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Como se faz um deserto? Resenha de: Uriarte, Javier. The Desertmakers: Travel, War, and the State in Latin America. New York: Routledge, 2020, 323 p.
Revista Caracol, núm. 22, pp. 474-482, 2021
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

RESENHAS

Uriarte Javier. The Desertmakers: Travel, War, and the State in Latin America. 2020. New York. Routledge. 323 ppp.

Recepção: 11 Setembro 2020

Aprovação: 13 Setembro 2020

DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2317-9651.i22p474-482

O manuscrito do livro que resenho obteve, em 2012, o Prêmio Nacional de Literatura do Uruguai, na modalidade de ensaio literário inédito. Esse manuscrito, que foi também a tese com a qual seu autor, Javier Uriarte, obteve seu doutorado na Universidade de Nova York, já evidencia em seu título original - Fazedores de desertos: viajes, guerra y Estado en América Latina - a amplitude do olhar que envolve, arqueologiza e mapeia algumas das ocorrências da nossa desertificação fundadora.

Essa “desertificação” se verifica em quatro coordenadas espaço-temporais e mostra os modos como as burocracias nacionais latino-americanas e os aparatos militares se constituíram por meio de uma proliferação de signos em torno de significantes totalizadores esvaziados de um sentido essencial. Poderia se dizer que as escrituras abordadas em The Desertmakers - as cartas enviadas por Richard Burton dos campos de batalha da Guerra do Paraguai, The Purple Land de W.H. Hudson, os escritos de Francisco Moreno sobre a Patagônia e Os sertões de Euclides da Cunha - recebem marcas, que transformam em procedimentos representacionais, de fenômenos associados à lógica extrativista do capital global, tão proliferante quanto saqueador, tão moderno quanto baseado no caudilhismo de nossas tradições regionais, científico na medida justa de sua superstição, tão cheio de um sentido totalizante como totalizante da catástrofe constitutiva da América Latina. Isso significa que o mal que aflige nossa civilização, e que perpassa as escrituras discutidas, é a própria dogmática civilizacional, sua expansão e extensão: o deserto a circunda por todos os lados, e se insinua em suas entranhas.

Mas em que consiste essa desertificação? The Desertmakers a estuda nos acontecimentos de certa retórica da viagem, com suas respectivas conceituações de espaço-tempo em quatro cenários da guerra no final do século XIX - Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai. Por meio do estudo arqueológico desses escritos, e com ênfase na premissa de que o deserto "nem sempre esteve lá", ou seja, que o deserto é um lugar que se produziu como deserto, Uriarte mostra o papel essencial que a guerra, em suas conexões com a empresa colonial e capitalista, atuou nos processos de modernização e formação desses aparatos de Estado. Como empreendimento capitalista, biopolítico e necropolítico, esse processo facilitou a substituição de gentes, a ocupação e exploração de espaços e sujeitos históricos e até mesmo a supressão de populações inteiras.

O desejo imperial se escreve e se excreve. The Desertmakers mostra-nos os modos em que a ideia da América como “tabula rasa”, isto é, lida sob o tropo de um vazio primordial, se manifestou em projetos de instituições nacionais que pressupunham como condição a ficção de uma história sempre a ponto de começar e de um espaço virgem aguardando por projetos de construção. Deste modo, as elites dominantes constituíram e prepararam na realidade, não raramente através de práticas sistemáticas de extermínio, aquele deserto anteriormente escrito como vazio, o que significa que, mais do que confirmado, aquele deserto foi “desertado”: a elaboração complexa de um desejo trágico e absoluto. A guerra, nesse sentido, é geradora de desertos, o dispositivo desse "fazer o deserto" que o título do livro enuncia.

Se o deserto é um produto, é também uma condição de possibilidade para a consolidação do aparelho de Estado na Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, e é na perspectiva de quatro viajantes que The Desertmakers narra e analisa o fenômeno da guerra na América do Sul do intervalo entre 1864 e 1902. E faz isso à maneira de um tandem, em que geografia e ideologia dialogam entre si, e em que vemos as transformações que se dão nas subjetividades escritas dos autores estudados, pois, permanentemente atravessados pelas aridezes do conflito e da paisagem, eles têm que ajustar suas percepções e representações às circunstâncias em que se encontram. Longe de casa, esses viajantes encaram a “viagem como um lar”, narrando e tentando dar sentido aos seus movimentos por territórios em estado de guerra para dar sentido à própria guerra.

