Resumo: O artigo analisa a trajetória sociopolítica que a função de intérprete de língua gestual registou nas últimas décadas, em contexto internacional e em Portugal. São destacados os movimentos de participação e de empoderamento da comunidade surda e das Associações, na defesa e garantia de direitos. Apesar do reconhecimento público, a regulamentação da profissão de intérprete em Portugal ainda não é uma realidade. A recente visibilidade desta classe profissional, em sequência do contexto pandémico, antecipa novos caminhos para a dignificação da profissão e, desta forma, para a continuidade da missão de garantia dos direitos da comunidade surda. Estas condições e circunstâncias, transversais a outras nações, inspirarão, com certeza, caminhos internacionais de favorecimento do progresso social.
Palavras-chave: Intérpretes de língua gestual, Políticas linguísticas, Portugal, Governação.
Abstract: The article analyzes the sociopolitical evolution that the role of sign language interpreter has registered in recent decades, in the international context and in Portugal. The participation and empowerment movements of the deaf community and associations, in the defense and guarantee of rights, are highlighted. Despite the public recognition of the functions performed by these professionals, the regulation of the signing interpreting job in Portugal is not yet a reality. The recent visibility of this professional class is analyzed, following the pandemic context, with the prospect of new paths for the dignification of the profession and, in this way, for the continuity of the mission of guaranteeing the rights of the deaf community. These conditions and circumstances, transversal to other nations, will certainly inspire international paths to support social progress.
Keywords: Sign language interpreters, Language Policies, Portugal, Government.
Artigo
TRAJETÓRIA SOCIOPOLÍTICA DO INTÉRPRETE DE LÍNGUA GESTUAL PORTUGUESA: PROGRESSOS E RETROCESSOS
SOCIOPOLITICAL EVOLUTION OF THE PORTUGUESE SIGN LANGUAGE INTERPRETER PROFESSION: PROGRESS AND SETBACKS
Recepção: 11 Julho 2022
Aprovação: 18 Setembro 2022
Publicado: 01 Dezembro 2022
Em todo o mundo, parece haver uma perceção generalizada de que a profissão de intérprete de língua gestual se trata de uma função relativamente recente. Todavia, as primeiras referências a este profissional são verificadas em “textos mesopotâmicos de 2600 a.C. e chineses de 165 a.C.” (Napier, McKee, & Goswell, 2010apudBarbosa et al., 2016a, p. 194). Também na Bíblia se “destaca a importância do papel do intérprete nas Cartas de S. Paulo aos Coríntios, onde o Apóstolo os exorta a usar intérpretes, sempre que necessitem de falar numa língua diferente” (Barbosa et al., 2016a, p. 194).
Embora com uma longa história de existência, o reconhecimento do intérprete de língua gestual portuguesa (LGP) enquanto profissão, só foi possível após lutas contínuas por parte da comunidade surda para que pudessem participar ativamente na sociedade. Coelho & Rodrigues, no seu trabalho de 2019, e Nunes no seu trabalho de 2017, abordam sobre esses aspetos, sendo este fenómeno, transversal a vários países, permitiu evidenciar a utilidade e valor das Associações de intérpretes como uma alavanca impulsionadora de lutas e causas que têm vindo a permitir o reconhecimento e a tentativa de equidade quanto aos direitos deste profissional. Já Nunes (2017) e Quadros (2004), referem que a regulamentação da função de intérprete de língua gestual e da exigência da sua qualificação profissional, tem sido um dos papéis mais importantes que as Associações têm desenvolvido no sentido de garantir e salvaguardar os direitos da comunidade surda.
Embora a função de interpretação e tradução tenha sido, inicialmente, desempenhada por familiares ou amigos de pessoas surdas, atualmente, o intérprete de LGP é detentor de formação superior, encontrando-se a desenvolver a sua atividade profissional em múltiplos contextos (Barbosa et al., 2016a; Nunes, 2017; Quadros, 2004) sociais e educativos (Barbosa et al., 2016b, p. 132).
Apesar desta profissão ser reconhecida nos quadros legais de várias regiões do globo, pelo menos em Portugal, parece haver ainda a “necessidade de desconstruir e compreender algumas questões inerentes a esta profissão, a fim de promover um desempenho profissional com mais qualidade e mais eficiência” (Barbosa et al., 2016b, p. 132).
