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Conversa Cortada: A correspondência entre Antonio Candido e Ángel Rama – O esboço de um projeto latino-americano 1960-1983. Candido, Antonio; Rama, Ángel. Trad.: Ernani Ssó. In: Rocca, Pablo (Org.). São Paulo/Rio de Janeiro: Edusp/Ouro sobre Azul, 2018.
Fábio Salem Daie
Fábio Salem Daie
Conversa Cortada: A correspondência entre Antonio Candido e Ángel Rama – O esboço de um projeto latino-americano 1960-1983. Candido, Antonio; Rama, Ángel. Trad.: Ernani Ssó. In: Rocca, Pablo (Org.). São Paulo/Rio de Janeiro: Edusp/Ouro sobre Azul, 2018.
Caracol, núm. 16, pp. 332-339, 2018
Universidade de São Paulo
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Conversa Cortada: A correspondência entre Antonio Candido e Ángel Rama – O esboço de um projeto latino-americano 1960-1983. Candido, Antonio; Rama, Ángel. Trad.: Ernani Ssó. In: Rocca, Pablo (Org.). São Paulo/Rio de Janeiro: Edusp/Ouro sobre Azul, 2018.

Fábio Salem Daie
Universidade de São Paulo, BRASIL
Caracol, núm. 16, pp. 332-339, 2018
Universidade de São Paulo
Candido Antonio, Rama ÁngelSsó ErnaniRocca Pablo. Conversa Cortada: A correspondência entre Antonio Candido e Ángel Rama – O esboço de um projeto latino-americano 1960-1983. 2018. São Paulo/Rio de Janeiro. Edusp/Ouro sobre Azul

Recepção: 04 Setembro 2018

Aprovação: 16 Outubro 2018

“Daqui desta capital, o Brasil é um país que não existe.” Escreve Ángel Rama para Antonio Candido, da cidade de Caracas, em 15 de abril de 1977. “É simplesmente um vago e confuso perigo grande que espreita lá longe” (p.142). A afirmação do crítico uruguaio põe em evidência a relação, que remonta ao período colonial, entre o Brasil e a distante América hispânica. Por sua vez, o recém-publicado Conversa Cortada: A correspondência entre Antonio Candido e Ángel Rama – O esboço de um projeto latino-americano 1960-1983 (São Paulo/Rio de Janeiro: Edusp/Ouro sobre Azul, 2018) dá testemunho do esforço de dois dos maiores intelectuais do subcontinente por superar o desconhecimento mútuo, cujos processos de independência acabaram por perpetuar. Sob essa ótica (da antiga rivalidade entre Brasil e seus vizinhos), o livro constitui também uma narrativa indireta sobre os desafios e os impasses de uma perspectiva latino-americanista que, se tem seus primeiros ideólogos ainda na virada do século XX, difunde-se com mais força no pós-guerra, insuflada em boa medida pela ascensão da nova ordem mundial, o declínio das velhas metrópoles coloniais e o expansionismo norte-americano. Nesse contexto, com as armas ainda quentes da Revolução Cubana vitoriosa, e amparada num processo de aprofundamento democrático que ocorre, simultaneamente, no Brasil e no Uruguai, inicia-se a correspondência entre Candido e Rama (por iniciativa do segundo, vale dizer). Curiosamente, a missiva inaugural não está lá. Dá-se conta dela pela resposta galhofeira: “Meu caro Rama: precisamos ser coerentes com os nossos respectivos hinos nacionais. Sabremos cumplir – diz o uruguaio. Deitado eternamente em berço esplêndido – diz o brasileiro. Por isso estou em falta com você, que me escreveu tão gentilmente há um mês e meio” (p.47). Candido lhe responde ao final de sua estadia de dois anos na Faculdade de Letras de Assis, em 1960, de onde retornará para a USP, agora como professor do departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada.