Ora, se a guerra está associada ao surgimento dos estados modernos, não é possível defini-la apenas como uma forma de coerção, mas sim como um mecanismo central na monopolização do poder, e os governos se apropriam dela como violência constituinte, legitimadora da cidadania e do aparato institucional. O Estado cria a guerra para se legitimar e a guerra se legitima como emanação do Estado que, no intervalo estudado por Uriarte, acaba estabelecendo o modo de produção capitalista que caracteriza a América Latina. Esta lógica de "modernização", entre outras coisas, orienta a transformação que no século XIX transformou as sociedades rurais e pastoris em complexos assimétricos de produção agroexportadora orientada para os mercados capitalistas. Formalmente liberais e republicanas, no entanto, as nascentes organizações estatais de um capitalismo dependente basearam-se no autoritarismo do poder econômico, dos símbolos e das armas, deixando grande parte de suas populações à margem do "desenvolvimento" que poderia tirá-las do deserto, embora de fato essas mesmas populações tenham sido lançadas na aniquilação potencial quando se tornaram sinônimos de um vazio primordial. Ideologias como o Positivismo desempenharam um papel fundamental na perpetuação da guerra como elemento de modernização, uma vez que as populações entendidas como "à margem da história" deveriam, segundo este paradigma da virada de século, desaparecer para dar origem à sociedades cada vez mais "semelhantes” aos modelos europeus: “ordem e progresso”.

Se a modernização avança paralelamente às conflagrações bélicas por meio das quais as elites governamentais se hegemonizam, afirma The Desertmakers, essa modernização não deveria ser associada exclusivamente à construção de uma “ideia de nação”. Materializado como um complexo burocrático-militar, o Estado organiza o território por meio da operação de estabelecimento de enclaves administrativos fixos e de territorialidades que podem ser intervencionadas a partir dessas localidades. Isso significa que se a guerra e a violência do Estado são manifestações dos processos de integração nacional da segunda metade do século XIX, são também instrumentos da participação latino-americana na ordem do capital global. Mudanças fundamentais nos sistemas de transporte e comunicação, crescimento da mentalidade burguesa, proliferação e profissionalização da letra e estabelecimento dos cenários do imaginário público, ademais, fazem com que a violência estatal adquira ares de necessidade científica ou histórica, normalizando fatos como a destruição do Paraguai (com o extermínio da maioria de sua população e o saque de grande parte de seu território), a “Conquista do Deserto” argentina, o militarismo uruguaio ou o massacre de Canudos.

No primeiro capítulo, Uriarte examina Letters from the Battle Fields of Paraguay, do famoso Richard Burton, para nos mostrar o viajante indo para a frente de batalha como um ato de desobediência ou desvio e, paradoxalmente, preenchendo os espaços narrados com o vazio do desejo imperial. O segundo capítulo aborda The Purple Land, de W.H. Hudson, que narra a viagem e a turbulenta aventura de Richard Lamb no final da década de 1860, aventura que centraliza a guerra como forma de resistência à presença imperial britânica e que entende a violência - também associada à paisagem - como um elemento essencial de nostalgia de um lugar primordial perdido no passado: um elemento de identidade, portanto.

Diferente dos dois primeiros capítulos, em que os narradores são "estrangeiros" que escrevem na linguagem do império, o terceiro e o quarto capítulos tratam de narrativas de dois "nativos" que partem da identificação com a perspectiva modernizante de seus respectivos estados, embora essa perspectiva mude conforme a jornada e a escrita progridem. O terceiro capítulo analisa uma variedade de narrativas assinadas pelo cientista viajante Francisco Moreno que, no contexto da Conquista do Deserto, elaborou descrições "evolucionistas" de povos em processo de extermínio e museificação, bem como narrou territórios que foram delimitados pela violência e por aquela outra forma de violência que chamamos escrita. Como Moreno, Euclides da Cunha, protagonista do quarto capítulo de The Desertmakers, vai ao sertão baiano como representante do exército da violência simbólica que acompanha o exército da violência física, e naquela jornada sofre a vivência brutal de quem se descobre do lado executor dos crimes que fundaram a nacionalidade. Ruínas fumegantes, terras devastadas já nas suas origens geológicas e cadáveres, portanto, são imagens de um destino trágico, que em Os sertões é também o destino do intelectual e da República que representa.

