Resumo: Este artigo apresenta o percurso realizado durante o processo de tradução do capítulo V: “Gli Indios Apinages, Gaviões, Carayas, Anambés, Indios di tribù sconosciute” [Os Índios Apinajés, Gaviões, Carajás, Anambés, Índios de tribos desconhecidas], extraído de Una escursione botanica nell’Amazzonia [Uma excursão botânica na Amazônia] (1901), do piemontês Luigi Buscalioni (Turim 1863 – Bolonha 1954), médico, botânico e professor universitário, que em 1898 iniciou uma viagem de cerca de dois anos na região amazônica do Pará. A viagem e seu respectivo relato tiveram o propósito de buscar e fornecer informações científicas a respeito da fauna, da flora e dos povos da Amazônia brasileira, e, como tal, a narrativa está imbuída do pensamento colonialista da época, que o trabalho de tradução busca problematizar.
Palavras-chave: Luigi Buscalioni, uma excursão botânica na Amazônia, povos indígenas, tradução comentada e anotada.
Abstract: This article presents the process of translating Chapter V: “Gli Indios Apinages, Gaviões, Carayas, Anambés, Indios di tribù sconosciute” [The Apinajés, Gaviões, Carajás, Anambés Indians, Indians of unknown tribes], taken from Una escursione botanica nell’Amazzonia [A botanical excursion in Amazonia] (1901), by the Piedmontese Luigi Buscalioni (Turin 1863 - Bologna 1954), a doctor, botanist and university professor, who in 1898 embarked on a two-year journey to the Amazon region of Pará. The purpose of the trip and its respective account was to seek out and provide scientific information about the fauna, flora and peoples of the Brazilian Amazon. As such, the narrative is imbued with the colonialist thinking of the time, which the translation seeks to problematise.
Keywords: Luigi Buscalioni, uma excursão botânica na Amazônia, indian people, commented and annotated translation.
Artigos
LUIGI BUSCALIONI E A DESCRIÇÃO DOS INDÍGENAS DA AMAZÔNIA: TRADUÇÃO DE RETRATOS E (PRE) CONCEITOS
LUIGI BUSCALIONI AND THE DESCRIPTION OF THE INDIGENOUS PEOPLES OF THE AMAZON: TRANSLATION OF PORTRAITS AND (PRE)CONCEPTS
Recepção: 27 Julho 2023
Aprovação: 06 Setembro 2023
Publicado: 01 Outubro 2023
Os dois primeiros volumes de Traduzindo a Amazônia (Guerini, Torres & Fernandes, 2021; Guerini, Torres & Fernandes, 2022) apresentam cerca de 20 experiências de viagens pela região da Amazônia, realizadas por homens e mulheres europeus dos séculos XVI ao XX, motivados(as) pelos mais diversos interesses, o que nos permitiu conhecer, discutir e ampliar problemáticas e significados de cultura(s), (de)colonização, genocídio, etnotradução, gênero, tradução comentada, dentre outros. O trabalho das organizadoras, do organizador e dos tradutores e tradutoras que se dedicaram tanto à tradução dos textos quanto à sua apresentação destaca perspectivas, personagens e temas variados que nos mostraram muitas vezes um Brasil pouco conhecido em suas relações com as metrópoles europeias.
O texto que aqui apresentamos pretende ser uma contribuição a essa amostra de autores(as) e obras que vêm trazendo novos olhares sobre o imaginário europeu em relação à Amazônia, sobre o cotidiano das navegações e das regiões percorridas, sobre as características da fauna e flora, do clima, dos tipos humanos e das manifestações culturais, bem como sobre o impacto euro-colonial na sociedade brasileira, em especial sobre a região amazônica.
Escolhemos para esta edição uma parte do livro Una escursione botanica nell’Amazzonia [Uma excursão botânica na Amazônia], do piemontês Luigi Buscalioni (1901) (Turim 1863 – Bolonha 1954), que foi médico, botânico e professor universitário, mais especificamente o Capítulo V, intitulado “Gli Indios Apinages, Gaviões, Carayas, Anambés, Indios di tribù sconosciute” [Os Índios Apinajés, Gaviões, Carajás, Anambés, Índios de tribos desconhecidas]. Em um primeiro momento, destacaremos aspectos da vida e da obra do autor para então tratar do conteúdo do livro e depois abordar alguns de nossos procedimentos tardutórios.
