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Paulo Freire: uma educação do cuidado da vida, do diálogo e do amor ao mundo
Olhar de Professor, vol. 25, pp. 01-18, 2022
Universidade Estadual de Ponta Grossa

Artigos



Recepción: 19 Octubre 2020

Aprobación: 23 Junio 2021

DOI: https://doi.org/10.5212/OlharProfr.v.25.17035.006

Resumo: O presente artigo busca abordar a pedagogia libertadora de Paulo Freire, em vista do seu centenário, como uma práxis pedagógica do cuidado da vida, do diálogo e do amor ao mundo. Problematizamos se o pensamento reflexivo e crítico de Freire possibilita uma educação fundamentada na vida e no cuidado do outro e do mundo em “tempos sombrios”. Com base em uma pesquisa de cunho bibliográfico e documental das obras de Paulo Freire (1996, 2001, 2003, 2006, 2013, 2016, 2018), apresentamos, no artigo, uma pedagogia que surge da realidade dos(as) e com os(as) oprimidos(as), permitindo a consciência crítica como esclarecimento da opressão e uma educação construída a partir do amor e do cuidado. Por fim, conclui-se que o educador brasileiro continua presente na luta pela dignidade humana e seu pensamento alimenta a esperança e uma ética universal.

Palavras-chave: Educação libertadora, Cuidado, Diálogo, Ética.

Abstract: This article seeks to approach Paulo Freire's liberating pedagogy, in view of his centenary, as a pedagogical using of caring for life, dialogue and love for the world. We question whether Freire's reflective and critical thinking enables an education based on the life and care of others and the world in “dark times”. Based on a bibliographic and documentary research of the works of Paulo Freire (1996, 2001, 2003, 2006, 2013, 2016, 2018), we present, in the article, a pedagogy that emerges from the reality of and with (oppressed, allowing critical awareness as an explanation of oppression and an education built from love and care. Finally, it is concluded that the Brazilian educator remains present in the struggle for human dignity and his thought feeds hope and universal ethics.

Keywords: Liberating education, Caution, Dialogue, Ethic.

Resumen: Este artículo busca acercarse a la pedagogía liberadora de Paulo Freire, en vista de su centenario, como una praxis pedagógica del cuidado de la vida, el diálogo y el amor al mundo. Nos preguntamos si el pensamiento reflexivo y crítico de Freire posibilita una educación basada en la vida y el cuidado de los demás y del mundo en “tiempos oscuros”. A partir de una investigación bibliográfica y documental de las obras de Paulo Freire (1996, 2001, 2003, 2006, 2013, 2016, 2018), presentamos, en el artículo, una pedagogía que emerge de la realidad de y con los (as) oprimidos (as), permitiendo la conciencia crítica como explicación de la opresión y una educación construida desde el amor y el cuidado. Finalmente, se concluye que el educador brasileño permanece presente en la lucha por la dignidad humana y su pensamiento alimenta la esperanza y la ética universal.

Palabras clave: Educación liberadora, Cuidado, Diálogo, Ética.

Introdução

A partir de uma análise reflexiva e crítica do pensamento de Paulo Freire (1996, 2001, 2003, 2006, 2013, 2016, 2018), nos tempos hodiernos de avanços e retrocesso no âmbito educacional, compreendemos que ainda é plausível lutar por uma educação humanizadora e libertadora no Brasil. Sabe-se que muito se tem discutido, principalmente no ano de seu centenário, acerca do legado da pedagogia freireana nas reflexões sobre o sistema político e econômico opressor, a educação bancária, a conscientização, a liberdade, a ética, a autonomia e a amorosidade.

O educador pernambucano continua a inspirar uma educação centrada no cuidado dos(das) oprimidos(das) e na responsabilidade com o mundo. Nesse sentido, é de fundamental importância compreender a história da pedagogia humanizadora como instrumento de libertação e de resgate da dignidade humana.

O filósofo Enrique Dussel (2000), por exemplo, considera relevante o pensamento de Paulo Freire quando reflete acerca da (in)existência de mulheres e homens em uma realidade sociopolítica e econômica neoliberal de opressão e manutenção da desigualdade social. Motivados por essa percepção, problematizamos se o pensamento reflexivo e crítico de Freire possibilita uma educação fundamentada na vida e no cuidado do outro e do mundo em “tempos sombrios”, como afirma Arendt (2008, p.19)?

Dito isso, com base em uma pesquisa de cunho bibliográfico e documental das obras de Paulo Freire (1996, 2001, 2003, 2006, 2013, 2016, 2018), buscamos entender o surgimento de uma pedagogia libertadora que valoriza a conscientização crítica dos sujeitos e uma ética universal. Este novo método pedagógico se constrói na relação dialógica educador e educando e educando e educador de maneira teórica e prática.

Especificamente, para incentivar a reflexão crítica e demonstrar que o pensamento freireano é extremamente pertinente ante um sistema político e econômico que age sem pensar nas diversidades de vidas habitantes da terra, dividimos o artigo em três seções e a conclusão. A primeira trata de uma pedagogia que surge da realidade libertadora dos(as) e com os(as) oprimidos(as) e da sua negação diante de um sistema sociopolítico opressor e dominante. Esses sujeitos, como assegurado por Paulo Freire (1996, 2003), foram historicamente silenciados e, ao mesmo tempo, introjetados de uma falsa consciência que retrata a opressão como fatalidade ou destino dos seres humanos oprimidos.

