Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


Lendo (e escrevendo sobre) Levrero
Reading (and writing about) Levrero
Revista Caracol, núm. 17, pp. 174-188, 2019
Universidade de São Paulo

DOSSIÊ (ERRÂNCIAS)


Recepção: 20 Outubro 2018

Aprovação: 06 Novembro 2018

DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2317-9651.v0i17p173-188

Resumo: Meu propósito neste ensaio é – partindo de uma reflexão produzida anteriormente a respeito de conexões entre algumas propostas de Roland Barthes e a produção final de Mario Levrero – considerar um aspecto da recepção justamente desse entrecho de sua obra (composto por Diario de un canalla, El discurso vacío e La novela luminosa). Assim, continuando na exploração do paralelismo entre propostas de Barthes e potencialidades interpretativas da produção de Levrero, invisto com um pouco mais de vigor na expansão do que poderia ser uma “crítica patética”, e comento o que percebo como estratégias de evitação dessa forma da crítica em ensaios de Adriana Astutti e Sandra Contreras. Por essa via, busco angariar argumentos que destaquem a pertinência de uma inclinação crítica que permita uma aproximação de elementos autobiográficos no processo de, como diz Barthes, “escrever a leitura” (Écrire la lecture).

Palavras-chave: Mario Levrero, Roland Barthes, Crítica, Crítica patética.

Abstract: My purpose with this essay is – according to a previous discussion on the connections between some of Barthes’s proposals and the final work by Levrero – to consider an aspect of the reception of this moment in his work (comprised of “Diario de un canalla”, “El discurso vacío” and “La novela luminosa”). Thus, continuing to analyze the parallelism between Barthes’s proposals and some interpretive potentialities of Levrero’s work, I invest a little more vigorously in the expansion of what could be a “pathetic criticism” of said work, and comment on what I perceive as ways to avoid this form of criticism in the essays by Adriana Astutti and Sandra Contreras. This way, I seek to raise arguments highlighting the pertinence of a critical inclination that allows for an approximation between autobiographical elements in the process of, according to Barthes, “writing reading” (Écrire la lecture).

Keywords: Mario Levrero, Roland Barthes, Criticism, Pathetic criticism.

I

Há cerca de um ano produzi um ensaio no qual abordava certa mobilidade verificável na obra tardia de Levrero (2005, 2009, 2013), em seus “diários”, como uma instância do que Barthes chamava, em seu curso Como viver junto, de “idiorritmia”. Não carece reconstruir o argumento aqui, bastando indicar que o que me magnetizou nessa possibilidade de leitura foi uma observação de Barthes, que dizia querer começar a discussão do tema do curso caracterizando “formas sutis do gênero de vida” (Barthes, 2003, 16) no interior das quais encontraríamos exercícios de idiorritmia. “Idiorritmo, quase um pleonasmo, pois o rhythmós é, por definição, individual: interstícios, fugitividade do código, do modo como o sujeito se insere no código social (ou natural)”, dizia Barthes. E assim ele engatava suas exposições e digressões a respeito de uma moralidade da coabitação: começando pela maneira como um indivíduo vive, comentando o monasticismo antigo, falando de Robinson Crusoé.

“Formas sutis do gênero de vida”: isso me parecia uma resolução tão feliz para comentar algo que se exercita nos diários de Levrero – invejei essa fórmula precisa e acertada. Esses diários me interessavam, e me interessam ainda, por várias razões, algumas das quais mal consigo perceber. Mas certamente uma razão que conseguia discriminar com relativa clareza era a maneira como nesses textos acontece uma exposição da vida construída em torno da prática da escrita. Uma vida se organiza em torno do escrever, e isto se escreve: uma arquitetura modesta mas eficaz, um artifício discreto e inventivo de gestão do cotidiano e cuidado de si que ressoa em uma forma que é também modesta mas eficaz em sua exposição de liminaridade. Vemos como um espaço para a escrita é construído, e uma aposta é feita no sentido de alcançar um ponto adiante pelo exercício de observação e registro de um cotidiano. Mas o que se avizinha e anuncia com a construção dessas condições presentes para a convocação de um estado futuro não é algo fundamentalmente distinto do que já está instalado. Assim, o que acontece escapa à forma canônica da epifania e, como diz Laddaga (2013, 231) “não está indo na direção de uma profundidade ou transcendência”, mas correndo ao longo dos “fios ou linhas invisíveis que formam a rede da qual todo presente é um nó”. Ou, ainda, como diz Chejfec (2013, 200), Levrero “não é alguém que pode escrever tudo, mas sim alguém que converte tudo que escreve em seu próprio regime sem perda de energia”, e que faz isso por ter se dado conta de que “não há nada detrás, ou debaixo, escondido, quando se escreve, e que a profundidade, se existe, aparece depois”.

