto, que o filósofo discutiu em 1992, na obra antológica intitulada O que vemos, o que nos olha, principalmente relacionada à “imagem dialética” e à crítica de Walter Benjamin (Didi-Huberman, 2010, 173).[3] A imagem se transforma, ela pode ser considerada como um acidente, por sua imprevisibilidade e inconstância, sem equivalência nem substância. Ela é como o tremor das asas da borboleta, vista sempre em movimento, inapreensível. A imagem é o que resta do acontecimento, é consumação, a cinza (Didi-Huberman, 2018, 33). A lebre morta é uma imagem percebida em movimento, registrada em vídeos que reproduzem aquele instante como parte do arquivo de Joseph Beuys no acervo do Museum Scholoss Moyland, em Düsseldorf. Distante no tempo histórico, o arquivo Beuys está também em transformação, imprevisível, como se pode avaliar em Lecciones para uma liebre muerta, de Mario Bellatin. O que existe de Beuys em Bellatin pode ser lido como uma imagem que queima, a cinza de um acontecimento, a ação performática de 1965.
Pois a imagem é outra coisa além de um simples corte praticado no mundo dos aspectos visíveis. É uma impressão, um rastro, uma cauda visual do tempo que ela quis tocar, mas também de tempos suplementares – fatalmente anacrônicos, heterogêneos entre si – que, como arte da memória, não pode deixar de aglutinar. É a cinza de várias fogueiras misturada mais ou menos quente. Nesse aspecto, então, a imagem queima. Ela queima pelo real de que ela mesma, em um momento se aproximou […]. Ela queima pelo desejo que a anima, pela intencionalidade que a estrutura, pela enunciação, até mesmo pela urgência que manifesta […]. Ela queima pela destruição, pelo incêndio que esteve prestes a pulverizá-la, do qual escapou e, consequentemente, é capaz hoje de oferecer o arquivo e a possível imaginação (Didi-Huberman, 2018, 66-67).
A imagem queima, porque não é o que mostra, equivalente da realidade, documento ou verdade, mas aquilo que ela proporciona como experiência, conforme o entendimento de Walter Benjamin, mas também como afetamento e implicação (Didi-Huberman, 2018, 49). A implicação promove um espaço de perigo, onde o ser afetado se desloca, pois se reconhece como sujeito do olhar. Ao contrário, a explicação usa o corpo como instrumento para a crítica, a análise, a comparação, a montagem (a forma resultante dá acesso ao olhar para a linguagem e para a elaboração, proporcionando uma experiência e um ensinamento, com chances de conhecimento e de relação ética). Tanto a ação de Beuys quanto o texto de Bellatin implicam seus apreciadores ao não oferecerem um caminho óbvio, mesmo que remetam à busca por explicar algo, isso é uma ação inviável. Contudo, ao deslocar seus apreciadores para esse espaço de perigo em que se sentem implicados, instituem um espaço de destruição de sentidos dados, produzindo uma imagem do real de que se aproximou, um arquivo, não um “corte praticado no mundo dos aspectos visíveis”. A legibilidade das imagens não é evidente, porque não tem hábitos, observa o filósofo, elas permanecem em movimento.
A imagem proporciona o silêncio diante de um objeto visual que deixa desconcerto, como foi a ação de Beuys, “despossuído da capacidade de dar sentido, para em seguida construir o silêncio num trabalho de linguagem capaz de operar uma crítica de seus próprios clichês” (Didi-Huberman, 2018, 50), renovando o pensamento e a linguagem. Assim, a arte tem o potencial de produzir a contrainformação, ao efetuar a saída do habitual. Seguindo a reflexão proposta por Didi-Huberman, a imagem se constitui ao mesmo tempo como sintoma (interrupção no saber) e como conhecimento (interrupção no caos). O sintoma explicita a saída fora do comum, do campo do saber e do controle, implicando o sujeito em um espaço de perigo. Por outro lado, o conhecimento dá forma à intenção e ao desejo, explica ao dar acesso à linguagem (crítica, análise, comparação, montagem).[4] Nessa linha de raciocínio, o procedimento de Beuys como imagem que queima, que é sintoma e conhecimento em Bellatin, a percepção da existência de Beuys como aquilo que afeta, implica e explica, tira a literatura do seu hábito. A imagem de Beuys está naquilo que ela silencia em Bellatin, enquanto sonho, passagem, interseção, montagem e não-saber(Didi-Huberman, 2018, 28). Portanto, as imagens em Mario Bellatin se sustentam sobre esse movimento lacônico, elas se apresentam como precariedade, imaginação e montagem, que aborda a imagem a contrapelo da “história-narração”, uma “memória inconsciente, aquela que se deixa menos contar do que interpretar em seus sintomas” (Didi-Huberman, 2018, 40). Dessa forma, a relação possível de ser estabelecida entre Bellatin e Beuys é a de um indício, não evidência ou filiação. A conexão entre a ação do artista alemão e o texto do escritor mexicano pode ser vista como ritmo, rastro e sintoma (“o sintoma não é a fissura nos signos, o grão de nonsense e de não-saber de onde um conhecimento pode extrair seu momento decisivo?” (Didi-Huberman, 2018, 45). Esse acontecimento, ou encruzilhada, equivale ao poder da obra de afetar o mundo do sentido, racional e predeterminado, provocando a reação do sujeito pela experiência estética como uma mudança de sensibilidade.