Uma dessas questões diz respeito ao contexto onde o profissional exerce a sua atividade, uma vez que as condições laborais e socioprofissionais parecem ser bastante díspares e importantes de analisar.
Este trabalho tem como objetivo proceder a uma descrição analítica acerca da trajetória deste profissional ao longo dos tempos, destacando-se os avanços e recuos que têm vindo a demonstrar ou, por vezes, a “bloquear” a sua visibilidade. Pese embora este retrato, o recente contexto pandémico, parece ter-se constituído como meio de destaque e protagonismo do intérprete.
A profissão de intérprete de língua gestual, em Portugal, acompanha a história deste profissional nos restantes países. O nascimento desta profissão é “paralela […] à crescente afirmação da comunidade surda e à implementação de legislação com vista à sua defesa” (Nunes, 2017, p. 18). Deste modo, compreendemos que esta necessidade e procura por este profissional foi sendo mais relevante à medida que a comunidade surda foi tendo um papel mais ativo e participativo na sociedade.
Em França, considerado como sendo “o epicentro da História da Comunidade Surda” (Quadros, 2004apudNunes, 2017, p. 19), os primeiros intérpretes reconhecidos tinham esse vínculo familiar ou afetivo, tendo sido reivindicado, em 1804, os direitos das pessoas surdas à interpretação. Em 1846, Berthier lutou por esse mesmo objetivo, não o conseguindo alcançar devido ao Congresso de Milão1, em que foi privilegiada a oralidade – momento que não favoreceu a presença deste profissional, tendo inclusivamente sido proibida a utilização de gestos na comunicação, ou seja, a língua gestual.
Foi na Suécia que esta profissão começou a ser assumida como tal, sobretudo através de trabalhos religiosos (Quadros, 2004, p. 13). Neste mesmo país, em 1947, surgiram cargos desenvolvidos por pessoas surdas no Parlamento que fizeram sentir a necessidade da presença de intérprete.
Ainda, de acordo com a mesma autora, nos Estados Unidos da América (EUA), Thomas Gallaudet - pioneiro na educação de surdos - foi considerado como sendo o primeiro intérprete de língua gestual, através da sua interação com o professor surdo Laurent Clerc (melhor aluno do “Instituto Nacional para Surdos Mudos”, de Paris e ensinou língua gestual a Thomas Gallaudet).
Mais tarde, em 1964, a Organização Nacional de Intérpretes dos EUA, definiu um conjunto de requisitos para o exercício desta profissão (Mendoza, 2010; Napier, 2004; Nunes, 2017; Quadros, 2004). Arriscamo-nos a dizer que se tratou de uma tentativa de criação de um primeiro código de ética.
Em 1971, dois intérpretes franceses, Gaillard e Dusuzeau, lutaram pela presença de tradução simultânea no Congresso da Federação Mundial de Surdos. Perante a atuação de colegas suecos e americanos, os intérpretes franceses e a comunidade surda conseguiram levar a cabo discussões públicas acerca da formação e da validação desta profissão (Nunes, 2017). É assim que, em 1977, surgem escolas para iniciar a formação de intérpretes de modo a garantir uma maior qualidade na prestação desta função. Em 1994, surge em França, um código de ética realizado por intérpretes e pessoas surdas, criando-se um cartão profissional que habilitava para o exercício das funções (Nunes, 2017).
Em Portugal, à semelhança do retrato destes países, também esta profissão passou por várias fases. Vários autores (Almeida, 2003; Barbosa et al., 2016a; Nunes, 2017; Quadros, 2004), realçam a importância dos filhos de pais surdos como sendo promotores da integração da comunidade surda na sociedade, bem como o pertinente papel das associações de surdos na formação deste profissional. Almeida (2003) considera a existência de três gerações de intérpretes em Portugal: Intérpretes, filhos de pais surdos (década de 80); Intérpretes com cursos profissionais realizados pelas associações de surdos (início dos anos 90); Intérpretes com formação superior (a partir de 1997/98).
Na perspetiva de Barbosa et al. (2016b), corroborando Carvalho, esta atividade começou a ser percecionada como tal através do primeiro curso organizado pelo Secretariado Nacional de Reabilitação cujo objetivo era formar profissionais qualificados. Mais tarde, o reconhecimento da LGP, em 1997, (artigo 74.º, n.º 2, h), da Constituição da República Portuguesa, conduziu ao reconhecimento da profissão de intérprete de LGP (Lei n.º 89/99 de 5 de julho).
