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Saindo da ficção: narrativas não literárias
Luciene Azevedo
Luciene Azevedo
Saindo da ficção: narrativas não literárias
Leaving fiction: non-literary narratives
Revista Caracol, núm. 17, pp. 329-345, 2019
Universidade de São Paulo
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Resumo: Considerando brevemente o momento inaugural do gênero romanesco e o hibridismo de formas contemporâneas que acolhem gêneros não literários como matéria prima das narrativas (ensaio, diário e anotações), este artigo tem como objetivo investigar a ideia do romance sem ficção, nomenclatura presente em muitas das publicações literárias recentes (De Ville, 2014; Cercas, 2014), para refletir sobre a dissociação entre a ideia moderna de literatura e o conceito de ficção. Realizando um breve comentário sobre El material humano de Rodrigo Rey Rosa (2009), a reflexão quer explorar a relação entre o uso da primeira pessoa (cuja voz é confundida com o próprio autor) e a forma de construção da narrativa que mais parece um conjunto de anotações ou rascunho para uma produção futura, a fim de testar a hipótese de que a invasão atual das narrativas pela não-literatura supõe uma cena de escrita em que se expõe processualmente tanto o sujeito que se conta quanto a fatura da elaboração do que se narra, provocando, assim, uma mudança no estatuto do que hoje entendemos por literário.

Palavras-chave:Romance sem ficçãoRomance sem ficção,FicçãoFicção,AnotaçãoAnotação.

Abstract: Briefly considering the inaugural moment of the novel as a genre and the hybridism of contemporary forms that accept non-literary genres as raw material for their narratives (essays, diaries and notes), this essay aims to investigate the idea of the “non-fiction novel”, a labelling device present in many recent publications, in order to reflect on the dissociation between the modern idea of literature and the concept of fiction. In a brief commentary on Rodrigo Rey Rosa's El Material Humano, this essay explores the relationship between the use of the first person narrative (one whose voice is mixed with that of the author) and the construction form of the narrative, which seems to be a set of notes, or a draft, for a future production. My purpose here is to test the hypothesis that the current invasion of narratives by non-literature presupposes a writing scenario in which both the subject that tells the story and the inventory elaboration of what is narrated are exposed processually, thus provoking a change in the status of what we currently understand by literary.

Keywords: Non-fiction novel, Fiction, Annotation.

Carátula del artículo

DOSSIÊ (INTERFERÊNCIAS)

Saindo da ficção: narrativas não literárias

Leaving fiction: non-literary narratives

Luciene Azevedo
Universidade Federal da Bahia, Brasil
Revista Caracol, núm. 17, pp. 329-345, 2019
Universidade de São Paulo

Recepção: 16 Outubro 2018

Aprovação: 17 Novembro 2018

Ninguém sabe se expressar inteiramente por meio da arte”, disse alguém; eu acrescento: nem pela realidade.

(Rey Rosa)

No ensaio publicado na coletânea organizada por Franco Moretti, que reúne textos sobre o gênero romance, Catherine Gallagher (2009, 629) afirma que nunca demos muita importância teórica ao estudo da ficção como conceito e que essa indiferença foi agravada pela “radical expansão das fronteiras, operada pelos pós-estruturalistas”. Mas talvez pudéssemos repensar o lugar e o modo de funcionamento da ficção hoje começando exatamente pelo modo como a literatura se expande na direção de outras formas de narração, em especial daquelas que flertam com o documento (histórico e/ou etnográfico) e quase sempre se constituem a partir de uma voz em primeira pessoa que se conta e que expõe ao leitor o processo de escrever o que vamos lendo. Talvez, então, o hibridismo da ficção com formas não ficcionais, muito presente nas produções contemporâneas, possa indicar também um modo de revisão do que entendemos como ficcional.