No Dizionario Biografico degli Italiani1, Valerio Giacomini (1972) destaca alguns momentos mais significativos da vida de Buscalioni como, por exemplo, o fato dele ter se formado em medicina e cirurgia, e posteriormente em ciências naturais. Giacomini (1972) informa ainda que ele trabalhou como professor de botânica nas Universidades de Turim e de Parma, e, como médico, realizou viagens ao Oriente, Índia e Sul da América. Por conta dessas viagens e da produção científica delas originadas, tornou-se conhecido também fora da Itália, especialmente na Alemanha, onde trabalhou em Gotinga em técnicas microscópicas e de citologia. Valerio Giacomini (1972) chama ainda atenção para o fato de que Buscalioni, de volta à Itália após a viagem à região amazônica, iniciada em 1898, continuou suas pesquisas, sobretudo em fisiologia, passando pelas universidades de Pavia, Sassari e Catania, onde em 1906 assumiu também a direção da instituição e do horto botânico. Nesse período desenvolveu numerosos estudos, em especial sobre espécies exóticas que incluíam o acervo do local. Em 1923, assumiu a direção do horto botânico da Universidade de Palermo, e em 1928 se transferiu para Bolonha, onde continuou ampliando suas investigações, dedicando-se também a pesquisar cogumelos, neoplasmas, lipóides, fitogeografia, fisiologia e morfologia vegetal, além de debruçar-se sobre etnologia, anatomia humana e patologias. Suas experiências e conhecimentos lhe renderam homenagens e reconhecimento de várias sociedades científicas tanto na Itália como no exterior, embora sua vida tenha sido marcada também por desavenças com o universo acadêmico.
O Dizionario Biografico degli Italiani apresenta ainda um elenco de 23 obras publicadas por Buscalioni (1901), cujos temas, como foi dito, inserem-se principalmente no campo da citologia vegetal. Há, também, algumas indicações de obras que mostram outros interesses do autor, como Contribuzione allo studio della flora del Tocantis-Araguya e del Rio delle Amazzoni [Contribuição ao estudo da flora do Tocantins-Araguaia e do Rio Amazonas] (1911, em colaboração com G. Muscatello); Due apparecchi per attenuare l’inquinamento dei pozzi e delle cisterne [Dois aparelhos para atenuar a poluição dos poços e das cisternas] (1916), Frammenti di storia della botanica contemporanea italiana [Fragmentos de história da botânica contemporânea italiana] (1921); Le principali formazioni vegetali dei tropici e le vicende delle mie esplorazioni scientifiche intorno al mondo [As principais formações vegetais dos trópicos e os acontecimentos das minhas explorações científicas ao redor do mundo] (1944-45).
Acreditamos, como tradutoras, ser importante citar e considerar a amplitude de atuação do autor traduzido, pois o conjunto de obras publicadas nos indica um perfil de cientista que buscava, no limiar entre o século XIX e o século XX, pautar-se na observação e no estudo da natureza, como apregoavam os positivistas. Não por acaso o século XIX viu aumentar a quantidade de viajantes estrangeiros em terras brasileiras – exploradores, botânicos, naturalistas, jornalistas que, quase sempre a serviço de algum governo, adentravam rios e matas com a finalidade de descobrir novas espécies animais e vegetais, (re)conhecer novas formas de organização humana, ainda que sob o olhar marcado pela visão de mundo eurocêntrica para, não menos importante, beneficiar-se do que foi explorado, e beneficiar o país que representavam.
O relato de viagem Uma excursão botânica no Amazonas, foco deste estudo e tradução foi, portanto, vertido para o português sob a premissa de que é um texto carregado de significados que extrapolam a superfície que nos é dada a conhecer através dos componentes linguístico-gramaticais do texto. Sobre esses significados podemos levantar hipóteses, e, sobretudo, não podemos desconsiderar a carga cultural que mostra a visão de mundo do colonizador, para, por fim, propor alguma reflexão sobre como passado e presente se comunicam. Inicialmente, gostaríamos de ressaltar que o texto de Buscalioni resultou da viagem por ele iniciada em 15 de março de 1898, e teve o propósito de ser uma excursão científica destinada à pesquisa em botânica nas florestas da Amazônia brasileira. O relato tem a assinatura do autor, com a data de 30 de abril de 1900, tendo sido publicado em Roma em 1901, pela Società Geografica Italiana2.