Essas constatações da crítica que cito resolvem o que evidentemente não tinha tal organização no momento em que lia pela primeira vez esses textos de Levrero, e adentrava o que eles criam como experiência. Elaborando agora algo que, acredito, se articulou embrionariamente nesse momento do encontro inicial com os textos, o que parece ter mais força para mim é uma espécie de modelagem sugerida por Levrero nessa poética dos diários finais. Um esboço de um jeito de funcionar e fazer uma vida acontecer dentro da qual a escrita apareça não como algo que está alhures ou que aponta para outro lugar, mas como uma espécie de mecanismo de retroalimentação: instala uma estratégia para escrever a vida e, nisso, traz vida para dentro da vida. É um labor: não sei como fazer, quero encontrar a forma que seja minha disso que, nesses textos, é a forma dele de converter tudo que escreve em seu próprio regime sem perda de energia. Desejo atravessar essa situação salvaguardando a especificidade dessa experiência, e o que, na leitura, posso ver de algo que, penso, se desenvolve efetivamente como outra possibilidade do literário.

Acredito ser daí que deriva meu interesse, ou a ideia de que há algo de interessante nesses escritos: quero continuar a repousar minha atenção sobre eles, há uma economia do tempo que, aqui, me inclina ao investimento em algo que, se não é terra incógnita, certamente tampouco é mais do mesmo. Extrapolando um aspecto de uma argumentação bem mais nuançada de Sianne Ngai (2012) a respeito disso, é como se houvesse a mobilização de uma energia de fundo ligada a um aspecto da experiência da leitura dos diários de Levrero, que me capturaram por exprimir algo ligado a uma espécie de implicação e, por essa via, que me parecia capaz de, peculiarmente, intervir em minha experiência e eventualmente transformá-la

II

Nesse ensaio que publiquei e ao qual me referi anteriormente executei uma manobra crítica padrão, examinando algumas implicações de uma conexão entre um trabalho literário e uma proposta teórica: peguei uma formulação “teórica” cujos contornos eu julgava discernir na obra “ficcional” para estabelecer um circuito de retroalimentação interpretativa. Embora certamente me pareça razoável o exame que ali pratiquei, como são razoáveis discussões críticas dessa natureza – ou buscam razoabilidade e, por essa via, poder de persuasão – sigo acossado pela questão de como dirigir o comentário crítico a outras estratégias de exercício que fossem menos pautadas por um funcionamento hermenêutico tradicional e operassem em vias alternativas. Esses textos, afinal, que me atingiam como sendo bastante sui generis, me pareciam ricos justamente na medida de sua convocação a um espaço de leitura específico, ele também algo esquisito e excêntrico. Como traduzir isso em crítica? Malgrado a suposta falência declarada por Levrero, no interior dos próprios livros, várias vezes, com relação a seu projeto, atesto uma certa ordem de sucesso, que gostaria de tornar visível no trabalho crítico. Pois, se o narrador dos diários de Levrero – em particular o de La novela luminosa – não se transformou o suficiente a ponto de recuperar o acesso à versão específica de disponibilidade existencial que ele chama de “luminosa”, algo dessa perseguição se depositou em mim – não como solução ou resposta, mas como continuidade do problema da construção de uma disponibilidade moral particular, ou de uma forma específica da atenção, forjada em ressonância a uma prática de escrita de muito baixo teor de protagonismo na cultura, bastante débil enquanto argumento, quase delirante em suas hipóteses de fundo a respeito de fluxos causais.