E se, como aponta a estudiosa, o estudo teórico sobre a ficção como um conceito tem sido alavancado nos últimos anos, talvez possamos atribuir esse incremento aos próprios romancistas que experimentando com a forma narrativa desafiam os leitores a se perguntarem se o que estão lendo ainda é ficção. Se concordamos com Gallagher (2009, 630) quando afirma que “entre o novel [a forma moderna do romance que surge no século XVIII] e a ficção há uma conexão histórica íntima”, podemos especular se e como as narrativas do presente nos desafiam a reinventar tal conexão e a partir de que procedimentos.

Ao se deter no momento inaugural do gênero, Gallagher (2009, 630) chama a atenção para o fato de que a ficção associada ao romance é sempre paradoxal, pois para afirmar-se como diferente do puro romanesco ou da mera fantasia das narrativas dos séculos anteriores precisou “mascarar a própria ficcionalidade com a verossimilhança e o realismo […] apresentando frequentes pretensões de veracidade”. Se pensamos na produção de Daniel Defoe ou mesmo na ginga de Machado de Assis ao recorrer “às crônicas de Itaguaí” para tratar do delirante alienista, reconhecemos aí uma insistente tradição que lança mão da tópica do manuscrito encontrado ou do flerte com o registro não ficcional, seja na forma diarística de Crusoé ou no apelo ao registro documental que asseguraria ao leitor a confiabilidade do que lhe é narrado. Nisso consiste a ambivalência de um gênero que quer afirmar seu estatuto imaginário recorrendo aos “limites do crível”, como afirma Gallagher, para sua validação discursiva.

Gostaria de recuperar então essa ambivalência nascida com o próprio gênero para analisar o modo como algumas narrativas produzidas hoje reiteram o hibridismo dispondo-se a problematizar a velha tensão entre a dimensão imaginária, inventiva, e o estatuto documental apostando em um ato de fingir muito singular.

Nesse sentido, ao conjecturar que o romance pode estar saindo da ficção, quero sugerir que talvez seja possível pensar em outras condições históricas de recepção para o discurso literário no presente, que colocam em xeque não a associação entre a ficção e o romance, mas o modo como essa associação se dá, ou melhor, que tenta questionar a própria estabilidade hermenêutica alcançada pelo estatuto ficcional no século XIX, estabilidade que é responsável por distinguir a ficção da mera mentira ou da própria realidade e por reconhecer nela um discurso que “suspende, desvia ou mesmo segrega qualquer exigência de veracidade em relação ao mundo da experiência ordinária (Gallagher, 2009, 632). A meu ver, esse deslocamento está posto como problema em muitas narrativas contemporâneas e os romancistas são os maiores provocadores a respeito da dúvida que paira sobre o estatuto de ficcionalidade de muitas produções hoje.

Se no momento inaugural do romance prevalecia o paradoxo de a legitimidade epistemológica da ficção firmar-se pelo apelo à veracidade, as produções de séculos posteriores encarregaram-se de tornar absolutamente normal o “efeito de realidade” produzido por narrativas verossímeis que eram acolhidas pelos leitores como totalmente imaginárias. Mas hoje parece que essa estabilidade é novamente desacomodada por investimentos narrativos que expõem ao leitor uma insatisfação com fronteiras estabelecidas por uma convencionalidade firmada ao longo do século XIX, mas que parece vacilar no século XXI. A melhor evidência disso está no investimento na indistinção dos papéis do autor, do narrador e do personagem, mas também no hibridismo formal de narrativas que se parecem com anotações, rascunhos de preparação de uma narrativa, entradas diarísticas e que muitas vezes tratam de documentos, de personagens ou episódios históricos escrutinados por uma voz narrativa tateante cujo gesto de escrita questiona as fronteiras entre o real e o ficcional, entre o verídico e o verossímil, que dá de ombros à ficção, mas também não quer aferrar-se à transparência da prova documental e é aí nesse difícil e instável equilíbrio que surge uma outra coisa, uma nova forma.

Segundo o argumento de Gallagher (2009, 634), quando a ficção surge e é reconhecida por sua despretensão pela verdade, é necessário também legitimá-la conceitualmente para marcar a própria especificidade. Partindo da validade desse raciocínio, poderíamos pensar que, se a ficção não se contenta mais com a “despretensão pela verdade” ou pela elaboração autônoma da verossimilhança como coerência narrativa interna, é porque quer sair de si, expandir-se na direção de outras formas, reelaborando seu papel em meio a outros discursos.