No dia 22 de janeiro, comemora-se em todo o país o Dia do Intérprete de Língua Gestual Portuguesa. Essa data, que tem como objetivo valorizar este profissional, foi escolhida por coincidir com o dia da criação legal da primeira Associação de Intérpretes de Língua Gestual Portuguesa (AILGP) a 22 de janeiro de 1991. Neste mesmo período, um grupo de intérpretes, na sua maioria CODAS (Children of Deaf Adults), baseado no código deontológico dos intérpretes dos EUA (Interpreting for Deaf People), procedeu à elaboração de “um Código de Ética e Linhas de Conduta que orientasse os intérpretes de LGP em termos da sua postura ética e profissional” (Almeida, 2010, p. 16). Apesar de não ser reconhecido oficialmente, este código “foi tacitamente aceite e posto em prática ao longo dos anos” (Almeida, 2010, p. 16).
A título de exemplo, vejamos esta situação relativa à existência de um código de ética noutros países. No Brasil, existe um código de ética publicado em 2004 pelo Ministério da Educação em parceria com a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS). Este código é também adaptado do manual de conduta dos intérpretes de línguas gestuais dos EUA (Goulart, 2017). Na perspetiva deste autor, este documento tem grande influência na formação e desempenho dos intérpretes. No entanto, refere a existência de outro código de ética elaborado pela “Federação Brasileira de Profissionais Intérpretes de Língua de Sinais – FEBRAPILS, em 2014, […] buscando contemplar as especificidades da tradução/interpretação no Brasil” (Goulart, 2017, p. 2).
Podemos constatar que a maioria das associações de intérpretes são quem avança quanto à realização deste código, dada a necessidade de um conjunto de regras e orientações que regulem a atuação deste profissional. Perceciona-se, também, uma base comum a todos pois regem-se pelo modelo desenvolvido nos EUA. No entanto, o facto de se tratar, na sua maioria, de um código não reconhecido oficialmente dá aso à criação de vários códigos, consoante a Associação que o desenvolve. Urge, assim, a necessidade de alguma uniformização quanto a direitos e deveres dos intérpretes no exercício das suas funções. Reiteramos a perspetiva de Dias (2015apudNunes, 2017, p. 13), que considera que “o código de ética profissional e o saber técnico-científico são algumas das exigências imprescindíveis para o processo de profissionalização, fazendo assim a distinção entre uma profissão e uma ocupação”.
Pese embora o facto de a profissionalização ser um requisito legal em muitas nações (Drugan, 2017), alguns países, nomeadamente Alemanha, Luxemburgo ou Letónia, ainda não se profissionalizaram ao nível da interpretação da língua gestual (Council of Europe). Esta realidade não salvaguarda nem a importância da qualidade de serviços de interpretação, nem a identificação de papéis e funções dos intérpretes.
O interesse pela língua gestual em Portugal começou a desenvolver-se nos anos 80 do século XX. Foi em 1982, que o “Secretariado Nacional de Reabilitação organizou o primeiro curso para intérpretes de LGP com o objetivo de qualificar estes profissionais” (Barbosa et al., 2016b, p. 132). Apenas no final da década de 80’ se iniciou formalmente este processo de capacitação, promovido pelas Associações de surdos. Em 1989, a Associação Portuguesa de Surdos (APS) iniciava o seu primeiro curso. De 1992 a 1994 decorreu um curso de formação inicial de intérpretes com a parceria da Universidade Bristol, a Escola Superior de Educação (ESE) de Setúbal e a APS (Almeida, 2003). Ainda a Associação de Surdos do Porto (ASP), promoveu dois cursos de formação profissional em fevereiro e julho de 2000 (Almeida, 2003).
Com o reconhecimento da LGP na Constituição da República Portuguesa de 1997, a comunidade surda constituiu uma comissão de luta, celebrando-se todos os anos, o Dia Nacional da LGP a 15 de novembro. As associações de surdos, pais, intérpretes, professores, familiares e amigos fizeram-se representar nesta luta e, através de uma reunião com o governo, conseguiram incluir o reconhecimento da LGP na Constituição que estava a ser revista (Reis, 2019). No entanto, importa referir que se trata de uma língua reconhecida, apenas, como instrumento de acesso à educação para os/as alunos/as surdos/as, tal como se pode comprovar através da Constituição que refere que, o Estado Português compromete-se a “proteger e valorizar a língua gestual portuguesa enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da igualdade de oportunidades” (Portugal, 1997a, art.74º, h).