As cinzas de Beuys e o ritual da lebre morta em Lecciones…
Mario Bellatin é frequentemente considerado um escritor experimental, mas sua proposta literária está articulada a uma estética conceitual, por meio da qual sua escrita se apresenta como gesto que expressa sua ideia sobre arte e lhe permite formar rede com artistas diversos, escritores como Sergio Pitol e Margo Glantz, para mencionar os mais próximos geograficamente, ou artistas como Marcel Duchamp e Joseph Beuys, entre outros. Além dos textos literários ficcionais, muitas vezes vinculados às artes visuais, sua prática estética articula textos de reflexão sobre a própria obra, para a qual a necessidade de escrever deve ser uma pulsão compartilhada. Os chamados “sucesos literarios”, como por exemplo o Congreso de dobles de París, relacionados ao projeto denominado “Escribir sin escribir”, se colocam como vivências contaminadas de ficção fora do âmbito da escrita, ou como proposição de modos diversos de praticar a literatura fora dos padrões tradicionais. Esses “fatos literários” se apresentam como “excrita”, segundo entende Jean-Luc Nancy, por se deixar levar pelo sentido fora da significação e da interpretação (Nancy, 2003, 23-24). Tal movimento se dá como “significância”, em que o ato de significar remete à condição de possibilidade da significação, sem que nada esteja preestabelecido (Nancy, 2003, 25). Bellatin se coloca questões sobre a significância em textos que criam suas próprias leis, onde a lei da realidade fica de fora:
El único fin de la escritura es abolir su presencia. Generarla para destruirla. No realizar un acto de creación sino uno de destrucción constante. En ese sentido cualquier estrategia es buena para escapar de aquella presencia, tan ansiada y temida al mismo tiempo, que es el texto(Bellatin, 2013, 64).
O texto é a ponte para processos de desterritorialização da realidade e do próprio texto. Um texto vivo, território atravessado pelas linguagens e corpos ficcionais, em que a presença do outro se torna “determinante para que a escritura continue existindo” (Bellatin, 2013, 64). Essa busca justifica os “acontecimentos literários”:
Quiero llegar a este punto para confesar que no sé lo que significa realmente escribir sin escribir. Quizás hacer que las palabras, que muchas veces no existen en su forma física, hablen por sí mismas. Que expresen tanto las letras congeladas en los libros que he publicado como las que se abren dentro de mi historia personal. Que se haga evidente el ejercicio de escribir sin escribir y que la literatura nos demuestre que se encuentra situada un punto más allá que las simples palabras(Bellatin, 2014, 22).
O ponto além das simples palavras articula uma multiplicidade de linguagens, como a imagem, a performance ou a própria palavra, enquanto práxis de significância. Elas se caracterizam por ser modos de percepção e inserção no mundo, confrontando sentidos inauditos, além da espera e da demanda. Isso representa, na perspectiva de Nancy, o fim de um regime de sentido significante, para o qual a história, a filosofia, a política, a arte e o mundo representam sistemas fechados de conceitos e ideias. Para tanto, as certezas do “mundo do sentido” devem ser substituídas pelas perguntas sobre o “sentido do mundo”. Bellatin propõe sua ficção como expressão diferenciada do realismo, como um meio de produzir reflexões sobre a linguagem como processo singular. Nesse universo, os sintomas, as doenças, os medicamentos, os alucinógenos, as deformações e as mutações são estratégias de destituição do mundo do sentido. Elas inserem espaços não-euclidianos que, na narrativa, abrem dimensões diferenciais de imaginação, eliminando as distâncias entre referências do “mundo do sentido” para associar a elas aspectos diferenciados. A linguagem se apresenta como marca (por exemplo, a digital em Los cien mil libros de Bellatin) e prótese para a inscrição da singularidade no real: escrita, imagem, ação.