Giacomini (1972, s. p., grifos nossos) indica parte do resultado da viagem de Buscalioni que:
[...] subiu os rios Tocantins e Araguaia na região do rio Amazonas no trecho de Belém a San Vincenzo, trazendo de volta trinta mil espécimes de plantas, materiais morfológicos e biológicos, principalmente Podosternáceas, formigas, parasitas, epífitas, saprófitas e madeireiras. Trouxe também dessas viagens ao Brasil um rico acervo etriográfico que foi consignado ao Museu Hemográfico e um acervo geológico destinado ao Museu Geológico da Universidade de Roma
(Giacomini, 1972, s. p., grifos nossos)3.Una escursione botanica nell’Amazzonia, de Buscalioni (1901), está dividido em doze capítulos, assim intitulados em nossa tradução:
De Roma ao Pará;
Em viagem pelo Tocantins e Araguaia;
Através dos Campos. Dois dias entre os índios Apinayé. O retorno;
O brasileiro sob o ponto de vista étnico e social;
Os índios Apinayé, Gaviões, Carajá e Anembé. Índios desconhecidos;
Doenças dominantes nas regiões exploradas;
Fauna do Tocantins. Principais animais úteis e nocivos;
Vegetação do Tocantins e da foz do Rio Amazonas;
Principais plantas cultivadas ou úteis do Pará;
A região do Rio Tocantins do ponto de vista climático e geológico;
Os Campos. Teoria sobre a sua origem;
As plantas formicárias americanas. Uma nova teoria sobre a Mirmecofilia.
Como é possível visualizar pelos títulos, Buscalioni (1901) dedica-se a descrever aspectos da vegetação, da condição climática e geológica, das etnias indígenas, doenças e insetos típicos das regiões visitadas, com destaque para o Rio Amazonas e o Rio Tocantins, confirmando o seu compromisso em apresentar-se ao público italiano como cientista imbuído da missão de pesquisar e também de comunicar o que vira.
Ademais, dedica parte do seu relato à descrição de alguns aspectos da sociedade brasileira, com destaque para a composição das cidades, o modo de vida urbano e rural, a arquitetura das casas e dos centros urbanos, a alimentação e o cultivo agrícola, as festividades regionais, dentre outros temas, de modo que nos fornece um retrato da organização social da época.
Por fim, como apêndice ao livro, encontra-se o texto Il progetto d’impianto di un Istituto botanico internazionale nell’Amazonia [Projeto de implantação de um Instituto botânico internacional na Amazônia], missão que lhe teria sido dada pelos governos do Pará e da Amazônia, e que acabou não se realizando.
O texto de Buscalioni (1901) é rico em referências que narram experiências de confronto com a natureza e o ser humano, e como os(as) demais viajantes que também passaram pela região, realiza uma leitura do “novo” mundo irredutivelmente marcada pela perspectiva eurocentrista da qual fazia parte e que via o indígena como um indivíduo de cultura e capacidade inferior ao colonizador branco europeu, e a natureza como um elemento a ser dominado e explorado. Não é difícil compreendermos esse pensamento se considerarmos a hipótese de Tzvetan Todorov (1999, p. 6) de que “[...] é a conquista da América que anuncia e funda nossa identidade presente”, e sobre a qual muito poderia se falar, mas aqui pensamos especificamente no (des)encontro entre os europeus e as até então desconhecidas populações indígenas da América. No século XVI, com a chegada do europeu à América, o mundo finalmente complementava-se para o europeu, mas a estranheza, o não reconhecimento da humanidade dos povos das terras recém encontradas ocasionou “[...] o maior genocídio da história da humanidade” (Todorov, 1999, p. 6).