Fruto destas conquistas e das necessidades que foram sendo identificadas e problematizadas nos diferentes movimentos, em 1997, a Escola Superior de Educação de Setúbal foi a primeira instituição de Ensino Superior a fazer a oferta formativa de nível Bacharel em Tradução e Interpretação de Língua Gestual Portuguesa (Portaria n.º 542/97), mais tarde convertido para licenciatura (Portugal, 1997b).
Em 2001/2002, abre na Escola Superior de Educação do Porto o curso de bacharelato em TILGP, (tendo o mesmo passado a licenciatura em 2007). Depois, o passo seguinte, em termos curriculares, à luz do processo de Bolonha, foi a aprovação da licenciatura em TILGP (Despacho n.º 19041/2008, de 16 de julho, foi revisto em 2010, Despacho n.º 13979/2010, de 3 de setembro) (Portugal, 2010b). Foram também definidas áreas prioritárias de investimento onde se destaca a investigação científica sobre o processo de tradução e interpretação em LGP, área embrionária no nosso país e para a qual esta instituição se encontra numa posição particularmente preparada (Santos, s/d).
Em 2005, surge a Licenciatura em Língua Gestual Portuguesa, ramo de Tradução e Interpretação, pela Escola Superior de Educação de Coimbra, criada em 2005, como curso bietápico, através da Portaria n.º 595/2005 de 15 de julho (Portugal, 2005).
Ao nível de mestrado também tem havido algum investimento por parte das instituições de Ensino Superior. A Universidade Católica Portuguesa em resposta ao pedido do Instituto Jacob Rodrigues Pereira criou em 2006 o Mestrado em LGP, com três ramos de especialização: educação para surdos, tradução e interpretação e investigação. Este mestrado foi suspenso durante alguns anos, para que fosse reformulado de acordo com a legislação de Bolonha, voltando a funcionar no ano letivo de 2013/2014 (Lisboa, 2019). Promovendo o aprofundamento do Processo de Bolonha no ensino superior, a Escola Superior de Educação do Porto, ministra o ciclo de estudos conducente ao grau de mestre em Tradução e Interpretação em Língua Gestual Portuguesa (Portugal, 2010b) no ano letivo 2010/2011 a 2011 a 2012, no entanto, limitou-se a uma edição sendo descontinuado em dezembro de 2015. Em 2021, a Escola Superior de Educação do Porto, reconhecendo o enorme crescimento da profissão ao longo da última década e a necessidade de proporcionar oportunidades de formação avançada para os profissionais da tradução e interpretação, considerou que seria o momento de retomar a oferta de um curso de mestrado destinado a tradutores e intérpretes de LGP.
A profissão de intérprete de língua gestual é referida por vários autores como sendo, durante muito tempo, uma semiprofissão (Bontempo, 2013; Conker, 2020; Haualand, 2009), exercida e prestada voluntariamente por familiares, ou por pessoas que trabalharam noutras funções profissionais (Stone, 2010). Esses primeiros provedores de serviços de interpretação não foram formalmente educados como intérpretes profissionais de língua gestual, pois não havia formação na época. Mathers & Witter-Merithew (2014) descrevem como as comunidades surdas essencialmente vetaram aqueles que se tornavam intérpretes para garantir que tivessem as habilidades, temperamento e caráter apropriados para servir e proteger os interesses das pessoas surdas. No entanto, as pessoas surdas não estavam sozinhas em querer salvaguardar os interesses das suas comunidades, e aqueles que eram confiados como intérpretes acreditavam que, profissionalizando-se, poderiam proteger melhor os serviços de interpretação (Stone, 2010). De forma a enfatizar a importância da qualidade de serviços de interpretação, as Associações propuseram-se a identificar os papéis e funções dos intérpretes de língua gestual, a desenvolver exames para credenciar formalmente e registar os intérpretes adequados para entrar na profissão.
Assim, no que diz respeito às condições de acesso e exercício da atividade de intérprete de LGP, a Lei n.º 89/99, de 5 de julho, nas alíneas 1 e 2 do seu artigo 4.º, refere que a prática profissional deste “depende da adequada formação profissional e de certificação”, sendo que para isso “o Governo regulamentará o processo de acesso à profissão de intérprete de língua gestual, em que participará uma comissão que incluirá representantes das associações representativas da comunidade surda e dos intérpretes de língua gestual” (Portugual, 1999).