Os acontecimentos literários de Mario Bellatin se constituem como gesto, não possuem um lugar, segundo a compreensão de Nancy (2003, 184). Nessa perspectiva ela se coloca como uma ação política, condição de toda escrita, para o filósofo. Referindo-se à pergunta sobre o novo em suas obras, o autor considera: “lo que deseo que tenga [mi obra] todo el tiempo es movimento. Que no sea algo estático, que no esté regido por normas que provengan del exterior” (Bellatin, 2013, 65). Bellatin trabalha o esvaziamento da realidade por meio da escritura para perceber a obscuridade da contemporaneidade, a opacidade, o paradoxo de expressar o inapreensível. Não pretende dizer, mas expor o que não é para ser dito. Na leitura proposta por essa análise, a “excrita” de Bellatin abre um espaço que situa sua literatura entre a “magia”, a imaginação e o conhecimento, seu simbolismo é corpóreo e tangível, porque afeta e implica o outro, humano ou animal. A montagem das cenas alternadas em Lecciones para uma liebre muerta demonstra sua intenção pedagógica de tornar também o conhecimento um processo tangível, sem chegar à racionalização intelectual.
Existem alguns estudos sobre a intersecção entre a performance de Joseph Beuys e o livro de Mario Bellatin. Héctor Hoyos, por exemplo, no capítulo intitulado “On Duchamp and Beuys as Latin American Writers”, publicado em Beyond Bolaño, compara o diálogo Bellatin/Beuys ao caso César Aira/Marcel Duchamp – relativo ao relato “Duchamp em México”, que compõe o livro Cerebro musical, publicado por Eloísa Cartonera em 2005 –, para destacar as apropriações feitas pelos escritores latino-americanos, acerca das preocupações e métodos da arte contemporânea, enquanto estratégias de inscrição global. Segundo o crítico, os autores adotam convenções do “mundo da arte” para promover uma remodelagem dos circuitos literários tradicionais, “como se fossem curadores e artistas plásticos”. Na sua opinião tanto Aira como Bellatin assumem as personas dos artistas escolhidos, em processos de contaminação mútua que articulam a literatura latino-americana no cenário mundial e revelam a simultaneidade entre esses artistas, a produção europeia e norte-americana e sua visão crítica da globalidade (Hoyos, 2015, 158).
Em Una liebre muerta: Mario Bellatin y Joseph Beuys, Mauricio Colares faz uma análise mais focada na relação entre o escritor e o artista, que destaca a seleção evidente de temas na obra do escritor mexicano para atualizar um movimento que já vinha se realizando desde a publicação da sua primeira obra Las mujeres de sal (1986), como o choque entre a tradição e a renovação, expressos pela proposição de “novas regras do jogo” (Colares, [201-], 3), ou como a aproximação entre linguagens artísticas mediante um apagamento das suas fronteiras. Porém, seguindo as considerações de Graciela Goldchluk – para evidenciar que, assim como em Beuys, existe um encadeamento de elementos dentro de um processo contínuo –, observa que isso se apresenta de maneira mais contundente a partir da publicação de Flores (2001). Pela sua composição, avalia Colares ([201-]), tanto quanto a ação de Joseph Beuys, Lecciones para una liebre muerta recusa modos estabelecidos de interpretação. Considera que, do ponto de vista conceitual, Bellatin atribui um valor inerente à sua obra, de caráter metonímico, que é o melhor exemplo de aproximação à obra do artista alemão.
Os aspectos mais evidentes no livro de Mario Bellatin, Lecciones para uma liebre muerta, são a referência do título à performance de Joseph Beuys e a fragmentação narrativa, que alterna partes de histórias formando um mosaico desconexo à primeira vista. As menções ao artista são inúmeras, como já observaram os críticos citados, porém fazem referências diversas a suas ideias, seus procedimentos, sua obra, ou melhor, a apropriações que o escritor mexicano faz desses dados, que Hoyos (2015, 182) entende como “contaminação-mútua”. De modo geral, as histórias múltiplas giram em torno de personagens que aparecem e desaparecem ao longo da obra,[5] o que tira o foco da evidência beuysiana. Eles fazem parte de uma galeria de personalidades apresentadas na maioria das vezes pelos ofícios que desempenham, outras vezes pelo nome próprio, quando se trata de referências artísticas e culturais, como os escritores Sergio Pitol, José María Arguedas, William Burroughs, Elias Canetti, Yasunari Kawabata e o ator cinematográfico Bruce Lee.