Em um momento em que os mais banais discursos cotidianos expõem os limites cada vez mais indiscerníveis entre a ficção, a mentira e a verdade, qual o lugar do romance, da própria literatura, caracterizados na modernidade por seu estatuto de ficcionalidade?

“A realidade está continuamente superando nossos talentos, e a cultura lança figuras quase diariamente que causam inveja em qualquer romancista”, afirmava Philip Roth (1969, 144), já na década de 1960.

Hoje, os romancistas parecem dispostos a assumir uma postura investigativa, escrutinadora a respeito do papel da ficção em seus textos, fazendo de suas narrativas verdadeiros laboratórios de experimentação por se mostrarem insatisfeitos com o estatuto da ficcionalidade firmado ao longo dos séculos XIX e XX, seja porque a realidade parece invasiva, sugerindo ser constituída e justificada por verossimilhanças de forma mais notável do que na própria ficção, seja porque não se trata mais de construir personagens cuja existência tem validade apenas no universo narrado e que não se referem a ninguém em particular, como Gallagher (2009, 635) afirma ser a grande preocupação de Defoe ou Fielding que afirmava que não pretendia “descrev[er] homens, mas costumes; não indivíduos, mas espécies”. Em uma era em que as redes sociais tornam possível que cada um seja personagem de si mesmo, estimulando o “design de si”, para usar a expressão de Boris Groys (2014), as narrativas parecem casar cada vez mais o interesse pelo mundo externo e a construção autopoética de seu próprio Eu.

Pensemos, por exemplo, nos dois últimos romances de Javier Cercas, em que o autor elege como protagonistas Enric Marco, personagem histórico e polêmico de O impostor (2015), e Manuel Mena de El monarca de las sombras (2017), tio do autor. Nos dois casos, a reconstrução biográfica dos personagens minuciosamente empreendida na narrativa está atrelada à história política da própria Espanha. O narrador, que em O impostor é nomeado como Javier Cercas, e também reaparece no último romance em terceira pessoa, expõe, quase à maneira de uma conversa mantida com o leitor, as dúvidas sobre o empreendimento de escrita, suas opiniões e reações à vida dos personagens, o empenho investigativo para trazer à tona histórias que não foram contadas.

Assim como parece ter sido importante para a afirmação do novel afastar-se pouco a pouco da exigência de referencialidade, da proximidade com a veracidade, buscando “novas técnicas de não referencialidade, como observa Gallagher, para o romancista contemporâneo é importante arriscar-se a outras técnicas de referencialidade para continuar fazendo ficção, o que também pode significar uma mudança da própria ideia do que é manejar a ficcionalidade. Essa mudança, porém, mantém um padrão reiterativo em relação ao momento de afirmação do discurso ficcional. Se, de acordo com Gallagher (2009, 640), no século XVII, o novel buscava “distinguir-se das narrações plausíveis com referentes reais” e não do modelo romanesco fantasioso da idade média, podemos pensar que hoje também os romancistas não querem se opor ou negar o entendimento do ficcional tal como elaborado modernamente, mas se dispõem a redimensionar as fronteiras entre o verossímil e o verdadeiro, entre a ficção e o real, entre a narrativa ficcional e a histórica, entre a invenção e o documento, querem reinventar o universo discursivo ficcional. Por isso, talvez, seja tão importante confrontar o realismo do século XIX, cunhado pela distância objetiva do narrador, com o relato pessoal da vida ordinária do escritor, do manejo atabalhoado de uma massa de documentos com a própria natureza do ficcional, entendido como um ato de fingir e inventar, pois o leitor que se depara com uma narrativa desse tipo é obrigado a contrariar uma expectativa fundamental à leitura de romances que sugere que “diante do estatuto cognitivo das representações de um romance, apenas podemos dizer que ‘simplesmente não as julgamos reais’” (Gallagher, 2009, 643).