Todos estes movimentos originaram, nas últimas décadas, um aumento da participação das pessoas surdas no mercado de trabalho. Os contextos de trabalho também se foram diversificando, fazendo emergir o desempenho de múltiplas funções e, desta forma, criando um conjunto único de desafios que requerem estratégias especializadas.
Em Portugal, é referido no site da Associação de Tradutores e Intérpretes de Língua Gestual Portuguesa (ATILGP, 2020) que o intérprete de LGP atua em diferentes contextos: educativo, eventos, profissional, saúde, religioso, associativo, media, jurídico-legal, artístico, aulas e exame de código/condução, guia interpretação para surdocegos, entre outros.
Um outro contexto de atuação profissional é o serviço de vídeo-interpretação que permite quebrar as barreiras comunicacionais entre a comunidade surda e a comunidade ouvinte através de videoconferência, por telefone 3G ou on-line, via Portal através do Serviin. Ainda neste contexto, podemos referir o MAI 112 e o SNS 24 que consistem em aplicações que permitem ter acesso ao número nacional de emergência (112) e aos serviços do Sistema Nacional de Saúde.
No entanto, importa salientar que, o fornecimento de serviços de interpretação de língua gestual, de forma profissional, no setor público é um desenvolvimento bastante recente (De Meulder & Haualand, 2019).
Em termos práticos, a profissão de intérprete de LGP deve, como as demais, ser valorizada e dignificada. Mas, no que diz respeito às condições laborais e socioprofissionais no que toca a concursos, para exercer a profissão em contexto educativo, a contratação dos intérpretes de LGP dá-se como sendo Técnicos Especializados, mas com referência a necessidades transitórias, quando se trata de necessidades permanentes.
No entanto, importa referir que alguns destes intérpretes, tiveram recentemente a oportunidade de efetivar como técnicos superiores – assunto que será abordado posteriormente neste artigo.
Ser intérprete de LGP é reflexo, na maioria dos casos, de uma carreira sem estabilidade; com falta de materiais para preparação, sem acesso aos livros das disciplinas, como os professores têm, nomeadamente, através de códigos fornecidos pelas editoras.
Acresce ainda, e de acordo com Pereira (2011), citando Vieira, que parece existir, em geral, um desconhecimento da função do intérprete por parte da comunidade educativa, havendo até desconfiança relativamente ao trabalho do intérprete.
Importa reter que estas questões da falta de valorização e de dignificação dos intérpretes de LGP, são indissociáveis do reconhecimento necessário da LGP, quer constitucional, quer socialmente.
Com o objetivo de defender a profissão de intérprete de LGP, foram criadas ao longo das últimas três décadas, três diferentes Associações. A missão destas associações é referida nos seus websites ou redes sociais e convergem, no sentido de proteger a profissão de intérprete de LGP.
A primeira, tal como mencionado anteriormente, foi fundada a 22 de janeiro de 1991, por um grupo de intérpretes, maior parte CODA (Children of Deaf Adults), que anos mais tarde se extinguiu. Os seus objetivos passavam por estabelecer a mediação de comunicação entre a comunidade ouvinte e a comunidade surda e colmatar as necessidades de comunicação entre ambas, bem como representar e defender os interesses da classe profissional. Alguns contactos com intérpretes de outros países levaram à fundação da AILGP, com oito elementos; a associação cresceu e tinha, em 2001, 93 associados, entre eles: intérpretes de LGP, estagiários, e associados solidários surdos e ouvintes (AILGP, 2001).
Apesar de a Associação já se ter extinguido, esta desenvolveu diversas atividades, destacando-se a elaboração do Código de Ética e Linhas de Conduta do intérprete de LGP e, também, a elaboração do Gestuário – trabalho levado a cabo pelo então Secretariado Nacional de Reabilitação e Direção Geral do Ensino Básico e Secundário, com a participação de várias associações de surdos, da AILGP e de professores do ensino especial.
A 26 de outubro de 2007, é fundada a ATILGP, uma Associação representativa desta classe profissional em Portugal. Os objetivos que orientam a sua ação centram-se em valorizar e dignificar os profissionais intérpretes de LGP, melhorar as condições de trabalho e potenciar a acessibilidade e a inclusão da comunidade surda em todos os contextos sociais e educativos (Silva, 2020).