Séculos depois, as referências europeias ainda se perpetuavam como modelo de vida e de pensamento, e, podemos adiantar, Buscalioni (1901), não fugindo à norma do seu tempo, enxergou, tratou e descreveu os indígenas com o mesmo arsenal de valores eurocentristas, de modo que o encontro com as populações autóctones não provocou surpresa ao viajante já acostumado a ver e considerar esses povos como inferiores, ou “sem fé, lei ou rei”, como o português Pero de Magalhães Gandavo havia escrito no seu Tratado da Terra do Brasil, em 1573: “[...] a língua deste gentio toda pela costa é uma: carece de três letras – scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente” (Gandavo, 2008, p. 66).
No relato de Buscalioni (1901), em especial no capítulo aqui traduzido, “Os Índios Apinajés, Gaviões, Carajás, Anambés, Índios de tribos desconhecidas”, podemos ver em diferentes momentos a continuidade do mesmo pensamento colonizador dos portugueses na América. O viajante apresenta ao leitor italiano a sua visão sobre os grupos indígenas dos quais teve conhecimento e ou algum contato, que, como vimos, é herdada da visão que os quinhentistas tiveram sobre as terras do Novo Mundo. Poderíamos dizer, portanto, que a maneira de ver o outro está já contaminada e pré-formada pelo imaginário existente a respeito desse outro. Veremos alguns exemplos; ao falar sobre a habitação dos Apinajés4, por exemplo, escreve ele:
Dentro das cabanas há uma grande pobreza. No empoeirado chão estão amontoados, em total desordem, abóboras e cascos de tartaruga; nas paredes e no teto estão pendurados arcos, flechas, colares de vários tipos, esteiras, abacaxis, bananas e outros objetos, e o resto da cabana está por fim quase todo ocupado pelas camas. E que tipo de camas!
(Buscalioni, 1901, p. 58)5.Em todo o relato não é difícil encontrar passagens como a que acabamos de mostrar, que, apesar de serem aparentemente apenas descritivas, parecem indicar um certo preconceito, por parte de Buscalioni, do modo de viver encontrado nos locais visitados. Expressões como “grande pobreza”, “empoeirado chão”, “amontoados em total desordem”, “e que tipo de camas!” indicam que o viajante é tocado por características que a seu ver constituem a falta de civilidade dos povos indígenas, tendo como contrapartida os próprios costumes europeus. Seu olhar, acostumado às construções das cidades italianas, com seus palácios, casas, pontes, parques e decoração de inspiração barroca e neoclássica, certamente não estava preparado para compreender os conceitos de “riqueza”, “pobreza”, “ordem”, dentre outros, que na vivência dos indígenas certamente tinham outro significado.
O mesmo acontece quando ele descreve as características físicas dos indígenas e a organização social dos mesmos:
[Apinajés] Os lábios são grandes e úmidos. O lábio inferior é também artificialmente deformado com um buraco de cerca de um centímetro de largura, que os Indianos costumam tapar com um pequeno disco de madeira ou com uma rolha de cerca de três centímetros de comprimento adornada com penas. Quando falta a rolha, a saliva flui como um sutil fio de água do buraco, o que certamente contribui muito para tornar a figura repulsiva
(Buscalioni, 1901, p. 59)6.
Os vários membros da tribo vivem em muito bom acordo entre eles sob a direção de um líder. A organização social é, no entanto, como se compreende, bem rudimentar. Existe, é verdade, por exemplo, um simulacro de casamento, mas do ponto de vista dos efeitos, por assim dizer, jurídicos, que dele emanam, estamos somente diante de uma ridícula cerimônia destituída de qualquer importância
(Buscalioni, 1901, p. 60)7.
Desta tribo [Anambés8] me foram apresentados dois indivíduos, um dos quais vivia numa casa colonial perto de Alcobaça, o outro em Arumateua. O primeiro era um menino chorão, a quem a nossa presença incutia um medo extraordinário. De fato, assim que eu tentava me aproximar, ele fugia chorando e fazendo caretas, o que lhe dava uma aparência quase bestial. Era filho de um Índio, mas sua mãe era brasileira, o que não havia atenuado os estigmas do tipo selvagem. O outro era um homem já maduro, que o Sr. Mondico mantinha ao seu serviço. De característico apresentava apenas algumas faixas de tatuagem em suas bochechas, um bom grau de prognatismo e uma pronunciada saliência das bochechas. O tipo, em suma, era o de um criminoso
(Buscalioni, 1901, p. 67)9.