Nos livros de Cercas (mas não apenas, pois poderia mencionar ainda os “romance sem ficção” de Patrick De Ville), a última coisa que passa pela cabeça do leitor quando precisa tomar uma decisão de leitura diante da narrativa é a ideia de simplicidade, pois a própria voz narrativa se encarrega de delinear a perplexidade diante das inverossimilhanças comprovadas documentalmente por intensa investigação. Como aceitar como resolução de leitura desses textos, a “impossibilidade de acreditar na realidade daquilo que é representado” (Gallagher, 2009, 643), postura adequada de um leitor experiente diante da ficção, pelo menos até bem pouco tempo atrás, se encontramos no universo narrativo o próprio nome do autor, o relato das agruras no embate com a escrita da mesma obra que lemos, a rotina ordinária de uma vida ao lado do que mais parecem anotações para uma obra futura?

O impasse representa talvez o maior desafio diante dessas formas narrativas que não são exatamente ficções, não no sentido que estávamos acostumados a ler o que chamávamos de ficção, e que continuam a despertar nosso interesse, talvez, exatamente por esse motivo.

Para tentar concretizar melhor essas especulações, gostaria de comentar um pouco mais detidamente o livro do escritor guatemalteco Rodrigo Rey Rosa, publicado em 2009, El material humano.

Observando o índice, percebemos que o autor intencionalmente quer sugerir ao leitor um inacabamento, criando um “efeito de realidade” ao indicar que os capítulos são na verdade o conteúdo dos cadernos em que anotava as observações para um projeto de livro. E que livro seria esse? O acontecimento disparador do interesse do autor é a “descoberta” de um depósito de propriedade da Polícia Nacional da Guatemala que guardava aproximadamente 80 milhões de documentos policiais relativos a mais de um século da história política do país. Durante a leitura, o leitor se depara com anotações que formam um labirinto com muitas entradas: a vida pessoal do escritor, a exposição dos andaimes de construção narrativa por meio das anotações sobre o contato com os documentos do Arquivo, cópia de trechos de cartas, diários, radiogramas, e-mails e reportagens que expõem a permeabilidade da violência na política, na história, no dia a dia do país.

Todo o relato da descoberta dos documentos parece inverossímil: após uma série de explosões nas dependências do exército, próximo do local onde os documentos estavam armazenados, o material foi localizado por acaso, depois de ter a existência negada oficialmente pelo governo durante anos. Apesar do estado de abandono do lugar e da deterioração de muitos documentos, um setor em particular do imenso arquivo, conhecido como Gabinete de Identificação, manteve-se praticamente intocável. Esses documentos guardavam informações sobre presos políticos que “cobriam um amplo arco temporal e já haviam sido inteiramente catalogados” (Rey Rosa, 2011, 13) e foram preservados graças à ação do próprio tempo que se encarregou de protegê-los: “pouco depois da estação das chuvas, com a estiagem, a superfície do montículo, onde já crescia capim, rachou-se levemente, e alguém viu que debaixo da terra havia papéis, cartões, fotografias” (Rey Rosa, 2011, 13).

O narrador afirma que seu interesse pelo Arquivo vinha da implausibilidade das circunstâncias de descoberta do arquivo, de sua sobrevivência e das dificuldades que o manejo de um volume tão grande de informações impunha àquele que se aventurasse a penetrar no caótico labirinto da história. Ou, como sugere o próprio Rey Rosa em entrevista, é “como se a ficção se apresentasse como um readymade(Goldman, 2013). O processo da escrita do livro, então, tal como caracterizado pelo narrador, oferece a errância como solução para o que parece imanejável: “como costumo fazer quando não tenho nada para escrever, na verdade nada a dizer, preenchi nesses dias uma série de cadernos, cadernetas e folhas soltas com meras impressões e observações” (Rey Rosa, 2011, 14)