A respeito desse contexto, na segunda seção, demonstramos a consciência crítica em Freire (2001, 2013, 2016) como meio de esclarecimento da presença do opressor nas oprimidas e nos oprimidos. Isso implica uma formação de sujeitos livres, autônomos e críticos no mundo, que é lugar não somente de humanidade, mas também de desumanidade.

Ademais, na terceira seção, apresentamos a pedagogia freireana (2016, 2018) como possibilidade de uma educação do cuidado da vida, do diálogo e do amor ao mundo, isto é, como ato ético de cuidado com os outros e de responsabilidade com a natureza. Sobre isso, Leonardo Boff (2013, p. 254) defende que Paulo Freire não escreveu explicitamente sobre o cuidado, contudo é possível percebê-lo “no seu empenho e amor aos empobrecidos”. Além disso, o cuidado na pedagogia libertadora se concretiza no diálogo, isto é, na escuta atenciosa que, segundo Boff (2013, p. 250), faz parte “da vida cotidiana dos oprimidos e das palavras que mais usam, chamadas por ele de palavras geradoras”.

Por conseguinte, podemos inferir que a pedagogia humanizadora de Freire possibilita a transformação por intermédio da reflexão-ação do sistema político e econômico opressor, insensível e totalitário. Concluímos o artigo com a percepção de que o educador brasileiro continua presente na luta pela dignidade humana, e seu pensamento alimenta a esperança de construção de uma sociedade dialógica, acolhedora e de uma ética universal, ou seja, da vida.

A educação humanizadora e a negação dos(as) oprimidos(as) pelo sistema sociopolítico opressor

A conscientização, no pensamento freireano, surge do encantamento de Freire pelo conceito apresentado em outros textos, não de sua autoria. No entanto, o educador destaca a importância de refletir sobre esse conceito no âmbito histórico, educacional, social e político. Ele afirma que educar “é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade” (FREIRE, 2001, p. 29). Desse modo, a pedagogia freireana surge da realidade dos(as) e com os(as) oprimidos, e se concretiza no binômio reflexão-ação, isto é, na práxis que propicia a consciência crítica dos sujeitos.

Essa pedagogia retrata o interesse de Freire em compreender e desvelar, por meio da educação libertadora, o mundo insensível e desigual criado pela classe opressora. Observamos que o conceito de conscientização é crucial para adentrarmos no panorama histórico e para compreendermos a negação da humanidade dos(as) oprimidos(as). Segundo Freire, “a conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica” (FREIRE, 2001, p. 30).

Considerando o fenômeno de negação da existência dos sujeitos oprimidos, no contexto histórico brasileiro, Freire (2003) defende que, em razão da hegemonia dos colonizadores sobre os colonizados, surge uma sociedade fundamentada no “centralismo, verbalismo, anti-dialogação, autoritarismo e assistencialização” (FREIRE, 2003, p. 13). Portanto, como refletir sobre uma educação humanizada em uma sociedade historicamente arraigada na relação colonizador-colonizado?

A análise das obras Pedagogia do Oprimido (2013), Educação como Prática da Libertação (1996) e Educação e Atualidade brasileira (2003) permite compreender a importância da conscientização como instrumento de desmitificação de um sistema opressor. Assim sendo, no reconhecimento dos(as) oprimidos(as) como sujeitos históricos e não como objetos, inicia-se a luta pela liberdade e pela dignidade humana. Nesse contexto, a conscientização não retira o sujeito do mundo, do espaço de humanização e desumanização, pois, conforme Freire (2001, p. 31), “está baseada na relação consciência-mundo”. Ou seja, é no e com o mundo que os sujeitos assumem uma atitude crítica perante a classe alienadora e antidialógica.

Gutiérrez (1988, p. 53), ao escrever sobre a conscientização na educação libertadora, explica que “o conhecimento da realidade ocorre como resultado do processo dialético entre o sujeito e seu mundo. Entre sua afirmação como sujeito e a abertura para o universal”. O autor concorda com Freire ao afirmar que o ser humano é um ser histórico e inacabado, quer dizer, um sujeito em “seu pleno desenvolvimento como ser transcendente que deve ocupar todo o horizonte de nossas preocupações” (GUTIÉRREZ, 1988, p. 52).

Na história do Brasil, encontramos não só a negação da humanidade do(a) oprimido(a), mas também da sua própria história. Sobre isso, Mesquida (2011, p. 34) é categórico ao demonstrar que “a conquista da história, por aqueles e aquelas a quem foi negado o direito de se fazerem atores de sua história, passa pela conquista da palavra”. Desse modo, no método pedagógico freireano, a palavra que surge do diálogo com os(as) oprimidos(as) e da sua realidade social e cultural possibilita a conscientização crítica e a ruptura com “a cultura do silêncio” (FREIRE, 2001, p. 79).

Nota-se que negar a palavra é silenciar os sujeitos antes a opressão, fomentando o medo do opressor e, por conseguinte, da libertação. Em outra direção, para Freire (2001), a leitura do mundo e da palavra implica uma educação crítica e humanizada, ou seja, uma “pedagogia do oprimido; não uma pedagogia para ele, senão uma pedagogia que saia dele mesmo” (FREIRE, 2001, p. 91). Assim, na medida em que os(as) oprimidos(as), antes silenciados(as), se conscientizam da presença do opressor, desmistificam a sociedade dominante, resgatam a humanidade e expressam a palavra, de modo a dar significado à realidade.