Entre outros aspectos, cabe destacar a espacialidade em que circulam esses personagens, de modo geral caracterizada por instituições, como a Ciudadela final, o orfanato, o zoológico, mas também por lugares de intimidade, como a casa, o bairro, o balneário, também lugares de origem, como a regiones quechua, o mar da infância, ou de passagem, como a costa do país, onde o poeta cego faz a sua peregrinação, a Times Square, a discoteca The mother, o acampamento dos universais no norte da cidade, a linha telefônica em que “mi hijo” conta seus sonhos para o pai distante. Esse levantamento de componentes, que atravessam os textos de Lecciones para una liebre muerta, podem oferecer rastros da ação performática de Beuys, conforme avaliamos, por expressar a relação da singularidade com o ambiente, os outros e as instituições. Além do personagem e do espaço que corporifica sua ação, a presença dos animais integra as narrativas fragmentadas, geralmente sob o jugo dos seres humanos, principalmente cachorros, mas também camelos, serpentes, zebras e a lebre (Bellatin, 2005, 111). Por outro lado, as doenças, sintomas, medicamentos, deformidades físicas, próteses e a morte são detalhes relevantes para avaliar os modos peculiares de percepção do corpo, como analisou Claudia Leitner (2018), e da existência na relação consigo e com o entorno.
Deste modo, estão em jogo um agente/paciente, sua ação/linguagem, um espaço e a relação com o animal ou com o ser deforme, monstruoso ou morto. O agente se caracteriza pela condução da ação narrada, porém sua condição oscila com a de paciente na medida em que os personagens são subjugados pelas instituições dominantes, como é o caso dos “universais”, indivíduos que constituíam um grupo de pessoas identificadas por sua vestimenta, por possuir cães da raça bull terrier e por se reunirem num acampamento alternativo na periferia da cidade. Os universais foram presos e submetidos a exames de sangue para detectar uma doença misteriosa, depois separados e encaminhados para a chamada Ciudadela final. Passaram a viver sob um regime autoritário, mas que lhes garantia certas comodidades como modo de subordinação – contudo, traficavam seu sangue contaminado para aqueles que desejavam ser admitidos na Ciudadela. Outro exemplo dessa oscilação, em sentido contrário, pode ser observado na condição do protagonista que tem sintomas de asma e percebe que melhora quando passa dias na Cidade do México. De paciente submetido a tentativas de cura pela mãe na infância, consegue alcançar independência ao possuir seu próprio inalador e posteriormente praticar ciclismo na Cidade do México, apesar da poluição.
Paradójicamente, según se iban anunciando una serie de desastres atmosféricos, generalmente motivados por la contaminación ambiental, era mayor la posibilidad de respirar. Quizá esa constatación me dio la vana idea de escribir a partir de la no experiencia, utilizando las huellas de lo deforme y enfermo de mi cuerpo como superficie(Bellatin, 2005, 133).
Esse fragmento articula vários estratos do eu ficcional nessa obra de Bellatin, que se alternam como arquivos desconexos de imagens, pois reúnem aquilo que pensa da prática de escritor, com o problema da asma e a deformidade do seu corpo. A experiência da melhora em consequência do deslocamento para a Cidade do México e da prática do ciclismo em ambiente poluído, levam-no à escrita da “não experiência” como aquilo que contradiz as expectativas lógicas e foge às estatísticas, no contexto da improbabilidade e da negatividade, sobre o suporte deforme do seu corpo em movimento. Isso define a busca de processos de expressão diferentes da normalidade, da clareza, da afirmação, da linearidade. Esses estratos descontínuos de imagens se articulam ao eu que tem convulsões, depressão, ao eu criança que tem asma, para quem o avô contava histórias e levava ao zoológico, ao adulto que é um pai distante do filho e possui uma memória incrível, capaz de lembrar dos sonhos e das oficinas onde fabricavam os aparelhos ortopédicos quando ele era criança (Bellatin, 2005, 110). A alternância dessas imagens não obedece a um plano ou sequência, antes parece sintoma da perda de sentido temporal do personagem, resultante da ingestão de remédios para aliviar suas crises neurológicas.