Assassinar, usurpar e devastar, portanto, são manifestações da lógica imperial que comandou a desertificação de vastos espaços latino-americanos, lógica essa que as elites do final do século XIX abraçaram como sua, pois permitiu que se consolidassem em um quadro que lhes dava o poder como resultado de uma inserção dependente no capitalismo global. Desse modo, ressalta Javier Uriarte, não há solução simples para as antinomias entre o externo e o interno, entre o pertencimento ou a estrangeria, pois as guerras internas manifestam esse quadro global e tornam profundamente ambígua a identificação dos povos bestializados: os indígenas descritos por Moreno, por exemplo, são argentinos ou não são? E os sertanejos de Antonio Conselheiro, rebeldes contra a jovem República do Brasil, são brasileiros? A solução se dá por meio da doutrina da terra arrasada que frequentemente chamamos de “modernidade”, pois é com a desertificação produzida pela guerra que essas comunidades, com suas temporalidades e espaços únicos, são capturadas-fora como excepcionalidade absoluta em relação a uma interioridade e uma nacionalidade projetivas e, no longo prazo, produzidas como homogeneidade simbólica a partir da centralidade administrativa das grandes cidades latino-americanas. A integração desses espaços - que pressupõe seu mapeamento, sua gestão e sua ocupação pelos símbolos do progresso - é também um processo de conquista, erradicação de culturas, limpeza étnica e até genocídio, o que aproxima este estudo do momento contemporâneo, em que o capitalismo dependente mostra cada vez mais que as bases de sua realização são a destruição da natureza, do ser humano e de suas relações sociais.

Por outro lado, isso é feito de forma cínica? A resposta de The Desertmakers é negativa: progresso e nostalgia não são ideias mutuamente excludentes, mas sim complementares, pois a tristeza pelos passados perdidos aponta à necessidade de construir um futuro. À vontade no seu sentimento trágico, o escritor viajante, elaborado como paradigma por Uriarte, usa uma "retórica do desvanecimento", que faz da memória das ruínas (produzida, recordemos) o fardo do homem branco, ou seja, a verificação precisa da necessidade de progresso e da inexorabilidade da passagem do tempo. Desse modo, a ruína escrita impede a percepção do outro e dos espaços-outros, pois essa retórica doa a seus objetos um senso de necessidade que impede até mesmo que a guerra se torne visível e seja representada como guerra.

Nesse sentido, insiste o autor, a própria escrita torna-se palco de luta: luta contra a dificuldade de dizer a guerra, luta contra a dura constatação de que a violência é o fundamento do Estado, luta contra o sentimento de contribuir com um progresso que vem à história pingando sangue e lama por todos os seus poros.

O resultado da guerra - como atividade de violência material e simbólica, isto é, como efeito concreto e como máquina de leitura - é instalar um verdadeiro deserto em cima de outro projetivo, para efetuar a deglutição daquele vazio de segunda ordem que, produzido, não é alheio ao Estado, mas é a sua obra e a sua realização.

Mercado e Estado, assim, em um quadro dependente, convergem para a singularidade de um projeto executado como uma sistemática máquina de guerra na qual a legibilidade, a desertificação e a apropriação do espaço, podem ser lidas como uma arqueologia da destruição. The Desertmakers, livro de Javier Uriarte, mapeia, localiza e evidencia essa sistemática, não sem nos dar elementos para a memória das resistências que sobrevivem e que ainda confrontam os contemporâneos “fazedores de desertos”.

Autor notes

Contato: flint1883@yahoo.com.mx



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