A libertação na pedagogia de Paulo Freire demanda do sujeito, segundo Boff (2014, p. 247) a “conquista da palavra; ele deixa de ser um silenciado. A partir de seu contexto de vida começa a falar, a se conscientizar das contradições, a sonhar com um mundo em que não haja opressões e a se organizar para, passo a passo, construí-lo”. Por esse motivo, Boff (2014) defende que o pensamento freireano é extremamente pertinente, visto que tem como base a escuta da voz dos silenciados(as).

Freire (2001) não empreende uma renovação dos métodos pedagógicos existentes, mas propõe uma nova pedagogia, que tem como objetivo “a plena realização do trabalho humano: a transformação permanente da realidade para a libertação dos homens” (FREIRE, 2001, p. 34). Nessa perspectiva, o processo de regaste da humanidade negada acontece conjuntamente com o anseio de liberdade dos sujeitos. Considerando esse processo, Freire (2013, p. 57) salienta que,

A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação.

Ao contrário de uma educação antidialógica, presente no contexto colonizador, Paulo Freire propõe uma educação dialógica, pensada e praticada coletivamente com os(as) oprimidos(as) no processo de escuta, reflexão e ação. Essa educação contempla o ser humano como um “ser de relações e não só de contatos, não apenas estar no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é” (FREIRE, 1996, p. 47). Assim sendo, não é possível refletir sobre as mulheres e os homens fora da relação de responsabilidade com os outros e com a natureza.

Podemos perceber que a conscientização dos(as) oprimidos(as) pressupõe a compreensão do ser humano no contínuo processo de estar sendo com o mundo, mediado pela reflexão-ação. A consciência crítica, nesse sentido, torna-se condição de possibilidade para a existência dos seres humanos que se encontram “submersos em condições espaço-temporais que influem neles e nas quais eles igualmente influem” (FREIRE, 2001, p. 38).

Sob esse ponto de vista, Borges (2013, p. 167) pontua que na pedagogia freireana “mundanizar o ser humano é contextualizá-lo, entendê-lo a partir da sua espacialidade geográfica, histórica, cultural e social, oferecer espaço e possibilidade de existencialização”. Como se vê, a conscientização no contexto histórico resgata a humanidade dos não considerados historicamente pelo sistema neoliberal como humanos. A consciência crítica dessa realidade coopera com o encorajamento dos sujeitos na luta pela liberdade.

A respeito do desvelamento da opressão, percebemos que a humanização e desumanização, na visão de Freire, revelam-se na história em uma realidade concreta. Nesse sentido, ao comentar o pensamento pedagógico de Paulo Freire, Dussel (2000, p. 435) afirma que o educador pernambucano “pensa na educação da vítima no processo histórico, comunitário e real pelo qual deixa de ser vítima”. Essa educação libertadora implica uma visão dialética de mundo e da prática pedagógica. No mundo, na história e na educação, sempre encontramos humanidade e desumanidade, opressores e oprimidos, colonizadores e colonizados.

No processo de libertação dos sujeitos, o ato da leitura da palavra, de acordo com Freire (2016, p. 147), precisa estar vinculado do mundo: “nem a leitura apenas da palavra, nem a leitura somente do mundo, mas as duas dialeticamente solidárias”. Isso é o contrário do método de memorização, no qual as palavras são apresentadas aos(às) educandos(as) sem uma relação com sua realidade sociocultural. Desse modo, concordamos com Leonardo Boff (2013, p. 247) ao escrever que “a grande novidade trazida por Paulo Freire foi ter entendido que educar é um processo político libertador. Ao aprender a ler e a contar, o estudante aprende a entender o mundo em que vive e sofre”. É uma educação libertadora e humanizada, pois não impõe o conhecimento de forma vertical, mas o constrói em diálogo, isto é, no encontro dos(as) educadores(as) com os(as) educandos(as).

Logo, muda-se a relação sujeito-objeto para uma relação sujeito-sujeito, centrada no respeito, na escuta e no cuidado. Freire, ao comentar a aplicação do método pedagógico, afirma que

Educador e educandos (liderança e massas), cointencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim criticamente conhecê-la, mas também no de recriar este conhecimento. Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seres refazedores permanentes (FREIRE, 2013, p. 78).

Trata-se de uma transformação dessa sociedade e jamais a adaptação dos sujeitos nesse contexto de negação da vida. A rigor, para Freire (2013, p. 53), “o mero reconhecimento de uma realidade que não leve a esta inserção crítica (ação já) não conduz a nenhuma transformação da realidade objetiva”. Nota-se a superação da realidade mistificada para uma visão crítica ou consciente da opressão. Isso consiste em sair do mundo da normalidade da opressão (consciência intransitiva) e da invisibilidade social para uma conscientização da sua presença humana (sujeito), ou seja, não objetivada no mundo.

Neste nível de consciência, portanto, os sujeitos vivem no mundo, porém não atuam na sociedade criticamente. Como teorizado por Freire (2003, p. 34), “a consciência intransitiva representa um quase incompromisso entre os homens e a sua existência. Por isso, esta forma de consciência adstringe o homem a um plano de vida mais vegetativa”. Considerando essa realidade dominante e desumanizadora, Paulo Freire (2016) propõe uma educação humanizadora que contribua para a formação de uma sociedade mais justa, fraterna e sustentável.