Importa referir que, têm sido estes movimentos e lutas da Associação que, através de webinares (disponíveis no Youtube), contactos com o Instituto de Reabilitação Nacional (INR) e várias reuniões com partidos com assento parlamentar têm permitido avançar, conferindo os devidos direitos para quem exerce esta profissão.
A 5 de julho de 2011, é fundada a ANAPI-LG – Associação Nacional e Profissional da Interpretação-Língua Gestual, que tem como objetivos a defesa da profissão e dos profissionais seus associados, bem como a difusão do exercício da profissão (ANAPI-LG, 2014).
Desde 2016 que, de dois em dois anos, realiza-se o Congresso dos Intérpretes de Língua Gestual Portuguesa, um evento que reúne intérpretes de LGP e investigadores para partilharem estudos, pesquisas e conhecimentos concebidos em Portugal, que muito têm contribuído para o crescimento desta classe científica e profissional.
Quanto à legislação, a Lei n.º 89/99 vem definir as condições de acesso e exercício da atividade de intérprete de LGP. Segundo o seu art. 2.º,
Consideram-se intérpretes de língua gestual portuguesa os profissionais que interpretam e traduzem a informação de língua gestual para a língua oral ou escrita e vice-versa, por forma a assegurar a comunicação entre pessoas surdas e ouvintes.
Recentemente têm sido várias as diligências com vista à regulamentação da profissão em Portugal. Por exemplo, em março de 2019, Ana Raquel Lima, pela ANAPI-LG, através da Petição n.º 609/XIII/4.ª, solicita a regulamentação da profissão de intérprete de LGP (Portugal, 2019). Em 2020 era publicado, na Lei n.º 2/2020, o orçamento do Estado para 2020 (Portugal, 2020a). O seu art. 252.º contemplava o reforço das condições de trabalho dos intérpretes de língua gestual. Estavam previstos três pontos: a) rever a Lei n.º 89/99, de 5 de julho; b) regulamentar o processo de acesso à profissão com consulta à comissão integradora de elementos das associações representativas da comunidade surda e dos intérpretes de LGP; c) criar uma bolsa de horas por ano letivo, não inferior a 12 horas/ano, a ser usada por famílias com progenitor surdo com filho em idade escolar (Portugal, 2020a).
Também em 2020, em junho, o Parlamento Português aprovou um projeto de lei (Bloco de Esquerda - BE) e dois projetos de resolução (Partido Ecologista “Os Verdes” - PEV e Partido das Pessoas, dos Animais e da Natureza - PAN) para a regulamentação da profissão de intérprete de LGP, que visam valorizar esta carreira (Lopes, 2020). Recentemente, várias propostas têm sido entregues no Parlamento Português para atualização da situação dos intérpretes de LGP, nomeadamente:
Projeto de Lei n.º 402/XIV/1.ª do BE: ajustar o quadro legal à realidade atual (Portugal, 2020b).
Projeto de Resolução n.º 422/XIV/1.ª do PEV: contratação de intérprete de LGP para os serviços públicos (saúde e a educação); revisão da Lei n.º 89/99, de 5 de julho; inclusão da profissão na base de dados relativos às habilitações de nível superior (Portugal, 2022c).
Projeto de resolução do PAN: regulamentação do acesso e exercício da profissão e a criação de uma bolsa de horas por ano letivo (mínimo 12 horas anuais) para progenitores surdos com filhos em idade escolar.
Orçamento de Estado de 2021: “no primeiro trimestre de 2021, o Governo procede à regulamentação da profissão de intérprete de língua gestual portuguesa”.
De facto, a profissão de intérprete de LGP ganhou maior visibilidade com a pandemia, aspeto que será tratado em maior detalhe mais à frente. No entanto, os cerca de 200 intérpretes que existem em Portugal continuam a aguardar pela regulamentação desta profissão no país (Antena 1, 2021).
Ao longo dos anos, a profissão de intérprete tem vindo a sofrer um conjunto variado de desafios que nos impulsionam para constantes avanços e recuos que importa analisar. Uma das questões, já abordadas anteriormente, prende-se com a estabilidade pessoal, profissional e financeira deste trabalhador.