No lo he mencionado antes, pero experimento también problemas de memoria y de confusión de tiempos. En muchas ocasiones no puedo dar una cronología exacta a los hechos del pasado. Siento también que no estoy lo suficientemente insertado en las situaciones que se desarrollan normalmente. Eso lo noto principalmente durante los viajes (Bellatin, 2005, 65).
A associação entre a palavra e a ação nas imagens ganha protagonismo nessa obra e se constitui como um procedimento natural para os personagens, o avô que conta os contos de macaca e das regiões quéchua para o neto no zoológico, o filho que conta os sonhos para o pai por telefone, o tradutor que traduz obras do alemão, a irmã literata que conta sua história para o irmão por carta, os múltiplos arquivos de leitura citados por intermédio dos nomes próprios dos escritores e de algumas de suas obras, o poeta cego e seu Cuadernillo de cosas difíciles de explicar, mesmo o fotógrafo cego que reduzia a realidade a “expressões comprimidas” por meio da fotografia, do jornal ou do vídeo ou o filósofo travesti que não parava de falar (Bellatin, 2005). Os sujeitos de linguagem se configuram como atravessadores de conhecimento tangível da não experiência, que não tem explicação. Narradores da sua vida ou das suas percepções, eles comunicam sua não experiência pela linguagem e pelas imagens, sua palavra é uma ação que intervém no ambiente e os conecta aos outros, humanos e animais.
As relações se estabelecem entre os múltiplos personagens em espaços delimitados, apesar de genéricos, como as instituições, que se assemelham em qualquer lugar, o zoológico ou o orfanato estatal, por exemplo. De modo geral, esses espaços são espaços de controle onde se subjuga o ser animal, abandonado, deslocado e deforme, não sociável e frágil, que demanda supervisão da sociedade. Assim acontece com os gêmeos Khun, nascidos sem braços nem pernas, prováveis vítimas da talidomida, que mobilizam as candidatas a mães voluntárias, entre elas a irmã literata. Os animais, na maior parte, servem aos seres humanos em espetáculos da sua força potencial, como os cães de luta treinados pelo universal que vive fora da Ciudadela final. Os animais no zoológico são descritos como meras presenças coadjuvantes suplantadas pelas histórias de macaca, seu amante, seus jardineiros zoomórficos, seu contato com a tribo indígena, seus desenhos de crianças mortas.
As imagens dos animais ganham outro tom na avaliação que o pai faz do seu papel paterno conforme a expectativa do filho, considerada uma tendência atávica por sua suposta força natural, como a manada de zebras da estepe africana (Bellatin, 2005, 90). A força natural, espiritual e mágica também se expressa na figura do golem criado por Margo Glantz, escritora mexicana de origem judaica, para se livrar da mulher da sacola que insistia em deixar comida para sua cachorra Lola (Bellatin, 2005, 46). Manifestado como mito tangível de uma memória ancestral, que independe do controle humano, é consequência da ação de Glantz na comunicação com a outra dimensão da realidade. Da mesma categoria é a transformação de um defunto em lebre, como o ancestral que tivesse mantido relações com algum membro direto da sua família em vida, caso fosse desenterrado (Bellatin, 2005, 111), conforme certa “tradição quéchua”. O episódio parece ser um indício de Beuys, enquanto a lebre permanece como manifestação de um estágio intermediário entre o mundo real e o mundo dos mortos, tendo abandonado sua natureza e sua pulsão animal.
Além de Lecciones para uma liebre muerta se articular a várias obras de Beuys,[6] relacionadas à sua produção do pós-guerra, Beuys se torna personagem para Bellatin, como os outros mencionados anteriormente. Beuys é um rastro do arquivo literário que pode ser narrado e reordenado, aparece como o que resta, a cinza da imagem que queima, sintoma do pensamento morto que preserva sua força expressiva, a imagem dialética do vazio deixado pela perda. Faz parte da iconografia de Bellatin, que se relaciona à metáfora da serpente de Warburg, conforme expusemos inicialmente. São imagens que evocam a relação de Bellatin com o mundo da arte, tornando-se mensageiras entre as dimensões real e sensível. A morte e a deformidade ganham sentidos simbólicos, enquanto potencial de libertação e vida. Por isso, as imagens das crianças mortas, desenhadas por macaca (Bellatin, 2005, 128), são tentativas de apreensão da vida suspensa, distantes da realidade corriqueira, que abrem passagem para o outro mundo.