Antagônica à transmissão de conhecimento, encontramos uma pedagogia humana, fundamentada no diálogo, isto é, na capacidade de escutar o outro, de conhecer a realidade e, assim, transformá-la com responsabilidade e cuidado. Uma educação, centrada nos valores éticos, que prioriza a vida – e não a morte –, e que prega a paz – e não a violência. Por isso, em continuidade, perceberemos que a educação humanizadora e libertadora expressa o cuidado do educador pernambucano com a vida dos seres humanos. Mais ainda, uma opção pelo resgate da vida negada.

A educação e consciência crítica como esclarecimento da presença do opressor nos(as) oprimidos(as)

A partir do exposto, compreenderemos a história objetivando entender os fenômenos de desumanização presentes na sociedade opressora. Para adentrar esse contexto, é necessário reconhecer que, segundo Dussel (2000, p. 314), “no final do século XX: boa parte da humanidade é vítima de profunda dominação ou exclusão, encontrando-se submersa na dor, infelicidade, pobreza, fome, analfabetismo, dominação”.

No Brasil, conforme Freire (2006), percebemos uma preocupação do sistema político com o índice de analfabetismo, embora falte apreciação do contexto histórico do país, extremamente colonizador e opressor. A consequência é uma educação baseada no anseio político de superação dos números, mas sem a devida responsabilidade com a realidade social dos sujeitos. Diante desse contexto, o analfabetismo recebe diferentes significados em uma sociedade dominante, como Freire (2006, p. 15) comenta:

A concepção, na melhor das hipóteses, ingênua do analfabetismo o encara ora como uma “erva daninha” – daí a expressão corrente: erradicação do analfabetismo –, ora como uma enfermidade que passa de um a outro, quase por contágio, ora como uma chaga deprimente a ser curada e cujos índices, estampados nas estatísticas de organismos internacionais, dizem mal dos níveis de civilização de certas sociedades. Mais ainda, o analfabetismo aparece também, nesta visão ingênua ou astuta, como a manifestação da incapacidade do povo, de sua pouca inteligência, de sua proverbial preguiça.

Infere-se que a história da educação no Brasil, tal como vista por Freire (2003), constitui-se em um contexto histórico centralizador, autoritário e silencioso. Logo, a desumanização, consequência do sistema opressor, está arraigada em uma realidade política de negação da vida dos(as) oprimidos(as) em todos os contextos sociais, uma vez que a educação era pensada para uma determinada classe social. A esse respeito, Freire (2016, p. 83) pondera que encontramos, no decorrer da história, “a presença predatória do colonizador, seu incontido gosto de sobrepor-se, não apenas ao espaço físico, mas ao histórico e cultural dos invadidos”. Essa presença colonizadora, fundamentada no controle dos sujeitos e no interesse econômico, prioriza o lucro, oculta a realidade opressora e exclui a vida.

Nessa contextualização, a educação torna-se privilégio de poucos e sustenta um modelo tradicional de transmissão de conteúdo, isto é, sem uma reflexão crítica da sociedade manipuladora. Sobre isso, Freire (2013, p. 83) considera que “[...] quanto mais se lhes imponha passividade, tanto mais ingenuamente, em lugar de transformar, tendem a adaptar-se ao mundo, à realidade parcializada nos depósitos recebidos”. No que se refere à educação dominante, Brighente e Mesquida (2016, p.162) destacam que “conhecendo um pouco da herança histórica, entendemos o motivo de a instituição escolar não permitir que os corpos se libertem”. A sociedade, assim pensada, valoriza o método de transmissão de conteúdo, dado que notamos a escola como espaço de controle e disciplina dos sujeitos, como assegura Foucault (1999).

Diante dessa situação, Gutiérrez (1988, p. 37) assegura que o aluno não se aproxima do professor, “em função da visão que tem desse poder”. Nota-se que o sistema educativo dominante tem como objetivo modelar os homens e as mulheres para uma adaptação ao sistema opressor.

Segundo Brighente e Mesquida (2016, p. 163), a pedagogia dominante ou bancária, como Freire (2013) a define, controla as pessoas “para que assim, fora do ambiente escolar, em outras instituições e na sociedade, elas também continuem perpetuando esse modelo de consciência ingênua e massificada”. Sendo assim, Freire, em diálogo com Shor (1986), reconhece que a educação precisa ser compreendida dentro de um contexto histórico-político-social. Entendemos que na pedagogia freireana a sociedade, como espaço de ação crítica, é intrínseca ao processo educacional libertador. Sem dúvida, o ponto crucial da educação libertadora e humanizadora é a consciência crítica dos sujeitos e de suas vocações ontológicas como seres humanos que agem na transformação da realidade.

Essa consciência crítica surge de um projeto educacional libertador o qual rompe com a consciência natural e empenha-se na busca da humanidade dos(as) oprimidos(as). Fica evidente para Freire (1996, p. 114) que “é próprio da consciência crítica a sua integração com a realidade, enquanto da ingênua o próprio é a sua superposição a realidade”. Embora os(as) oprimidos(as) tenham por um longo período da história assimilado a opressão como algo próprio da sua existência no mundo, Freire (2013) deixa claro que a passagem de uma consciência intransitiva para a consciência crítica representa medo para alguns e coragem para outros.