Acredito estar aqui diante de um problema facilmente localizável na, digamos, lógica da recepção de Levrero. Se há uma provocação em sua literatura marcadamente manifesta nesses “diários”, repousa na invenção de um artifício, marcada por uma espécie de oscilação e liminaridade. Trata-se de algo que “é diário, mas…”, “é autobiografia, mas…”, “é autoficção, mas…”: as opções classificatórias genéricas parecem ser solicitadas para falhar e, ao falhar, reconduzem a uma instabilidade da leitura que por sua vez parece isomórfica a certa instabilidade existencial do personagem narrador desses textos. Trata-se, diria, de uma manifestação do literário que é igualmente oscilante, liminar. E essa manifestação talvez implique, ou constitua, uma disponibilidade que ressoa com essa forma, engendrando um estado também oscilante, liminar, de entreabertura em quem lê. Dito de outra maneira: acredito que sem o espaço de manobra para certa medida de identificação com Levrero e sua forma crepuscular, podemos manusear seus textos num circuito hermenêutico bem estruturado, mas nos apartamos de uma surpresa e descoberta nele que é, em certa medida, antes recuperação e reconhecimento que contato efetivo com o “novo”. Apreciar esses textos de Levrero é se sentir convocado por eles: se sentir convocado por eles solicita uma disposição afetiva particular que, se acontece, deposita o crítico nessa zona, de interesse evidente e argumento titubeante, que acho que eu mesmo ocupei antes e que estou tentando examinar aqui. Ao mesmo tempo, se abrir para explorar essa experiência no texto crítico implicaria forjar o que Barthes (2005b) chamava de uma forma justa de dizer “eu”, e percorrer uma rota de construção da crítica em termos ao mesmo tempo afins a um relato autobiográfico de “escrita da leitura” e a uma exploração que dê sentido ao punctum sem transformá-lo em studium (para seguir nas emulações barthesianas). Seria, afinal, escrever uma crítica dos textos finais de Levrero assumindo um desejo que me parece aludido em parte da recepção: o de ser íntimo desses escritos. Problemático como seja, a questão seria a de encontrar formas de articulação e argumentação que, nessa celebração de intimidade, reconhecesse suas tensões, articulando-se como “um conhecimento disposto a se perder antes de perder o desejo do estranho que essa experiência lhe transmitiu em sua origem”, como diz Giordano (1999, 12-13).

Observo que Barthes vem aparecendo aqui e ali, e não é à toa. O que estou pensando como alternativa para a construção de um discurso crítico dirigido à obra de Levrero que fosse menos hermeneuticamente orientado deve muito a convocações que ouvi esboçadas por Barthes. Aparece com força em sua sugestão (em particular em Barthes 2005a) de uma crítica patética, uma crítica que partisse de elementos afetivos e que ele delineia, às vezes em discurso programático, sugerido como uma poética possível para a crítica, e às vezes como um jeito de produzir discurso sobre literatura, que demonstra em execução de que se trata. Assim me parece ser seu ensaio final sobre Proust, “Durante muito tempo fui dormir cedo” (2004), que começa com uma digressão sobre o sentido possível para um título alternativo, pensado mas descartado, que seria “Proust e eu”. Barthes (2004, 348) comenta que “ao dispor numa mesma linha Proust e eu, não significa de modo algum que me comparo com o grande escritor, mas, de um modo inteiramente diferente, que me identifico com ele: confusão de prática, não de valor”. E, comentando nosso hábito de rechaçar a identificação como elemento sequer viável à apreciação crítica, sugere que “talvez seja finalmente no âmago dessa subjetividade, dessa intimidade mesma de que estive falando com vocês, talvez seja no cume do meu particular que sou científico sem o saber” (2004, 363).

Com isso em mente, me ocorreu que o que julgava falho no ensaio que escrevi passava por minha própria estratégia de, dando uns pulinhos de uma para outra pedra de hábito discursivo, evadir o núcleo de identificação que me conduzia e reconduzia à leitura desses textos. Residia aí também, em algo em torno dessa questão da identificação, a razão da perplexidade que me tomava quando um ou outro amigo ou conhecido, tendo lido os mesmos textos, manifestava uma predominância de enfado, certo descaso, ou mesmo desprezo. Como é possível, pensava eu, não viver o que vivi lendo isso? Se tratava o tempo todo, agora penso, de identificação, de variantes da articulação “Levrero e eu” – mas como tratar disso criticamente?