Era meu desejo exportar do cemitério alguns crânios, mas para conseguir tive que lutar com muitas dificuldades, que superei dando alguns objetos ao chefe da tribo e fazendo-o acreditar que eu, estando em íntima relação com Deus, poderia levantar ao céu algumas orações pelos mortos, se eu tivesse à disposição os crânios, porque sem eles Deus não iria entender por qual morto eu estava orando. Com tal sistema, que tentei tornar mais persuasivo acompanhando as palavras com gestos espirituosos, como se estivesse tomado por um acesso de êxtase religiosa, obtive dois crânios de homens, um de criança e outro de mulher. Um destes crânios apresentava apófises estilóides muito longas, enquanto outro tinha ossos Wormianos muito desenvolvidos. Os quatro crânios foram enviados ao inteligentíssimo Prof. Cesare Lombroso, que, animado pela cortesia que o distingue, me prometeu ilustrá-los com algumas dicas para a minha obra: De Roma à Maloca etc.
(Buscalioni, 1901, p. 62)10.Não podemos deixar de ressaltar a referência afetuosa que Buscalioni (1901) faz ao então renomado médico psiquiatra, cientista e criminalista Cesare Lombroso, nascido em Verona em 1935 e falecido em 1909. Lombroso, como se sabe, é considerado o pai da antropologia criminal, corrente científica que ganhou força no final do século XIX e que defendia, grosso modo, que determinadas características faciais determinariam a predisposição (ou não) de um indivíduo à chamada degeneração moral, à conduta antissocial e, em casos mais graves, ao crime. A título de exemplo, reportamos algumas das hipóteses por ele exploradas no seu tratado de mais de 500 páginas sobre o assunto:
[...] muitas características apresentadas pelos selvagens [...] são visíveis com muita frequência nos delinquentes natos. Tais seriam, por exemplo, a escassez de pelos, a pouca capacidade craniana, a testa recuada, os seios frontais altamente desenvolvidos, [...] o enorme desenvolvimento das mandíbulas e das maçãs do rosto, o prognatismo, a obliquidade das órbitas, a pele mais escura, o sistema capilar mais grosso e enrolado [...] a precocidade aos prazeres venéreos e ao vinho e a paixão exagerada por eles [...] a pouca sensibilidade à dor, a completa insensibilidade moral, a preguiça, a falta de remorso, a impulsividade, a excitabilidade físico-psíquica e sobretudo a imprevidência, que às vezes parece coragem, e a coragem que se alterna com a covardia, [...] a superstição fácil, a suscetibilidade exagerada do próprio ego e até mesmo o conceito relativo de divindade e moralidade
(Lombroso, 1897, p. 503-507)11.Quando Buscalioni (1901) descreve as populações indígenas, conforme os exemplos que mostramos, é difícil não pensar que a sua visão e maneira de compreender o modo de viver das pessoas encontradas já estava pré-formada e as teses de Lombroso (1897), ao que parece, tiveram parte importante nesse processo, como se nota, por exemplo, no momento em que Buscalioni (1901) associa diretamente características físicas humanas descrita por Lombroso (1897) – prognatismo e bochechas salientes – à respectiva conduta social, na já citada passagem: “[...] o tipo, em suma, era o de um criminoso” (Buscalioni, 1901, p. 67)12. Ao mesmo tempo em que é imperativo na sua análise, apresenta também, no seu relato, uma possível “solução” para resolver ou ao menos amenizar o “problema” do Brasil: a interferência do Estado e das instituições religiosas. Ele termina o capítulo dizendo: “seja-me permitido expressar meu desejo de que os diferentes Governos do Brasil [...] venham a estabelecer ao longo dos rios infestados pelos selvagens centros coloniais encarregados de catequizar as várias tribos” (Buscalioni, 1901, p. 68)13.