Essa pesquisa mostrou que a educação humanizada e libertadora, especificamente no Brasil, está inserida em um contexto histórico e social de colonização, dominação e desigualdade social. A respeito disso, Freire (2016, p. 138) afirma que,

Homens e mulheres, ao longo da história, vimo-nos tornando animais deveras especiais: inventamos a possibilidade de nos libertar na medida em que nos tornamos capazes de nos perceber como seres inconclusos, limitados, condicionados, históricos. Percebendo, sobretudo, também, que a pura percepção da inconclusão, da limitação, da possibilidade, não basta. É preciso juntar a ela a luta política pela transformação do mundo.

Observamos, portanto, que Freire (2001), ao escrever sobre a dicotomia humanização e desumanização no mundo, contribui para uma reflexão sobre a urgência de uma educação humanizada. Ainda de acordo com Freire (2001, p. 60) essa educação tem como base inicial a realidade nordestina, isto é, “o homem iletrado, o homem do povo, com sua maneira de captar e de compreender a realidade, captação e compreensão de tipo especialmente mágico”. Portanto, a ação pedagógica contribui para o desvelamento da consciência intransitiva e, ao mesmo tempo, para construção da consciência crítica.

Com efeito, na medida em que os(as) oprimidos(as) se conscientizam, assumem com responsabilidade a sua vocação humana no e com o mundo. Faz-se necessário entender que os homens e as mulheres assumem a luta coletivamente, como defende Leonardo Boff (2013, p. 251): “podemos dizer que Paulo Freire, a partir dos condenados da Terra, projetou uma educação libertadora que libera o ser humano para o outro ser humano”.

A libertação desses sujeitos acontece quando eles têm consciência da opressão, porém possuem coragem para enfrentar o medo. Em virtude do mencionado, trata-se de uma compreensão que implica a problematização e o esclarecimento. Sendo assim, Kant (1985, p. 100) afirma que:

O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.

De modo similar, percebemos no pensamento de Freire que as mulheres e homens marginalizados são responsáveis pelo seu próprio processo de libertação. O encorajamento dos sujeitos acontece concomitantemente ao esclarecimento do sistema opressor. Na verdade, diz o filósofo Enrique Dussel (2000, p. 440), ao expor o método pedagógico freireano, que “o sujeito da educação é o próprio oprimido quando, pela consciência crítica, se volta reflexivamente sobre si mesmo e, descobrindo-se oprimido no sistema, emerge como sujeito histórico”. A luta pela humanização dessas pessoas é denominada, nessa perspectiva, como autêntico ato de cuidado e esperança, em contraste com os atos de descuido com a vida e desesperança.

Vale salientar que, para Freire (2016, p. 137), “[...] a utopia, porém, não seria possível se faltasse a ela o gosto da liberdade, embutido na vocação para a humanização. Se faltasse também a esperança sem a qual não lutamos”. Por conta disso, infere-se que precisamos não somente ver a realidade de opressão, mas também compreender a história para transformá-la.

Freire (2016) critica o sistema de ensino-aprendizagem, denominado por ele como educação bancária, que usa a metodologia da memorização acrítica do conhecimento e contribui à passividade dos(as) educandos(as). Sobre isso, Brighente e Mesquida (2016, p. 161) salientam ainda que “[...] a educação bancária não é libertadora, mas, sim, opressora, pois não busca a conscientização de seus educandos”.

Esse sistema, nas palavras de Freire (2018), não somente elimina a criatividade dos(as) educandos(as), mas também a “curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura do esclarecimento” (FREIRE, 2018, p 33). Por isso, cada ato de liberdade é considerado, no método pedagógico freireano, um novo nascimento do homem, isto é, um novo sujeito consciente da negação da sua própria humanidade nos diversos âmbitos da sociedade. Logo, entende-se que a educação libertadora contribui para o novo nascimento dos sujeitos no mundo.

Arendt (2018, p. 222), nesse sentido, colabora com a compreensão do pensamento freireano, quando reflete que, “ao agir e ao falar, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e únicas, e assim fazem seu aparecimento no mundo humano”. O aparecer criticamente no mundo, na pedagogia freireana, ocorre no processo de conscientização do ser humano (sujeito). Assim, a pedagogia humanizadora coopera com a libertação, com o resgate da humanidade das mulheres e dos homens e, principalmente, com o amor ao mundo. Portanto, representa um novo método pedagógico de reflexão-ação que se concretiza na práxis, no amor, na esperança e no cuidado, como refletiremos na próxima seção.

Uma pedagogia da vida, do diálogo e do amor ao mundo

Além da consciência de ser sujeito em relação aos outros, as mulheres e os homens necessitam assumir a responsabilidade ética durante seu trajeto histórico pelo mundo. A reflexão sobre a ética da vida, no pensamento de Freire implica a compreensão do ser humano como ser de relação com outros e situado em uma realidade histórica e cultural. Diante desse contexto, Freire (2016) destaca que a pedagogia libertadora assume uma atitude ética ante a injustiça, a pobreza, o desemprego, a violência e o descuido com os(as) oprimidos(as).

Antagônica à ética que valoriza a vida, encontramos uma ética do sistema político e econômico neoliberal, baseada em uma economia de produção, consumo e lucro, na qual “o único freio ao lucro é o lucro mesmo ou o medo de perdê-lo” (FREIRE, 2016, p. 149). Desse modo, o educador pernambucano assinala que a ética da vida resulta da indignação com uma sociedade opressora que não somente nega a humanidade dos sujeitos oprimidos, mas também a esperança que mantém a luta em favor da vida.