Este diálogo “cortado” – na adequada qualificação do título – recobra uma dupla ruptura. A primeira, já se sabe, refere-se à prematura morte de Ángel Rama e de sua esposa, a crítica de arte e escritora Marta Traba, num acidente aéreo em 1983, incidente que rompe, abruptamente, com o rico intercâmbio de ideias e com a amizade estabelecida. A segunda ruptura diz respeito à descontinuidade das cartas, devida tanto à dificuldade para reunir o material (Pablo Rocca, o organizador, chama a atenção para o caráter fragmentário da correspondência) quanto aos obstáculos encontrados pelos autores para manterem contato ao longo dos anos. Não faltam imprecações e sarcasmo no que se refere ao incerto destino das missivas quando submetidas ao sistema de correio desse ou daquele país. “Me encomendo aos deuses do Correio, tão inseguros e displicentes com os mortais”, diz Rama, em outubro de 1967 (p.54). Em julho de 1975, apela ao universo ficcional: “Suspeito que a caixa postal da universidade [de São Paulo] é o arremedo da Torre de Babel borgiana. Volto a escrever para o seu endereço, encomendando a carta a Mercúrio” (p.98). As tiradas não eram sem fundamento. Aparentemente, algumas cartas jamais alcançaram o seu destino. Ademais dos percalços com os correios, Candido e Rama se veem em pugna com a reação conservadora das elites que, nas décadas de 1960 e 1970, alinham-se às ditaduras militares de Brasil, Argentina, Uruguai e Chile. A partir de 1973, quando tem lugar o golpe no Uruguai, a situação se complica, e os exílios de Rama (primeiro em Caracas, depois em Washington e Paris) somam-se à dura realidade em que já vivia Antonio Candido no Brasil. Em 8 de outubro de 1974, Candido dá notícias da censura imposta à Revista Argumento (que contou com apenas quatro números), além do temor quanto aos desígnios de colegas e alunos.

“A essa altura o Fernando Henrique [Cardoso] já contou tudo pessoalmente. A situação dele e dos companheiros do CEBRAP não está boa. Houve prisões lá, e todos estão sendo interrogados pela polícia (...)” (p.90). A correspondência não é a única que padece. Não obstante a situação política adversa, os muitos compromissos profissionais tornam árduas as chances de viagens para o Brasil. A certa altura, tem-se a impressão de que nenhuma previsão é confiável. “Não abandono a esperança de visitá-los, mas já não me atrevo a falar, tantas vezes não cumpri minha promessa”, escreve Rama, em 20 de 1978 (p.148). Há poucas menções aos golpes militares em Uruguai e Argentina, e mais se sabe das preocupações quanto ao Chile e ao Brasil. Porém, uma previsão de Rama, em 11 de dezembro de 1967, está registrada: “Mas enquanto o liberalismo uruguaio não quebre definitivamente, seguiremos aqui na luta” (p.59). Este liberalismo quebrará seis anos depois. As ditaduras militares da América Latina, se por um lado perpetuavam os obstáculos à integração intelectual (para não dizer “cultural”) entre os países, por outro pareciam confirmar que a utopia latino-americanista finalmente se realizara. A onda conservadora cumpria ironicamente, ao mesmo tempo em que debelava, os anseios de construção de uma unidade na diversidade latino-americana. Essa estranha e algo forçada cumplicidade emerge na forma de temores e lutas comuns. “O que seremos se não estivermos unidos, diante do nosso terrível vizinho setentrional? A união se processa em todos os níveis, e o da literatura tem um valor que não se pode menosprezar” (p.56). A frase, de reminiscências martianas, foi escrita por Candido em 1967.

Desde cedo, o anseio de integração cultural foi parte dos projetos de Rama, e a correspondência com Antonio Candido assume, sob essa ótica, importância estratégica. Candido será o principal articulador no “hemisfério brasileiro” (para usar um termo de Rama) da chamada Biblioteca Ayacucho. Patrocinada pelo Estado venezuelano, a coleção previu a edição de 500 títulos, dos quais “não menos de 100 devem ser brasileiros” (p.190). A primeira carta de Rama a Candido, em menção ao projeto, é de 17 de setembro de 1974, quando aquele cumpria seu exílio político em Caracas. A partir daí, abre-se parte da história oficiosa da criação da Biblioteca Ayacucho, cujos pormenores – de como elaborar, para o leitor hispano-americano, as notas de rodapé, até a seleção dos autores brasileiros – serão abordados em quase todas as cartas. A complexa realidade regional se impõe, e a primeira reunião oficial com “especialistas” tarda um ano: planejada para fins de 1974, ocorre apenas em novembro de 1975. Aos poucos, percebe-se a qualidade dos pesquisadores que cercam Rama e Candido na empreitada. A começar por Gilda de Mello e Souza (responsável pelo volume dedicado a Mario da Andrade), Sérgio Buarque de Holanda (cujo estudo clássico, Visão do Paraíso, seria publicado), até nomes como Caio Prado Jr., Décio de Almeida Prado, Alfredo Bosi, Haroldo de Campos, João Luiz Lafetá, Benedito Nunes, Aracy Amaral e orientandos de Candido, como Walnice Nogueira Galvão e Roberto Schwarz. Do lado hispânico, Rama menciona o historiador argentino Tulio Halperín Donghi, o poeta mexicano José Emilio Pacheco e seu conterrâneo, o crítico Carlos Monsiváis. Em suma, egressos de duas ou três gerações, os principais intelectuais latino-americanos eram responsáveis por escolher, prefaciar e anotar as “contribuições culturais originais que a América Latina proporcionou ao mundo desde o legado indígena até as criações contemporâneas” (p.100), segundo a carta-convite recebida pelo crítico brasileiro, em 1975.