Faz-se importante notar aqui que, enquanto tradutoras, de forma alguma concordamos com tais ideias, hoje tidas como preconceituosas e racistas. Por que então traduzir um texto que está na contramão da valorização e da defesa da diversidade e da cultura dos povos indígenas do Brasil e da América? Por que dar espaço ao homem europeu branco que, sob a justificativa de promover e aprofundar a ciência e a religião, torna-se porta-voz de mais um projeto colonizador exploratório cujo objetivo maior é eliminar as diferenças, anular as referências culturais autóctones e obrigar os povos indígenas a viverem dentro dos valores da cultura europeia?
Para responder a essas questões precisamos antes de tudo compreender que entre a nossa época e o período em que o relato de Buscalioni foi escrito há uma notável distância temporal, e, como faz o olhar do historiador, sabemos da necessidade de considerar a experiência do autor a partir da visão de mundo de então; do contrário, cairíamos num julgamento inadequado, baseado no nosso lugar de fala e nos nossos valores atuais, e esse anacronismo histórico invalidaria a nossa análise. Por outro lado, contudo, não podemos deixar de pensar também que muitas das ideias, conceitos e preconceitos do autor se perpetuam até hoje, e nesse sentido acreditamos que tais questionamentos são fundamentais dentro do nosso projeto tradutório. Tomamos em consideração o conceito de solidariedade entre as épocas, assim descrito pelo historiador francês Marc Bloch, torturado e fuzilado pela Gestapo em 1944: “[...] a solidariedade das épocas tem tanta força que entre elas os vínculos de inteligibilidade são verdadeiramente de sentido duplo. A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente” (Bloch, 2002, p. 65).
Nessa perspectiva, uma vez que o conhecimento do passado se transforma e se aperfeiçoa sem cessar, passado e presente se interpenetram, e sem a faculdade de compreender o que é vivo, o que é presente, não há história como ato de conhecimento. Consideramos, portanto, que a tradução, aqui unida ao estudo da história, torna-se um instrumento que contribui para dar visibilidade ao passado e, por conseguinte, às questões do tempo presente. Que os leitores e leitoras destas páginas, ao entrarem em contato com as ideias do autor, venham a refletir sobre como os indígenas do Brasil têm, desde 1500, diariamente lutado pela manutenção dos seus direitos e da sua dignidade, ameaçada por projetos genocidas como o caso dos garimpos ilegais nas terras Yanomami, que não apenas destroem a natureza como também sujeitam seus quase 30 mil habitantes a todo tipo de violência física e emocional, a contaminações, fome e doenças14. E que a mensagem de respeito à natureza – a urihi a –, assim transmitida pelo xamã Yanomami Davi Kopenawa, que deixamos aqui como um contraponto às ideias de Buscalioni (1901) ainda presentes nos nossos dias, possa servir como um antídoto e remédio à continuidade do pensamento colonizatório:
A terra da floresta possui um sopro vital, wixia, que é muito longo. O dos seres humanos é curto: vivemos e morremos depressa. Se não a desmatamos, a floresta não morre. Ela não se decompõe. É graças a seu sopro úmido que as plantas crescem. Quando estamos muito doentes, em estado de fantasma, esse sopro também nos ajuda a nos curarmos. Então, o tomamos emprestado e ficamos bem. Você não vê o sopro dela, mas a floresta respira. Ela não está morta. Olhe para ela, suas árvores estão bem vivas, com folhas vibrantes. Se não tivesse sopro de vida, elas estariam secas. Esse sopro vem do fundo do chão da floresta, dali onde mora seu frescor. Ele também vive em suas águas. Não, a floresta não está morta, como pensam os brancos. Mas, se a destruírem, aí, sim, ela vai morrer
(Albert & Kopenawa, 2023, p. 30).***
No que concerne a tradução do capítulo “Gli Indios Apinages, Gaviões, Carayas, Anambés, Indios di tribù sconosciute” [Os Índios Apinajés, Gaviões, Carajás, Anambés, Índios de tribos desconhecidas], optamos por nos deter tanto quanto possível à letra do texto, de modo que buscamos refletir sobre cada escolha almejando minimizar os efeitos da domesticação do texto, evitando ao máximo aquilo que Berman (2013) chamou de tendências deformadoras, pois nossa intenção foi a de manter a “letra” do viajante europeu para justamente compreender as relações de dominação, cultura, preconceito, entre outras, estabelecidas no diálogo entre o passado e o presente.