A partir desse ângulo de observação, ao frequentar outros que escreveram sobre Levrero comecei a acreditar que estava diante de alternativas de evitação do mesmo problema, de gradações da crítica em termos de evitação de comprometimento de sua candidatura ao saber por força de seu compromisso com o idiossincrático manifesto na identificação com o autor. Por um lado, para nossa tradição discursiva mais robusta, falar de si mesmo, articular a subjetividade em crítica, cheira a impressionismo e, na medida em que certo manejo do comentário literário atravessado por pressupostos mais ou menos vinculados ao New Criticism se estabeleceu como episteme nos estudos literários, passa como algo a ser evitado. Por outro, e justamente pela força de doxa que essa tradição representa, o que se abre como brecha para a situação do discurso e seu produtor hoje é feito pela conexão com o laço identitário – e nesses casos o que se aloja como identitário está fora do que seria arbitrado pelo pessoal e pelo íntimo. De um jeito ou de outro, me parece que estamos ainda perplexos, em termos de produção de crítica, quando se trata de explorar e expor como se constrói uma relação de identificação com o que se leu. Há uma zona que articula os elementos que, em Barthes, se denominam de crítica patética, passa por um exame talvez mais concentrado da questão da identificação como problema para a própria produção de crítica que, creio, tende ao silenciamento. Ao se ver em alguma medida refletido no que lê, o crítico hesita, titubeia, vacila – eventualmente, sequer se dá conta de que é disso que se trata. E via de regra é assumido o rechaço como um fato: fazer crítica implica, para muitos ainda, lançar para longe essa dimensão da leitura.

III

Vou me concentrar em dois casos, salientando o que neles estou supondo como um problema afinado ao meu, ou seja: quero saber como, diante de uma solicitação advinda da leitura de Levrero, quem deseja comentar sua literatura vacila. O núcleo da vacilação é uma zona de interdições que esses comentadores impõem a si mesmos, evitando o enfrentamento com um núcleo de tensões que, ao conduzir a algum tratamento do problema da identificação, magnificaria sua implicação – histórica, situada, pessoal, íntima – na fatura crítica. Dito assim parece muito genérico e idealizado, mas acredito que no exame de cada caso a coisa ganhe mais clareza.

Começo por Adriana Astutti, e seu “Escribir para después: Mario Levrero” (2013), versão revisada de ensaio anterior, “Ejercícios de caligrafia” (2008), ensaios nos quais Astutti cuida de retraçar uma cronologia/histórico dos textos que desembocam (“culmina” parece algo equivocado aqui: não se trata de arrogar um telos ao que Levrero está fazendo) em La novela luminosa, propondo uma descrição bastante meticulosa do que poderíamos chamar de “arquitetura geral do Levrero final”: o conjunto de textos que é disparado pela Novela Luminosa, o projeto desencadeado nos anos 80 e que, como uma locomotiva, puxa a produção dos demais textos, todos ancorados na suposição de que sua fatura é criação de condições de possibilidade para que aquele texto inicial encontre sua conclusão. A conclusão virá, sabemos – não virá o que se pensou que ela seria, mas virá, haverá epílogo, o livro enfim ganha existência e não como obra inconclusa ou abandonada. É também algo que se assemelha à cobra que engole a própria cauda: o que está como disparador inicial do projeto está também ao final, numa espécie de sabotagem da própria ideia de que seria possível alguma forma de retorno à “origem”.

Astutti diz que “é como se toda essa obra final, e principalmente a forma retrospectiva, de avanços e retrocessos, de projetos e correções, nas quais o autor a dispõe (e mesmo seu caráter de resto, de obra que sobrevive) tivesse sido escrita, ou nos fosse dada a ler, sob a marca de uma interrupção” (2013, 204-205). E, num ensaio que quase nada guarda de pessoalidade da leitura, explicitada sob a forma de alguma descrição de impacto ou afetação de cunho autobiográfico, aparece uma peculiaridade da reescrita que chama a atenção: não aparece na versão de 2008, e se destaca na versão de 2013. Refiro-me à introdução de várias entradas que, ao concluir uma subdivisão do ensaio, dizem Y sin embargo… (206), Y sin embargoY sin embargo… (213), Sin embargoSin embargoTalvez debamos intentar un nuevo comienzo (217). Leio aqui, além do que poderia ser considerado um lance no arsenal retórico ordinário, uma ênfase na própria característica de interrupção e retorno que Astutti reconhece na obra, como se ela se inclinasse a percorrer os textos com intento exegético e, no mesmo movimento em que aplica com rigor seu instrumental crítico, reconhecesse a maneira como constrangem a leitura que ela mesma realizou e se voltasse para o imperativo de declarar a abertura de uma fresta, de um reconhecimento de certa insuficiência, ressalvando e interrompendo assim a lógica com a qual encaminhava o comentário até então. É como um título de filme do cineasta japonês Yasujiro Ozu: Eu vivi, mas…: Astutti parece estar dizendo Eu li isso assim, mas…