A rigor, para Freire (2016), como seres humanos conscientes da opressão, da vocação ontológica de ser sujeito e da luta pela liberdade, não podemos “cruzar os braços fatalistamente diante da miséria” (FREIRE, 2016, p. 89). Sob esse ponto de vista, Borges (2014), reflete que a ética nas obras freirianas “[...] não é abstrata e nem coisa de manuais ou contidas em eloquentes discursos, mas comprometida com a vida” (BORGES, 2014, p. 228). Sendo assim, nota-se que a ética universal resulta da conscientização dos sujeitos como seres humanos no e com o mundo.

Logo, esse compromisso com a vida negada e o modo de ser dos sujeitos com os outros e com a natureza são elementos da práxis pedagógica que deriva da reflexão-ação. Essa prática está arraigada na realidade das mulheres e dos homens que lutam pela sobrevivência em uma sociedade neoliberal. Esse sistema político e econômico capitalista, como já vimos anteriormente, centrado na produção e no consumo, descarta a vida humana e a natureza. Considerando esse contexto de destruição da vida, Freire (2013, p. 65) afirma:

Na medida em que, para dominar, se esforçam por deter a ânsia de busca, a inquietação, o poder de criar, que caracterizam a vida, os opressores matam a vida. Daí que vão se apropriando, cada vez mais, da ciência também, como instrumento para suas finalidades. Da tecnologia, que usam como força indiscutível de manutenção da ordem opressora, com a qual manipulam e esmagam.

Por essa razão, a luta contra o sistema político e econômico que nega a vida se torna ética, dado que os(as) oprimidos(as) buscam resgatar “o direito de ser mais” (FREIRE, 2016, p. 89). Essa ética está fundamentada na relação sujeito-sujeito-mundo, isto é, na responsabilidade com a vida, principalmente em um mundo com humanidade e desumanidade. Essa possibilidade de transgressão, diz Freire (2016, p. 131), significa “um desvalor jamais uma virtude”. Nesse sentido, a educação libertadora, ao reconhecer o diálogo como cerne do método pedagógico, valoriza a relação Eu e Tu, como propõe Buber (2001), e ratifica que o ser humano é um ser de cuidado do outro e da natureza.

Por isso, quando os sujeitos têm consciência da sua presença no e com o mundo, assumem a responsabilidade com a conservação da vida. Ou seja, ao resgatar a humanidade, o direito à palavra e à liberdade, o ser humano, conforme Freire (2018, p. 133), “se abre ao mundo e aos outros e inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, com inconclusão em permanente movimento na história”. Desse modo, o amor ao mundo é resultado de uma educação que cultiva a responsabilidade e a amorosidade na relação educador-educando e educando-educador. Esse amor deriva do diálogo, do cuidado e do respeito aos outros, como diz Freire (2013, p. 110) “não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que infunda. Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo”.

Consequentemente, o método pedagógico de Paulo Freire, centrado no amor ao outro e ao mundo, é humanizador e libertador. Do contrário, a ausência do amor fortalece um sistema antidialógico e autoritário, por isso Freire (2013, p. 111) deixa claro que “se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo”. Entendida dessa forma, a luta pela humanização dos(as) oprimidos(as) é, na pedagogia freireana, um autêntico ato de amor em contraste com os atos de negação da vida. Esse amor se expressa no respeito à história e à realidade social, tanto do(a) educador(a), como do(a) educando(a). Sendo assim, faz-se necessário o diálogo como instrumento que aproxima educador(a) e educando(a) e educando(a) e educador(a), em um ato contínuo de reconhecimento da vocação ontológica dos seres humanos.

Ademais, Freire (2018) insiste que uma pedagogia que promove a autonomia, a problematização e a curiosidade reconhece o mundo como mediador do conhecimento, e passa a admirá-lo. Nessa perspectiva, Arendt (2011, p. 274), de modo semelhante ao pensamento de Freire, afirma que “a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo”. Por conseguinte, o cuidar do mundo para assegurar a vida é crucial na educação humanizada e libertadora.

Nesta pesquisa, observamos que o cuidado do educador brasileiro com o(a) oprimido(a) procede da sua preocupação com o mundo, onde a vida se revela e os sujeitos agem, transformando-o por intermédio da cultura. Além disso, compreendemos que o amor ao mundo demanda responsabilidade e comprometimento dos sujeitos na luta coletiva contra um sistema neoliberal cujo descarte dos seres humanos é uma grande característica.

Diante desse contexto, Freire (2016, p. 90) pondera que “ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra”. A consciência crítica, que resgata o sujeito como ser de relação com os outros, concretiza-se na coragem, no amor e no diálogo. No que se refere à amorosidade, conceito freireano, Amorin e Calloni (2017, p. 385), consideram que “foi também um dos maiores legados da prática e da teoria; em suma, da práxis de Freire. Daí que, dentro de uma legalidade ontológica, a amorosidade não permanece restrita a esse ou àquele ser, mas se manifesta na totalidade das relações, na racionalidade prática”.