De modo geral, Buscalioni faz uso de um estilo simples, com sintaxe bastante próxima da que é comumente usada na língua portuguesa do Brasil. O italiano utilizado pelo autor não apresenta muitas diferenças em relação ao italiano contemporâneo. Naturalmente, não podemos esquecer que palavras e conceitos por si só possuem uma carga semântica com usos específicos em cada época, que podem, com o passar do tempo, sofrer modificações, adquirir novas nuances e significados. Entendemos igualmente que o olhar do tradutor/da tradutora não são neutros, porque são também marcados por valores e perspectivas de sua própria experiência, e nossa escolha foi a de procurar construir um texto em que a materialidade da língua e da cultura do autor ganhem mais espaço. Nosso objetivo primeiro, portanto, não é comunicar ideias, ou meramente transmitir uma mensagem, mas sim, procurar recolocar na língua portuguesa a forma e o conteúdo da escrita de Buscalioni. Felizmente, com o desenvolvimento do campo da tradução comentada, quem traduz pode manifestar-se de modo complementar à tradução propriamente dita, apresentar seu ponto de vista sobre o texto traduzido, sobre as diretrizes pelas quais realizou o projeto tradutório. Em suma, o valor da pesquisa nessa área “[...] situa-se em sua contribuição para o aumento da autoconsciência para a qualidade da tradução” (Williams & Chesterman, 2002, p. 7)15.
Em relação aos procedimentos tradutórios, como o da manutenção da “letra”, alguns exemplos de nossa tradução ilustram nosso modo de verter o texto de Buscalioni (1901). O primeiro é concernente à palavra “índio” ou “indiano”, utilizada para se referir aos habitantes autóctones. Hoje, a palavra “índio” está caindo em desuso, sendo indicado o termo “indígena” ou “autóctone” no seu lugar, mas optamos por mantê-la nas vinte e duas vezes em que o autor a utiliza neste capítulo para marcar o seu posicionamento e a temporalidade da palavra. O mesmo acontece com a palavra “selvagem”. O uso de “selvagem” para descrever os indígenas demonstra o caráter estereotipado com que as nossas populações autóctones eram vistas. Mesmo sabendo e reconhecendo que é uma palavra com forte carga semântica, mantivemos o uso de “selvagem” na tradução justamente para mostrar ao leitor do século XXI a forma como eram descritas as populações indígenas do Brasil e da América.
Quando não encontramos um termo que consideramos adequado na tradução, optamos por estratégias que pudessem de alguma maneira manter a sua iconicidade (Berman, 2013). É o caso da utilização da nota de rodapé número 6, em que explicamos o significado do termo “terriccio”, que foi traduzido por “terra”: “[...] o termo ‘terriccio’ em italiano indica que se trata da terra que está disposta superficialmente no solo, não compactada e misturada com substâncias orgânicas decompostas, especialmente vegetais” (Berman, 2013, p. 75). Ao usar o termo “terriccio” no contexto de um cemitério, o autor especifica um tipo específico de terra, que poderíamos ter traduzido por “terra adubada”, “terra solta” ou ainda “terra orgânica”, contudo, no nosso entender, essas expressões, associadas ao lugar cemitério, poderiam fornecer uma ideia deturpada e mesmo desrespeitosa, empobrecendo a imagem icônica, e por isso optamos pela manutenção do termo neutro “terra” associado à explicação em nota de rodapé. O termo “giaciglio”, utilizado para se referir à cama dos indígenas, também nos obrigou a refletir mais longamente sobre o tema. Em italiano, o termo significa uma cama miserável, ou improvisada, ou ainda um leito para animais. Para não alongar/clarificar o texto, optamos por usar a palavra cama entre aspas, traduzindo-a na expressão: “a parte essencial da ‘cama’”, o que, a nosso ver, e a partir do texto-contexto, manteve a indicação de que se tratava de uma cama humilde. Ainda no sentido de buscar preservar a letra do autor, mantivemos na tradução as palavras estrangeiras usadas pelo autor, bem como procuramos manter tanto a sintaxe quanto a pontuação do texto, e a colocação das palavras no texto.
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