Essa entrada de certa hesitação, de certo titubeio que inspira o desejo de recomeço do argumento: ela me parece aqui funcionar como um modesto artifício facilitador de entrada de um elemento patético na crítica, que aí se confessa insatisfeita consigo mesma, ciente da investida limitada e limitadora que acabou de cometer, e desejosa de dizer mais (ou melhor). Astutti nunca se franqueia o direito à entrada aberta no autobiográfico, e salvo nesses momentos, na verdade bastante tímidos, não há o que apareça como “escrita de si” em seu ensaio. Tanto melhor para lhe conferir o devido destaque dramático: a crítica reencena seu início, recusando para si o fechamento, procrastinando a resolução do argumento e se esforçando para mantê-lo em alguma medida irresoluto. Assim, a crítica guarda algum isomorfismo com relação à obra comentada: é também “escrever para depois”, é também investir em um escrever sabendo que, como disse Chejfec (2013, 200), “a profundidade, se existe, aparece depois”.

Essa resistência ganha mais vivacidade ainda em Sandra Contreras, e caberia um exame mais meticuloso do processo como se constrói seu “Levrero com Barthes, indagaciones novelescas”. No que posso levar em consideração aqui, chamo a atenção para o início do ensaio, o movimento de abertura, no qual Contreras (2016, 1) é franca na assunção de que é apenas esse Levrero final o que “me interessa, me interpela”. Há fundo polêmico relativamente fácil nessa afirmação, na medida de sua articulação como manobra crítica: não se trata de dar conta de uma totalidade de obra, mas de um conjunto de textos, de um projeto específico, de um momento da trajetória de um autor. Outros, perseguidores de totalização, que corram atrás de seus próprios fantasmas: eu quero me haver é com esses textos aqui, e fim de papo. Ao mesmo tempo, as noções de interesse e interpelação são associadas: são sinônimas? Conduzem a núcleos distintos de aproveitamento? Talvez fosse o caso de recuperar e aprofundar essas distinções, e contrastá-las com a questão da identificação. Deixando isso de lado no momento, o que fica é a assertiva, clara, de um horizonte de desejo como justificação de um projeto crítico.

Curiosamente, essa abertura é quase que imediatamente sedada por uma problematização construída pelo imperativo de “converter esse interesse (meu) em algo interessante (para alguém)” (Contreras, 2016, 1). Não é isso, sempre, parte do problema, me pergunto – e, nesse sentido, algo que se invisibiliza enquanto problema mesmo, uma vez que está sempre presente, dado, na articulação do discurso crítico. Dito de outra maneira, estamos aí diante de uma estrutura padrão do funcionamento contemporâneo da crítica, justificadora de vários procedimentos que passam sem discussão justamente por estarem se dedicando a produzir a transferência da moeda-interesse de uma zona próxima e própria (a da experiência do crítico) para outra a princípio distante e algo alheada (a da comunidade de interessados potenciais). Tendo lido, o crítico dedica tempo e atenção ao que leu: arregimenta e organiza seu cotidiano para articular o lido em um projeto de disseminação que, se funciona, dispara interesse.

Como creio estar claro, estamos então diante de um primeiro lance que abre o flanco da crítica para uma dimensão idiossincrática e uma inclinação autobiográfica. Mas estamos também trafegando em ambivalências e titubeios: se aparece, como disse, um segundo lance que reduz a assertividade do primeiro, logo chama um arremate que mantém a presença da primeira pessoa da crítica quando Contreras (2016, 1) diz que (e cito agora o trecho por completo)

outra dificuldade que se me apresenta para converter esse interesse (meu) em algo interessante (para alguém) é o pouco que tenho a dizer sobre o romance, a não ser algo da ordem do comentário. […] Em meu caso, uma primeira ideia foi intitular o (im)provável trabalho, e antes mesmo de sequer tê-lo esboçado, de A Identificação, tamanho era o efeito de reconhecimento – o efeito, inclusive, terapêutico – que me produziam certos momentos, determinados tópicos, do romance.