Sousa (2015) refere que a procura por este equilíbrio conduz a que a maioria destes profissionais opte pelo serviço em escolas de referência para a educação bilingue de alunos surdos (EREBAS). Rodrigues & Coelho (2019, p. 77) corroboram estes autores e vão ao encontro de Gonçalves (2018) e Santos (2015), referindo que “em Portugal, o contexto educativo acolhe a maior percentagem destes profissionais no ativo”. Durante muito tempo, os intérpretes teriam de concorrer a um concurso de oferta de escola, de modo a poder ingressar neste meio. Atualmente, surgiu a recente oportunidade com o programa PREVPAP2, de alguns destes profissionais poderem efetivar na carreira de técnico superior na função pública. Tratou-se de uma oportunidade única de constituir progressão na carreira – avanço significativo para os intérpretes educativos. No entanto, vários profissionais ficaram de fora deste programa, continuando a concorrer para oferta de escola, sendo o número de vagas bastante reduzido e, não dando assim, grandes hipóteses de obter emprego nesta área (Nunes, 2017; Pereira, 2011).
Porém, este ponto acarreta consigo, outro conteúdo que há muito se debate – a questão da avaliação. Perspetivando os resultados provenientes de um estudo realizado por Rodrigues & Coelho (2019, p. 86), a avaliação constitui um “processo […] de reflexão sobre as competências de cada um e do que precisa aprimorar para contribuir para a melhoria dos contextos, do desempenho profissional e do reconhecimento social da profissão.” Branco (2019, p. 143) perceciona igualmente este assunto, considerando como sendo “uma mais-valia” de modo a “enriquecer as áreas a melhorar com uma resposta formativa adequada”.
De facto, “em Portugal, não se verifica a existência de uma avaliação formal e específica para intérpretes” (Branco, 2019, p. 139).
Todavia, não nos podemos esquecer que os intérpretes a trabalhar em diferentes contextos experienciam uma situação de precariedade profissional, uma vez que: são trabalhadores independentes – regime de recibos verdes; estão sujeitos a contratação precária, sucessivamente ao longo dos anos, causando instabilidade funcional e familiar; o uso e abuso do trabalho a meio-tempo; o tempo de serviço do intérprete de LGP no Ensino Superior não é contabilizado para futuro trabalho em outros Ministérios. Por isso, reforça-se a ideia da necessidade de revisão e homologação do código de ética, clarificando aspetos como as condições de trabalho, remunerações, tempos ativos e de descanso e linhas de conduta adequadas aos diferentes contextos profissionais, entre outros.
A questão do voluntariado é outro desafio na profissão de intérprete de LGP. Num estudo levado a cabo por Barbosa et al. (2016a, p. 205), cujo objetivo consistia em compreender a influência do voluntariado na (des)valorização da profissão, verificamos que “a questão do voluntariado/trabalho gratuito surge com alguma frequência […] nos quotidianos destes/as profissionais”. Contudo, este aspeto assume, relevância pois o excesso de trabalho voluntário conduz a dilemas acerca do reconhecimento e valorização da profissão.
Todavia, verifica-se cada vez mais, a título empírico, a consciência por parte da sociedade de que ser intérprete é ter uma profissão e que, consequentemente, deve ser remunerada.
Outro ponto que urge abordar relaciona-se com a formação para intérpretes. Na perspetiva de Nunes (2017), este aspeto, fundamental para a constante e necessária atualização de conhecimentos, possui algumas lacunas. O autor refere-se, assim, ao facto de que noutras profissões existem “entidades que [a] fornecem”, mas, no caso do intérprete, essas ações são escassas. Empiricamente, sabemos que as formações que surgem são provenientes das Escolas Superiores de Educação e das Associações, as quais são pagas pelo próprio interessado. Constata-se, assim, que esta realidade é corroborada por Nunes (2017, p. 26) ao mencionar que “os intérpretes apoiam-se uns nos outros para poderem fazer o seu trabalho de forma adequada”, partilhando estratégias eficazes de interpretação.
Ora, todo este cenário, reforça o valor e a utilidade do associativismo na vida desta profissão. No estudo realizado por Nunes, com o objetivo de caraterizar o grupo profissional dos Intérpretes LGP, a maioria dos doze entrevistados referiram as associações como sendo “uma mais valia”, destacando o seu papel na valorização do intérprete de LGP.
Todavia, não podemos negar um fator preponderante que veio abalar as nossas vidas e alterar todas as nossas rotinas, mas que se traduziu num “boom” de solicitações de intérpretes de LGP – a pandemia por COVID-19.