A criação da Biblioteca Ayacucho proporcionará também o desvelamento mais profundo da personalidade de Antonio Candido e Ángel Rama. Poucos anos mais novo que Candido, o tom de Rama faz supor senioridade, e tem-se a impressão de que as suas personalidades não poderiam ser mais contrastantes. Muitos anos após a sua morte, o brasileiro evocará a memória do amigo, falando da “extraordinária flama que o caracterizava” (p.229). Com efeito, Rama está constantemente requisitando coisas. É imperioso, como alguém investido de uma missão. Enche Candido de demandas as mais variadas, por livros, artigos, contatos, reuniões. Faz cobranças sem mais cerimônias, como quem imputa ao amigo o dever de assumir também o trabalho pela integração continental. Lembra-o de obrigações de caráter perfunctório, exigências de âmbito burocrático, promessas não cumpridas. “Você continua me devendo um artigo, ou um folhetinho (não sei bem o que é), que me disse que havia escrito sobre a literatura brasileira atual” (p.94). Ou ainda: “Confio que sua recente categoria de vovô não os distraia de sua sapiência epistolar” (p.111). É o Rama agitador cultural, cuja verve impetuosa Vargas Llosa recordou em artigo publicado no jornal peruano El Comércio, em dezembro de 1983. Por seu turno, Candido é de comedimento e cordialidade inalteráveis. Seu tom pessoal faz supor paralelos com o próprio estilo de seus escritos teóricos, marcados pela discrição e pela sutileza. Em setembro de 1979, como estivesse em dívida (outra vez) com seu amigo, e como lhe enviasse o original de um artigo com rasuras (“o datilógrafo sou eu mesmo”), adiciona esta informação: “Em compensação, a máquina de escrever é ilustre: uma velha Royal de formato venerável, que o Sérgio Buarque me deu de presente como ferro usado, em 1950, e que eu aceitei sofregamente, porque nela foi escrito Raízes do Brasil” (p.163).

A entrada da década de 1980 marca um momento de abertura democrática no Brasil e no Uruguai, mas os dois intelectuais não estão, por isso, mais tranquilos. Rama está indignado com a repressão na Polônia, e teme o recrudescimento da guerra civil em El Salvador. É o começo de janeiro de1982. Candido responde na segunda quinzena, lamentando a morte de Sérgio Buarque, “um dos meus melhores amigos, e sem dúvida o maior intelectual brasileiro” (p.179). Anota ao final: “estou apavorado com a Guerra das Malvinas” (p.179). Vivendo em Washington, é dessa época também o início dos problemas de Rama com o macarthismo. O caso suscitou a mobilização de escritores e intelectuais dentro e fora dos Estados Unidos, contando com a intervenção do presidente colombiano, Belisario Betancur (1982-1986). Em maio de 1982, por ocasião de um convite para vir ao Rio de Janeiro, o uruguaio teme deixar o país, pois não sabe se poderá entrar novamente. Adverte que a esposa Marta e ele foram “classificados como subversivos” e sofrem o assédio tanto da burocracia interna quanto de um pequeno grupo de exilados cubanos. Em meio ao pesadelo, Rama fica “maravilhado com Cruz e Sousa”, “divertido com João do Rio”. “Quem dera ter 800 anos para ler toda a literatura brasileira!” (p.190). Em abril de 1983 já está na França, de onde sairá para a última visita ao Brasil, em meados do ano. Pouco antes, escrevia a Candido: “estou à espera de que os ‘deuses fidedignamente malignos’ ditem seu veredito” (p.190). Seriam tais “deuses” os mesmos senhores dos imperscrutáveis labirintos dos correios, de quem tanto falavam? Contra essas forças obscuras do continente se movera a iniciativa de Ángel Rama e Antonio Candido pela construção de uma rede de colaboração intelectual, de esforços democráticos e de trocas culturais. A compreensão mais refinada dos “deuses”, poder-se-ia dizer, era parte do plano.

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Notas
Autor notes

Contato: f.salemdaie@gmail.com

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