“A identificação”: acaso não seria essa a versão Contreras de um “Levrero e eu”? Entretanto como fazer isso – como construir a própria ocasião para que isso aconteça – sem abrir a possibilidade de que o texto da crítica seja algo “da ordem do comentário”? Com a exigência da teoria na entrada, e com uma concepção especificada de teoria, e de produção crítica, avessa e antagônica ao que saia do escopo de uma certa visão do analítico, a identificação se invisibiliza (e, com ela, “o efeito de reconhecimento… inclusive terapêutico”) no momento mesmo em que é registrada. A partir desse momento, se silencia o histórico e particular do “interesse” e da “interpelação”, e o ensaio busca outros recursos que garantam precisamente sua saída da identificação rumo ao distanciamento crítico.

É essa a única possibilidade franqueada ao crítico? Quero crer que não, em particular por ouvir em Contreras a alusão a particularidades de leitura claras para mim também, e que parecem recorrentes em certos aproveitamentos da produção final de Levrero. Por exemplo, o usufruto terapêutico – o que quer que isso queira dizer, já vimos alusões ao tema em Laddaga, com muita força, desde seus primeiros aproveitamentos de Levrero, esboçados em seu Estética de Laboratório (2010); a questão emerge em Chejfec (2013) também. O que estamos chamando de terapêutico, ou da ordem da terapia, aqui?

O cerne de uma distinção estaria, então, em uma aposta que, se não é “aposta hermenêutica”, talvez ainda tenha alguma validade enquanto produtora de trabalho crítico, e que residiria em acolher os problemas advindos de uma leitura identificada. Uma crítica que, em vez de dar as costas ao problema do que acontece comigo ao ler esse autor que tantas vezes é mencionado como alguém que oferece “cura” a quem lê, aborde esse pathos particular e, aí, descubra alguma força. Recuperando Barthes (2004, 359), “para quem escreve, para quem escolheu escrever, não pode haver “vida nova”, parece-me, que não seja a descoberta de uma nova prática de escrita”. Uma nova prática de escrita: talvez como essa, que parece ter sido buscada por Levrero, quem sabe realizada por ele, e com relação à qual a investida crítica ainda parece se comportar tão timidamente.

Referências Bibliográficas

Astutti, Adriana. “Ejercícios de caligrafía: Mario Levrero”. In: Boletin del Centro de Estudios de Teoría y Crítica Literaria, 13-14, 2008.

Astutti, Adriana. “Escribir para después: Mario Levrero”. In: De Rosso, Ezequiel. (org.) La máquina de pensar em Mario: ensayos sobre la obra de Levrero. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2013, 201-222.

Barthes, Roland. “Durante muito tempo fui dormir cedo”. In: Barthes, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, 283-294.

Barthes, Roland. A preparação do romance. São Paulo: Martins Fontes, 2005a. 1 v.

Barthes, Roland. A preparação do romance. São Paulo: Martins Fontes, 2005b. 2 v.

Barthes, Roland. Como viver junto. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Chejfec, Sergio. “Lápices y angustias”. In: De Rosso, Ezequiel. (org.) La máquina de pensar em Mario: ensayos sobre la obra de Levrero. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2013, 191-200.

Sandra Contreras, “Levrero con Barthes, indagaciones novelescas”. In: Cuadernos LIRICO, 14, 2016. Acesso em: 26 out. 2018.

De Rosso, Ezequiel. (org.) La máquina de pensar em Mario: ensayos sobre la obra de Levrero. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2013

Laddaga, Reinaldo. “Un autor visita su casa: sobre La novela luminosa, de Mario Levrero”. In: De Rosso, Ezequiel. (org.). La máquina de pensar em Mario: ensayos sobre la obra de Levrero. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2013, 223-235.

Levrero, Mario. Diario de un canalla – Burdeos, 1972. Buenos Aires: Mondadori, 2013.

Levrero, Mario. El discurso vacío. Barcelona: Debolsillo, 2009.

Levrero, Mario.La novela luminosa. Montevideo: Alfaguara, 2005.

Ngai, Sianne. Our aesthetic categories: zany, cute, interesting. Cambridge: Harvard UP, 2012.



Buscar:
Ir a la Página
IR
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por