Assim, ao assumir a anotação do processo de escrita como forma narrativa, o narrador quer enfrentar a estupefação causada por uma realidade que mais parece romanesca, motivada por imbróglios e peripécias que nem sempre são considerados verossímeis ficcionalmente. Vencido de antemão por uma veracidade incrível, o narrador abre mão da ficção, abrindo mão da tarefa de tornar romanceável o que escreve. Sem dizer, o livro parece oferecer a possibilidade de questionar o entendimento da própria matéria do que constitui a ficcionalidade romanesca ou ao menos é o que sugere a leitura da epígrafe da obra que, ao afirmar que “embora não pareça, embora não queria parecer, está é uma obra de ficção”, faz com que a forma anotada do processo, que coloca em cena o próprio autor e a deambulação investigativa pelos documentos do Arquivo, exponha o paradoxo de algo que quer e ao mesmo tempo não quer parecer ficção.

Lá pela metade do relato, ficamos sabendo que o pai do narrador atribui ao interesse do filho pelo material encontrado no Gabinete de Identificação uma espécie de degeneração (Rey Rosa, 2011, 87). Sem que se explique exatamente o que o comentário paterno significa, podemos entender que o confronto com o documento histórico, com a realidade violenta do país e suas inverossimilhanças leva o autor a negar inclusive o próprio modo de construir suas ficções (aclamadas pela crítica por incorporar a dicção do romance policial sem se render às convencionalidades do gênero), para experimentar expandir as fronteiras do romance, para redimensionar aquela “conexão histórica íntima” que o gênero mantém com a ficção, como observou Gallagher.

Esse paradoxo de um romance sem ficção ou de uma ficção não ficcional é expandido ao longo da leitura, pois acompanhamos, à maneira de um diário, as anotações feitas pelo narrador durante as visitas feitas ao Arquivo e o registro das “fichas mais chamativas ou bizarras”, como as classifica o narrador (Rey Rosa, 2011, 17). Assim, o diário do processo anota, à maneira cumulativa dos feminicídios em Bolaño, o conteúdo das fichas manipuladas pelo narrador que descrevem nome, data de nascimento, profissão e motivo da prisão: “Aguilar Elías Léon. Nasce em 1921. Moreno, magro, cabelo preto liso; polegar do pé direito: falta metade do dedo. Fichado em 1948 por criticar o Supremo Governo da Revolução. Em 1955, por tendências pró-comunistas” (Ibid., 21). Os nomes estão organizados por ordem alfabética e separados pelos tipos de crimes cometidos (políticos ou comuns). O gesto mínimo da anotação torna-se eloquente diante da exposição da arbitrariedade e dos motivos esdrúxulos alegados para o fichamento dos detidos que vão da simples ausência de motivo oficial declarado aos mais bizarros atos: Pablo Ingenieros Fernández é detido “por ofender a bandeira nacional”, Jorge Ochoa Santizo é preso sob a acusação de que “vive com a senhora sua mãe, uma puta”, sobre Marta Pineda, registra-se que é “mulher insuportável e insolente. Vive sozinha” (Ibid., 24, 25, 27).

Se as cadernetas parecem dedicadas a registrar o material documental consultado, os cadernos anotam as pequenas ocupações que preenchiam a rotina do narrador: as curiosidades da convivência com o pessoal do arquivo, as leituras que faz no período e as agruras de um relacionamento amoroso conturbado (Ibid., 43).

Se as anotações parecem propor um outro modo de elaborar a ficção, isso não significa aderir à letra do documento, pois se é verdade que El material humano nos oferece as fichas completas de alguns presos políticos e um mapeamento da conturbada história política da Guatemala, nada disso parece assumir a denúncia como mote ou optar pela simplicidade transparente da dicção propedêutica, pois o que parece ser realçado é a dificuldade mesma de encontrar terrenos estáveis, seja na ficção ou no material histórico, capazes de indicar uma única via de entendimento. O que o narrador parece propor é que a compreensão implica caminhos labirínticos e uma possibilidade de não se perder reside no acolhimento do que parece banal, do que se revela na convivialidade cotidiana. Assim, se a violência se revela brutal e inumana no registro asséptico das fichas dos detidos políticos por motivos fúteis ou na observação metódica do técnico legista que ao tentar extrair as digitais do preso morto anota que “não me restou outro remédio senão cortar-lhe os dedos, o que considerei mais adequado para tal finalidade” (Ibid., 37), não é menos subliminar nas respostas de conversas diárias entre colegas de trabalho, como o episódio anotado pelo narrador envolvendo duas funcionárias do arquivo, quando uma delas, para marcar sua animosidade em relação à outra quanto ao hábito de mascar chicletes, sugere sua estupidez só sanável com a morte: “Há os que pensam e os que comem chiclete. A outra responde: -Ah, Senhor, ilumina-os ou elimina-os” (Ibid., 51).