O mundo para Freire é o espaço comum de encontro e de ação política, em que os seres humanos, por intermédio da conscientização, podem intervir culturalmente nele. Retomamos a transição da consciência intransitiva (ingênua) para a consciência crítica, a fim de compreender esse processo de intervenção do sujeito no mundo vinculado ao processo de libertação. Quer dizer, de uma presença passiva no mundo para um sujeito criador e transformador da realidade. Para tanto, Freire (2001, p. 96) diz que “[...] designar o mundo, que é ato de criação e de recriação, não é possível sem estar impregnado de amor”. Nessa perspectiva, o amor e o modo como ele se revela no encontro dialógico e no cuidado da natureza, tal qual defende Paulo Freire (2006, p. 97):

É ao mesmo o fundamento do diálogo e o próprio diálogo. Este deve necessariamente unir sujeitos responsáveis e não pode existir numa relação de dominação. A dominação revela um amor patológico: sadismo no dominador, masoquismo no dominado. Porque o amor é um ato de valor, não de medo, ele é compromisso para com os homens.

Compreendemos que o diálogo está vinculado ao amor, e rompe com uma estrutura social antidialógica que oprime e silencia os(as) oprimidos(as). Dessa junção entre diálogo e amor resulta a esperança. E, de fato, na educação humanizadora e libertadora, o amor ao mundo suscita a indignação, a esperança, a força e o sonho que mantêm viva a luta contra a violência que destrói a vida.

Para Freire (2016), a neutralidade dos seres humanos ante a destruição da diversidade de vida e a insensibilidade ante a violência alimenta o ódio. Por essa razão, Freire chama à atenção de que “seria horrível se apenas sentíssemos a opressão, mas não pudéssemos imaginar um mundo diferente, sonhar com ele um projeto e nos entregar a lutar por sua construção” (FREIRE, 2016, p. 153). O ato de amor aos outros e ao mundo, como já mencionado, encoraja os sujeitos a lutarem contra a violência e a compreendê-la no contexto histórico e político opressor, preconceituoso e antidialógico.

Nesse sentido, “[...] a ética, para Paulo Freire, não é algo abstrato, coisa de escrivaninha. O início da ética está na capacidade de indignar-se com a injustiça” (STRECK, 2014, p. 12). É uma ética universal centrada na vida dos considerados supérfluos pelo sistema neoliberal. Ela tem como característica peculiar o desejo de compreender a realidade social e indignar-se com o sofrimento dos(as) oprimidos(as), como afirma Freire (2018, p. 128):

Gostaria de deixar bem claro que não apenas imagino, mas sei quão difícil é a aplicação de uma política do desenvolvimento humano que, assim, privilegie fundamentalmente o homem e a mulher, e não apenas o lucro. Mas sei também que, se pretendemos realmente superar a crise em que nos achamos, o caminho ético se impõe. Não creio em nada sem ele ou fora dele.

Percebe-se que, em razão da escolha de Paulo Freire (2018) pela vida dos(as) oprimidos(as), seu método pedagógico é libertador e humanizador. Com isso, reafirmamos a ideia freireana de amorosidade, no sentido de conscientização, comprometimento e cuidado dos seres humanos e do mundo. A amorosidade, como teorizado pelo pedagogo, se expressa na educação, no diálogo entre educadores(as) e educandos(as), ou melhor, no respeito à descoberta do objeto cognoscível e no processo de admiração e cuidado da natureza. Dessa forma, ambos vivenciam a experiência do conhecer e do cuidar das vidas marginalizadas e excluídas.

Os educadores e os educandos, no processo de ascensão do conhecimento ingênuo para o conhecimento epistemológico, readquirem a admiração o encantamento pela vida. Portanto, o que estamos defendendo como educação humanizadora é aquela que valoriza o diálogo, o respeito à diversidade, a conscientização e, principalmente, o amor. É também uma expressão do cuidado ao mundo que sofre as consequências de uma formação desumana. Conforme Freire (2013, p. 77),

Não há outro caminho senão o da prática de uma pedagogia humanizadora, em que a liderança revolucionária, em lugar de se sobrepor aos oprimidos e continuar mantendo-os com quase “coisas”, com eles estabelece uma relação dialógica permanente. Prática pedagógica em que o método deixa de ser, como salientamos no nosso trabalho anterior, instrumento do educador (no caso, a liderança revolucionária), com o qual manipula os educandos (no caso os oprimidos) porque é já a própria consciência.

Não há dúvida de que, com a educação humanizadora que se traduz em atos de amor, de cuidado, de respeito ao próximo e conservação da vida, formaremos um mundo baseado na esperança. É por essa razão, afirma Freire (2016, p. 241), que lutamos para ver que “almas, antes proibidas simplesmente de falar, gritam e cantam; corpos proibidos de pensar discursam e arrebentam as amarras que os prendiam”. Como mencionado, a leitura crítica das obras de Paulo Freire demonstra a necessidade de uma pedagogia da vida e uma pedagogia ética, sobretudo coletiva e universal. Um método pedagógico do olhar, do escutar, do indignar e do transformar a realidade opressora em uma nova realidade de cuidado da vida.

Atualmente, observamos essa educação humanizadora na luta pela dignidade dos(as) e com os(as) oprimidos(as), a fim de manter a esperança e a utopia. Assim sendo, a esperança torna -se instrumento da própria luta pela liberdade em um sistema político e econômico neoliberal que causa desesperança nas mulheres e nos homens. Considerando tal sistema, Freire (2006, p. 131-132) assinala que,

Por isto é que sua esperança não é um convite à estabilidade, que não existe apenas no tradicionalismo, mas também na modernização alienadora. Sua esperança é um chamamento à caminhada, não a uma caminhada errante, de quem renúncia ou foge, mas à caminhada de quem toma a história nas mãos, fazendo-a e nela refazendo-se. Caminhada que é, em última análise, a sua Travessia necessária, na qual têm de morrer enquanto classe oprimida para renascer como homens e mulheres novos.