Com o início da pandemia, vários setores da sociedade sofreram alterações significativas (Flores & Gago, 2020). As inúmeras conferências de imprensa constituíram um elemento chave na visibilidade do intérprete de LGP.
Outra questão relevante, que levou a esta maior visibilidade relaciona-se com o facto de o intérprete de LGP não surgir na pequena janela a que estamos habituados, mas, sim, irromper em grande plano junto dos oradores, devendo-se tal à “pressão exercida por grupos de surdos […] em torno da necessidade de acessibilidade à informação” (Diaz Cintas & Remael, 2007 apudVieira, Assis & Araújo, 2020, p. 99).
Outro progresso que a pandemia despoletou no âmbito dos direitos da comunidade surda e da presença do intérprete de LGP foi a implementação do serviço SNS 24 através de videochamada, tal como já foi referido anteriormente. Desta forma, as pessoas surdas usufruem de autonomia no que diz respeito a esta questão de saúde.
Mas, se por um lado, esta situação consistiu num avanço quanto à importância do papel do intérprete, por outro lado, teme-se que esta evidência se perca com o acalmar da pandemia (Campos, 2021).
Partindo desta vantagem, resultante da situação pandémica, a solicitação de intérprete de LGP para outros serviços teve um crescendo significativo e, empiricamente, sabemos que o número de pedidos aumentou exponencialmente. De momento, podemos perspetivar um futuro promissor, assente na esperança de que este reconhecimento se mantenha e de que o devido valor do intérprete seja constatado.
Compreender a profissão de intérprete de LGP e qual o seu papel implica analisar o seu percurso ao longo da história. É possível, então, verificar que a situação em Portugal acompanhou paralelamente aquilo que foi vivido noutros países nomeadamente, França – o “epicentro da História da Comunidade Surda” (Nunes, 2017, p. 19). Em vários locais, a profissão de intérprete surge a par da necessidade da sua presença decorrente da participação da comunidade surda, cada vez mais proeminente, na sociedade.
Partindo desta abordagem, constatam-se várias lutas e desafios que vão desde a formação deste profissional, inicialmente desempenhada por familiares e amigos próximos das pessoas surdas, até ao alcance do curso de ensino superior (Barbosa et al., 2016a; Nunes, 2017; Quadros, 2004).
Progressivamente, apreende-se que o desempenho das suas funções começa a surgir em diversos contextos que, aos poucos, vão abrindo portas que outrora estiveram fechadas (ATILGP, 2020; De Meulder & Haualand, 2019).
Para que tal pudesse acontecer, confirmamos que as Associações assumiram e continuam a manifestar um importante papel na luta diária pelo reconhecimento e dignificação da profissão. Destacamos neste artigo, associações como a ATILGP e a ANAPI-LG, cujos objetivos surgem no sentido de defender a profissão e os seus associados (Nunes, 2017).
De entre os seus esforços, surge um fator que assume um papel preponderante neste caminho: a revisão da lei e a regulamentação da profissão do intérprete de língua gestual em Portugal. Nesse sentido, vários têm sido os projetos-lei e os projetos de resolução. No entanto, continuamos a aguardar que tal aconteça: a regulamentação da profissão de intérprete ainda não é uma realidade neste país (Antena 1, 2021).
Neste âmbito, reconhecemos um conjunto de progressos e retrocessos quanto à visibilidade deste profissional. Se por um lado, há uma maior consciência por parte da sociedade quanto ao intérprete como sendo uma profissão efetiva; por outro lado, a precariedade socioprofissional continua a ser um facto indubitável.
De qualquer modo, não podemos negar que a pandemia por COVID-19 conduziu a um aumento na procura destes profissionais, levando ao seu destaque diariamente em conferências de imprensa e outros eventos (Campos, 2021).
Expectamos, assim, com este artigo ter contribuído para uma perspetiva holística acerca da trajetória deste profissional em Portugal, através de uma descrição e análise da situação ao longo dos tempos. Partindo de alguns marcos contextuais na carreira do intérprete de LGP, podemos repensar em novos desafios e metas a atingir, “empoderando” esta profissão com vista a um futuro com maior dignidade e reconhecimento.
E-mail: susanabarbosa@ese.ipp.pt. E-mail: susanabranco@aedonamaria.pt. E-mail: ana_oliveira_17@hotmail.com. E-mail: carlaserrao@ese.ipp.pt.