Assim, a narrativa parece desenrolar-se não por meio de uma trama encadeada dos acontecimentos, mas por meio da deriva aleatória, que sugere a impressão do fracasso da empreitada, pela qual muitos leitores se deixam levar. “El caso es que se pone a escribir y como la novela ve que no avanza, entre quedadas y encuentros que se van posponiendo(González, 2018). Se meu argumento quer ler a obra de Rey Rosa como exemplo de procedimentos que eludem a forma romanesca para valorizá-la enquanto um experimento que torna possível realizar uma especulação teórica sobre a condição da ficção em algumas narrativas do presente, nem sempre a deriva das linhas narrativas, o hibridismo entre ficção e documento, a opção pelo inacabado, pelo que fica sem solução, é bem recebido pela crítica: “La verdad es que El material humano es una novela abortada, el material preparatorio de una novela que, por falta de habilidad o de trabajo, nunca llegó a desarrollarse como tal” (Moro, 2011). A meu ver, na constatação de que essa obra, e tantas outras narrativas publicadas hoje, não parece ficção (como a própria epígrafe de Rey Rosa assinala) reside a grande interrogação sobre a escrita das formas do romance no contemporâneo.

A justaposição do diário pessoal ao documento histórico, dos nomes inventados aos fatos políticos que marcaram a história recente da Guatemala, das anotações de trechos de leituras realizadas à tênue trama narrativa arma uma indagação silenciosa sobre a forma do próprio relato, sobre as complexidades éticas que envolvem a recuperação do passado e também sobre o papel da ficção entre a ética e a estética. É por isso que a anotação “não sistemática e volúvel da forma de caderno de El material humano, faz mais justiça à complexidade da sociedade do que a coerência forçada da forma narrativa” (Buiza, 2016, 76).

Em diferentes momentos, o leitor se depara com trechos de Voltaire, Gabriel Tarde e Borges em meio à anotação das trivialidades de um dia no Arquivo, sem que a narrativa preocupe-se com estabelecer com fontes tão inusitadas e diversas qualquer laço explicativo, deixando o leitor às voltas com os muitos interstícios do texto, como se desse a ele também, leitor, o tempo de levantar a cabeça, de tirar suas próprias conclusões diante de afirmativas ou perguntas para as quais o narrador não tem a pretensão de oferecer respostas, pois abdica de sua posição como instância mediadora da ordenação de um material que se apresenta e quer se legitimar como informe.

Como é o caso também das anotações oriundas das notícias dos jornais lidos pelo narrador cujo apontamento serve para que o leitor fique a par do conturbado universo em que o relato está imerso: as discussões pró e contra o apoio recebido para manutenção do projeto de recuperação do Arquivo, os desdobramentos do assassinato dos deputados salvadorenhos e o afundamento do terreno na região em que ficam os arquivos. Essas informações aparecem como adendo, como apêndice, reunidas como “folhas anexas” ao conteúdo de cadernos e cadernetas, mas constituem o cerne de tudo o que lemos. É como se o narrador, por meio da anotação, estivesse investigando um modo de transformar os documentos encontrados no Arquivo, as histórias guardadas lá, e a própria história da violência em seu país em “objeto passível de ficção” (Buiza, 2016, 63), mas se sentisse vencido de antemão pela realidade acachapante, desvelada ao leitor por meio das anotações derivadas das leituras feitas pelo narrador, entregando dessa forma a responsabilidade pelas costuras narrativas ao leitor. Ou, como afirma Nanci Buiza (2016, 62), “suas anotações sobre Borges e Voltaire, portanto, não são meras armadilhas de um diletante literário, mas são o meio pelo qual lida com o significado e o propósito do arquivo”.