Ou seja, o educador pernambucano opta pelo cuidado dos seres humanos oprimidos, revelado na teoria e na práxis libertadora e autônoma. Assim, a pedagogia libertadora está centrada em uma ética universal que valoriza a vida. Na verdade, no ato de amor e de esperança que se fomenta em uma luta contínua pelo resgate da existência dos sujeitos oprimidos, negada pelos opressores.

Pensar a ética, o amor e o diálogo na educação libertadora e humanizadora é compreender que não estamos isolados, embora haja um mundo individualista e egocêntrico, porém, juntos em relação de responsabilidade e cuidado. Aqui, a presença do ser humano no mundo exige, diz Boff (2013), responsabilidade pela vida a partir de uma ética do cuidado de si, do outro e do mundo. Na relação com os outros, o ser humano se reconhece como “presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma” (FREIRE, 2016, p. 130).

O ser humano torna-se consciente, crítico, criador e recriador da cultura escrita da história. Boff (2014), sobre a relevância da pedagogia freireana, ainda salienta que é do rosto dos(as) oprimidos(as) que surge o método de Freire, uma vez que é uma resposta à opressão por meio da conscientização da humanidade dos sujeitos. Acerca disso, as mulheres e os homens que passam por esse processo individual e coletivo de conscientização da própria humanidade buscam, na práxis, modificar a realidade antidialógica e antiética. A esse respeito, Boff (2014, p. 251) assegura que “a pedagogia de Paulo Freire vem perpassada de humildade, de solidariedade para com a humanidade sofredora, cheia de esperança”.

Sendo assim, compreendemos, nessa pesquisa, que a novidade apresentada por Paulo Freire, e que continua a inspirar a práxis pedagógica, é que o amor aos outros e ao mundo resulta de uma educação dialógica cuja condição é dar continuidade à existência dos seres vivos no mundo. Ou seja, o amor, o diálogo, a ética e o cuidado são elementos essenciais para manutenção da vida e para o futuro da humanidade, principalmente em uma sociedade que fomenta o ódio, o racismo e o descuido com a natureza. A rigor, Freire (2001, p. 96) defende que “o diálogo não pode existir sem um profundo amor pelo mundo e pelos homens”.

Portanto, a educação libertadora, que brota da realidade dos(as) e com os(as) oprimidos(as), mesmo em meio a tantas tentativas de silenciá-la, continuará denunciando a injustiça e a violência que oprime; seguirá anunciando que a luta é prova do amor, do cuidado e do respeito pelo outro e pelo mundo. Conclui-se que essa educação da humanidade, da liberdade e da vida se concretiza na esperança, na luta e transformação do mundo.

Considerações finais

À guisa de conclusão, vimos que a educação humanizadora e libertadora surge em um mundo de humanidade e desumanidade. Nesse sentido, o método pedagógico freireano busca com os(as) oprimidos(as) desvelar o sistema dominante por meio da reflexão-ação. Entende-se que, a partir da conscientização da presença do opressor, os sujeitos, antes considerados objetos, podem lutar pela libertação, que acontece conjuntamente com a leitura do mundo e a leitura da palavra.

Faz-se necessário ressaltar que a pedagogia com os(as) oprimidos(as) não significa rejeita o sistema bancário, provendo, pelo contrário, o desvelar da opressão, de modo a respeitar o processo de libertação e a realidade cultural de cada educador(a). O sujeito, no seu processo de esclarecimento da opressão, vai libertando-se do medo que o aprisiona e do sistema opressor, que elimina a sua humanidade. A pedagogia freireana, nesse sentido, baseia-se na ética da vida que se concretiza em uma atitude amorosa com os outros e com o mundo. Sendo assim, é uma ação política, isto é, provoca nos sujeitos uma atitude crítica diante dos atos de destruição da vida. E, ao mesmo tempo, é uma prova de amor ao mundo que se revela na responsabilidade e no cuidado.

Freire pensa sobre uma ética universal que prioriza a vida, principalmente dos seres humanos considerados pela sociedade dominante como objetos manipuláveis. Essa ética surge da realidade do(a) e com os(as) oprimidos(as) por intermédio da conscientização. Além disso, no resgate da humanidade dos sujeitos, percebemos a amorosidade de Paulo Freire e a confiança nas mulheres e nos homens.

Conclui-se que a educação humanizadora e libertadora, no pensamento freireano, é um processo de esclarecimento reflexivo e de amor ao mundo. Nessa perspectiva, expressa-se no ato de cuidado, isto é, na relação ética com os seres humanos e no reconhecimento de sua humanidade como sujeitos de ação no e com o mundo. É uma educação baseada na vida, na esperança, no diálogo, na problematização, na consciência crítica do sujeito, na humanidade e na amorosidade ao mundo. Por isso, Freire continua presente na luta pela dignidade humana, e seu pensamento alimenta a esperança, sobretudo no ano de seu centenário, de construção de uma sociedade acolhedora e de uma ética universal, ou seja, do amor à vida.

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