Intersecções de Beuys em Bellatin: humano e animal no espaço da linguagem
A arte conceitual contribuiu para que, ao longo dos anos 1960, se produzisse uma virada epistemológica em todos os âmbitos do pensamento e da prática social, que se projeta de maneira contundente até os dias atuais. Pedro Dolabela Chagas considera que essa “nova episteme”, definida pelo crítico em torno do conceito 1970, estabelece como marco os movimentos políticos antissistêmicos de 1968, que mudaram a sensibilidade para a percepção da alteridade. “Não havia mais arte em geral, mas, sim, práticas que subsistem em acoplagem com outras funções sociais, dentro de redes socialmente instituídas de produção e distribuição de informação” (Chagas, 2018, 28). O pesquisador destaca que a ação artística passou a ser pensada como um processo relacionado a um contexto, como um acontecimento que envolvia o processo e o público, sem pretensões à transcendência, mas articulada ao debate e à conscientização teórica da sua proposta no presente histórico. O artista passou a ser movido pela abordagem crítica da estrutura estática das condições sociais em que vivia, questionando os sistemas legitimadores da arte, como o museu e a exposição, mas também a academia e a crítica especializada. Em vista disso, promoveu-se a ascensão da singularidade, do acaso e da incerteza na problemática ontológica da nova sensibilidade, que levaram à consciência da multiplicidade como característica da sociedade contemporânea.
Bellatin imprime um regime de significados e valores para a arte que se justifica pela sua obra, num processo sintomático que exige uma leitura especializada. Porém não há nenhuma pretensão em Bellatin de “revelar o mundo” ou ditar “padrões de pensamento” equivalentes a uma síntese da multiplicidade, por isso está próximo da arte conceitual, ao elaborar uma escrita que produz o pensamento criativo e o deslocamento das certezas. Para a arte conceitual, lembra Dolabela Chagas (2018, 86), o espaço físico participa do fato artístico, por isso lançaria o artista ao contato aberto com o público, aspecto que podemos identificar nos dois artistas: em Beuys, o museu; em Bellatin, o texto literário e sua ideografia simbólica. Como consideramos nessa leitura, isso promove a dessacralização da arte e lhe atribui potencial didático sem explicação, necessário para o processo de transformação sensível. O sentido da obra seria conferido pelo receptor, situando o artista e o público em uma relação não hierarquizada. Assim, a obra, no sentido clássico, desapareceria para dar lugar ao processo (Chagas, 2018, 87). O que se apresenta, relativo aos artistas analisados, é que a obra, destituída do seu valor sublime, passa a ser um veículo e desafio dos sentidos instituídos, deslocando os receptores dos seus parâmetros de realidade no momento em que os convida para o jogo, em que as leis de causalidade são suspensas.
A instância dessa relação é a linguagem artística que articula corpo e espaço, eu e outros. Sua prática, no entanto, coloca em questão o cruzamento arte/vida. Como a serpente nas práticas ritualísticas, a arte promove um espaço intermediário entre a magia – dimensão da natureza, da espiritualidade, da criatividade – e o conhecimento – técnica, percepção de si e dos outros, atribuição de sentido, relação, arquivo da memória. O simbolismo de Lecciones para una liebre muerta é corpóreo e tangível, como considerou Warburg sobre a iconografia indígena, e permite a conjunção entre imaginação e pensamento por meio da linguagem literária. O ser animal, o ser deforme, o ser monstruoso e o ser morto fazem parte da iconografia de Bellatin, em parte relacionada a aspectos biográficos, como destacaram outros críticos. Porém, eles abrem a leitura para dimensões inusitadas do sentido, que articulam conexão e desconexão, fragmentação narrativa e redes simbólicas nas combinações entre personagens, animais, espaço e linguagem. A lebre morta ganha destaque: enquanto em Beuys ela expressava a ação do ser humano em uma relação simbólica com o entorno – o museu, a arte, a sociedade, o expectador –, em Bellatin, ela é fissura no conhecimento – sentido de arte, a imagem de Beuys, outros escritores e obras – e “signo secreto” – práticas rituais e mitos indígenas, criatividade e criação literária, sensibilidade e jogo. Beuys, em Bellatin, vai além da equivalência, porque produz um sentido que silencia, indica um vestígio, rastro, sintoma, resto ou cinza que guardam uma significação sempre relativa. Mario Bellatin acende a brasa das cinzas de Joseph Beuys em Lecciones para uma liebre muerta. Beuys atravessa a multidimensionalidade de Bellatin como imagem que queima, nas articulações do humano e do animal pela linguagem artística.
Referências Bibliográficas
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Notas
Autor notes