O narrador folheia textos ao acaso e destaca trechos – “Em política, nem sempre se colhe o que foi semeado” (Cesare Beccaria apud Rey Rosa, 2011, 74) ou “O índio não pode ser cidadão”(Roger de Lyss, 1924 apud Rey Rosa, 2011, 75) – que falam à maneira de um ventríloquo pelo narrador, como é o caso da anotação da leitura de Voltaire, depois de mais uma consulta a um arquivo: “A necessidade de falar, a dificuldade de não ter nada a dizer e o desejo de ter argúcia são três coisas capazes de pôr em ridículo o maior dos homens” (Rey Rosa, 2011, 76). Assim, as anotações de leitura servem como comentário subliminar ao próprio impasse que a elaboração da obra impõe ao escritor.

Comentando a impressão que teve da leitura do romance de um dos personagens fictícios do livro, o narrador afirma ser o melhor livro do autor ao mesmo tempo em que é o pior (Rey Rosa, 2011, 123). O paradoxo se explica porque para ele o autor “tirou a máscara, fala e escreve como pensa” (Ibid., 123), mas revela no relato muita autocomplacência. Será que poderíamos arriscar a dizer que a reunião dos mais diversos materiais (recortes de jornal, reprodução de trechos de cartas, e-mails e documentos históricos) e a opção pela forma do diário, da anotação, da investigação não é uma tentativa de Rey Rosa driblar essa autocomplacência, ao se expor também em primeira pessoa cruzando a interrogação sobre o passado e o presente do país com a história pessoal?

Lido assim El material humano, é possível entender que o falar através de outros, por meio das anotações aparentemente difusas da leitura que o autor vai fazendo ao escrever, é um artifício que responde às lacunas do documento e altera os protocolos de leitura da forma do romance com a mescla do pessoal, do histórico, do político e do literário e que, apresentando-se como uma forma precária que mais se parece a um experimento com a forma do romance, desloca o entendimento que temos da própria ficção, desafiando-nos a imaginar uma outra “disposição discursiva” (Costa Lima, 2010, 48) para o que hoje chamamos de literatura.

Material suplementar
Referências bibliográficas
Buiza, Nanci. “Rodrigo Rey Rosa's: ‘El material humano’ and the labyrinth of postwar Guatemala: on ethics, truth, and justice”. In: A Contra Corriente, 14-1, 2016, 58-79.
Costa Lima, Luiz (org.). Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
Gallagher, Catherine. “Ficção”. In: Moretti, Franco (org.). A cultura do romance. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2009, 629-658.
Goldman, Francisco. “Interview with Rodrigo Rey Rosa”. In: Bomb Magazine, New York, 1º out. 2013. Acesso em 1º abr. 2019.
González, Francisco. “El material humano (Rodrigo Rey Rosa)”. In: Devaneos, 24 maio 2018. Acesso em 1º abr. 2019.
Groys, Boris. Volverse público: las transformaciones del arte en el ágora contemporánea. Buenos Aires: Caja Negra, 2014.
Moro, Alberto Bruzos. “Alberto reseña a Rodrigo Rey Rosa (Guatemala)”. In: El roommate: colectivo de lectores, 16 fev. 2011. Acesso em 1º abr. 2019.
Rey Rosa, Rodrigo. O material humano. Tradução Josely Vianna Baptista. São Paulo: Saraiva, 2011.
Roth, Philip. “Writing American Fiction”. In: Klein, Marcus. (ed.). The american novel since World War II. Greenwich: Fawcett, 1969, 132-145.
Notas
Autor notes
Co-organizou o e-book Autoria e escrita não-criativa (e-galáxia, 2018) e o livro Palavras da Crítica Contemporânea (Paralelo13S, 2017).
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